Capítulo Único
Muitos me perguntam o porquê de eu lançar uma biografia tendo menos de trinta anos. Tão nova, eles dizem. E a resposta é sempre a mesma: tenho coisas a contar. Não é a idade, afinal, que determina se tenho ou não experiência, se vivi ou não o suficiente. É a própria vida. E não há algo mais particular e único que ela.
Ainda mais se, de repente, uma garota de uma pequena cidade no interior da Louisiana ganha um campeonato nacional e torna-se promessa olímpica. A fama chega rápido, junto as medalhas e prêmios. As porradas, que sempre a acompanharam dentro dos ringues, tornam-se parte da vida real.
Sou , a tal garota, mas você provavelmente me conhece como Garota Nocaute. Embora todo mundo acredite que esse meu apelido venha dos seis nocautes que já apliquei em competições oficiais, na verdade a história dele é de longe tão legal. E aí chegamos a primeira revelação.
12 de setembro de 2006, 9:38 – Ginásio Municipal.
- Proteja-se, ! – seu treinador gritou - Olhe seu rosto e... um gancho de direita. – ele avisou, um segundo antes de efetivar as palavras, socando o estômago da mulher, que caiu na hora - Nocaute. De novo.
Ele bufou, antes de ajoelhar no lado de uma desorientada depois do choque da mão em sua pele. Segurou-a pelos braços e a levantou, servindo de amparo por uns segundos enquanto ela se recuperava. Um pouco de cor de volta no rosto e um gole de água depois, no entanto, ele já assumiu sua cotidiana postura rígida:
- Já é o terceiro nocaute que eu te dou hoje, . Mais de dez só essa semana, merda! Tem certeza que quer ser algo além de uma fraca que cai no chão a cada soco? – ela somente o encarou, engolindo em seco – Acorde, caralho! Não vou perder meu tempo pra ficar treinando uma garota nocaute.
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Foi meu antigo treinador, , que me apelidou assim, porque, nas minhas primeiras semanas de treinamento, eu era nocauteada sempre. Obviamente, isso mudou. Eu aprendi a me defender e meu corpo se tornou mais musculoso e forte para pancadas. Mas, durante dois anos e as incontáveis melhorias, ele continuava me chamando daquele jeito.
Na época, ainda muito imatura e inocente, acreditava que era algo divertido, o apelido. Que, de alguma forma, ele unia treinador e aluna, nos tornando mais próximos. E, em outro contexto, poderia ser. Mas sempre que era usado por , sua voz enchia-se de grosseria e raiva. Em minha fantasia, era agradável. Na verdade, era humilhante.
Mas até eu me tocar disso, demorou. Eu nasci em uma família de muitos irmãos, mas nenhum deles se tornou meu melhor amigo, o companheiro de todas as horas. As idades e os interesses eram muito diferentes. Nossos pais, tendo que trabalhar o dia todo para nos sustentar, nos davam pouca atenção. Eu me sentia, enquanto crescia, muito sozinha.
Então, apareceu.
23 de maio de 2006, 11:03 – Aula de educação física.
- Temos o prazer de receber o Campeão Estadual Juvenil de boxe Philips. – exclamou o professor.
Os alunos aplaudiram, animados. Em uma cidade pequena, ter alguém nascido lá que se tornara famoso e campeão era motivo de unânime orgulho e admiração. Mas estava especialmente empolgada, porque sempre amara o esporte. E era uma inspiração, uma prova concreta de que seus sonhos eram possíveis.
- É maravilhoso estar aqui. – começou ele – A nostalgia invade meu peito. Eu estudei aqui, vesti minhas primeiras luvas bem ali – apontou para o canto da quadra, perto do gol – E dei meus primeiros socos nessa mesma aula, com esse mesmo professor. – ele sorriu para o velho ao seu lado. – Ok, levei muitos socos antes de conseguir acertar alguns. – brincou, fazendo todos os alunos rirem.
Meia hora depois, todos estavam praticando boxe. Não havia um ringue, então as duplas foram distribuídas ao longo da quadra para lutar. dava o máximo de si, tentando relembrar os escassos ensinamentos que seu professor já dera. Lutava com um garoto bem maior, quem detinha quase as mesmas habilidades que ela. Tentava se defender, mas seus socos certeiros eram certamente sua melhor arma.
- Mão na frente do rosto – ela escutou a voz dele atrás de si e só esse fato a desconcentrou. O lutador aproveitou, desferindo uma espécie de cruzado. – Mais defesa. – continuou , ignorando o soco. Por sorte, foi um soco fraco, atingindo somente sua orelha - Concentre-se.
Ela respirou fundo, colocou uma de suas mãos enluvadas na frente do rosto e recomeçou. A mulher era inegavelmente boa, embora perdida nos passos. observou por poucos segundos, antes de andar até outra dupla.
O sinal bateu e todos correram para os vestiários. , no entanto, foi chamada pelo professor. estava ao seu lado e sorriu para ela. A mulher colocou o cabelo rebelde para trás e abraçou as luvas no peito. Ela economizara quase seis meses de seu trabalho na lanchonete para comprá-las.
- O menino está de volta à cidade. Ele estava na capital, mas se machucou.
A menina assentiu, ciente da história que era a fofoca da cidade. Em um lugar pequeno como aquele, as noticias dos conterrâneos voavam. Principalmente se eles eram famosos fora dali. E campeões, como . Aí, nem os trens vindo da capital eram suficientemente velozes para alcançarem as fofocas.
O professor falou mais. Relembrou algumas memórias da época de adolescente do garoto, elogiou-o, orgulhou-se do rapaz e enquanto este sorria, num misto de carinho e petulância, somente assentia, mal prestando atenção.
- Você é muito boa, garota. – exclamou, apontando-a com o queixo. E foi o que a garota precisava para voltar a ficar atenta. Seus olhos se esbugalharam, seus dedos apertaram forte as luvas grossas em suas mãos. Seu coração disparou. Ela sorriu, não podendo esconder a felicidade de escutar aquilo de um ídolo. – Pra uma magrela.
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Mexendo em minhas lembranças, suas palavras transpassam minha mente. Durante muito tempo, as palavras dele me pareciam agulhas. E, cada vez que eu as escutava, era como se as agulhas estivessem encostando em minha pele. Sabe, pequenas pontadas que você não sabe de onde vem e que, no começo, te fazem sentir cocegas. Até mesmo rir. Mas, depois, bem, elas não param! Continuam pinicando e pinicando e pinicando em sua pele e você não sabe de onde vem e... chega!
Mas eu não gritei isso por muito tempo e, naquele dia no ginásio, na primeira vez que vi o campeão - e não somente , o cara seis anos mais velho que frequentou a mesma escola que eu – eu também não brandeei um basta. Não, ao contrário, eu festejei um começo.
tinha lesionado o joelho gravemente, um mês antes. Na verdade, era uma surpresa que ele conseguisse andar sem ajuda de muletas, embora que ainda mancando. A anatomia tampouco me cabe, já que aprendi a machucar corpos, não concertá-los, mas ele tivera problemas com o ligamento cruzado. Era um machucado raro e bem grave, que o impossibilitaria de lutar profissionalmente o resto da vida.
E aí, bem, eu entro na história dele. Como band-aid. Uma falta de opção. Um prêmio de consolação. E não falo isso por amargura, porque enquanto me importava com o quão eu era importante para ele, eu achava essa minha posição muito satisfatória. E essa foi uma das muitas coisas que só reparei muito depois. Alguém muito especial me disse um dia: não se contente em ser tão pouco na vida de alguém. Há outro lá fora querendo que você seja tudo em sua vida.
Ali, ele se propôs a me treinar. Todos os dias, em minhas manhãs antes da escola. Sábado, o dia todo. Domingo, de manhã novamente. “Eu vou te levar para o Estadual”, ele me jurou. E, realmente, eu cheguei lá. E venci. Mas a que custo?
05 de dezembro de 2006, 20:52 – Ginásio Municipal.
Ela sinalizou, pedindo um tempo. Ele se afastou e ela se jogou no chão ao lado de sua garrafa, bebendo-a em seguida.
- Já está cansada? – inquiriu , fazendo uma careta.
- Estamos treinando desde às duas da tarde, acho que tenho esse direito. – rebateu , um tanto áspera.
- Fizemos uma pausa de meia hora às sete da noite. E não adianta ficar irritadinha. – afirmou ele, revirando os olhos. – Você tem que aceitar que é uma fracote. – forçou um sorriso ácido.
- Tenho um... lance, agora às nove, já estou um tanto atrasada, então acho que devemos encerrar o dia de hoje. – ela falou, ignorando as palavras do homem.
- É? Mais importante que treinar? Reveja suas prioridades, garota nocaute.
- Eu já perdi o aniversário da minha melhor amiga, na outra semana, porque fiquei treinando até tarde. Não vou perder o encontro de hoje. – ela sorriu, suas bochechas já vermelhas do esforço esquentando de vergonha – Um garoto bonitinho da minha turma me chamou pra comer uma pizza.
Deu de ombros ao fim, fingindo não se importar, embora seu estômago revirasse de ansiedade. Ela precisara contar para alguém e, na falta da melhor amiga, que não estava falando com ela por conta da ausência dela em sua festinha, achou que era um bom confidente. Afinal, ele estava sempre com ela e a ajudava tanto a melhorar... Era seu amigo.
Mas um amigo agiria assim?
- Um encontro? – ele soltou uma risada, debochada. – Não acredito que você vai abrir as pernas pro primeiro que aparecer. – suspirou, meneando a cabeça negativamente.
Ela levantou de supetão, os olhos arregalados de raiva, enquanto ajeitava as luvas em sua mão. O encarou, mostrando a posição de ataque. Mas ele não parou de provocar.
- Vai, vai sim. Vai engravidar, vai casar com um filho da puta qualquer, vai ficar trancada nessa cidade merda o resto da vida. – ela avançou até ele com passos largos. – É isso que você quer? – então ela começou a lhe socar.
Ela começou com técnica. Tentando proteger ao máximo o rosto com um dos braços, enquanto o mais forte oferecia ganchos e cruzados. tentava externar a raiva das palavras duras no treinamento. Mas não parava.
- Porque é isso que vai acontecer se você não se dedicar, garota. Se ficar saindo cedo dos treinos, faltando. Convenhamos, você não é inteligente. Você é burra, . Burra! Se não conseguir chegar ao Estadual, acabou pra você.
Mais socos. Agora, descontrolados. Sem técnica alguma, sem preocupação alguma. Ela só queria socá-lo, queria fazê-lo parar de falar aquelas coisas horríveis. Ela conseguiria ir para o Estadual. E, também, era só um encontro, não é como se fosse definir sua vida.
aproveitou a baixa guarda da mulher e deu um certeiro golpe em seu queixo. Ela praticamente voou até o chão, os pensamentos loucos em sua cabeça se esvaindo, os olhos desconexos piscando rapidamente, a dor a invadindo.
- Levante-se, garota nocaute. Nós só sairemos daqui quando você me derrubar.
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sabotou aquele encontro e todos os outros nos meses seguintes. E isso me fez ter raiva dele em alguns momentos, claro, mas sobretudo me levantou uma questão: ele está com ciúmes de mim? E a simples possibilidade me fazia sorrir de um jeito esperançoso.
O que era uma besteira. Veja bem, eu sei que ciúme pode ser legal e até importante em uma relação, mas depende muito do tipo e do quão discreto ele é. Algo que faz você desistir de saídas e sonhos, que desestrutura seus pensamentos, que deixa você mal, que beira a loucura, não é são. Não é normal.
Eu gostava, como tantas garotas ainda acham maravilhoso. A falta de afeto de minha família me levou a considerar qualquer mínima demonstração, boa ou ruim, de se importar comigo, divina. E, não vou mentir, muitas vezes aquele negócio meio doentio me fez me sentir melhor.
Mas, não vale a pena. É triplicada a quantidade de vezes que o mesmo exagero te rebaixa, te entristece. E, o pior, de alguma forma você começa a sentir que a culpa é sua. Que você é ousada, ou estranha, ou simplesmente não merece quem está com você. Não sei como, sua cabeça acredita que a culpa sempre recai em você.
Mas estou mergulhando em profundos pensamentos. Vamos em partes e, como em qualquer história de amor – ou algo que a sociedade supõe que seja amor-, vamos começar do início.
30 de agosto de 2007, 18:20 – Ginásio Municipal.
Hoje, estava inspirada. Treinando a tarde toda, aproveitando as férias escolares, ela aplicara diversos golpes certeiros, inclusive um cruzado que recebera elogios do treinador. Sua pior parte, a defesa, também estava muito boa. Os braços no rosto o protegendo e os poucos socos que passaram pela sua barreira não a fizeram nem perder o equilíbrio.
Ela sorriu, olhando para com as mãos na cintura. Ele riu da postura da mulher, tão confiante e insolente, como raras vezes já vira.
