Stole my time, but I'll make up the hours
Prólogo
Onze dias se passaram. já perdeu quase dez quilos, e as maçãs do rosto já estão marcadas na face pálida. Ele está quase pior do que ela.
Há onze dias está deitada ali, imóvel, parecendo uma estátua de cera. Os traços delicados, a pele quase incolor.
Ela ainda não abriu os olhos, nem demonstrou qualquer sinal de que está lá.
Ele sabe que está viva apenas pelo movimento sutil de seu peito subindo e descendo com a respiração debilitada.
Ela tem quatro pontos do lado esquerdo da testa, e mais oito onde o ombro fora operado. Ele não pode ver, mas sabe que há alguns pontos em seu abdômen, onde o baço ferido tinha sido também operado. Além desses, dez pontos para fechar o ferimento que deixara sua tíbia exposta.
Outras contusões se espalham pelo corpo dela, que parece frágil e quebradiço.
segura a mão dela. Seu braço já está cansado de passar a maior parte dos dias esticado daquela maneira, seus dedos entrelaçados nos dedos gélidos dela.
— Eu estou aqui. — ele repete. Não sabe quantas vezes já disse isso nos últimos onze dias, mas continua dizendo. o mandara embora antes, e ele acatara sua vontade. Talvez, quando ela acordar, ela ordene definitivamente que ele a deixe em paz, e ele o fará novamente, mas, até isso acontecer, ele vai continuar lá. pode estar querendo desistir de si mesma, mas não está disposto a desistir.
É inacreditável, fantasioso, quase utópico, mas, em tão pouco tempo, ele a ama. Talvez tenha acontecido no momento em que seus lábios se encaixaram durante a câmera do beijo, ou quando eles se beijaram com gosto de sorvete. Talvez tenha acontecido da primeira vez que ela sorrira para ele, ou quando ela dissera que ele deveria beijá-la. Ele não sabe quando foi.
Só sabe que aconteceu. Ele a ama, mesmo que isso pareça irresponsável e idiota. Mesmo que ele pareça irresponsável e idiota.
— Eu estou aqui. Não vou sair daqui até você voltar. — ele suspira, apertando a mão dela com força. — Por favor, . Você precisa voltar. — as lágrimas escorrem pelos olhos dele, descendo até o pescoço, até a camiseta azul.
De repente, o som dos aparelhos muda de frequência. dirige os olhos até o pequeno monitor quadrado acima da cama.
— ? — o coração dele bate mais forte. — ? — ele aperta sua mão com mais força. Como que por reação, os olhos dela se abrem, e correm direto para o rosto dele.
Exultante, ele sorri.
Os lábios dela se esforçam no que vira um sorriso fraco. Seus olhos se enchem de lágrimas.
— . — ela diz, sorrindo para ele.
— Você voltou.
Há onze dias está deitada ali, imóvel, parecendo uma estátua de cera. Os traços delicados, a pele quase incolor.
Ela ainda não abriu os olhos, nem demonstrou qualquer sinal de que está lá.
Ele sabe que está viva apenas pelo movimento sutil de seu peito subindo e descendo com a respiração debilitada.
Ela tem quatro pontos do lado esquerdo da testa, e mais oito onde o ombro fora operado. Ele não pode ver, mas sabe que há alguns pontos em seu abdômen, onde o baço ferido tinha sido também operado. Além desses, dez pontos para fechar o ferimento que deixara sua tíbia exposta.
Outras contusões se espalham pelo corpo dela, que parece frágil e quebradiço.
segura a mão dela. Seu braço já está cansado de passar a maior parte dos dias esticado daquela maneira, seus dedos entrelaçados nos dedos gélidos dela.
— Eu estou aqui. — ele repete. Não sabe quantas vezes já disse isso nos últimos onze dias, mas continua dizendo. o mandara embora antes, e ele acatara sua vontade. Talvez, quando ela acordar, ela ordene definitivamente que ele a deixe em paz, e ele o fará novamente, mas, até isso acontecer, ele vai continuar lá. pode estar querendo desistir de si mesma, mas não está disposto a desistir.
É inacreditável, fantasioso, quase utópico, mas, em tão pouco tempo, ele a ama. Talvez tenha acontecido no momento em que seus lábios se encaixaram durante a câmera do beijo, ou quando eles se beijaram com gosto de sorvete. Talvez tenha acontecido da primeira vez que ela sorrira para ele, ou quando ela dissera que ele deveria beijá-la. Ele não sabe quando foi.
Só sabe que aconteceu. Ele a ama, mesmo que isso pareça irresponsável e idiota. Mesmo que ele pareça irresponsável e idiota.
— Eu estou aqui. Não vou sair daqui até você voltar. — ele suspira, apertando a mão dela com força. — Por favor, . Você precisa voltar. — as lágrimas escorrem pelos olhos dele, descendo até o pescoço, até a camiseta azul.
De repente, o som dos aparelhos muda de frequência. dirige os olhos até o pequeno monitor quadrado acima da cama.
— ? — o coração dele bate mais forte. — ? — ele aperta sua mão com mais força. Como que por reação, os olhos dela se abrem, e correm direto para o rosto dele.
Exultante, ele sorri.
Os lábios dela se esforçam no que vira um sorriso fraco. Seus olhos se enchem de lágrimas.
— . — ela diz, sorrindo para ele.
— Você voltou.
Capítulo 1
— Isso não é possível! — esbraveja, os punhos cerrados contra a mesa de mogno do consultório. — Ela disse o meu nome. Não é possível que ela não se lembre de nada!
A médica tenta olhar para ele com uma expressão neutra, mas seus olhos transparecem que ela está sentindo pena. Não só dele, mas da mãe de e também da amiga dela, com quem ela também gritara quando fora visitada no quarto.
— Em casos como este... nós já podíamos esperar por um quadro de amnésia. A equipe médica chegou a conversar sobre isso. O inchaço cerebral nos primeiros dias foi preocupante, e traumas de cabeça são sempre cercados de muitos mistérios e possibilidades...
— Se ela não se lembra... se ela não se lembra, por que falou o meu nome? — os olhos dele estão cheios de lágrima de novo. Sempre assim. Desde que perguntara, poucos segundos depois de dizer seu nome, quem ele era, não conseguia parar de chorar.
— , querido, talvez seja melhor você ir para casa... — a mãe de diz, apoiando sutilmente uma mão sobre o ombro dele. — Descanse um pouco. Talvez as coisas estejam melhores pela manhã.
Pelo tom como ela diz isso, sabe que nem ela acredita.
Já faz dois dias que tudo isso começou. E, à medida em que eles ficam mais desesperados com a falta de memória de , mais irritada ela fica por achar que está sendo enganada.
Mas está exausto. A sala onde estão conversando com a neurologista, doutora McClaren, não é exatamente perto do quarto de , mas, ainda assim, conseguem ouvi-la gritando com .
Ele fecha os olhos com tanta força que chegam a doer. Depois, cobre os ouvidos com as mãos. Se pudesse se teleportar para longe dali... talvez para uma realidade onde tivesse acordado com todas as memórias no lugar...
Mas a verdade é que ele não pode. E que prometeu a ela que não iria embora.
“Não vou sair daqui até você voltar”, ele dissera. De certa forma, ela voltara. Mas não a sua . Então isso não conta. Porque ela ainda não está lá. E ainda não está disposto — porque sabe que é completamente incapaz — a esquecê-la ou deixá-la para trás.
***
A dor de cabeça é insuportável. Mas o medo, a raiva, a solidão e a dúvida a consomem como se ácido corresse por suas veias.
O que está acontecendo? O que aconteceu com sua vida? Por que estão todos mentindo? E onde, de verdade, estão Dave e o bebê? Por que ela não consegue se lembrar de seu filho?
leva as mãos à cabeça, em desespero. O suor gélido gruda a pele em seu pescoço e colo, e ela está tremendo de frio e nervosismo enquanto chora.
O que fizeram com ela? O que aconteceu com todo mundo?
só sabe que não quer ver ninguém. Não enquanto não estiver bem o suficiente para ir embora do hospital e, sozinha, procurar por Dave e por seu filho.
Mas a verdade é que o corpo inteiro dói, e toda vez que mexe a cabeça sente tontura e precisa fechar os olhos. Então isso deve demorar.
Não tem como manter a calma assim.
Uma enfermeira entra no quarto, carregando uma bandeja com uma refeição. Ela sorri para , que a ignora.
— Seu almoço. — diz, apertando o botão para inclinar a cama e esticando a bandeja sobre .
— Não estou com fome, obrigada.
A enfermeira tira a tampa do pote maior, e é uma sopa turva que torna as coisas ainda menos convidativas.
— Bom… você pode fazer um esforço? Ainda estamos te garantindo todos os nutrientes pelo soro, mas seria bom se começasse a ingerir alimentos aos poucos. Vai te ajudar a se fortalecer mais rápido.
A menção a “mais rápido” é o que faz com que aceite forçar algumas colheradas da sopa insossa, mesmo que as mãos trêmulas acabem derrubando o líquido sobre sua roupa e os lençóis, deixando-a envergonhada.