- Você foi bem, garota nocaute. Parabéns.
arregalou os olhos, mal acreditando nas palavras. Ele já havia falado, ao longo do mais de um ano de treinamento, algumas palavras legais: bom soco, ótimo, continue assim. Mas nada como parabéns! E como aquele sorriso brilhante e animado dele.
Ela pulou em seus braços, o abraçando pelo pescoço. Estava tão feliz de ter recebido um elogio desses de . Afinal, ele era seu ídolo, além de seu treinador. A mulher se inspirava nele em cada soco e defesa, lembrando seus golpes e medalhas. Depois de tanto treinar ao seu lado, de passar horas e horas tentando evoluir, ela parecia finalmente ter chegado a um posto aceitável.
- Não sabia que podia falar tantas palavras gentis, treinador.
- Ah, eu falo quando é verdade. – respondeu, se aproximando. Ela somente sorriu, então ele pediu que ela levantasse os braços. Obedecendo, ele puxou o velcro das luvas ainda nas mãos da garota e começou a retirá-las, não desviando o olhar dos olhos dela. – Acho que isso merece uma comemoração, . Você merece um agrado depois de tanto esforço. – piscou um dos olhos ao fim, abrindo o sorriso sacana.
Ela soltou uma risada, sem graça. Então, viu suas luvas sendo devolvidas e agradeceu.
- Vamos a um lugar aqui perto. Eles têm um hambúrguer delicioso.
30 de agosto de 2007, 19:34 – Wilson’s Bar.
As paredes estavam desbotadas, a tinta branca sumindo na sujeira. Pouca gente lotava o lugar, que cheirava a fumo e álcool. Havia, no máximo, três mulheres, em comparação a dezenas de homens. No momento em que entrou, ela se encolheu.
- Isso é um bar, treinador. - olhou para o rapaz, a abraçou pelo ombro antes de falar:
-Sim, detalhe. Eles realmente têm um ótimo hambúrguer. Não é muito saudável, mas hoje você pode - piscou o olho - Abra um sorriso, garota nocaute. - ele sorriu e ela, vendo-o ser gentil, também mostrou os dentes - Vamos.
Eles avançaram até o balcão. Enquanto percorriam o ambiente, receberam olhares de atenção. A jovem, com seu short curto e corpo definido de atleta, principalmente. Então, mudou seu braço de lugar. Dos ombros dela, em uma postura fraternal, para a cintura, com intenção de mostrar posse.
percebeu e gostou. Porque era bom se sentir protegida, diante de tantos olhares estranhos sem pudor. E, também, porque era , afinal. Seu ídolo. Que, diga-se de passagem, tinha um sorriso lindo.
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Se eu achasse uma lâmpada mágica e, esfregando-a, pudesse fazer um pedido, eu imploraria por voltar no tempo e recusar o convite de naquela noite, no verão de 2007. Sem nem pensar duas vezes. É como dizem, há momentos que definem nossa vida. E esse, com certeza, é um. Ao aceitar a proposta de meu antigo treinador, eu aceitei muito mais que um hambúrguer ou uma noite de comemoração; eu aceitei humilhações, sofrimentos, submissões.
30 de agosto de 2007, 23:01 – Wilson’s Bar.
- Estou cansada, , vamos embora. - murmurou a garota, fazendo uma careta.
deu mais um gole na caneca de cerveja antes de sorrir forçadamente para ela e lhe dar um beijo babado na bochecha.
- Não, . - gemeu ele - Beba, vai.
- Eu já bebi duas canecas. – ela balançou a caneca vazia na bancada, comprovando suas palavras – Temos treino amanhã cedo. E, caso tenha esquecido, ainda tenho dezessete.
- Regras babacas. – respondeu - Eu bebo desde os treze. Nunca virei viciado, tampouco fazia mal ao meu treino.
- Bem, sorte sua. – ela deu de ombros, pouco ligando. - Depois de três hambúrgueres enormes e gordurosos, me surpreende você ainda estar de pé.
- Ei, garota burrinha, eu estou sentado! - soltou, rindo, apontando para o banco em que sentava.
Ela revirou os olhos, levantando do banco em que estava sentada. Já estava preparada para sair dali, mesmo sozinha, mas o rapaz rapidamente a segurou pelo braço. Ela tentou sair do cárcere, mas em resposta recebeu um aperto mais forte.
- Me larga, ! - falou, aumentando a voz.
- Ei, nervosinha, relaxe. - riu amargamente - Eu já vou te levar pra casa, em segurança, como um cavaleiro em um alazão branco. - riu de novo, se achando engraçado - Fique, minha linda. Só terminar essa cerveja.
E, por algum motivo, ela ficou.
Meia hora depois, os dois tinham passado por alguns shots de tequila e a mulher se mostrava mais animada. Eles conversavam e riam. Em algum momento, tinha voltado com seu braço para a cintura de . Ela, novamente, não se opôs. Mas, quando ele tentou aproximar as duas bocas, ela desviou o rosto.
- Gata, não me faça sofrer assim. - murmurou ele, num gemido.
- Não vamos fazer isso, . Você é meu treinador, as coisas podem ficar confusas.
- Nada, . - Ele deslizou as mãos pela lateral do corpo da mulher, até o quadril, olhando-a por completo. - Você está gostosa. E graças a mim. - brincou, referindo-se aos treinos pesados - Tudo bem, a genética ajuda. - e sorriu, galanteador.
- Eu devo receber isso como um elogio?
- Ai, nervosinha. - deu um beijo estalado no pescoço da mulher. Não se afastou, somente soltou a respiração e voltou a falar, já segurando o pescoço da mulher - Quero você, linda.
Ela abraçou pelo pescoço, cruzando suas mãos atrás do mesmo. Mas quando ele foi juntar os lábios, ela desviou novamente. Ele bufou.
- Não, treinador. - relutou ela, a voz tremida, o bafo de álcool saindo junto com as poucas palavras.
- Não faça doce, garota. Vamos, facilite.
Ele a agarrou pela cintura, puxando-a e grudando-a nele. Eles já estavam em pé, mas pela bebida em seu sangue, a mulher perdera o equilíbrio facilmente. No quase tombo, a segurou, enquanto ela gargalhava. Quando voltou a ter seus pés no chão, ele voltou a tentar juntar as bocas. Ela gemeu em protesto, as mãos agora nos braços musculosos dele.
- Ah, entendi. Você é... novata. Bem, garota nocaute, assim como no ringue, - ele sorriu, malicioso - eu também posso ensinar tudo pra você.
Finalmente, ele a beijou. Ela não respondeu por um momento. Então, ainda tentou empurrar o muro que era seu abdômen, mas depois de alguns segundos, da boca dele grudada na sua, nas mãos dele descobrindo o corpo dela, desistiu e se afundou no beijo.
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Afundei-me também naquela relação doentia. O beijo roubado virou sedento, louco, bom. Sim, beijava bem. Mas por vezes - e a quantidade foi aumentando com o passar do tempo - os beijos eram forçados, ruins, dominadores, nojentos.
Eu não era novata, como supusera. Mas não havia beijado muitas bocas também. O pouco de carinho, misturado com o intenso desejo e ousadia, me iludiram. Aquele dia, entrei em casa me sentindo feliz. A briga estridente entre meus pais nem me incomodou. Eu me sentia em outro mundo.
Obviamente, vocês já sabem que quem me colocou nesse universo alternativo também o destruiu.
23 de janeiro de 2008, 17:13 – Casa de .
- Linda, - abraçou a mulher por trás, beijando seu pescoço e a agarrando pela cintura – Estou com saudades. – sussurrou, o bafo quente perto do ouvido de .
- Estou fazendo um trabalho, amor. – respondeu, tentando ignorar os beijos doces que recebia. Ainda faltavam quinze páginas discorrendo sobre o Renascimento e a análise de suas mais características obras.
- Depois você faz, mais tarde. – a mão dele avançou pelo corpo da mulher, tocando-o por completo – Quero você – e, para fortificar isso, deixou suas mãos nos seios da mulher, possessivo.
- , por favor. – sua voz saiu irritada e ela retirou as mãos dele do corpo dela de forma bruta – Tenho que terminar isso. Agora.
- Bom, - ele bufou, desistindo e se jogando na cama – estou vendo suas prioridades. Pensava que era mais importante pra você. – murmurou, demonstrando-se abatido.
- Ah, não jogue essa. – exclamou, parando a pesquisa e olhando para o namorado. – Eu te amo. Você e a luta são as duas coisas mais importantes na minha vida. – ela levantou, aproximando-se dele e lhe dando um beijo estalado - Você sabe disso.
- Você não sabe demonstrar muito bem, fica difícil. – ele deu de ombros, ainda rancoroso. Ela deu outro selinho nele e, dessa vez, ele sorriu com os lábios grudados no dela. Uma de suas mãos foi para os cabelos dela, emaranhando-se ali. A outra foi para a cintura, puxando a mulher para mais perto de si.
a deitou na cama, beijando seu pescoço e colo. Com pressa, já levantava a blusa dela. Ela puxava os cabelos dele, aproveitando os carinhos.
- Sabe, gostosa, você devia largar a escola. – ele falou entre beijos e ela só soltou um resmungo, confusa com um início de conversa no meio da pegação. – Com as aulas e provas e trabalhos, além dos treinos, sobra muito pouco tempo pra mim. – mordeu seu pescoço, marcando o local. gemeu, num misto de prazer e dor – Não gosto disso.
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Relembrar o conselho de me faz rir. Graças aos céus eu ignorara suas estúpidas palavras e continuei indo ao colégio. Eu sabia que era importante ter essa formação e nem mesmo as lutas, ou ele, iriam me privar de me formar.
Mas de várias outras coisas me privei por conta das duas coisas. O esporte tem disso: fazer você, desde muito novo, fazer escolhas, ter responsabilidade, ser rígido e focado. Em muitas outras biografias de esportitistas, vocês vão escutar que eles deixaram de ir a festas, de sair para o cinema com os amigos, de viajar, para treinar. Todavia, minha história é um pouco diferente.
Por incrível que pareça, não era a luta que me impedia de fazer tudo isso. Era . Meu próprio namorado. A desculpa continuava a ser o esporte, sim, mas entre o céu encoberto havia muito mais. Loucura, ciúmes, dominação.
Dentro do ringue, eu recebia os socos diretos dele, físicos e verbais. Palavras esdrúxulas, rebaixamentos, derrubadas. E, segundo ele, eram os esforços para eu me tornar uma atleta melhor. Fora do ringue era pior. Porque, na vida real, as porradas continuavam. Elas só viravam mais discretas, mais fantasiadas. Mas era ali que os golpes eram pra valer.
03 de abril de 2008, 10:34 – Quadra Poliesportiva da cidade vizinha.
Habilmente, esquivou-se do soco da mulher, livrando-se de um belo roxo na bochecha. Com as mãos em frente ao rosto em defesa, começou a se mover rapidamente pelo ringue, numa tentativa de dificultar golpes da adversária.
Então, aproveitando a ligeira distração da outra, arremessou o punho esquerdo em linha reta, aplicando um jab . Apesar de ser um golpe considerado fraco e simples, foi tão certeiro, acertando o queixo da mulher e virando seu rosto rapidamente, que a oponente caiu no chão. O árbitro começou a contar até oito, acompanhado pela pequena torcida.
A mulher no chão tinha sangue saindo do nariz e do supercílio. Com certeza também tinha um grande roxo no abdômen, decorrente de um hook de minutos antes. A última também não estava muito melhor, o maxilar dolorido depois de um cruzado e alguns diretos, o gosto metálico de sangue espalhando-se pela boca. Mas parecia que sairia vitoriosa dali.
Nocaute.
A pequena torcida gritou e levantou os braços, comemorando. Ela esperou que o árbitro conferisse a situação da mulher e, logo depois, atestando que ela estava bem, ele levantou um dos braços da vitoriosa, anunciando-a.
Um sorridente invadiu o ringue, passando por entre as cordas, e correu até a namorada, pegando-a pela cintura e rodando-a no ar. Eles olharam um pro outro e riram juntos, a felicidade transbordando.
Era o primeiro nocaute dela e, embora não tivesse sido muito bonito, fizera ganhar e avançar para as quartas-de-finais da competição estadual. E aquela era a melhor sensação de sua vida. Sentir os gritos dos torcedores pra ela, sentir a vitória, sentir os braços de abraçados nela.
Mas essa euforia durou pouco. Enquanto a mulher saia do ringue para ir para o vestiário, tomar um banho e trocar de roupa, ela viu seu treinador andar até uma mulher. Ela acompanhava a lutadora perdedora e vestia uma roupa esportiva, totalmente colada. percebeu quando notou esse detalhe. E viu o namorado olhar todo o corpo bonito da outra.
Isso fez parar no meio do caminho, ajeitando a bolsa pesada no ombro e observando o que se desenrolaria. Ela viu puxar conversa, viu a mulher rir de algo engraçado, viu quando ele arranjou qualquer desculpa para tocar a cintura da estranha.
- ! – ela gritou, não suportando mais aquilo. Ele a ignorou, então ela repetiu seu nome, várias vezes, até que ele virou. – Preciso falar com você! – completou, vendo que ele não se mostrava disposto a andar até .
- Já vou. Te encontro lá dentro, . – e desviou o olhar de volta para a bonita estranha, nem se importando com a namorada ou o evidente flerte em sua frente.
Aquilo, entretanto, parecia não ser o bastante para ele. Quase uma hora depois, quando o casal saia do ginásio, resolveu abordar a luta vencida, de uma forma nada gentil.
- Foi uma boa luta, mas você tem que prestar mais atenção na adversária.
- Eu ganhei, amor! – rebateu , não entendendo o porquê dele falar sobre os erros dela naquele dia.
- Sim, eu sei. Mas grandes merdas. – deu de ombros - Você ganhou porque a outra era ainda pior que você.
- O quê? – foi a única coisa que ela conseguiu soltar, embasbacada pelas palavras rudes.
- Aquela garota era uma idiota. Não sabia dar nem um soco forte. Não sei como chegou tão longe.
- Bem, eu levei alguns socos dela. Garanto que doem bastante.
- , - ele revirou os olhos – você é tão fraca como ela. Você teve é sorte.
- Sério? – ela bufou, negando com a cabeça – E meus quase dois anos treinando com você, não serviram pra nada?
- Sinceramente, pra muito pouco.
Ela retirou sua mão do entrelaço da dele, porque de repente aquela junção começou a arder. O encarou, sem nem acreditar que ele fala aquilo seriamente. Eles haviam gastado milhares de horas correndo, socando, defendendo. Ela havia tido tantos roxos que já perdera a conta. Desistira de tantas coisas pra lutar. E ele lhe machucava tão facilmente, mal se importando com ela. Que, vale lembrar, era mais do que sua aprendiz. Era sua namorada. A quem, por vezes, ele dizia que amava.
De repente, a dor no maxilar, o sangue mal estancado em sua boca, pareciam não incomodar nada. A dor no fundo do peito era muito maior. Quando ela acordara aquela manhã, pensara que ganhar aquela luta significaria uma felicidade incondicional. Mas, naquele momento, a tristeza se mostrava bem mais forte.
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Mesmo em meus momentos mais alegres, uma parte de mim sofria. Eu não sabia o porquê, mas nunca me senti plenamente bem. Com a escola, com a luta, com o namoro. Principalmente, comigo mesma. Eu nunca me senti satisfeita. Com outra perspectiva, anos depois, eu pude ver que esse meu problema emocional tinha dois principais aspectos: primeiro, a falta de afeição da minha família. Segundo, o relacionamento conturbado com .
O primeiro era complexo. Toda família é. Eu sempre soube que meus pais não eram maus ou desleixados, mas entre dias corridos e muito cansaço, eles simplesmente não sabiam o que fazer com os filhos. Meus irmãos tampouco eram culpados de algo. Eram crianças ou adolescentes como eu, cresceram nas mesmas circunstâncias e com suas particularidades reagiam a situação.
O segundo era bastante simples. Se não fosse, é claro, o – falso – amor que nos envolvia. Esse sentimento tem a tendência de embaçar tudo, afinal. Tanto que quando me livrei dele, pude ver minha mente clarear, cada ação e sensação tornando-se óbvia. é cruel, sempre fora. Alguns momentos de carinho, algumas palavras fofas, alguns beijos apaixonados não mudam esse fato. Com suas atitudes e minhas angústias, ele sabia exatamente o que fazia. Ele tinha um propósito ali e este estava longe de ser minha felicidade.
11 de julho de 2008, 15:42 – Praça da cidade.
- Aí meu pai levou todos nós para a praia. – continuou, com um sorriso no rosto, relembrando o final de semana – Foi tão divertido! Nós comemos peixe e disputamos quem ficava mais tempo de baixo d’água. – ela desviou o olhar para o namorado, que andava a seu lado. Ele olhava para frente, parecendo um tanto perdido. – Estava tudo muito bem. Até que eu me afoguei e morri. – jogou a mentira, testando se estava ou não prestando atenção em suas palavras. – Legal, né?
- Uhum. – ele respondeu somente, fazendo a garota bufar. Em seguida, ela puxou um dos braços dele, segurando-o no meio da praça. O rapaz a encarou, sem entender.
- Sou um fantasma legal, é isso? – uma careta de confusão se fez no rosto dele e revirou os olhos – Você não estava escutando o que eu estava dizendo.
- Bom, é meio difícil com você com esses panos que chama de roupa. – rebateu , seco. – Estou olhando cada homem que passa com uma carranca pra eles tirarem o olho do que é meu. Você, obviamente, não ajuda em nada mostrando tudo. – sorriu, cínico.
- O que minhas roupas tem de mais? – ela olhou para si mesma, vendo um short jeans curto e uma blusa de alcinhas. – Está quente.
- A questão é exatamente essa: não tem de mais, tem de menos. Pouco tecido. Dá pra ver suas coxas, seus braços, seus seios... até seu útero.
- Não seja exagerado, amor. – deu um leve empurrão. Ele a capturou pelos braços enquanto se desiquilibrava e a puxou para si. Por pouco, não foram ao chão. No entanto, os dois continuaram de pé, agarrados um no outro.
- Isso aqui é meu, garota. – afirmou, deslizando as mãos pelo corpo da mulher, a cariciando e, de tempo em tempos, apertando-a levemente. – Eu só estou cuidando do que é meu.
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Nojo.
Tenho que respirar fundo repetidamente toda vez que me recordo disso, para afastar a ânsia de vômito que chega a minha garganta. Então, me seguro para simplesmente não correr atrás de depois de tanto tempo para dar milhões de voadoras nele.
Aquele ciúme doentio fazia sentido pra mim. Mais do que isso, eu achava lindo o fato dele se importar com os olhares alheios. Eu gostava que ele me chamasse de sua, tratando-me como sua propriedade. Aquelas coisas sórdidas me faziam me sentir melhor superficialmente. Eu era, de alguma forma, incluída em um pequeno grupo. Era a demonstração de que eu importava para alguém.
Tudo que eu queria era estar presente na vida de . E todo o horrível resto sumia.
26 de novembro de 2008, 13:12 – Ringue Estadual.
As regras do boxe variam. No armador, basicamente muda a cada ringue. Em competições, há alguns princípios. Sem golpes baixos, por exemplo. Mas, ainda sim, se diferenciam muito das olimpíadas. Naquele dia frio, na final estadual do boxe feminino, não esperavam-se três rounds de dois minutos. Esperavam muitos golpes até ter alguém acabada no chão.
Por isso, aquela luta já começava a alcançar a meia hora. As finalistas se encaravam, rodando pelo ringue. Respiravam forçadamente, já cansadas de tantas porradas levadas. Nos primeiros segundos, depois de levar um jab-cruzado seguido de um direto, reparara que aquela oponente não seria fácil de derrubar.
Ela sentira seu maxilar ranger, seu ouvido explodir, seu sangue escorrer. O nariz pulsava, então provavelmente ele estava quebrado. Além disso, seus braços doíam do esforço, apesar de estar acostumada a ficar treinando por horas.
Aproximou-se da oponente agilmente e a abraçou com os braços enluvados, segurando-a e impedindo-a de desferir mais golpes. Pode ouvir o suspiro aliviado da mulher e por pouco não a escutou agradecer pela atitude. Afinal, ela não estava muito melhor que . Seu olho esquerdo estava ficando progressivamente roxo e inchado depois de uma série de cruzados. A lateral de seu rosto, vítima de alguns diretos, não estava em melhor estado. Sangue saia do nariz.
O clinch, esse apoio mútuo com pausa de socos, durou poucos segundos. Logo, a adversária afastou os corpos, rangendo e deferindo uma combinação de jabs e diretos. Por sorte, a cada golpe conseguiu se proteger, com os braços sentindo os socos superficialmente. Então, foi a vez de revidar com um fraco uppercut, que não fez mais do que cócegas no queixo da outra.
estava cansada, desconcentrada e ficando fraca. A cada instante que passava, ela sentia mais dificuldade para respirar, mais dor, mais nervoso. Sabia que provavelmente a oponente estava tão ruim quanto ela, mas tinha medo de ser o elo mais fácil de arrebentar.
Um gancho em seu abdômen fez a mulher piscar os olhos rapidamente e acordar. Ela encolheu-se, sentindo a dor perpassar por seus membros e decidiu agir. sabia que não aguentaria por muito mais tempo. Se continuasse só na defensiva, com bloqueios e esquivas, uma hora iria sucumbir.
Era hora da ação.
viu quando a mulher paralisou-se entre ações, indecisa, abrindo um pouco a guarda. Sem pensar nem ao menos uma vez, levou sua mão mais forte para frente, lançando-a de forma descendente, com intuito de atingir o queixo da adversária com toda a potência existente em si.
Um swing era bastante arriscado, sempre. É o golpe mais potente, capaz de acabar com uma luta em milésimos de segundos, mas perigoso e ousado. Ter uma iniciante fazendo aquilo com tanto empenho em uma final fez a plateia gritar em euforia.
Ela respirou profundamente, sabendo que ali tinha decidido se ganharia ou perderia. As frações de segundo demoraram a passar, como uma aula chata, enquanto seus pensamentos e inseguranças bombardeavam sua cabeça. Viu a cabeça da mulher ir pra trás com o soco e o corpo pender até o chão.
Soltou um grito, enquanto via o árbitro olhá-la com assombro e corria até a outra. Seu coração batia acelerado quando foi anunciado o fim da luta e a vencedora estadual. Ela pulou, comemorou, chorou, caiu nos braços de um caloroso .
Ela tinha conseguido.
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Aquele dia se tornara o dia mais feliz da minha vida, até que em 2012, na primeira edição do boxe olímpico feminino, eu ganhei a prata. Mesmo com o nacional, que veio em 2010 e várias outras medalhas de outras competições, a vitória estadual é especial. Porque foi algo que batalhei durante dois anos e sonhei durante quase dez. Porque foi algo que me mostrou: você é boa, você é capaz, e não me deixou desistir. Mas, principalmente, porque foi algo que me fez acordar: ei, você não merece isso. Ninguém merece.
10 de fevereiro de 2009, 16:12 – Casa do .
- Você não sabe o que acabou de acontecer! – gritou uma animada , assim que o namorado abriu a porta de sua casa. – Me ligaram!
a encarou, esperando por mais. Até aí, nenhuma novidade. Desde que tinha ganhado o campeonato estadual, ela tinha se tornado uma celebridade na cidade e proximidades. Deu entrevistas, apareceu até na televisão. Nada como a fama nacional do rapaz a sua frente, mas o suficiente para deixá-la maravilhada e ainda mais inspirada a superar suas fraquezas.
- Um agente me ligou. – ela continuou – Ele disse que quer cuidar da minha carreira. Disse que tem um Sparring, Kevin Hills, que quer muito me treinar. Kevin Hills! Treinador das melhores pugilistas do ano passado. – ela sorriu, os olhos esbugalhando de excitação.
- Ah, entendi. – respondeu, sem a mesma empolgação – Você está ficando famosa e muitos caras mal-intencionados vão parecer, . Precisa ser mais atenta, menos burrinha.
- Você escutou o que eu disse? – ela perguntou, sem acreditar na resposta dele – Hills é conhecido nacionalmente. É muito bem falado e indicado. Ele tem um suporte incrível também. Vários equipamentos de primeira linha, um ringue maravilhoso...
- Em Louisiana?
- Não. Na Califórnia. – ela forçou um sorriso. Sabia que essa era a parte difícil: a distância entre os namorados.
- Longe. É bom que você já tem seu treinador e ele mora a cinco minutos de você. – apontou para si mesmo – E ele é o melhor. – exclamou, convencido.
- Olha, amor – começou, respirando fundo – Você foi maravilhoso comigo. Me ajudou a ficar cada vez melhor, mas não posso continuar nesse fim de mundo. Quero fazer do boxe minha vida e ganhar estaduais não é suficiente. – deu um beijo estalado nos lábios dele – Mas eu te amo. Vamos continuar o namoro a distância, nos vendo de vez em quando, e tudo dará certo. Sempre ficarei agradecida pelo que fez por mim. Aquela medalha do estadual é sua também.
- Claro. – ele bufou – Você ganhou aquilo por minha causa. Sem mim, você não teria passado do primeiro soco nas eliminatórias. Porque você é uma fracote, . E me abandonar agora vai acabar com a sua vida. Você será um total fracasso, uma merda.
Ela engoliu em seco, absorvendo as cruéis palavras. Seus olhos encheram d’ água. Sabia que seria difícil, mas pensava que seria por conta do namoro, não da luta. Tinha se iludido ao pensar que ficaria feliz com sua conquista, com sua caminhada cada vez mais segura e feliz para o sucesso. Não. Ele a ridicularizou. A fez se sentir um nada. E quantas vezes já havia feito aquilo durante aqueles anos? Milhares.