— Não se preocupe com isso. Assim que te levarmos para o banho, trocamos todas as roupas de cama. — a enfermeira diz, numa tentativa de confortá-la e ser simpática, mas acaba sentindo-se ainda pior, ainda mais dependente e inútil.
Ela precisa melhorar logo.
***
— Tem alguma novidade? — pergunta, tirando o marcador de texto da boca e tampando-o assim que atende o celular.
— Ela ainda não quer te ver. — a voz de do outro lado é pesarosa. — Não quer me ver também. A mãe dela entrou, mas praticamente à força.
fecha os olhos. A enxaqueca está voltando… e o prazo para entregar sua tese não ajuda em absolutamente nada. Ele simplesmente não consegue lidar com as duas coisas ao mesmo tempo. Não quando não consegue, de verdade, lidar com nenhuma.
— , eu sei que você está arrasado, mas… não desiste dela, tá? Por favor.
Ele suspira.
Do lado de fora de sua janela, o dia está lindo. sabe disso, consegue admitir, mas não apreciar. Parece que tudo perdeu o sentido. Ele está sendo carregado pelas correntezas de e, muito provavelmente, em algum momento vai acabar se afogando.
— Eu não vou desistir dela, . Nem que eu queira, eu não conseguiria.
Ele consegue ouvir que está chorando. É claro que a carga também é insuportável para ela. Ela está lá há mais tempo, e é sua melhor amiga. Nada se compara a este tipo de amor também.
— Você a ama, não ama? — ela pergunta.
assente, como se pudesse vê-lo. E, embora ela não possa, é uma resposta óbvia.
— A tem muita sorte de ter você. Eu só… espero que ela se recupere a tempo de entender e aceitar isso. — soluça, a respiração entrecortada. Ela também está acabada.
ouve passos no corredor. Owen está parado à porta, com o olhar preocupado que se instalou em seu rosto quase constantemente.
— Fale para ela vir para cá. Não a deixe sozinha. — Owen sussurra.
assente.
— , escuta… por que você não vem para cá? A gente compra alguma coisa para comer e… não sei. Um apoia o outro? — ele sugere.
— Certo. Tá. Eu chego em… uma meia hora. Mas já vou avisando, estou parecendo lixo revirado. Não quero que seu amigo bonito me veja assim. Ele está em casa?
olha para Owen e, dessa vez, ele está sorrindo.
— Sim, o Owen está em casa.
— Quarenta e cinco minutos, então. Vou passar corretivo.
não consegue evitar rir também.
***
não quer ver a mãe. Não quer ver ninguém.
Mas ela aparece para visitá-la pela segunda vez no dia, dessa vez com uma mala de mão cheia de coisas.
— Trouxe uma toalha decente e… bem, algumas coisas que achei que pudessem ser úteis. — ela olha para com expectativa, que não está olhando de volta para ela.
está contornando o dedo anelar repetidamente.
— Minha aliança. — ela diz.
— O quê? — a mãe olha para ela. Está exausta, e o fato de isso ser visível é um pouco alarmante para , mas tudo está fora do normal.
Algumas coisas ela precisa ignorar.
— Você trouxe minha aliança? — pergunta.
A mãe dela suspira, massageando as têmporas nervosamente. Ela abre a boca algumas vezes. No entanto, não diz nada. Só olha para a filha com preocupação e temor.
— … — ela se aproxima de , que se retesa na cama, então dá um passo atrás novamente. — Isso é passado. O Dave morreu em um acidente de carro. Tem quase três anos.
— Não.
— Sim, . Você estava grávida. Vocês estavam indo para nossa casa, iam contar para a gente, mas uma carreta invadiu a pista e vocês bateram de frente.
— Não. — repete, de olhos fechados.
— O Dave morreu na hora. Você ficou entre a vida e a morte, perdeu o bebê, foi…
— Não! — dessa vez, grita, e atira a primeira coisa que consegue alcançar: o telefone do quarto, na mesinha de cabeceira logo ao seu lado.
Por um instante, tudo acontece em câmera lenta. O telefone voa pelo quarto, os fios se esticando em todas as direções, até o aparelho acertar, em cheio, a testa da mãe de , que solta um gritinho rouco, assustado, e fita a filha com os olhos arregalados.
ainda está gritando quando a enfermeira entra.
A cabeça de sua mãe está sangrando quando um médico chega com outra enfermeira.
Tudo fica em silêncio depois que aplicam em uma injeção.
Desolada, a mãe desaba no chão, chorando, não pela dor do ferimento na cabeça, mas pela sensação de impotência que parece forte o suficiente para matá-la a qualquer momento. Isso já foi longe demais. Tudo já foi longe demais.
***
É Owen quem dirige.
não consegue evitar sentir-se culpado por arrastar o amigo para o turbilhão de emoções que sua vida se tornou nos últimos tempos, mas está exausto, os olhos parcamente focados, a visão turva, o cansaço tomando conta de cada pedacinho seu.
está no banco de trás. Ela não disse uma palavra sequer depois que a mãe de ligou para , contando sobre o que tinha acontecido.
Parece que estão indo para um funeral. É como se alguém tivesse mesmo morrido. E, de fato, eles estão assistindo a que se reconstruiu simplesmente desmoronando, sem nenhum aviso prévio.
Quando chegam ao hospital, nem espera Owen propriamente parar o carro. Ele desce antes, andando a passos largos — depois correndo — pelo caminho com o qual já se tornou familiar.
A cada passo que dá, a cada profissional de saúde vestido de branco ou azul por quem ele passa como um flash, só consegue se perguntar “por quê?”
Por que as coisas precisaram ser assim? Em que tipo de montanha russa sádica havia sido tecida sua história com ? Os toques oníricos de contos de fada contemporâneos e, logo em seguida, a descida veloz, rápida demais para que ele pudesse ver, batendo de cara no chão.
encontra a mãe de no corredor.
Para uma mulher sempre tão segura de si, sempre tão controlada, ela está como ele nunca pensou que estaria: acabada, desmantelada.
Seus olhares se encontram.
Ela tem os olhos de , e é especialmente mais difícil vê-los daquela maneira. Vermelhos, inchados, desolados. Para onde foi toda a esperança?
— Eu não sei mais o que fazer, . Não sei mais o que fazer. — ela o abraça com força, enterrando o rosto em seu peito, como se fossem velhos amigos, íntimos de verdade. — Eu achei que as coisas iam melhorar... mas por que, ? Por que a está andando para trás? — ela soluça, ainda abraçada a ele. — Eu sei que ela estava seguindo em frente, . Eu sei que ela estava, porque você é a prova viva disso. Se ela não estivesse seguindo em frente com a vida dela, ela não estaria apaixonada por você. O que eu não entendo é... o que é que sempre a puxa para trás, ?
Ele balança a cabeça. Adoraria ter a resposta para essa pergunta, mas não é algo que ele saiba.
Atrás deles, está parada, respirando com dificuldade, com as palavras que dissera a ela uma vez, mas que ouvira também Dave dizer, claras em sua mente.
“Tudo que você tem, tudo que você é. Vão levar para longe, mesmo se você não quiser. Tudo que você é, tudo que você tem, as rodas falharão, sem olhar a quem. Tudo que você tem, tudo que você é, transportados para o além, para longe e até”.
***
Ela está com falta de ar quando acorda.
O peito dolorido sobe e desce nervosamente, e só uma imagem toma conta de sua lembrança: olhos selvagens, rapinantes, encarando-a como se prestes a devorá-la.
As palavras ecoam tão alto que parecem soar dentro de seus ouvidos. os cobre com as mãos, tentando, em vão, abafar o som que tanto a faz sofrer.
Por que está se lembrando disso agora? Ela não tem a menor ideia. Mas, quando, olha pelo pequeno vidro na porta do quarto e vê o homem que viera visitá-la antes — , este é seu nome —, ela sente uma palpitação estranha no coração, e o estômago revira.
É culpa dele? Se ele tem algo a ver com o motivo pelo qual todos estão mentindo sobre Dave e o bebê, por que ela não consegue sentir raiva dele? Por que ela não consegue se lembrar de nada?
Por um curto momento, seus olhares se encontram, e os olhos dele são bons, e ela sabe, ainda que não se lembre, que ele não fez nada de errado. Ele não tem nada a ver com a dor que ela está sentindo.
fecha os olhos, não aguentando mais nem um segundo encarando-o de volta.
— Nós nos conhecemos em um jogo, mas não somos um jogo. Não somos times, não somos adversários. Todo o resto é um jogo, é verdade. Mas podemos jogar juntos. Se você quiser. — a voz é tão alta que toma um susto, sobressaltando-se na cama do hospital. Ela abre os olhos, apenas para constatar que ainda está sozinha.
não está mais em frente à porta. Quem está lá agora é , que não demora a entrar.
— Ele quer ver você. — ela diz. — O .
balança a cabeça, recusando.
crispa os lábios, visivelmente chateada.