- Você realmente quer meu bem, ? – sua voz tinha perdido toda a alegria e, agora, era extremamente polida e séria, contrastando com as lágrimas teimosas que insistiam em cair – Você quer que eu seja feliz?
- Sim, linda. Tanto que estou te falando pra não fazer essa merda.
- Eu quero tentar uma carreira. Luta é tudo que eu mais amo, você sabe disso.
- É? Eu também não era algo que você amava?
- Não fale assim, não vamos nos separar. Só vou treinar com outra pessoa, mas continuarei sendo sua namorada.
- Você não vai esquecer essa proposta ridícula? – ele aumentou a voz e arregalou os olhos. o encarou, mais forte que nunca, e negou com a cabeça – Você está me abandonando, sua vadia. Diz que me ama, mas está me deixando pra trás.
- Não distorça minhas palavras. – ela segurou os braços dele carinhosamente e começou a fazer carinho por lá, mas ele não se acalmou.
- Sabe, – riu grosseiro – você vai se foder na cidade grande. Você sabe dar alguns socos, sim, mas e de resto? Você é uma idiota. Uma burra. Você não tem ninguém ao seu lado, porque ninguém se importa com você. Ninguém liga pra você. Nada de amigos, família ausente. E você está virando as costas pra única pessoa que te ajudou. Que gosta de você. Você é mesmo muito babaca. Uma anta.
- ! – ela o repreendeu, porque não queria escutar aquelas coisas. Embora parte fosse verdade, era bárbaro, era doloroso e ele falava de propósito, com o único intuito de feri-la.
- Vai ver você não quer ir pra Califórnia pra treinar, mas pra poder usar as merdas das suas roupas curtas, biquínis pequenos e dar pra qualquer merda que fale. Porque é isso que você é, uma puta, uma...
E foi ali. Naquele instante. Com aquelas palavras. Que a caixinha da complacência, da paciência explodiu. De repente, o amor, a carência, a comodidade, nada mais parecia ser o suficiente. Simplesmente não aguentava mais! Palavras rudes, atitudes ciumentas, humilhações gratuitas, culpas jogadas na mulher. Estava farta.
- Quer saber, ? Eu tenho algumas coisas pra falar pra você. Talvez queira se sentar, já que você está se fazendo de frágil e vítima da história.
- Você me usou. – ele a interrompeu, fingindo-se ferido - Me usou para te treinar, te passar conhecimento, te tornar melhor, me fez eu me apaixonar por você e agora que conseguiu o que queria, vai embora. Eu tenho o direito de te xingar, você merece.
Ela riu, amarga. Então mordeu o lábio inferior e assentiu, enquanto tentava formar seu discurso. Tudo se tornara tão claro, tão óbvio e todas as mentiras, submissões, abusos vieram em sua cabeça. Foram tantas coisas que aguentou durante aqueles muitos meses. E por quê? Porque achava que o amava. Porque achava que ele a amava. Que ele se importava com ela. Que tola.
- Não, você não tem o direito de me xingar. E o que eu mereço, e qualquer outro ser humano, é respeito. Independente de qualquer coisa. Eu vou pra Califórnia pra dar pra metade dos caras? Não. Mas eu poderia. E você não pode falar nada quanto a isso, porque estou terminando todo esse lance medonho entre a gente.
- Você é uma ridícula. – murmurou, amargurado.
- Cada palavra que você solta me dá mais vontade de dar pra qualquer um. Pra, sabe, recuperar o tempo perdido. O tempo que fiquei com um idiota, babaca, que sempre me humilhou e nunca realmente se importou comigo. E, sim, eu posso te xingar. Foda-se. Você me xingou durante todos esses anos. Você se aproveitou do seu posto como treinador e depois como namorado pra me rebaixar, me fazer me sentir mal, sempre que queria. Pra seu bel-prazer.
- , eu te amo. Por favor, me perdoa. Eu fiz isso sem querer, eu te amo tanto. – os olhos dele se encheram de lágrimas, sua voz saindo manhosa.
- Você é um filho da puta, . Você não me ama, nunca me amou. Você só se aproveitou de mim. Da minha fragilidade, da minha carência. Me tomou como propriedade. Bem, surpresa, eu não sou sua! Eu não sou de ninguém, a não ser de mim mesma. – suspirou – E não! Eu não vou tirar meu batom vermelho e foda-se você. Vou continuar a usar roupas curtas e foda-se você.
- Você é uma estúpida! – sua voz mudou, agora grosseira, superior – Ninguém te aguenta, só eu. Você nunca vai conseguir ninguém. Você vai ser uma mulher solitária. Eu sou o único que é capaz de te fazer feliz.
- Feliz? – riu ela – Eu nunca fui feliz quando estive com você. Eu tive alguns momentos de felicidade que você fazia questão de destruir! Eu realmente acreditava que você iria me alegrar, mas a verdade é que todas as minhas tristezas e inseguranças durante todo esse tempo foram causadas por você. Então, estou reafirmando, acabamos por aqui. Não quero mais que você toque me mim, que fale qualquer merda falsa ou rude, que finja-se de santo. Sua máscara caiu, ! Você foi um péssimo namorado, mas você é um terrível ser humano.
E mais aliviada do que nunca, ela saiu dali pra sempre.
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Sai da casa dele. Sai da cidade. Sai do relacionamento abusivo e doentio. Sai da carência. Estabeleci um melhor contato com meus pais e meus irmãos. Fui pra Califórnia, aprendi muito com Hills e cheguei às olímpiadas. Nunca mais vi, ouvi, respirei . E agradeço a cada dia por isso.
Muito tempo atrás ele tinha sido meu salvador. Porque ele era bem conhecido na cidade, por ganhar alguns campeonatos. Eu me sentia a pessoa mais sortuda do mundo por tê-lo me treinando. Porque ele se importou comigo. Não de uma maneira boa, como agora noto, mas de fato sempre esteve olhando e vigiando meus passos. E eu gostava, porque as pessoas que eu mais amava não faziam isso por mim.
Eu achava que deveria dever minha vida a ele porque seus treinamentos diários fizeram-me uma atleta melhor. Mas a maturidade – sim, com menos de trinta anos – me fizeram ver que não devo nem agradecê-lo. À custa de quantas lágrimas e xingamentos isso ocorreu? No fundo, ele nunca quis me ajudar. Ele gostava de me fazer sofrer, somente. De fazer de mim sua boneca obediente, sua realização pessoal. No fundo, ele só era cruel.
31 de março de 2010, 11: 07 – Zuma Beach, Malibu.
- Cuidado! – alguém gritou.
Uma bola voadora vinha na direção de , que tinha os olhos fechados por conta do Sol forte. Pressentindo, ela abriu os olhos, esbugalhando-os milésimos de segundo antes da bola bater na sua testa.
- Ai. – reclamou ela, massageando a cabeça. Parecia que a bola havia adquirido alguns quilos só para atingi-la.
Agora, era um rapaz que corria em sua direção, coçando a barba rala. Aproximou-se dela e agachou-se.
- Desculpe, moça bonita. Estava tão vidrado em sua beleza que até esqueci como sacar. – cantou a mulher, com um sorriso de lado. Ela não pode conter a risada depois da tosca cantada. – Não, sério, meu amigo idiota não sabe defender uma linda bola. Está doendo muito? – ele inquiriu, observando a testa machucada e já falando em seguida – Acho que vai formar um galo. Sinto muito. – fez uma careta, então pegou a bola a alguns metros de distância e voltou – Mudando de assunto, você vem sempre por aqui, gata?
Ela esbugalhou os olhos, sem reação. Aquele desconhecido chegara do nada, todo educado e assanhado, e simplesmente não parava de falar.
- Tudo bem, pode me ignorar. Eu mereço um gelo depois dessa. – ele afirmou, fazendo rir de novo.
- Não, bobinho. Embora suas cantadas precisem ser trabalhadas, eu só não respondi por que, bom, você não deixa! – murmurou ela, sorrindo – Você está em um monólogo há cinco minutos.
- Ah, desculpe por isso. – ele coçou a barba novamente, de repente envergonhado. – Ossos do ofício. – uma pausa de um segundo – Pode falar, eu não mordo.
- Muitas desculpas pra quem acabou de se conhecer. – deu de ombros – Então, qual é seu trabalho? Interlocutor de rádio?
- Não, mas é uma boa. – ele riu – Sou jornalista. E você? Nova angel da Victoria Secrets ou atriz revelação da próxima série da Netflix? – ergueu uma das sobrancelhas, curioso.
- Não, nada tão divertido.
- Ei, , se perdeu no caminho? Vem logo – um dos jogadores de vôlei gritou da rede, olhando para o casal. – Deixe pra flertar depois do fim do jogo!
O já não tão estranho escondeu o rosto nas mãos e riu. o encarou, intrigada no rapaz, com um sorriso nos lábios. Ele era bonito, ela pode ver. Ombros largos, um bronzeado típico da Califórnia, um riso agradável, olhos brilhantes. Era terrivelmente engraçado, também.
- Ignore-os. Eles não amadureceram ainda. – exclamou divertido. – Mas, então, pode finalmente responder minhas perguntas iniciais? Juro que não vou te amordaçar nem nada. – colocou as mãos ao alto, brincando.
- Com prazer, . – não podia tirar aquele sorriso de sua boca. Ele era tão encantador. – Não, não venho sempre aqui. Não tenho muito costume de ir à praia, na verdade. Mas estou em Gold State né? – ele a encarou somente, apontando pra boca e balançando o dedo negativamente. Ele não iria falar e interrompê-la. revirou os olhos, rindo. – E sobre o acidente com a bola, estou bem. Tranquilo. Acredite, estou bem acostumada a levar porradas.
- O que isso quer dizer? – ele franziu as sobrancelhas, o sorriso dando lugar a preocupação nítida. – Desculpe, não consegui controlar minha língua.
- Eu luto boxe. – sussurrou ela, mordendo o lábio inferior. – Hora de você correr desesperado, rapaz.
- O quê? Agora que ficou interessante! – e aí ele se jogou na areia ao lado dela, a bola se encaixando entre os pés. Ainda puderam escutar o bufo coletivo dos jogadores, mas nem se importou. – Ainda mais aqui na Califórnia, para um jornalista que entrevista cantoras e modelos. Muito divertido!
- Sério? Você gosta? Quem é seu ídolo? Eu gosto muito do Mike Tyson, mas tem outros que são muito subestimados e... e agora eu que estou falando sem parar. – notou, rindo.
- Sim, você se empolgou bastante. É legal ver esse lado seu. Você é bastante apaixonada pela luta, né?
- Totalmente. Por isso retomo a questão inicial, quem é seu ídolo? Isso é extremamente importante para o futuro do que quer que esteja acontecendo aqui. Dependendo da sua resposta, não vou conseguir olhar na sua cara nunca mais. – falou, fingindo-se séria. Ele esbugalhou os olhos.
- Terreno perigoso. Hm... Anderson Silva?
- Eu vou te dar três segundos de vantagem antes de correr atrás de você. – ela forçou um sorriso.
- Me perdoe, mulher que não sei o nome.
- .
- Me perdoe, , a melhor pugilista dos Estados Unidos. Tenho certeza. – então riu – Não sou exatamente ligado em boxe. Mas sei socar muito bem, olha. – e começou a socar o ar, super desajeitado.
- Você não sabe nada de boxe, é? – inquiriu ela, pensativa, depois de rir pela centésima vez naquela conversa. – Isso é maravilhoso. – e sorriu. – Mas você não vai terminar sua partida de vôlei não? Seus amigos estão te esperando.
- Eu vou devolver a bola, mas volto. Eu estive esperando por você há muito mais tempo. Eles superam. – eles sorriram um pro outro.
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E foi naquele dia que comecei a me apaixonar pelo meu marido.
Ainda mais se, de repente, uma garota de uma pequena cidade no interior da Louisiana ganha um campeonato nacional e torna-se promessa olímpica. A fama chega rápido, junto as medalhas e prêmios. As porradas, que sempre a acompanharam dentro dos ringues, tornam-se parte da vida real.
Sou , a tal garota, mas você provavelmente me conhece como Garota Nocaute. Embora todo mundo acredite que esse meu apelido venha dos seis nocautes que já apliquei em competições oficiais, na verdade a história dele é de longe tão legal. E aí chegamos a primeira revelação.
12 de setembro de 2006, 9:38 – Ginásio Municipal.
- Proteja-se, ! – seu treinador gritou - Olhe seu rosto e... um gancho de direita. – ele avisou, um segundo antes de efetivar as palavras, socando o estômago da mulher, que caiu na hora - Nocaute. De novo.
Ele bufou, antes de ajoelhar no lado de uma desorientada depois do choque da mão em sua pele. Segurou-a pelos braços e a levantou, servindo de amparo por uns segundos enquanto ela se recuperava. Um pouco de cor de volta no rosto e um gole de água depois, no entanto, ele já assumiu sua cotidiana postura rígida:
- Já é o terceiro nocaute que eu te dou hoje, . Mais de dez só essa semana, merda! Tem certeza que quer ser algo além de uma fraca que cai no chão a cada soco? – ela somente o encarou, engolindo em seco – Acorde, caralho! Não vou perder meu tempo pra ficar treinando uma garota nocaute.
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Foi meu antigo treinador, , que me apelidou assim, porque, nas minhas primeiras semanas de treinamento, eu era nocauteada sempre. Obviamente, isso mudou. Eu aprendi a me defender e meu corpo se tornou mais musculoso e forte para pancadas. Mas, durante dois anos e as incontáveis melhorias, ele continuava me chamando daquele jeito.
Na época, ainda muito imatura e inocente, acreditava que era algo divertido, o apelido. Que, de alguma forma, ele unia treinador e aluna, nos tornando mais próximos. E, em outro contexto, poderia ser. Mas sempre que era usado por , sua voz enchia-se de grosseria e raiva. Em minha fantasia, era agradável. Na verdade, era humilhante.
Mas até eu me tocar disso, demorou. Eu nasci em uma família de muitos irmãos, mas nenhum deles se tornou meu melhor amigo, o companheiro de todas as horas. As idades e os interesses eram muito diferentes. Nossos pais, tendo que trabalhar o dia todo para nos sustentar, nos davam pouca atenção. Eu me sentia, enquanto crescia, muito sozinha.
Então, apareceu.
23 de maio de 2006, 11:03 – Aula de educação física.
- Temos o prazer de receber o Campeão Estadual Juvenil de boxe Philips. – exclamou o professor.
Os alunos aplaudiram, animados. Em uma cidade pequena, ter alguém nascido lá que se tornara famoso e campeão era motivo de unânime orgulho e admiração. Mas estava especialmente empolgada, porque sempre amara o esporte. E era uma inspiração, uma prova concreta de que seus sonhos eram possíveis.
- É maravilhoso estar aqui. – começou ele – A nostalgia invade meu peito. Eu estudei aqui, vesti minhas primeiras luvas bem ali – apontou para o canto da quadra, perto do gol – E dei meus primeiros socos nessa mesma aula, com esse mesmo professor. – ele sorriu para o velho ao seu lado. – Ok, levei muitos socos antes de conseguir acertar alguns. – brincou, fazendo todos os alunos rirem.
Meia hora depois, todos estavam praticando boxe. Não havia um ringue, então as duplas foram distribuídas ao longo da quadra para lutar. dava o máximo de si, tentando relembrar os escassos ensinamentos que seu professor já dera. Lutava com um garoto bem maior, quem detinha quase as mesmas habilidades que ela. Tentava se defender, mas seus socos certeiros eram certamente sua melhor arma.
- Mão na frente do rosto – ela escutou a voz dele atrás de si e só esse fato a desconcentrou. O lutador aproveitou, desferindo uma espécie de cruzado. – Mais defesa. – continuou , ignorando o soco. Por sorte, foi um soco fraco, atingindo somente sua orelha - Concentre-se.
Ela respirou fundo, colocou uma de suas mãos enluvadas na frente do rosto e recomeçou. A mulher era inegavelmente boa, embora perdida nos passos. observou por poucos segundos, antes de andar até outra dupla.
O sinal bateu e todos correram para os vestiários. , no entanto, foi chamada pelo professor. estava ao seu lado e sorriu para ela. A mulher colocou o cabelo rebelde para trás e abraçou as luvas no peito. Ela economizara quase seis meses de seu trabalho na lanchonete para comprá-las.
- O menino está de volta à cidade. Ele estava na capital, mas se machucou.
A menina assentiu, ciente da história que era a fofoca da cidade. Em um lugar pequeno como aquele, as noticias dos conterrâneos voavam. Principalmente se eles eram famosos fora dali. E campeões, como . Aí, nem os trens vindo da capital eram suficientemente velozes para alcançarem as fofocas.
O professor falou mais. Relembrou algumas memórias da época de adolescente do garoto, elogiou-o, orgulhou-se do rapaz e enquanto este sorria, num misto de carinho e petulância, somente assentia, mal prestando atenção.
- Você é muito boa, garota. – exclamou, apontando-a com o queixo. E foi o que a garota precisava para voltar a ficar atenta. Seus olhos se esbugalharam, seus dedos apertaram forte as luvas grossas em suas mãos. Seu coração disparou. Ela sorriu, não podendo esconder a felicidade de escutar aquilo de um ídolo. – Pra uma magrela.
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Mexendo em minhas lembranças, suas palavras transpassam minha mente. Durante muito tempo, as palavras dele me pareciam agulhas. E, cada vez que eu as escutava, era como se as agulhas estivessem encostando em minha pele. Sabe, pequenas pontadas que você não sabe de onde vem e que, no começo, te fazem sentir cocegas. Até mesmo rir. Mas, depois, bem, elas não param! Continuam pinicando e pinicando e pinicando em sua pele e você não sabe de onde vem e... chega!
Mas eu não gritei isso por muito tempo e, naquele dia no ginásio, na primeira vez que vi o campeão - e não somente , o cara seis anos mais velho que frequentou a mesma escola que eu – eu também não brandeei um basta. Não, ao contrário, eu festejei um começo.
tinha lesionado o joelho gravemente, um mês antes. Na verdade, era uma surpresa que ele conseguisse andar sem ajuda de muletas, embora que ainda mancando. A anatomia tampouco me cabe, já que aprendi a machucar corpos, não concertá-los, mas ele tivera problemas com o ligamento cruzado. Era um machucado raro e bem grave, que o impossibilitaria de lutar profissionalmente o resto da vida.
E aí, bem, eu entro na história dele. Como band-aid. Uma falta de opção. Um prêmio de consolação. E não falo isso por amargura, porque enquanto me importava com o quão eu era importante para ele, eu achava essa minha posição muito satisfatória. E essa foi uma das muitas coisas que só reparei muito depois. Alguém muito especial me disse um dia: não se contente em ser tão pouco na vida de alguém. Há outro lá fora querendo que você seja tudo em sua vida.
Ali, ele se propôs a me treinar. Todos os dias, em minhas manhãs antes da escola. Sábado, o dia todo. Domingo, de manhã novamente. “Eu vou te levar para o Estadual”, ele me jurou. E, realmente, eu cheguei lá. E venci. Mas a que custo?
05 de dezembro de 2006, 20:52 – Ginásio Municipal.
Ela sinalizou, pedindo um tempo. Ele se afastou e ela se jogou no chão ao lado de sua garrafa, bebendo-a em seguida.
- Já está cansada? – inquiriu , fazendo uma careta.
- Estamos treinando desde às duas da tarde, acho que tenho esse direito. – rebateu , um tanto áspera.
- Fizemos uma pausa de meia hora às sete da noite. E não adianta ficar irritadinha. – afirmou ele, revirando os olhos. – Você tem que aceitar que é uma fracote. – forçou um sorriso ácido.
- Tenho um... lance, agora às nove, já estou um tanto atrasada, então acho que devemos encerrar o dia de hoje. – ela falou, ignorando as palavras do homem.
- É? Mais importante que treinar? Reveja suas prioridades, garota nocaute.
- Eu já perdi o aniversário da minha melhor amiga, na outra semana, porque fiquei treinando até tarde. Não vou perder o encontro de hoje. – ela sorriu, suas bochechas já vermelhas do esforço esquentando de vergonha – Um garoto bonitinho da minha turma me chamou pra comer uma pizza.
Deu de ombros ao fim, fingindo não se importar, embora seu estômago revirasse de ansiedade. Ela precisara contar para alguém e, na falta da melhor amiga, que não estava falando com ela por conta da ausência dela em sua festinha, achou que era um bom confidente. Afinal, ele estava sempre com ela e a ajudava tanto a melhorar... Era seu amigo.
Mas um amigo agiria assim?
- Um encontro? – ele soltou uma risada, debochada. – Não acredito que você vai abrir as pernas pro primeiro que aparecer. – suspirou, meneando a cabeça negativamente.
Ela levantou de supetão, os olhos arregalados de raiva, enquanto ajeitava as luvas em sua mão. O encarou, mostrando a posição de ataque. Mas ele não parou de provocar.
- Vai, vai sim. Vai engravidar, vai casar com um filho da puta qualquer, vai ficar trancada nessa cidade merda o resto da vida. – ela avançou até ele com passos largos. – É isso que você quer? – então ela começou a lhe socar.
Ela começou com técnica. Tentando proteger ao máximo o rosto com um dos braços, enquanto o mais forte oferecia ganchos e cruzados. tentava externar a raiva das palavras duras no treinamento. Mas não parava.
- Porque é isso que vai acontecer se você não se dedicar, garota. Se ficar saindo cedo dos treinos, faltando. Convenhamos, você não é inteligente. Você é burra, . Burra! Se não conseguir chegar ao Estadual, acabou pra você.
Mais socos. Agora, descontrolados. Sem técnica alguma, sem preocupação alguma. Ela só queria socá-lo, queria fazê-lo parar de falar aquelas coisas horríveis. Ela conseguiria ir para o Estadual. E, também, era só um encontro, não é como se fosse definir sua vida.
aproveitou a baixa guarda da mulher e deu um certeiro golpe em seu queixo. Ela praticamente voou até o chão, os pensamentos loucos em sua cabeça se esvaindo, os olhos desconexos piscando rapidamente, a dor a invadindo.
- Levante-se, garota nocaute. Nós só sairemos daqui quando você me derrubar.
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sabotou aquele encontro e todos os outros nos meses seguintes. E isso me fez ter raiva dele em alguns momentos, claro, mas sobretudo me levantou uma questão: ele está com ciúmes de mim? E a simples possibilidade me fazia sorrir de um jeito esperançoso.
O que era uma besteira. Veja bem, eu sei que ciúme pode ser legal e até importante em uma relação, mas depende muito do tipo e do quão discreto ele é. Algo que faz você desistir de saídas e sonhos, que desestrutura seus pensamentos, que deixa você mal, que beira a loucura, não é são. Não é normal.
Eu gostava, como tantas garotas ainda acham maravilhoso. A falta de afeto de minha família me levou a considerar qualquer mínima demonstração, boa ou ruim, de se importar comigo, divina. E, não vou mentir, muitas vezes aquele negócio meio doentio me fez me sentir melhor.
Mas, não vale a pena. É triplicada a quantidade de vezes que o mesmo exagero te rebaixa, te entristece. E, o pior, de alguma forma você começa a sentir que a culpa é sua. Que você é ousada, ou estranha, ou simplesmente não merece quem está com você. Não sei como, sua cabeça acredita que a culpa sempre recai em você.
Mas estou mergulhando em profundos pensamentos. Vamos em partes e, como em qualquer história de amor – ou algo que a sociedade supõe que seja amor-, vamos começar do início.
30 de agosto de 2007, 18:20 – Ginásio Municipal.
Hoje, estava inspirada. Treinando a tarde toda, aproveitando as férias escolares, ela aplicara diversos golpes certeiros, inclusive um cruzado que recebera elogios do treinador. Sua pior parte, a defesa, também estava muito boa. Os braços no rosto o protegendo e os poucos socos que passaram pela sua barreira não a fizeram nem perder o equilíbrio.
Ela sorriu, olhando para com as mãos na cintura. Ele riu da postura da mulher, tão confiante e insolente, como raras vezes já vira.
- Você foi bem, garota nocaute. Parabéns.
arregalou os olhos, mal acreditando nas palavras. Ele já havia falado, ao longo do mais de um ano de treinamento, algumas palavras legais: bom soco, ótimo, continue assim. Mas nada como parabéns! E como aquele sorriso brilhante e animado dele.
Ela pulou em seus braços, o abraçando pelo pescoço. Estava tão feliz de ter recebido um elogio desses de . Afinal, ele era seu ídolo, além de seu treinador. A mulher se inspirava nele em cada soco e defesa, lembrando seus golpes e medalhas. Depois de tanto treinar ao seu lado, de passar horas e horas tentando evoluir, ela parecia finalmente ter chegado a um posto aceitável.
- Não sabia que podia falar tantas palavras gentis, treinador.
- Ah, eu falo quando é verdade. – respondeu, se aproximando. Ela somente sorriu, então ele pediu que ela levantasse os braços. Obedecendo, ele puxou o velcro das luvas ainda nas mãos da garota e começou a retirá-las, não desviando o olhar dos olhos dela. – Acho que isso merece uma comemoração, . Você merece um agrado depois de tanto esforço. – piscou um dos olhos ao fim, abrindo o sorriso sacana.
Ela soltou uma risada, sem graça. Então, viu suas luvas sendo devolvidas e agradeceu.
- Vamos a um lugar aqui perto. Eles têm um hambúrguer delicioso.
30 de agosto de 2007, 19:34 – Wilson’s Bar.