— Você não se lembra mesmo dele? — há uma última centelha de esperança em seus olhos quando pergunta. Mas, quando responde de novo com um simples meneio de cabeça, ela desaparece.
— O que há pra lembrar, ?
A mãe de está parada à porta.
— Talvez, se você deixá-lo entrar e… — ela tenta falar, mas a encara com fúria, impedindo-a de continuar o raciocínio.
olha para a amiga, mas nada diz. Só respira fundo antes de dar as costas e sair do quarto.
Não demora para que esteja sozinha de novo, ainda que não dure. O tempo todo ela precisa ser medicada, examinada ou visitada por alguém da equipe médica. Às vezes, trocam seus curativos, e alguns ferimentos doem tanto que ela tem vontade de chorar, mas não o faz, puramente por orgulho.
Ela não pode se entregar.
Já está tarde — muito depois de uma das enfermeiras passar para lhe dar banho — quando uma mulher que nunca estivera ali aparece.
Ela não usa jaleco branco, nem uniforme azul, mas tem uma prancheta que mantém abraçada contra o peito, com uma caneta pendurada por uma cordinha.
tem a impressão de que a conhece, mas não sabe dizer de onde. Talvez ela possa lhe ajudar a preencher algumas das lacunas em sua mente.
— Oi, . — a mulher diz, esticando a mão para cumprimentá-la. precisa fazer menos esforço para se mover agora, então a cumprimenta também. — Você sabe quem eu sou?
— Não. — responde, embora esteja vasculhando suas lembranças, à procura de qualquer vestígio sobre a mulher. Nada.
A mulher à sua frente assente.
— Meu nome é Mary. Sou psicóloga. Nós nos conhecemos há quase três anos. — ela faz uma pausa, olhando para com apreensão. — Você tinha acabado de sofrer um acidente. Não queria conversar com ninguém. Eu te contei sobre o acidente que matou meu marido e meu filho.
se ajeita na cama, desconfortável, sem conseguir retribuir o olhar direto da psicóloga.
— Você me contou sobre… uma senhora no supermercado, quando você tinha quinze anos. Ela te disse algo que você, até então, nunca havia esquecido. Você ainda se lembra?
apenas assente.
— Naquela época, você atribuiu o acidente ao que essa mulher tinha dito, e ao fato de que você não tinha acreditado nela.
— Que acidente? — finalmente pergunta. — De que acidente você está falando, Mary?
— Do acidente que matou seu marido, Dave, e o bebê que você estava esperando. — rola os olhos, mas, antes que ela proteste, Mary tira um pedaço de papel dobrado de sua prancheta e lhe entrega. — Imagino que seja difícil acreditar quando você não tem memória alguma desse acidente, mas ele aconteceu.
pega o papel. É um recorte de jornal, uma foto dos destroços de um carro na rodovia, uma carreta a poucos metros de distância.
“Acidente grave envolvendo carreta deixa um morto e uma mulher grávida em estado grave”.
Ela olha novamente para a foto.
Apesar da destruição, conhece aquele carro. Conhece porque é o seu carro.
fecha os olhos, cobrindo-os com as mãos. Mas ainda é capaz de ver. A luz ofuscante que vem em sua direção, veloz, pouco antes de que ela sinta de novo: o medo e o choque, ambos percorrendo seu corpo.
***
Antes que realmente tenha consciência disso, ela está correndo. Na maior velocidade que a tíbia ainda em recuperação lhe permite.
Ela enxerga apenas flashes, lampejos de memória que surgem enquanto Mary tenta, em vão, impedi-la de fugir.
Vozes se misturam a ruídos em sua cabeça, as imagens se sobrepondo, tudo tão confuso que ela não consegue de fato identificar muitas coisas.
ouve uma voz grave atrás dela, em desespero.
Ela para e, quando se vira, ele está lá.
finalmente percebe o coração acelerado, as dores lancinantes pelo corpo, a tontura.
Ela quase cai, mas a segura.
“— Agora é hora da… — a voz nos alto falantes exclama, com expectativa. — Câmera do beijo!”
olha para ele, com os olhos arregalados. Tudo ao redor parece congelar enquanto imagens de um jogo de basquete se tornam nítidas para ela.
Eles tinham se beijado. Na frente de um monte de gente.
Com seus olhos presos aos dele, tem acesso a memórias que parecem de outra pessoa, mas que ela sabe que não são.
“— Eu só queria saber se você quer sair para jantar comigo. Não hoje, porque já está tarde. Amanhã.”
— ? — ele pergunta. A forma como ele pronuncia seu nome, como ele olha para ela, a maneira como a está segurando, com firmeza e, ao mesmo tempo, tanta delicadeza… tudo isso é o suficiente para que saiba.
Estão todos tão desesperados porque é tudo verdade. E agora ela se lembra de tantas coisas, que é impossível negar. É tudo real. O acidente, a morte de Dave e do bebê. E, além disso, é real.
Em algum momento — do qual ela ainda não se lembra muito bem — ela o encontrou, o conheceu, conectou-se com ele. Em algum momento, se apaixonou por ele.
Mesmo que ainda haja coisas faltando em sua memória, mesmo que diversas lacunas ainda precisem ser preenchidas, ela sabe disso, e não é tão difícil assim saber. Ela sente. E é assim que sabe.
— … — ela murmura, as lágrimas correndo por seu rosto, incontáveis, incontroláveis. E então, como se sua bateria acabasse por completo, ela desmorona em seus braços.
A médica tenta olhar para ele com uma expressão neutra, mas seus olhos transparecem que ela está sentindo pena. Não só dele, mas da mãe de e também da amiga dela, com quem ela também gritara quando fora visitada no quarto.
— Em casos como este... nós já podíamos esperar por um quadro de amnésia. A equipe médica chegou a conversar sobre isso. O inchaço cerebral nos primeiros dias foi preocupante, e traumas de cabeça são sempre cercados de muitos mistérios e possibilidades...
— Se ela não se lembra... se ela não se lembra, por que falou o meu nome? — os olhos dele estão cheios de lágrima de novo. Sempre assim. Desde que perguntara, poucos segundos depois de dizer seu nome, quem ele era, não conseguia parar de chorar.
— , querido, talvez seja melhor você ir para casa... — a mãe de diz, apoiando sutilmente uma mão sobre o ombro dele. — Descanse um pouco. Talvez as coisas estejam melhores pela manhã.
Pelo tom como ela diz isso, sabe que nem ela acredita.
Já faz dois dias que tudo isso começou. E, à medida em que eles ficam mais desesperados com a falta de memória de , mais irritada ela fica por achar que está sendo enganada.
Mas está exausto. A sala onde estão conversando com a neurologista, doutora McClaren, não é exatamente perto do quarto de , mas, ainda assim, conseguem ouvi-la gritando com .
Ele fecha os olhos com tanta força que chegam a doer. Depois, cobre os ouvidos com as mãos. Se pudesse se teleportar para longe dali... talvez para uma realidade onde tivesse acordado com todas as memórias no lugar...
Mas a verdade é que ele não pode. E que prometeu a ela que não iria embora.
“Não vou sair daqui até você voltar”, ele dissera. De certa forma, ela voltara. Mas não a sua . Então isso não conta. Porque ela ainda não está lá. E ainda não está disposto — porque sabe que é completamente incapaz — a esquecê-la ou deixá-la para trás.
O que está acontecendo? O que aconteceu com sua vida? Por que estão todos mentindo? E onde, de verdade, estão Dave e o bebê? Por que ela não consegue se lembrar de seu filho?
leva as mãos à cabeça, em desespero. O suor gélido gruda a pele em seu pescoço e colo, e ela está tremendo de frio e nervosismo enquanto chora.
O que fizeram com ela? O que aconteceu com todo mundo?
só sabe que não quer ver ninguém. Não enquanto não estiver bem o suficiente para ir embora do hospital e, sozinha, procurar por Dave e por seu filho.
Mas a verdade é que o corpo inteiro dói, e toda vez que mexe a cabeça sente tontura e precisa fechar os olhos. Então isso deve demorar.
Não tem como manter a calma assim.
Uma enfermeira entra no quarto, carregando uma bandeja com uma refeição. Ela sorri para , que a ignora.
— Seu almoço. — diz, apertando o botão para inclinar a cama e esticando a bandeja sobre .
— Não estou com fome, obrigada.
A enfermeira tira a tampa do pote maior, e é uma sopa turva que torna as coisas ainda menos convidativas.
— Bom… você pode fazer um esforço? Ainda estamos te garantindo todos os nutrientes pelo soro, mas seria bom se começasse a ingerir alimentos aos poucos. Vai te ajudar a se fortalecer mais rápido.
A menção a “mais rápido” é o que faz com que aceite forçar algumas colheradas da sopa insossa, mesmo que as mãos trêmulas acabem derrubando o líquido sobre sua roupa e os lençóis, deixando-a envergonhada.
— Não se preocupe com isso. Assim que te levarmos para o banho, trocamos todas as roupas de cama. — a enfermeira diz, numa tentativa de confortá-la e ser simpática, mas acaba sentindo-se ainda pior, ainda mais dependente e inútil.
Ela precisa melhorar logo.
— Ela ainda não quer te ver. — a voz de do outro lado é pesarosa. — Não quer me ver também. A mãe dela entrou, mas praticamente à força.
fecha os olhos. A enxaqueca está voltando… e o prazo para entregar sua tese não ajuda em absolutamente nada. Ele simplesmente não consegue lidar com as duas coisas ao mesmo tempo. Não quando não consegue, de verdade, lidar com nenhuma.
— , eu sei que você está arrasado, mas… não desiste dela, tá? Por favor.
Ele suspira.
Do lado de fora de sua janela, o dia está lindo. sabe disso, consegue admitir, mas não apreciar. Parece que tudo perdeu o sentido. Ele está sendo carregado pelas correntezas de e, muito provavelmente, em algum momento vai acabar se afogando.
— Eu não vou desistir dela, . Nem que eu queira, eu não conseguiria.
Ele consegue ouvir que está chorando. É claro que a carga também é insuportável para ela. Ela está lá há mais tempo, e é sua melhor amiga. Nada se compara a este tipo de amor também.
— Você a ama, não ama? — ela pergunta.
assente, como se pudesse vê-lo. E, embora ela não possa, é uma resposta óbvia.
— A tem muita sorte de ter você. Eu só… espero que ela se recupere a tempo de entender e aceitar isso. — soluça, a respiração entrecortada. Ela também está acabada.
ouve passos no corredor. Owen está parado à porta, com o olhar preocupado que se instalou em seu rosto quase constantemente.
— Fale para ela vir para cá. Não a deixe sozinha. — Owen sussurra.
assente.
— , escuta… por que você não vem para cá? A gente compra alguma coisa para comer e… não sei. Um apoia o outro? — ele sugere.
— Certo. Tá. Eu chego em… uma meia hora. Mas já vou avisando, estou parecendo lixo revirado. Não quero que seu amigo bonito me veja assim. Ele está em casa?
olha para Owen e, dessa vez, ele está sorrindo.
— Sim, o Owen está em casa.
— Quarenta e cinco minutos, então. Vou passar corretivo.
não consegue evitar rir também.
Mas ela aparece para visitá-la pela segunda vez no dia, dessa vez com uma mala de mão cheia de coisas.
— Trouxe uma toalha decente e… bem, algumas coisas que achei que pudessem ser úteis. — ela olha para com expectativa, que não está olhando de volta para ela.
está contornando o dedo anelar repetidamente.
— Minha aliança. — ela diz.
— O quê? — a mãe olha para ela. Está exausta, e o fato de isso ser visível é um pouco alarmante para , mas tudo está fora do normal.
Algumas coisas ela precisa ignorar.
— Você trouxe minha aliança? — pergunta.
A mãe dela suspira, massageando as têmporas nervosamente. Ela abre a boca algumas vezes. No entanto, não diz nada. Só olha para a filha com preocupação e temor.
— … — ela se aproxima de , que se retesa na cama, então dá um passo atrás novamente. — Isso é passado. O Dave morreu em um acidente de carro. Tem quase três anos.
— Não.
— Sim, . Você estava grávida. Vocês estavam indo para nossa casa, iam contar para a gente, mas uma carreta invadiu a pista e vocês bateram de frente.
— Não. — repete, de olhos fechados.
— O Dave morreu na hora. Você ficou entre a vida e a morte, perdeu o bebê, foi…
— Não! — dessa vez, grita, e atira a primeira coisa que consegue alcançar: o telefone do quarto, na mesinha de cabeceira logo ao seu lado.
Por um instante, tudo acontece em câmera lenta. O telefone voa pelo quarto, os fios se esticando em todas as direções, até o aparelho acertar, em cheio, a testa da mãe de , que solta um gritinho rouco, assustado, e fita a filha com os olhos arregalados.
ainda está gritando quando a enfermeira entra.
A cabeça de sua mãe está sangrando quando um médico chega com outra enfermeira.
Tudo fica em silêncio depois que aplicam em uma injeção.
Desolada, a mãe desaba no chão, chorando, não pela dor do ferimento na cabeça, mas pela sensação de impotência que parece forte o suficiente para matá-la a qualquer momento. Isso já foi longe demais. Tudo já foi longe demais.
não consegue evitar sentir-se culpado por arrastar o amigo para o turbilhão de emoções que sua vida se tornou nos últimos tempos, mas está exausto, os olhos parcamente focados, a visão turva, o cansaço tomando conta de cada pedacinho seu.
está no banco de trás. Ela não disse uma palavra sequer depois que a mãe de ligou para , contando sobre o que tinha acontecido.
Parece que estão indo para um funeral. É como se alguém tivesse mesmo morrido. E, de fato, eles estão assistindo a que se reconstruiu simplesmente desmoronando, sem nenhum aviso prévio.
Quando chegam ao hospital, nem espera Owen propriamente parar o carro. Ele desce antes, andando a passos largos — depois correndo — pelo caminho com o qual já se tornou familiar.
A cada passo que dá, a cada profissional de saúde vestido de branco ou azul por quem ele passa como um flash, só consegue se perguntar “por quê?”
Por que as coisas precisaram ser assim? Em que tipo de montanha russa sádica havia sido tecida sua história com ? Os toques oníricos de contos de fada contemporâneos e, logo em seguida, a descida veloz, rápida demais para que ele pudesse ver, batendo de cara no chão.
encontra a mãe de no corredor.
Para uma mulher sempre tão segura de si, sempre tão controlada, ela está como ele nunca pensou que estaria: acabada, desmantelada.
Seus olhares se encontram.
Ela tem os olhos de , e é especialmente mais difícil vê-los daquela maneira. Vermelhos, inchados, desolados. Para onde foi toda a esperança?
— Eu não sei mais o que fazer, . Não sei mais o que fazer. — ela o abraça com força, enterrando o rosto em seu peito, como se fossem velhos amigos, íntimos de verdade. — Eu achei que as coisas iam melhorar... mas por que, ? Por que a está andando para trás? — ela soluça, ainda abraçada a ele. — Eu sei que ela estava seguindo em frente, . Eu sei que ela estava, porque você é a prova viva disso. Se ela não estivesse seguindo em frente com a vida dela, ela não estaria apaixonada por você. O que eu não entendo é... o que é que sempre a puxa para trás, ?
Ele balança a cabeça. Adoraria ter a resposta para essa pergunta, mas não é algo que ele saiba.
Atrás deles, está parada, respirando com dificuldade, com as palavras que dissera a ela uma vez, mas que ouvira também Dave dizer, claras em sua mente.
“Tudo que você tem, tudo que você é. Vão levar para longe, mesmo se você não quiser. Tudo que você é, tudo que você tem, as rodas falharão, sem olhar a quem. Tudo que você tem, tudo que você é, transportados para o além, para longe e até”.
Ela está com falta de ar quando acorda.
O peito dolorido sobe e desce nervosamente, e só uma imagem toma conta de sua lembrança: olhos selvagens, rapinantes, encarando-a como se prestes a devorá-la.
As palavras ecoam tão alto que parecem soar dentro de seus ouvidos. os cobre com as mãos, tentando, em vão, abafar o som que tanto a faz sofrer.
Por que está se lembrando disso agora? Ela não tem a menor ideia. Mas, quando, olha pelo pequeno vidro na porta do quarto e vê o homem que viera visitá-la antes — , este é seu nome —, ela sente uma palpitação estranha no coração, e o estômago revira.
É culpa dele? Se ele tem algo a ver com o motivo pelo qual todos estão mentindo sobre Dave e o bebê, por que ela não consegue sentir raiva dele? Por que ela não consegue se lembrar de nada?
Por um curto momento, seus olhares se encontram, e os olhos dele são bons, e ela sabe, ainda que não se lembre, que ele não fez nada de errado. Ele não tem nada a ver com a dor que ela está sentindo.
fecha os olhos, não aguentando mais nem um segundo encarando-o de volta.
— Nós nos conhecemos em um jogo, mas não somos um jogo. Não somos times, não somos adversários. Todo o resto é um jogo, é verdade. Mas podemos jogar juntos. Se você quiser. — a voz é tão alta que toma um susto, sobressaltando-se na cama do hospital. Ela abre os olhos, apenas para constatar que ainda está sozinha.
não está mais em frente à porta. Quem está lá agora é , que não demora a entrar.
— Ele quer ver você. — ela diz. — O .
balança a cabeça, recusando.
crispa os lábios, visivelmente chateada.
— Você não se lembra mesmo dele? — há uma última centelha de esperança em seus olhos quando pergunta. Mas, quando responde de novo com um simples meneio de cabeça, ela desaparece.
— O que há pra lembrar, ?
A mãe de está parada à porta.
— Talvez, se você deixá-lo entrar e… — ela tenta falar, mas a encara com fúria, impedindo-a de continuar o raciocínio.
olha para a amiga, mas nada diz. Só respira fundo antes de dar as costas e sair do quarto.