As paredes estavam desbotadas, a tinta branca sumindo na sujeira. Pouca gente lotava o lugar, que cheirava a fumo e álcool. Havia, no máximo, três mulheres, em comparação a dezenas de homens. No momento em que entrou, ela se encolheu.
- Isso é um bar, treinador. - olhou para o rapaz, a abraçou pelo ombro antes de falar:
-Sim, detalhe. Eles realmente têm um ótimo hambúrguer. Não é muito saudável, mas hoje você pode - piscou o olho - Abra um sorriso, garota nocaute. - ele sorriu e ela, vendo-o ser gentil, também mostrou os dentes - Vamos.
Eles avançaram até o balcão. Enquanto percorriam o ambiente, receberam olhares de atenção. A jovem, com seu short curto e corpo definido de atleta, principalmente. Então, mudou seu braço de lugar. Dos ombros dela, em uma postura fraternal, para a cintura, com intenção de mostrar posse.
percebeu e gostou. Porque era bom se sentir protegida, diante de tantos olhares estranhos sem pudor. E, também, porque era , afinal. Seu ídolo. Que, diga-se de passagem, tinha um sorriso lindo.
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Se eu achasse uma lâmpada mágica e, esfregando-a, pudesse fazer um pedido, eu imploraria por voltar no tempo e recusar o convite de naquela noite, no verão de 2007. Sem nem pensar duas vezes. É como dizem, há momentos que definem nossa vida. E esse, com certeza, é um. Ao aceitar a proposta de meu antigo treinador, eu aceitei muito mais que um hambúrguer ou uma noite de comemoração; eu aceitei humilhações, sofrimentos, submissões.
30 de agosto de 2007, 23:01 – Wilson’s Bar.
- Estou cansada, , vamos embora. - murmurou a garota, fazendo uma careta.
deu mais um gole na caneca de cerveja antes de sorrir forçadamente para ela e lhe dar um beijo babado na bochecha.
- Não, . - gemeu ele - Beba, vai.
- Eu já bebi duas canecas. – ela balançou a caneca vazia na bancada, comprovando suas palavras – Temos treino amanhã cedo. E, caso tenha esquecido, ainda tenho dezessete.
- Regras babacas. – respondeu - Eu bebo desde os treze. Nunca virei viciado, tampouco fazia mal ao meu treino.
- Bem, sorte sua. – ela deu de ombros, pouco ligando. - Depois de três hambúrgueres enormes e gordurosos, me surpreende você ainda estar de pé.
- Ei, garota burrinha, eu estou sentado! - soltou, rindo, apontando para o banco em que sentava.
Ela revirou os olhos, levantando do banco em que estava sentada. Já estava preparada para sair dali, mesmo sozinha, mas o rapaz rapidamente a segurou pelo braço. Ela tentou sair do cárcere, mas em resposta recebeu um aperto mais forte.
- Me larga, ! - falou, aumentando a voz.
- Ei, nervosinha, relaxe. - riu amargamente - Eu já vou te levar pra casa, em segurança, como um cavaleiro em um alazão branco. - riu de novo, se achando engraçado - Fique, minha linda. Só terminar essa cerveja.
E, por algum motivo, ela ficou.
Meia hora depois, os dois tinham passado por alguns shots de tequila e a mulher se mostrava mais animada. Eles conversavam e riam. Em algum momento, tinha voltado com seu braço para a cintura de . Ela, novamente, não se opôs. Mas, quando ele tentou aproximar as duas bocas, ela desviou o rosto.
- Gata, não me faça sofrer assim. - murmurou ele, num gemido.
- Não vamos fazer isso, . Você é meu treinador, as coisas podem ficar confusas.
- Nada, . - Ele deslizou as mãos pela lateral do corpo da mulher, até o quadril, olhando-a por completo. - Você está gostosa. E graças a mim. - brincou, referindo-se aos treinos pesados - Tudo bem, a genética ajuda. - e sorriu, galanteador.
- Eu devo receber isso como um elogio?
- Ai, nervosinha. - deu um beijo estalado no pescoço da mulher. Não se afastou, somente soltou a respiração e voltou a falar, já segurando o pescoço da mulher - Quero você, linda.
Ela abraçou pelo pescoço, cruzando suas mãos atrás do mesmo. Mas quando ele foi juntar os lábios, ela desviou novamente. Ele bufou.
- Não, treinador. - relutou ela, a voz tremida, o bafo de álcool saindo junto com as poucas palavras.
- Não faça doce, garota. Vamos, facilite.
Ele a agarrou pela cintura, puxando-a e grudando-a nele. Eles já estavam em pé, mas pela bebida em seu sangue, a mulher perdera o equilíbrio facilmente. No quase tombo, a segurou, enquanto ela gargalhava. Quando voltou a ter seus pés no chão, ele voltou a tentar juntar as bocas. Ela gemeu em protesto, as mãos agora nos braços musculosos dele.
- Ah, entendi. Você é... novata. Bem, garota nocaute, assim como no ringue, - ele sorriu, malicioso - eu também posso ensinar tudo pra você.
Finalmente, ele a beijou. Ela não respondeu por um momento. Então, ainda tentou empurrar o muro que era seu abdômen, mas depois de alguns segundos, da boca dele grudada na sua, nas mãos dele descobrindo o corpo dela, desistiu e se afundou no beijo.
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Afundei-me também naquela relação doentia. O beijo roubado virou sedento, louco, bom. Sim, beijava bem. Mas por vezes - e a quantidade foi aumentando com o passar do tempo - os beijos eram forçados, ruins, dominadores, nojentos.
Eu não era novata, como supusera. Mas não havia beijado muitas bocas também. O pouco de carinho, misturado com o intenso desejo e ousadia, me iludiram. Aquele dia, entrei em casa me sentindo feliz. A briga estridente entre meus pais nem me incomodou. Eu me sentia em outro mundo.
Obviamente, vocês já sabem que quem me colocou nesse universo alternativo também o destruiu.
23 de janeiro de 2008, 17:13 – Casa de .
- Linda, - abraçou a mulher por trás, beijando seu pescoço e a agarrando pela cintura – Estou com saudades. – sussurrou, o bafo quente perto do ouvido de .
- Estou fazendo um trabalho, amor. – respondeu, tentando ignorar os beijos doces que recebia. Ainda faltavam quinze páginas discorrendo sobre o Renascimento e a análise de suas mais características obras.
- Depois você faz, mais tarde. – a mão dele avançou pelo corpo da mulher, tocando-o por completo – Quero você – e, para fortificar isso, deixou suas mãos nos seios da mulher, possessivo.
- , por favor. – sua voz saiu irritada e ela retirou as mãos dele do corpo dela de forma bruta – Tenho que terminar isso. Agora.
- Bom, - ele bufou, desistindo e se jogando na cama – estou vendo suas prioridades. Pensava que era mais importante pra você. – murmurou, demonstrando-se abatido.
- Ah, não jogue essa. – exclamou, parando a pesquisa e olhando para o namorado. – Eu te amo. Você e a luta são as duas coisas mais importantes na minha vida. – ela levantou, aproximando-se dele e lhe dando um beijo estalado - Você sabe disso.
- Você não sabe demonstrar muito bem, fica difícil. – ele deu de ombros, ainda rancoroso. Ela deu outro selinho nele e, dessa vez, ele sorriu com os lábios grudados no dela. Uma de suas mãos foi para os cabelos dela, emaranhando-se ali. A outra foi para a cintura, puxando a mulher para mais perto de si.
a deitou na cama, beijando seu pescoço e colo. Com pressa, já levantava a blusa dela. Ela puxava os cabelos dele, aproveitando os carinhos.
- Sabe, gostosa, você devia largar a escola. – ele falou entre beijos e ela só soltou um resmungo, confusa com um início de conversa no meio da pegação. – Com as aulas e provas e trabalhos, além dos treinos, sobra muito pouco tempo pra mim. – mordeu seu pescoço, marcando o local. gemeu, num misto de prazer e dor – Não gosto disso.
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Relembrar o conselho de me faz rir. Graças aos céus eu ignorara suas estúpidas palavras e continuei indo ao colégio. Eu sabia que era importante ter essa formação e nem mesmo as lutas, ou ele, iriam me privar de me formar.
Mas de várias outras coisas me privei por conta das duas coisas. O esporte tem disso: fazer você, desde muito novo, fazer escolhas, ter responsabilidade, ser rígido e focado. Em muitas outras biografias de esportitistas, vocês vão escutar que eles deixaram de ir a festas, de sair para o cinema com os amigos, de viajar, para treinar. Todavia, minha história é um pouco diferente.
Por incrível que pareça, não era a luta que me impedia de fazer tudo isso. Era . Meu próprio namorado. A desculpa continuava a ser o esporte, sim, mas entre o céu encoberto havia muito mais. Loucura, ciúmes, dominação.
Dentro do ringue, eu recebia os socos diretos dele, físicos e verbais. Palavras esdrúxulas, rebaixamentos, derrubadas. E, segundo ele, eram os esforços para eu me tornar uma atleta melhor. Fora do ringue era pior. Porque, na vida real, as porradas continuavam. Elas só viravam mais discretas, mais fantasiadas. Mas era ali que os golpes eram pra valer.
03 de abril de 2008, 10:34 – Quadra Poliesportiva da cidade vizinha.
Habilmente, esquivou-se do soco da mulher, livrando-se de um belo roxo na bochecha. Com as mãos em frente ao rosto em defesa, começou a se mover rapidamente pelo ringue, numa tentativa de dificultar golpes da adversária.
Então, aproveitando a ligeira distração da outra, arremessou o punho esquerdo em linha reta, aplicando um jab . Apesar de ser um golpe considerado fraco e simples, foi tão certeiro, acertando o queixo da mulher e virando seu rosto rapidamente, que a oponente caiu no chão. O árbitro começou a contar até oito, acompanhado pela pequena torcida.
A mulher no chão tinha sangue saindo do nariz e do supercílio. Com certeza também tinha um grande roxo no abdômen, decorrente de um hook de minutos antes. A última também não estava muito melhor, o maxilar dolorido depois de um cruzado e alguns diretos, o gosto metálico de sangue espalhando-se pela boca. Mas parecia que sairia vitoriosa dali.
Nocaute.
A pequena torcida gritou e levantou os braços, comemorando. Ela esperou que o árbitro conferisse a situação da mulher e, logo depois, atestando que ela estava bem, ele levantou um dos braços da vitoriosa, anunciando-a.
Um sorridente invadiu o ringue, passando por entre as cordas, e correu até a namorada, pegando-a pela cintura e rodando-a no ar. Eles olharam um pro outro e riram juntos, a felicidade transbordando.
Era o primeiro nocaute dela e, embora não tivesse sido muito bonito, fizera ganhar e avançar para as quartas-de-finais da competição estadual. E aquela era a melhor sensação de sua vida. Sentir os gritos dos torcedores pra ela, sentir a vitória, sentir os braços de abraçados nela.
Mas essa euforia durou pouco. Enquanto a mulher saia do ringue para ir para o vestiário, tomar um banho e trocar de roupa, ela viu seu treinador andar até uma mulher. Ela acompanhava a lutadora perdedora e vestia uma roupa esportiva, totalmente colada. percebeu quando notou esse detalhe. E viu o namorado olhar todo o corpo bonito da outra.
Isso fez parar no meio do caminho, ajeitando a bolsa pesada no ombro e observando o que se desenrolaria. Ela viu puxar conversa, viu a mulher rir de algo engraçado, viu quando ele arranjou qualquer desculpa para tocar a cintura da estranha.
- ! – ela gritou, não suportando mais aquilo. Ele a ignorou, então ela repetiu seu nome, várias vezes, até que ele virou. – Preciso falar com você! – completou, vendo que ele não se mostrava disposto a andar até .
- Já vou. Te encontro lá dentro, . – e desviou o olhar de volta para a bonita estranha, nem se importando com a namorada ou o evidente flerte em sua frente.
Aquilo, entretanto, parecia não ser o bastante para ele. Quase uma hora depois, quando o casal saia do ginásio, resolveu abordar a luta vencida, de uma forma nada gentil.
- Foi uma boa luta, mas você tem que prestar mais atenção na adversária.
- Eu ganhei, amor! – rebateu , não entendendo o porquê dele falar sobre os erros dela naquele dia.
- Sim, eu sei. Mas grandes merdas. – deu de ombros - Você ganhou porque a outra era ainda pior que você.
- O quê? – foi a única coisa que ela conseguiu soltar, embasbacada pelas palavras rudes.
- Aquela garota era uma idiota. Não sabia dar nem um soco forte. Não sei como chegou tão longe.
- Bem, eu levei alguns socos dela. Garanto que doem bastante.
- , - ele revirou os olhos – você é tão fraca como ela. Você teve é sorte.
- Sério? – ela bufou, negando com a cabeça – E meus quase dois anos treinando com você, não serviram pra nada?
- Sinceramente, pra muito pouco.