Não demora para que esteja sozinha de novo, ainda que não dure. O tempo todo ela precisa ser medicada, examinada ou visitada por alguém da equipe médica. Às vezes, trocam seus curativos, e alguns ferimentos doem tanto que ela tem vontade de chorar, mas não o faz, puramente por orgulho.
Ela não pode se entregar.
Já está tarde — muito depois de uma das enfermeiras passar para lhe dar banho — quando uma mulher que nunca estivera ali aparece.
Ela não usa jaleco branco, nem uniforme azul, mas tem uma prancheta que mantém abraçada contra o peito, com uma caneta pendurada por uma cordinha.
tem a impressão de que a conhece, mas não sabe dizer de onde. Talvez ela possa lhe ajudar a preencher algumas das lacunas em sua mente.
— Oi, . — a mulher diz, esticando a mão para cumprimentá-la. precisa fazer menos esforço para se mover agora, então a cumprimenta também. — Você sabe quem eu sou?
— Não. — responde, embora esteja vasculhando suas lembranças, à procura de qualquer vestígio sobre a mulher. Nada.
A mulher à sua frente assente.
— Meu nome é Mary. Sou psicóloga. Nós nos conhecemos há quase três anos. — ela faz uma pausa, olhando para com apreensão. — Você tinha acabado de sofrer um acidente. Não queria conversar com ninguém. Eu te contei sobre o acidente que matou meu marido e meu filho.
se ajeita na cama, desconfortável, sem conseguir retribuir o olhar direto da psicóloga.
— Você me contou sobre… uma senhora no supermercado, quando você tinha quinze anos. Ela te disse algo que você, até então, nunca havia esquecido. Você ainda se lembra?
apenas assente.
— Naquela época, você atribuiu o acidente ao que essa mulher tinha dito, e ao fato de que você não tinha acreditado nela.
— Que acidente? — finalmente pergunta. — De que acidente você está falando, Mary?
— Do acidente que matou seu marido, Dave, e o bebê que você estava esperando. — rola os olhos, mas, antes que ela proteste, Mary tira um pedaço de papel dobrado de sua prancheta e lhe entrega. — Imagino que seja difícil acreditar quando você não tem memória alguma desse acidente, mas ele aconteceu.
pega o papel. É um recorte de jornal, uma foto dos destroços de um carro na rodovia, uma carreta a poucos metros de distância.
“Acidente grave envolvendo carreta deixa um morto e uma mulher grávida em estado grave”.
Ela olha novamente para a foto.
Apesar da destruição, conhece aquele carro. Conhece porque é o seu carro.
fecha os olhos, cobrindo-os com as mãos. Mas ainda é capaz de ver. A luz ofuscante que vem em sua direção, veloz, pouco antes de que ela sinta de novo: o medo e o choque, ambos percorrendo seu corpo.
Antes que realmente tenha consciência disso, ela está correndo. Na maior velocidade que a tíbia ainda em recuperação lhe permite.
Ela enxerga apenas flashes, lampejos de memória que surgem enquanto Mary tenta, em vão, impedi-la de fugir.
Vozes se misturam a ruídos em sua cabeça, as imagens se sobrepondo, tudo tão confuso que ela não consegue de fato identificar muitas coisas.
ouve uma voz grave atrás dela, em desespero.
Ela para e, quando se vira, ele está lá.
finalmente percebe o coração acelerado, as dores lancinantes pelo corpo, a tontura.
Ela quase cai, mas a segura.
“— Agora é hora da… — a voz nos alto falantes exclama, com expectativa. — Câmera do beijo!”
olha para ele, com os olhos arregalados. Tudo ao redor parece congelar enquanto imagens de um jogo de basquete se tornam nítidas para ela.
Eles tinham se beijado. Na frente de um monte de gente.
Com seus olhos presos aos dele, tem acesso a memórias que parecem de outra pessoa, mas que ela sabe que não são.
“— Eu só queria saber se você quer sair para jantar comigo. Não hoje, porque já está tarde. Amanhã.”
— ? — ele pergunta. A forma como ele pronuncia seu nome, como ele olha para ela, a maneira como a está segurando, com firmeza e, ao mesmo tempo, tanta delicadeza… tudo isso é o suficiente para que saiba.
Estão todos tão desesperados porque é tudo verdade. E agora ela se lembra de tantas coisas, que é impossível negar. É tudo real. O acidente, a morte de Dave e do bebê. E, além disso, é real.
Em algum momento — do qual ela ainda não se lembra muito bem — ela o encontrou, o conheceu, conectou-se com ele. Em algum momento, se apaixonou por ele.
Mesmo que ainda haja coisas faltando em sua memória, mesmo que diversas lacunas ainda precisem ser preenchidas, ela sabe disso, e não é tão difícil assim saber. Ela sente. E é assim que sabe.
— … — ela murmura, as lágrimas correndo por seu rosto, incontáveis, incontroláveis. E então, como se sua bateria acabasse por completo, ela desmorona em seus braços.
Capítulo 2
— precisa se recuperar mentalmente tanto quanto fisicamente. — a psicóloga, Mary, diz, olhando para a família de , e com seriedade. Ela tem as mãos unidas e uma expressão respeitosa no rosto. — Ela precisa se curar de verdade dessa vez.
— Por isso você acha necessária a internação. — o irmão de diz, ao que Mary assente, aguardando uma resposta da família.
Até o momento, nunca o vira pessoalmente, apesar de muito ouvir falar a seu respeito.
— Na minha opinião, é o que temos que fazer. — o pai de diz. também nunca o conhecera, mas percebe, logo de cara, que o homem emana autoridade. A família toda assente quase instantaneamente.
— Eu acho que certamente é a melhor alternativa, doutor . — Mary diz, dando um sorriso compassivo para eles. — E, além do mais, não seria por tanto tempo assim. Nós só precisamos garantir que ela não se machuque mais. Em nenhum sentido.
— ? — a mãe de pergunta, encarando-o com expectativa.
Ele olha para ela, surpreso por ter sua opinião requisitada, mas assente também.
— Tudo bem. Nós vamos assinar. — ela diz. — Se é o melhor para a , é o que todos queremos.
***
Quando ela abre os olhos novamente, não está no mesmo quarto.
O lugar onde está agora é menor e mais… triste. Não há flores em lugar algum, nem televisão, e a ausência quase completa de cores é deprimente.
está vestindo novamente roupa de hospital, mas, dessa vez, um pijama com calça. Pelo menos sente-se menos exposta.
Não demora muito para que duas pessoas entrem no quarto, e os olhos de correm direto para seus crachás. Médica. Enfermeiro. Ala psiquiátrica. Ela fecha os olhos de novo.
— Olá, . — a voz da mulher é tão tranquila que, por um momento, quase se deixa levar. — Como você está?
— Bem. — ela diz. É a resposta padrão, a que dizemos mais rápido, mesmo quando não é verdade. E é, principalmente, a resposta que dizemos para nos livrar de situações desconfortáveis.
E tudo que mais quer é se livrar de tudo isso.
— É muito bom ouvir isso. — a médica sorri para ela. — Eu sou a doutora Kress. — depois disso, a doutora Kress começa um falatório que está pouco interessada em ouvir.
Na verdade, só existe uma coisa sobre a qual ela quer realmente saber: quando suas outras memórias vão voltar. Quando ela vai poder confiar de novo em si mesma, e deixar de sentir-se uma estranha dentro do próprio corpo.
E, para isso, está disposta a tudo, inclusive a entregar-se a cada pequeno passo da jornada que a psiquiatra acabou de descrever. Tudo para recuperar o controle, ter o poder sobre a própria vida novamente.
***
ouve o celular tocar no quarto, e sai correndo com a escova de dentes pendurada na boca.
Desde que fora transferida para a ala psiquiátrica — pouco mais de duas semanas antes —, ela passara cada vez menos tempo longe do telefone. A qualquer momento uma novidade podia chegar, como quando se lembrara de momentos com a amiga, e pedira para visitá-la.
Na ocasião, levara o mesmo vestido que usara em seu primeiro encontro com — da marca da mãe dele — e, quase no mesmo instante após pegá-lo, ficara fissurada pelo broche de libélula, que segurara entre os dedos como se fosse muito precioso. Depois, na mesma noite, ela se lembrara de seu primeiro encontro com .
E, com dando pequenos sinais de melhora, podia se permitir alguns pequenos momentos de descontração. Passava o tempo livre quase sempre com e Owen, mesmo que o primeiro acabasse se retraindo e deixando os dois a sós — sobre o que não reclamaria muito, uma vez que Owen era uma ótima companhia.
Quando ela atende, é Owen. Mas sua voz não está divertida como de costume. Está preocupada.
— O foi para o hospital. A encontrou a mulher do marcado, a maluca da profecia.
— O quê? — não consegue acreditar.
De todas as merdas do mundo, quantas ainda vão acontecer com ?
***
reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar. Em qualquer momento. Porque deles nunca se esquecera. Os olhos predatórios, ameaçadores, vidrados e inexpressivos como os de uma ave de rapina.
A voz cortante determinando, enfaticamente, o princípio do fim. Pelo menos para .
“Tudo que você tem, tudo que você é. Vão levar para longe, mesmo se você não quiser. Tudo que você é, tudo que você tem, as rodas falharão, sem olhar a quem. Tudo que você tem, tudo que você é, transportados para o além, para longe e até”.
Ela está em uma cadeira de rodas quando a vê. Uma manta de tricô colorida cobre suas pernas, e ela mantém a cabeça baixa até o exato momento em que chega perto de . Então, seus olhares se encontram, e vê tudo de uma vez.
Sem pensar, ela se lança à frente, segurando os braços da cadeira.
Seu rosto está perto do rosto da mulher, tão perto que lhe provoca arrepios.
O enfermeiro tenta tirá-la de lá, mas toda a força de parece ter se acumulado nesse instante.
— O que você está fazendo aqui? — sua voz é quase um rosnado. As lágrimas que escorrem por seu rosto são de um acúmulo desenfreado de emoções. Tristeza, raiva, medo. Tudo que ela consegue e não consegue nomear.
— Estou aqui porque eles acham que sou maluca. — a mulher responde, olhando fixamente para .
— Você é uma bruxa.
— , pare com isso. — o enfermeiro tenta novamente tirá-la do caminho, mas a mulher na cadeira de rodas o segura.
— Não, querida. Você sabe que não. Eles sempre dirão que mulheres que sabem demais são bruxas. Mas, às vezes, nós só sabemos das coisas.
balança a cabeça.
— Você arruinou a minha vida. Você fez isso comigo.
— Não, eu não fiz. Eu só te informei.
— Devo te agradecer pela boa ação, então? Por ter estragado tudo que importava para mim?
A mulher sorri, ajeitando a manta colorida sobre o colo.
— Às vezes, minha querida, nós precisamos perder tudo aquilo que pensamos ter, tudo aquilo que pensamos ser, para descobrir o que realmente importa. Quando descobrimos a verdade, descobrimos quem realmente somos. Você já descobriu quem realmente é, ?
Antes que consiga responder, a doutora Kress aparece no corredor.
— O que está acontecendo aqui?
a encara, depois olha de novo para a mulher estranha à sua frente.
— Você pensa que perdeu todo o seu poder, mas ainda o está encontrando e construindo. — ela diz. Então, seus olhos perdem o foco, como se ela tivesse saído do ar.
***
Quando volta para seu quarto, ignorando o “momento de socialização”, precisa parar a duas portas da sua, por pura curiosidade, porque está entreaberta e ela pode ver uma garota dançando lentamente uma canção que acabou de dar o play em um radinho portátil que deviam ter permitido que ela usasse brevemente.
Hang up your coat, take the weight off your shoulders
(Pendure seu casaco, tire o peso dos seus ombros)
You still don’t know just what you are
(Você ainda não sabe o que é)
Take off your hat, lay your head next to mine, babe
(Tire o chapéu, deite sua cabeça ao lado da minha, querido)
Come rest with me and forget the world awhile
(Venha descansar comigo e esqueça o mundo um pouco)
só consegue pensar que a garota deve ser uma dançarina de verdade. Porque cada movimento seu parece tão inerentemente conectado à música que é como se os dois só pudessem existir juntos.
There’s a lot of people in America, in America
(Há muitas pessoas na América, na América)
Three hundred million in America, it’s a miracle
(Trezentos milhões na América, é um milagre)
That my road crossed yours and that your road crossed mine
(Que meu caminho se cruzou com o seu e seu caminho se cruzou com o meu)
‘Cause there’s a lot of people in America
(Porque há muitas pessoas na América)
A garota olha para . E sorri. E a convida para dançar também. E aceita. Como se tudo ao redor já não fosse irônico o suficiente.
Sometimes it’s cruel when the devil fools you
(Às vezes é cruel quando o diabo engana você)
Just keep your cool when the day wears you down
(Apenas mantenha a calma quando o dia te desgastar)
Come rest with me and forget the world awhile
(Venha descansar comigo e esqueça o mundo um pouco)
There’s a lot of people in America, in America
(Há muitas pessoas na América, na América)
Three hundred million in America, it’s a miracle
(Trezentos milhões na América, é um milagre)
That my road crossed yours and that your road crossed mine
(Que meu caminho se cruzou com o seu e seu caminho se cruzou com o meu)
‘Cause there’s a lot of people in America
(Porque há muitas pessoas na América)
“Cinco minutos depois que o jogo começa, um homem chega para o assento livre ao lado de . Ela suspira, decepcionada por não ter mais o espaço vazio por perto.
O rapaz é espaçoso, e está carregando consigo mais petiscos do que . O cheiro de gordura exala das sacolas com intensidade. bate o olho rapidamente, contando dois hambúrgueres e um hot dog.”
sorri, lembrando-se do exato momento em que seu caminho se cruzou com o caminho de .
And I thought no one could see me
(E eu pensei que ninguém podia me ver)
And I was walking for a thousand miles
(E estava andando por mil milhas)
Out of every state and city
(Por cada estado e cada cidade)
You were the one I was waiting to find
(Era você que eu esperava encontrar)
There’s a lot of people in America, in America
(Há muitas pessoas na América, na América)
Over three hundred million in America, it’s a miracle
(Mais de trezentos milhões na América, é um milagre)
That my hand felt yours
(Que minha mão sentiu a sua)
And your heart felt mine
(E seu coração sentiu o meu)
Tão rápido quanto um piscar de olhos, mais lembranças a invadem, deixando-a tonta.
“— Se eu a deixei me perturbar e abalar, é porque eu não a vi como ela era. E eu não quero que isso aconteça de novo. Eu quero ver você como você é. Eu quero amar você por amor, não por condicionamento. — ele suspira outra vez, parecendo cansado depois de tanto falar. — E eu não quero assustar você, nem apressar nada. Eu não quero competir com seu passado, muito menos superá-lo. Eu quero fazer tudo certo no presente, para termos a chance de ter um futuro.”
“Com os olhos marejados de lágrimas e o nariz vermelho do choro, levanta a cabeça, olhando-o nos olhos.
— Desta vez é melhor você me beijar, .
Ele sorri.
— Também acho.”
Balançando a cabeça, incrédula, está chorando outra vez.
Tudo voltou.
Está tudo ali. Tudo.
‘Cause there’s a lot of people in America
(Porque há muitas pessoas na América)
Yeah, there’s a lot of people in America
(Sim, há muitas pessoas na América)
Yeah, there’s a lot of people in America, it’s a miracle
(Sim, há muitas pessoas na América, é um milagre)1
Ela olha para a garota dançando quando a música acaba.
— Eu tenho que ir. — diz, antes de sair correndo.
corre pelos corredores, procurando a doutora Kress.
A encontra na área aberta do refeitório.
— Doutora Kress. — ela está arfando quando finalmente consegue falar. — Eu preciso que você ligue para o . — a médica olha para ela, confusa. — Por favor, ligue para o . Por favor.
A psiquiatra assente, e tem a impressão de notar um sorrisinho em seu rosto.
— O já está a caminho, .
Sem compreender completamente o que isso quer dizer, mas sem motivos para reclamar, assente desesperadamente antes de retornar para seu quarto.
Yeah, I'm taking it back
Yeah, lit all the way up
Even in the dark, I glow, I glow, I glow
— Por isso você acha necessária a internação. — o irmão de diz, ao que Mary assente, aguardando uma resposta da família.
Até o momento, nunca o vira pessoalmente, apesar de muito ouvir falar a seu respeito.
— Na minha opinião, é o que temos que fazer. — o pai de diz. também nunca o conhecera, mas percebe, logo de cara, que o homem emana autoridade. A família toda assente quase instantaneamente.
— Eu acho que certamente é a melhor alternativa, doutor . — Mary diz, dando um sorriso compassivo para eles. — E, além do mais, não seria por tanto tempo assim. Nós só precisamos garantir que ela não se machuque mais. Em nenhum sentido.
— ? — a mãe de pergunta, encarando-o com expectativa.
Ele olha para ela, surpreso por ter sua opinião requisitada, mas assente também.
— Tudo bem. Nós vamos assinar. — ela diz. — Se é o melhor para a , é o que todos queremos.
***
O lugar onde está agora é menor e mais… triste. Não há flores em lugar algum, nem televisão, e a ausência quase completa de cores é deprimente.
está vestindo novamente roupa de hospital, mas, dessa vez, um pijama com calça. Pelo menos sente-se menos exposta.
Não demora muito para que duas pessoas entrem no quarto, e os olhos de correm direto para seus crachás. Médica. Enfermeiro. Ala psiquiátrica. Ela fecha os olhos de novo.
— Olá, . — a voz da mulher é tão tranquila que, por um momento, quase se deixa levar. — Como você está?