Ela retirou sua mão do entrelaço da dele, porque de repente aquela junção começou a arder. O encarou, sem nem acreditar que ele fala aquilo seriamente. Eles haviam gastado milhares de horas correndo, socando, defendendo. Ela havia tido tantos roxos que já perdera a conta. Desistira de tantas coisas pra lutar. E ele lhe machucava tão facilmente, mal se importando com ela. Que, vale lembrar, era mais do que sua aprendiz. Era sua namorada. A quem, por vezes, ele dizia que amava.
De repente, a dor no maxilar, o sangue mal estancado em sua boca, pareciam não incomodar nada. A dor no fundo do peito era muito maior. Quando ela acordara aquela manhã, pensara que ganhar aquela luta significaria uma felicidade incondicional. Mas, naquele momento, a tristeza se mostrava bem mais forte.
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Mesmo em meus momentos mais alegres, uma parte de mim sofria. Eu não sabia o porquê, mas nunca me senti plenamente bem. Com a escola, com a luta, com o namoro. Principalmente, comigo mesma. Eu nunca me senti satisfeita. Com outra perspectiva, anos depois, eu pude ver que esse meu problema emocional tinha dois principais aspectos: primeiro, a falta de afeição da minha família. Segundo, o relacionamento conturbado com .
O primeiro era complexo. Toda família é. Eu sempre soube que meus pais não eram maus ou desleixados, mas entre dias corridos e muito cansaço, eles simplesmente não sabiam o que fazer com os filhos. Meus irmãos tampouco eram culpados de algo. Eram crianças ou adolescentes como eu, cresceram nas mesmas circunstâncias e com suas particularidades reagiam a situação.
O segundo era bastante simples. Se não fosse, é claro, o – falso – amor que nos envolvia. Esse sentimento tem a tendência de embaçar tudo, afinal. Tanto que quando me livrei dele, pude ver minha mente clarear, cada ação e sensação tornando-se óbvia. é cruel, sempre fora. Alguns momentos de carinho, algumas palavras fofas, alguns beijos apaixonados não mudam esse fato. Com suas atitudes e minhas angústias, ele sabia exatamente o que fazia. Ele tinha um propósito ali e este estava longe de ser minha felicidade.
11 de julho de 2008, 15:42 – Praça da cidade.
- Aí meu pai levou todos nós para a praia. – continuou, com um sorriso no rosto, relembrando o final de semana – Foi tão divertido! Nós comemos peixe e disputamos quem ficava mais tempo de baixo d’água. – ela desviou o olhar para o namorado, que andava a seu lado. Ele olhava para frente, parecendo um tanto perdido. – Estava tudo muito bem. Até que eu me afoguei e morri. – jogou a mentira, testando se estava ou não prestando atenção em suas palavras. – Legal, né?
- Uhum. – ele respondeu somente, fazendo a garota bufar. Em seguida, ela puxou um dos braços dele, segurando-o no meio da praça. O rapaz a encarou, sem entender.
- Sou um fantasma legal, é isso? – uma careta de confusão se fez no rosto dele e revirou os olhos – Você não estava escutando o que eu estava dizendo.
- Bom, é meio difícil com você com esses panos que chama de roupa. – rebateu , seco. – Estou olhando cada homem que passa com uma carranca pra eles tirarem o olho do que é meu. Você, obviamente, não ajuda em nada mostrando tudo. – sorriu, cínico.
- O que minhas roupas tem de mais? – ela olhou para si mesma, vendo um short jeans curto e uma blusa de alcinhas. – Está quente.
- A questão é exatamente essa: não tem de mais, tem de menos. Pouco tecido. Dá pra ver suas coxas, seus braços, seus seios... até seu útero.
- Não seja exagerado, amor. – deu um leve empurrão. Ele a capturou pelos braços enquanto se desiquilibrava e a puxou para si. Por pouco, não foram ao chão. No entanto, os dois continuaram de pé, agarrados um no outro.
- Isso aqui é meu, garota. – afirmou, deslizando as mãos pelo corpo da mulher, a cariciando e, de tempo em tempos, apertando-a levemente. – Eu só estou cuidando do que é meu.
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Nojo.
Tenho que respirar fundo repetidamente toda vez que me recordo disso, para afastar a ânsia de vômito que chega a minha garganta. Então, me seguro para simplesmente não correr atrás de depois de tanto tempo para dar milhões de voadoras nele.
Aquele ciúme doentio fazia sentido pra mim. Mais do que isso, eu achava lindo o fato dele se importar com os olhares alheios. Eu gostava que ele me chamasse de sua, tratando-me como sua propriedade. Aquelas coisas sórdidas me faziam me sentir melhor superficialmente. Eu era, de alguma forma, incluída em um pequeno grupo. Era a demonstração de que eu importava para alguém.
Tudo que eu queria era estar presente na vida de . E todo o horrível resto sumia.
26 de novembro de 2008, 13:12 – Ringue Estadual.
As regras do boxe variam. No armador, basicamente muda a cada ringue. Em competições, há alguns princípios. Sem golpes baixos, por exemplo. Mas, ainda sim, se diferenciam muito das olimpíadas. Naquele dia frio, na final estadual do boxe feminino, não esperavam-se três rounds de dois minutos. Esperavam muitos golpes até ter alguém acabada no chão.
Por isso, aquela luta já começava a alcançar a meia hora. As finalistas se encaravam, rodando pelo ringue. Respiravam forçadamente, já cansadas de tantas porradas levadas. Nos primeiros segundos, depois de levar um jab-cruzado seguido de um direto, reparara que aquela oponente não seria fácil de derrubar.
Ela sentira seu maxilar ranger, seu ouvido explodir, seu sangue escorrer. O nariz pulsava, então provavelmente ele estava quebrado. Além disso, seus braços doíam do esforço, apesar de estar acostumada a ficar treinando por horas.
Aproximou-se da oponente agilmente e a abraçou com os braços enluvados, segurando-a e impedindo-a de desferir mais golpes. Pode ouvir o suspiro aliviado da mulher e por pouco não a escutou agradecer pela atitude. Afinal, ela não estava muito melhor que . Seu olho esquerdo estava ficando progressivamente roxo e inchado depois de uma série de cruzados. A lateral de seu rosto, vítima de alguns diretos, não estava em melhor estado. Sangue saia do nariz.
O clinch, esse apoio mútuo com pausa de socos, durou poucos segundos. Logo, a adversária afastou os corpos, rangendo e deferindo uma combinação de jabs e diretos. Por sorte, a cada golpe conseguiu se proteger, com os braços sentindo os socos superficialmente. Então, foi a vez de revidar com um fraco uppercut, que não fez mais do que cócegas no queixo da outra.
estava cansada, desconcentrada e ficando fraca. A cada instante que passava, ela sentia mais dificuldade para respirar, mais dor, mais nervoso. Sabia que provavelmente a oponente estava tão ruim quanto ela, mas tinha medo de ser o elo mais fácil de arrebentar.
Um gancho em seu abdômen fez a mulher piscar os olhos rapidamente e acordar. Ela encolheu-se, sentindo a dor perpassar por seus membros e decidiu agir. sabia que não aguentaria por muito mais tempo. Se continuasse só na defensiva, com bloqueios e esquivas, uma hora iria sucumbir.
Era hora da ação.
viu quando a mulher paralisou-se entre ações, indecisa, abrindo um pouco a guarda. Sem pensar nem ao menos uma vez, levou sua mão mais forte para frente, lançando-a de forma descendente, com intuito de atingir o queixo da adversária com toda a potência existente em si.
Um swing era bastante arriscado, sempre. É o golpe mais potente, capaz de acabar com uma luta em milésimos de segundos, mas perigoso e ousado. Ter uma iniciante fazendo aquilo com tanto empenho em uma final fez a plateia gritar em euforia.
Ela respirou profundamente, sabendo que ali tinha decidido se ganharia ou perderia. As frações de segundo demoraram a passar, como uma aula chata, enquanto seus pensamentos e inseguranças bombardeavam sua cabeça. Viu a cabeça da mulher ir pra trás com o soco e o corpo pender até o chão.
Soltou um grito, enquanto via o árbitro olhá-la com assombro e corria até a outra. Seu coração batia acelerado quando foi anunciado o fim da luta e a vencedora estadual. Ela pulou, comemorou, chorou, caiu nos braços de um caloroso .
Ela tinha conseguido.
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Aquele dia se tornara o dia mais feliz da minha vida, até que em 2012, na primeira edição do boxe olímpico feminino, eu ganhei a prata. Mesmo com o nacional, que veio em 2010 e várias outras medalhas de outras competições, a vitória estadual é especial. Porque foi algo que batalhei durante dois anos e sonhei durante quase dez. Porque foi algo que me mostrou: você é boa, você é capaz, e não me deixou desistir. Mas, principalmente, porque foi algo que me fez acordar: ei, você não merece isso. Ninguém merece.
10 de fevereiro de 2009, 16:12 – Casa do .
- Você não sabe o que acabou de acontecer! – gritou uma animada , assim que o namorado abriu a porta de sua casa. – Me ligaram!
a encarou, esperando por mais. Até aí, nenhuma novidade. Desde que tinha ganhado o campeonato estadual, ela tinha se tornado uma celebridade na cidade e proximidades. Deu entrevistas, apareceu até na televisão. Nada como a fama nacional do rapaz a sua frente, mas o suficiente para deixá-la maravilhada e ainda mais inspirada a superar suas fraquezas.
- Um agente me ligou. – ela continuou – Ele disse que quer cuidar da minha carreira. Disse que tem um Sparring, Kevin Hills, que quer muito me treinar. Kevin Hills! Treinador das melhores pugilistas do ano passado. – ela sorriu, os olhos esbugalhando de excitação.
- Ah, entendi. – respondeu, sem a mesma empolgação – Você está ficando famosa e muitos caras mal-intencionados vão parecer, . Precisa ser mais atenta, menos burrinha.
- Você escutou o que eu disse? – ela perguntou, sem acreditar na resposta dele – Hills é conhecido nacionalmente. É muito bem falado e indicado. Ele tem um suporte incrível também. Vários equipamentos de primeira linha, um ringue maravilhoso...
- Em Louisiana?
- Não. Na Califórnia. – ela forçou um sorriso. Sabia que essa era a parte difícil: a distância entre os namorados.
- Longe. É bom que você já tem seu treinador e ele mora a cinco minutos de você. – apontou para si mesmo – E ele é o melhor. – exclamou, convencido.
- Olha, amor – começou, respirando fundo – Você foi maravilhoso comigo. Me ajudou a ficar cada vez melhor, mas não posso continuar nesse fim de mundo. Quero fazer do boxe minha vida e ganhar estaduais não é suficiente. – deu um beijo estalado nos lábios dele – Mas eu te amo. Vamos continuar o namoro a distância, nos vendo de vez em quando, e tudo dará certo. Sempre ficarei agradecida pelo que fez por mim. Aquela medalha do estadual é sua também.
- Claro. – ele bufou – Você ganhou aquilo por minha causa. Sem mim, você não teria passado do primeiro soco nas eliminatórias. Porque você é uma fracote, . E me abandonar agora vai acabar com a sua vida. Você será um total fracasso, uma merda.
Ela engoliu em seco, absorvendo as cruéis palavras. Seus olhos encheram d’ água. Sabia que seria difícil, mas pensava que seria por conta do namoro, não da luta. Tinha se iludido ao pensar que ficaria feliz com sua conquista, com sua caminhada cada vez mais segura e feliz para o sucesso. Não. Ele a ridicularizou. A fez se sentir um nada. E quantas vezes já havia feito aquilo durante aqueles anos? Milhares.
- Você realmente quer meu bem, ? – sua voz tinha perdido toda a alegria e, agora, era extremamente polida e séria, contrastando com as lágrimas teimosas que insistiam em cair – Você quer que eu seja feliz?
- Sim, linda. Tanto que estou te falando pra não fazer essa merda.
- Eu quero tentar uma carreira. Luta é tudo que eu mais amo, você sabe disso.
- É? Eu também não era algo que você amava?
- Não fale assim, não vamos nos separar. Só vou treinar com outra pessoa, mas continuarei sendo sua namorada.
- Você não vai esquecer essa proposta ridícula? – ele aumentou a voz e arregalou os olhos. o encarou, mais forte que nunca, e negou com a cabeça – Você está me abandonando, sua vadia. Diz que me ama, mas está me deixando pra trás.
- Não distorça minhas palavras. – ela segurou os braços dele carinhosamente e começou a fazer carinho por lá, mas ele não se acalmou.
- Sabe, – riu grosseiro – você vai se foder na cidade grande. Você sabe dar alguns socos, sim, mas e de resto? Você é uma idiota. Uma burra. Você não tem ninguém ao seu lado, porque ninguém se importa com você. Ninguém liga pra você. Nada de amigos, família ausente. E você está virando as costas pra única pessoa que te ajudou. Que gosta de você. Você é mesmo muito babaca. Uma anta.