— Bem. — ela diz. É a resposta padrão, a que dizemos mais rápido, mesmo quando não é verdade. E é, principalmente, a resposta que dizemos para nos livrar de situações desconfortáveis.
E tudo que mais quer é se livrar de tudo isso.
— É muito bom ouvir isso. — a médica sorri para ela. — Eu sou a doutora Kress. — depois disso, a doutora Kress começa um falatório que está pouco interessada em ouvir.
Na verdade, só existe uma coisa sobre a qual ela quer realmente saber: quando suas outras memórias vão voltar. Quando ela vai poder confiar de novo em si mesma, e deixar de sentir-se uma estranha dentro do próprio corpo.
E, para isso, está disposta a tudo, inclusive a entregar-se a cada pequeno passo da jornada que a psiquiatra acabou de descrever. Tudo para recuperar o controle, ter o poder sobre a própria vida novamente.
Desde que fora transferida para a ala psiquiátrica — pouco mais de duas semanas antes —, ela passara cada vez menos tempo longe do telefone. A qualquer momento uma novidade podia chegar, como quando se lembrara de momentos com a amiga, e pedira para visitá-la.
Na ocasião, levara o mesmo vestido que usara em seu primeiro encontro com — da marca da mãe dele — e, quase no mesmo instante após pegá-lo, ficara fissurada pelo broche de libélula, que segurara entre os dedos como se fosse muito precioso. Depois, na mesma noite, ela se lembrara de seu primeiro encontro com .
E, com dando pequenos sinais de melhora, podia se permitir alguns pequenos momentos de descontração. Passava o tempo livre quase sempre com e Owen, mesmo que o primeiro acabasse se retraindo e deixando os dois a sós — sobre o que não reclamaria muito, uma vez que Owen era uma ótima companhia.
Quando ela atende, é Owen. Mas sua voz não está divertida como de costume. Está preocupada.
— O foi para o hospital. A encontrou a mulher do marcado, a maluca da profecia.
— O quê? — não consegue acreditar.
De todas as merdas do mundo, quantas ainda vão acontecer com ?
reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar. Em qualquer momento. Porque deles nunca se esquecera. Os olhos predatórios, ameaçadores, vidrados e inexpressivos como os de uma ave de rapina.
A voz cortante determinando, enfaticamente, o princípio do fim. Pelo menos para .
“Tudo que você tem, tudo que você é. Vão levar para longe, mesmo se você não quiser. Tudo que você é, tudo que você tem, as rodas falharão, sem olhar a quem. Tudo que você tem, tudo que você é, transportados para o além, para longe e até”.
Ela está em uma cadeira de rodas quando a vê. Uma manta de tricô colorida cobre suas pernas, e ela mantém a cabeça baixa até o exato momento em que chega perto de . Então, seus olhares se encontram, e vê tudo de uma vez.
Sem pensar, ela se lança à frente, segurando os braços da cadeira.
Seu rosto está perto do rosto da mulher, tão perto que lhe provoca arrepios.
O enfermeiro tenta tirá-la de lá, mas toda a força de parece ter se acumulado nesse instante.
— O que você está fazendo aqui? — sua voz é quase um rosnado. As lágrimas que escorrem por seu rosto são de um acúmulo desenfreado de emoções. Tristeza, raiva, medo. Tudo que ela consegue e não consegue nomear.
— Estou aqui porque eles acham que sou maluca. — a mulher responde, olhando fixamente para .
— Você é uma bruxa.
— , pare com isso. — o enfermeiro tenta novamente tirá-la do caminho, mas a mulher na cadeira de rodas o segura.
— Não, querida. Você sabe que não. Eles sempre dirão que mulheres que sabem demais são bruxas. Mas, às vezes, nós só sabemos das coisas.
balança a cabeça.
— Você arruinou a minha vida. Você fez isso comigo.
— Não, eu não fiz. Eu só te informei.
— Devo te agradecer pela boa ação, então? Por ter estragado tudo que importava para mim?
A mulher sorri, ajeitando a manta colorida sobre o colo.
— Às vezes, minha querida, nós precisamos perder tudo aquilo que pensamos ter, tudo aquilo que pensamos ser, para descobrir o que realmente importa. Quando descobrimos a verdade, descobrimos quem realmente somos. Você já descobriu quem realmente é, ?
Antes que consiga responder, a doutora Kress aparece no corredor.
— O que está acontecendo aqui?
a encara, depois olha de novo para a mulher estranha à sua frente.
— Você pensa que perdeu todo o seu poder, mas ainda o está encontrando e construindo. — ela diz. Então, seus olhos perdem o foco, como se ela tivesse saído do ar.
Hang up your coat, take the weight off your shoulders
(Pendure seu casaco, tire o peso dos seus ombros)
You still don’t know just what you are
(Você ainda não sabe o que é)
Take off your hat, lay your head next to mine, babe
(Tire o chapéu, deite sua cabeça ao lado da minha, querido)
Come rest with me and forget the world awhile
(Venha descansar comigo e esqueça o mundo um pouco)
só consegue pensar que a garota deve ser uma dançarina de verdade. Porque cada movimento seu parece tão inerentemente conectado à música que é como se os dois só pudessem existir juntos.
There’s a lot of people in America, in America
(Há muitas pessoas na América, na América)
Three hundred million in America, it’s a miracle
(Trezentos milhões na América, é um milagre)
That my road crossed yours and that your road crossed mine
(Que meu caminho se cruzou com o seu e seu caminho se cruzou com o meu)
‘Cause there’s a lot of people in America
(Porque há muitas pessoas na América)
A garota olha para . E sorri. E a convida para dançar também. E aceita. Como se tudo ao redor já não fosse irônico o suficiente.
Sometimes it’s cruel when the devil fools you
(Às vezes é cruel quando o diabo engana você)
Just keep your cool when the day wears you down
(Apenas mantenha a calma quando o dia te desgastar)
Come rest with me and forget the world awhile
(Venha descansar comigo e esqueça o mundo um pouco)
There’s a lot of people in America, in America
(Há muitas pessoas na América, na América)
Three hundred million in America, it’s a miracle
(Trezentos milhões na América, é um milagre)
That my road crossed yours and that your road crossed mine
(Que meu caminho se cruzou com o seu e seu caminho se cruzou com o meu)
‘Cause there’s a lot of people in America
(Porque há muitas pessoas na América)
“Cinco minutos depois que o jogo começa, um homem chega para o assento livre ao lado de . Ela suspira, decepcionada por não ter mais o espaço vazio por perto.
O rapaz é espaçoso, e está carregando consigo mais petiscos do que . O cheiro de gordura exala das sacolas com intensidade. bate o olho rapidamente, contando dois hambúrgueres e um hot dog.”
sorri, lembrando-se do exato momento em que seu caminho se cruzou com o caminho de .
And I thought no one could see me
(E eu pensei que ninguém podia me ver)
And I was walking for a thousand miles
(E estava andando por mil milhas)
Out of every state and city
(Por cada estado e cada cidade)
You were the one I was waiting to find
(Era você que eu esperava encontrar)
There’s a lot of people in America, in America
(Há muitas pessoas na América, na América)
Over three hundred million in America, it’s a miracle
(Mais de trezentos milhões na América, é um milagre)
That my hand felt yours
(Que minha mão sentiu a sua)
And your heart felt mine
(E seu coração sentiu o meu)
Tão rápido quanto um piscar de olhos, mais lembranças a invadem, deixando-a tonta.
“— Se eu a deixei me perturbar e abalar, é porque eu não a vi como ela era. E eu não quero que isso aconteça de novo. Eu quero ver você como você é. Eu quero amar você por amor, não por condicionamento. — ele suspira outra vez, parecendo cansado depois de tanto falar. — E eu não quero assustar você, nem apressar nada. Eu não quero competir com seu passado, muito menos superá-lo. Eu quero fazer tudo certo no presente, para termos a chance de ter um futuro.”
“Com os olhos marejados de lágrimas e o nariz vermelho do choro, levanta a cabeça, olhando-o nos olhos.
— Desta vez é melhor você me beijar, .
Ele sorri.
— Também acho.”
Balançando a cabeça, incrédula, está chorando outra vez.
Tudo voltou.
Está tudo ali. Tudo.
‘Cause there’s a lot of people in America
(Porque há muitas pessoas na América)
Yeah, there’s a lot of people in America
(Sim, há muitas pessoas na América)
Yeah, there’s a lot of people in America, it’s a miracle
(Sim, há muitas pessoas na América, é um milagre)1
Ela olha para a garota dançando quando a música acaba.
— Eu tenho que ir. — diz, antes de sair correndo.
corre pelos corredores, procurando a doutora Kress.
A encontra na área aberta do refeitório.
— Doutora Kress. — ela está arfando quando finalmente consegue falar. — Eu preciso que você ligue para o . — a médica olha para ela, confusa. — Por favor, ligue para o . Por favor.
A psiquiatra assente, e tem a impressão de notar um sorrisinho em seu rosto.
— O já está a caminho, .
Sem compreender completamente o que isso quer dizer, mas sem motivos para reclamar, assente desesperadamente antes de retornar para seu quarto.