- ! – ela o repreendeu, porque não queria escutar aquelas coisas. Embora parte fosse verdade, era bárbaro, era doloroso e ele falava de propósito, com o único intuito de feri-la.
- Vai ver você não quer ir pra Califórnia pra treinar, mas pra poder usar as merdas das suas roupas curtas, biquínis pequenos e dar pra qualquer merda que fale. Porque é isso que você é, uma puta, uma...
E foi ali. Naquele instante. Com aquelas palavras. Que a caixinha da complacência, da paciência explodiu. De repente, o amor, a carência, a comodidade, nada mais parecia ser o suficiente. Simplesmente não aguentava mais! Palavras rudes, atitudes ciumentas, humilhações gratuitas, culpas jogadas na mulher. Estava farta.
- Quer saber, ? Eu tenho algumas coisas pra falar pra você. Talvez queira se sentar, já que você está se fazendo de frágil e vítima da história.
- Você me usou. – ele a interrompeu, fingindo-se ferido - Me usou para te treinar, te passar conhecimento, te tornar melhor, me fez eu me apaixonar por você e agora que conseguiu o que queria, vai embora. Eu tenho o direito de te xingar, você merece.
Ela riu, amarga. Então mordeu o lábio inferior e assentiu, enquanto tentava formar seu discurso. Tudo se tornara tão claro, tão óbvio e todas as mentiras, submissões, abusos vieram em sua cabeça. Foram tantas coisas que aguentou durante aqueles muitos meses. E por quê? Porque achava que o amava. Porque achava que ele a amava. Que ele se importava com ela. Que tola.
- Não, você não tem o direito de me xingar. E o que eu mereço, e qualquer outro ser humano, é respeito. Independente de qualquer coisa. Eu vou pra Califórnia pra dar pra metade dos caras? Não. Mas eu poderia. E você não pode falar nada quanto a isso, porque estou terminando todo esse lance medonho entre a gente.
- Você é uma ridícula. – murmurou, amargurado.
- Cada palavra que você solta me dá mais vontade de dar pra qualquer um. Pra, sabe, recuperar o tempo perdido. O tempo que fiquei com um idiota, babaca, que sempre me humilhou e nunca realmente se importou comigo. E, sim, eu posso te xingar. Foda-se. Você me xingou durante todos esses anos. Você se aproveitou do seu posto como treinador e depois como namorado pra me rebaixar, me fazer me sentir mal, sempre que queria. Pra seu bel-prazer.
- , eu te amo. Por favor, me perdoa. Eu fiz isso sem querer, eu te amo tanto. – os olhos dele se encheram de lágrimas, sua voz saindo manhosa.
- Você é um filho da puta, . Você não me ama, nunca me amou. Você só se aproveitou de mim. Da minha fragilidade, da minha carência. Me tomou como propriedade. Bem, surpresa, eu não sou sua! Eu não sou de ninguém, a não ser de mim mesma. – suspirou – E não! Eu não vou tirar meu batom vermelho e foda-se você. Vou continuar a usar roupas curtas e foda-se você.
- Você é uma estúpida! – sua voz mudou, agora grosseira, superior – Ninguém te aguenta, só eu. Você nunca vai conseguir ninguém. Você vai ser uma mulher solitária. Eu sou o único que é capaz de te fazer feliz.
- Feliz? – riu ela – Eu nunca fui feliz quando estive com você. Eu tive alguns momentos de felicidade que você fazia questão de destruir! Eu realmente acreditava que você iria me alegrar, mas a verdade é que todas as minhas tristezas e inseguranças durante todo esse tempo foram causadas por você. Então, estou reafirmando, acabamos por aqui. Não quero mais que você toque me mim, que fale qualquer merda falsa ou rude, que finja-se de santo. Sua máscara caiu, ! Você foi um péssimo namorado, mas você é um terrível ser humano.
E mais aliviada do que nunca, ela saiu dali pra sempre.
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Sai da casa dele. Sai da cidade. Sai do relacionamento abusivo e doentio. Sai da carência. Estabeleci um melhor contato com meus pais e meus irmãos. Fui pra Califórnia, aprendi muito com Hills e cheguei às olímpiadas. Nunca mais vi, ouvi, respirei . E agradeço a cada dia por isso.
Muito tempo atrás ele tinha sido meu salvador. Porque ele era bem conhecido na cidade, por ganhar alguns campeonatos. Eu me sentia a pessoa mais sortuda do mundo por tê-lo me treinando. Porque ele se importou comigo. Não de uma maneira boa, como agora noto, mas de fato sempre esteve olhando e vigiando meus passos. E eu gostava, porque as pessoas que eu mais amava não faziam isso por mim.
Eu achava que deveria dever minha vida a ele porque seus treinamentos diários fizeram-me uma atleta melhor. Mas a maturidade – sim, com menos de trinta anos – me fizeram ver que não devo nem agradecê-lo. À custa de quantas lágrimas e xingamentos isso ocorreu? No fundo, ele nunca quis me ajudar. Ele gostava de me fazer sofrer, somente. De fazer de mim sua boneca obediente, sua realização pessoal. No fundo, ele só era cruel.
31 de março de 2010, 11: 07 – Zuma Beach, Malibu.
- Cuidado! – alguém gritou.
Uma bola voadora vinha na direção de , que tinha os olhos fechados por conta do Sol forte. Pressentindo, ela abriu os olhos, esbugalhando-os milésimos de segundo antes da bola bater na sua testa.
- Ai. – reclamou ela, massageando a cabeça. Parecia que a bola havia adquirido alguns quilos só para atingi-la.
Agora, era um rapaz que corria em sua direção, coçando a barba rala. Aproximou-se dela e agachou-se.
- Desculpe, moça bonita. Estava tão vidrado em sua beleza que até esqueci como sacar. – cantou a mulher, com um sorriso de lado. Ela não pode conter a risada depois da tosca cantada. – Não, sério, meu amigo idiota não sabe defender uma linda bola. Está doendo muito? – ele inquiriu, observando a testa machucada e já falando em seguida – Acho que vai formar um galo. Sinto muito. – fez uma careta, então pegou a bola a alguns metros de distância e voltou – Mudando de assunto, você vem sempre por aqui, gata?
Ela esbugalhou os olhos, sem reação. Aquele desconhecido chegara do nada, todo educado e assanhado, e simplesmente não parava de falar.
- Tudo bem, pode me ignorar. Eu mereço um gelo depois dessa. – ele afirmou, fazendo rir de novo.
- Não, bobinho. Embora suas cantadas precisem ser trabalhadas, eu só não respondi por que, bom, você não deixa! – murmurou ela, sorrindo – Você está em um monólogo há cinco minutos.
- Ah, desculpe por isso. – ele coçou a barba novamente, de repente envergonhado. – Ossos do ofício. – uma pausa de um segundo – Pode falar, eu não mordo.
- Muitas desculpas pra quem acabou de se conhecer. – deu de ombros – Então, qual é seu trabalho? Interlocutor de rádio?
- Não, mas é uma boa. – ele riu – Sou jornalista. E você? Nova angel da Victoria Secrets ou atriz revelação da próxima série da Netflix? – ergueu uma das sobrancelhas, curioso.
- Não, nada tão divertido.
- Ei, , se perdeu no caminho? Vem logo – um dos jogadores de vôlei gritou da rede, olhando para o casal. – Deixe pra flertar depois do fim do jogo!
O já não tão estranho escondeu o rosto nas mãos e riu. o encarou, intrigada no rapaz, com um sorriso nos lábios. Ele era bonito, ela pode ver. Ombros largos, um bronzeado típico da Califórnia, um riso agradável, olhos brilhantes. Era terrivelmente engraçado, também.
- Ignore-os. Eles não amadureceram ainda. – exclamou divertido. – Mas, então, pode finalmente responder minhas perguntas iniciais? Juro que não vou te amordaçar nem nada. – colocou as mãos ao alto, brincando.
- Com prazer, . – não podia tirar aquele sorriso de sua boca. Ele era tão encantador. – Não, não venho sempre aqui. Não tenho muito costume de ir à praia, na verdade. Mas estou em Gold State né? – ele a encarou somente, apontando pra boca e balançando o dedo negativamente. Ele não iria falar e interrompê-la. revirou os olhos, rindo. – E sobre o acidente com a bola, estou bem. Tranquilo. Acredite, estou bem acostumada a levar porradas.
- O que isso quer dizer? – ele franziu as sobrancelhas, o sorriso dando lugar a preocupação nítida. – Desculpe, não consegui controlar minha língua.
- Eu luto boxe. – sussurrou ela, mordendo o lábio inferior. – Hora de você correr desesperado, rapaz.
- O quê? Agora que ficou interessante! – e aí ele se jogou na areia ao lado dela, a bola se encaixando entre os pés. Ainda puderam escutar o bufo coletivo dos jogadores, mas nem se importou. – Ainda mais aqui na Califórnia, para um jornalista que entrevista cantoras e modelos. Muito divertido!
- Sério? Você gosta? Quem é seu ídolo? Eu gosto muito do Mike Tyson, mas tem outros que são muito subestimados e... e agora eu que estou falando sem parar. – notou, rindo.
- Sim, você se empolgou bastante. É legal ver esse lado seu. Você é bastante apaixonada pela luta, né?
- Totalmente. Por isso retomo a questão inicial, quem é seu ídolo? Isso é extremamente importante para o futuro do que quer que esteja acontecendo aqui. Dependendo da sua resposta, não vou conseguir olhar na sua cara nunca mais. – falou, fingindo-se séria. Ele esbugalhou os olhos.
- Terreno perigoso. Hm... Anderson Silva?
- Eu vou te dar três segundos de vantagem antes de correr atrás de você. – ela forçou um sorriso.
- Me perdoe, mulher que não sei o nome.
- .
- Me perdoe, , a melhor pugilista dos Estados Unidos. Tenho certeza. – então riu – Não sou exatamente ligado em boxe. Mas sei socar muito bem, olha. – e começou a socar o ar, super desajeitado.
- Você não sabe nada de boxe, é? – inquiriu ela, pensativa, depois de rir pela centésima vez naquela conversa. – Isso é maravilhoso. – e sorriu. – Mas você não vai terminar sua partida de vôlei não? Seus amigos estão te esperando.
- Eu vou devolver a bola, mas volto. Eu estive esperando por você há muito mais tempo. Eles superam. – eles sorriram um pro outro.
---
E foi naquele dia que comecei a me apaixonar pelo meu marido.
Fim.
Nota da autora:
Então... falar sobre essa fic é complicado. Escrevê-la também foi bastante. Pisei em ovos,
decidi falar de um assunto tão comum e delicado, tão romantizado e aceitável, na sociedade e
nas fics. Uma das minhas maiores preocupações foi retratar o treinador como mean, como
a própria Taylor já fala na música.
E na minha experiência de escrita, já vi que é difícil para algumas mulheres notarem que, sim, determinado relacionamento é abusivo. Ele pode se fazer de fofo e maravilhoso, mas em cada situação ele mostra a verdadeira cara. Esse cara não é legal. Um gesto romântico, milhares de desculpas e juras de amor não apaga os erros dele. Então, eu só espero ter retratado isso de maneira correta e ter passado essa informação que considero muito valiosa.
Não é minha pretensão ser heroina, mas se você tem ou já teve um relacionamento assim, ou mesmo se dispõe a um desse tipo, espero que essa fic faça você reconsiderar, ver a situação com outra perspectiva.
E, sim, eu sei que o principal é maravilhoso e que vocês queriam mais cenas com ele - eu também -, mas decidi me ater a música. A falar da trajetória de uma garota carente presa a um cara cruel que se aproveita das fraquezas dela. E como, pouco a pouco, ela consegue ficar forte.
Sem ter mais o que falar, digo até mais.
Visitem outras fics minhas:
Barefoot (novíssima e em parceria <3);
Factory Girl;
Prazer, Primavera;
One Night, Two Years;
O bêbado e a Equilibrista;
Two Sides of The Law;
Uma Linda Mulher;
Immortal
e oturas...
Beijos, Bruh Fernandes.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
E na minha experiência de escrita, já vi que é difícil para algumas mulheres notarem que, sim, determinado relacionamento é abusivo. Ele pode se fazer de fofo e maravilhoso, mas em cada situação ele mostra a verdadeira cara. Esse cara não é legal. Um gesto romântico, milhares de desculpas e juras de amor não apaga os erros dele. Então, eu só espero ter retratado isso de maneira correta e ter passado essa informação que considero muito valiosa.
Não é minha pretensão ser heroina, mas se você tem ou já teve um relacionamento assim, ou mesmo se dispõe a um desse tipo, espero que essa fic faça você reconsiderar, ver a situação com outra perspectiva.
E, sim, eu sei que o principal é maravilhoso e que vocês queriam mais cenas com ele - eu também -, mas decidi me ater a música. A falar da trajetória de uma garota carente presa a um cara cruel que se aproveita das fraquezas dela. E como, pouco a pouco, ela consegue ficar forte.
Sem ter mais o que falar, digo até mais.
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