Yeah, lit all the way up
Even in the dark, I glow, I glow, I glow
Capítulo 3
Assim que encontra a doutora Kress, que está esperando por ele no corredor, ele não espera muito.
Ela abre a porta que dá acesso à ala psiquiátrica, e dispara na frente dela, apenas para se lembrar de que não sabe onde está, e que a médica vai precisar levá-lo até lá.
Felizmente, a doutora Kress parece mais do que paciente. Ela parece animada.
— Onde ela está? — finalmente pergunta, ignorando o pouco de vergonha que ainda lhe resta. Ele só quer vê-la. deve estar apavorada.
— Venha comigo.
está no pequeno espaço que abriga um jardim de inverno. Ela tem a cabeça baixa apoiada sobre as mãos. Parece desolada, despedaçada, e não sabe quanto tempo mais vai aguentar vê-la dessa maneira.
Porque ele mesmo está se despedaçando. E, em pouco tempo, nada vai sobrar para se reconstruir.
Quando o vê, no entanto, seus olhos se iluminam.
Tudo acontece tão rápido que não consegue ver a cena inteira se desenrolar.
se levanta e, praticamente correndo, joga seus braços ao redor do pescoço de , pegando-o de surpresa e fazendo-o vacilar brevemente em seus pés.
Quando ela se afasta, seu rosto está encharcado de lágrimas de seus olhos vermelhos.
— Eu sinto muito, . — ela murmura, cabisbaixa.
não sabe o que fazer.
Ainda segurando-a, ele ergue a mão em direção em seu rosto, mas ela olha para ele antes disso.
— Eu amo você, . — diz, olhando-o nos olhos. — Eu amo você, e eu posso ter esquecido, mas eu sempre soube. Me perdoe, . Me perdoe, por favor.
aproveita sua mão sobre a cintura dela e a puxa para perto, levando seus lábios aos dela.
Parece que esperou tempo demais para isso. Mas não importa. Ele esperaria todo o tempo do mundo. Por , ele esperaria. Nenhum desafio seria o suficiente para fazê-lo desistir.
o abraça, apertando-o com tanta força que os nós de seus dedos ficam esbranquiçados.
— Eu amo você, . — responde, embrenhando os dedos por seus cabelos. — Eu amo você.
***
deixa o hospital em seis dias.
As orientações médicas são claras: ela deve seguir o tratamento por pelo menos mais um ano, frequentando a terapia e fazendo outras atividades, além de continuar tomando os medicamentos.
O primeiro passo — e verdadeiro indício de que ela está seguindo em frente, enfrentando seus medos — pode passar despercebido para a maioria das pessoas, mas não para a senhora , e : vai embora do hospital de carro.
O nervosismo está estampado em seu rosto, e expresso no calafrio que percorre seu corpo. No entanto, ela segura a mão de com força no banco de trás, e a situação não se parece tanto com um pesadelo. É só a vida real, difícil como às vezes pode ficar.
— Para onde você quer ir? — a senhora pergunta, olhando para a filha pelo retrovisor.
Até então, não pensara realmente nisso.
Parece que não se encaixa mais em nenhum dos lugares onde já viveu.
A casa dos pais é grande demais, e tem exatamente o cheiro de sua adolescência, só que com as adaptações que vieram com a chegada de seus sobrinhos. De alguma forma, tem certeza de que viver rodeada pela família não é a melhor opção curativa.
O apartamento que dividira com até o acidente tampouco parece o ideal. É pequeno demais, quase tão restrito quanto seu quarto no hospital, ainda que tenha a presença constante de sua melhor amiga.
Ela ainda não sabe onde vai morar. Mas sabe para onde quer ir.
***
O cheiro de mofo toma conta de tudo logo que a porta se abre.
Apesar de terem todos ficado apreensivos quando dissera para onde queria ir, ninguém se opusera. Ninguém forçara sua presença.
Então está parada, sozinha, encarando um cenário de seu passado que fora demasiadamente ignorado por ela mesma por muito tempo.
Os móveis estão todos cobertos com lençóis brancos, mas, apesar disso — e do tempo que se passou —, ela consegue ver sua antiga casa como era antigamente: a mesinha de madeira em formato octagonal, comprada em um brechó antes mesmo do casamento é o primeiro móvel, logo ao lado da porta. Na parede acima dela, o porta-chaves que tem o formato de uma casinha, com um pássaro pintado a mão pendurado em um poleiro está coberto de poeira que remove com os dedos.
O sofá de camurça bege, as poltronas brancas, de couro, a mesinha de centro de vidro — antigamente coberta por livros muito bem organizados e pela escultura dourada de um pinguim —, o tapete bordado a mão que viera da Índia…
Ainda que algumas coisas não estejam mais lá, ainda consegue visualizar. Porque nunca esteve ali depois que as coisas saíram do lugar. Nunca voltou para casa sem Dave. Não até agora.
Ela fecha a porta atrás de si, sozinha no palco do passado, e caminha pelo apartamento que um dia fora seu lar.
Sobre o console da lareira ainda estão emolduradas as fotos do casamento, e o pequeno porta-retrato que fizera de última hora com uma imagem do bebê no exame de ultrassom para levar quando fosse dar a notícia à família, mas que esquecera em casa.
Ela engole em seco e segue pelo corredor.
Na parede, um quadro comprado de um artista de rua durante a lua de mel, uma foto de e Dave ainda adolescentes, no baile de formatura, um espelho de moldura dourada, tão empoeirado que não consegue ver a si mesma no momento, só a do passado.
Em seu antigo quarto, se ela fechar um pouco os olhos, ainda pode ver a roupa de cama favorita — de cetim azul, tão confortável que parecia fazer carinho na pele —, seu robe no encosto da poltrona em frente à penteadeira — abarrotada de coisas — e as mesinhas de cabeceira de cada um: a de Dave com nada além de seu abajur, e a sua com um amontoado de coisas, de livros a post-its e hidratantes labiais, passando pelo creme que passara a usar obsessivamente depois de descobrir a gravidez, a fim de evitar as estrias.
Agora está tudo coberto pelos lençóis brancos.
Assim como o quarto do bebê, que não chegara a ganhar nenhuma mobília, exceto por uma cômoda vintage grande, com passarinhos incrustados na madeira da lateral, que Dave comprara impulsivamente depois de passar na frente de uma loja, no dia seguinte a quando descobrira que ia ser pai.
Tudo coberto por lençóis brancos.
tira todos do lugar. Descobre todos os móveis, porque precisa olhar para eles como estão. As gavetas vazias, a poeira que conseguira penetrar o tecido, as marcas do tempo, uma família de cupins no armário da despensa e formigas tomando conta do armário da cozinha.
É assim que ela sabe que acabou, que passou, porque nada daquilo parece mais parte de sua vida, nada daquilo, quando ela olha, a encara de volta e grita a palavra lar.
Parece triste que ela não tenha um para onde ir agora, mas só porque nada disso é real. Lar é um conceito abstrato demais e, no momento, o que evoca esse significado para ela a está esperando no saguão do prédio, provavelmente ansioso e preocupado, como ela não gostaria que ele estivesse.
Então se apressa em limpar as mãos empoeiradas, deixar o apartamento, pegar o elevador e voltar para ele lá embaixo.
***
Três meses depois
— Eu acho que a Irlanda vai ser perfeita. — diz, com um sorriso de orelha a orelha. Sua felicidade genuína pela felicidade da amiga é cristalina, está no brilho de seus olhos, no sorriso e no tom de sua voz. — Estou muito feliz por vocês dois.
sorri também.
— Vou sentir tanta saudade… — diz, olhando para com carinho. Deve tanto a ela. É tão grata a ela.
— Eu também! Mas vou te ligar de madrugada todos os dias, até você enjoar de mim e parar de sentir. — responde, e dá uma gargalhada. — Só estou chateada por ser tão rápido… quer dizer, você vai embora em menos de uma semana!
— Vou estar de volta em seis meses. — diz, empurrando a amiga com o ombro só para vê-la sorrir.
— Eu espero que não. — dá de ombros. — Imagine só os bebezinhos fofos que você e o teriam, com os genes de vocês dois e a influência do clima da Irlanda? — ela fala sorrindo, mas, depois, sente-se mal por ter falado de bebês.
Só que começa a rir. E sabe que está tudo bem agora.
***
I'm not a perfect person
(Eu não sou uma pessoa perfeita)
There's many things I wish I didn't do
(Há muitas coisas que eu gostaria de não ter feito)
But I continue learning
(Mas continuo aprendendo)
I never meant to do those things to you
(Eu nunca quis fazer aquelas coisas com você)
And so, I have to say before I go
(Então eu tenho que dizer antes de ir)
That I just want you to know
(Que só quero que você saiba)
Eles estão sentados lado a lado no avião.
Não é nem um pouco surpreendente que se sinta enjoado, e segura sua mão enquanto decolam, acariciando-a com seu polegar.
Ela pode ver, pelo canto do olho, que ele sorri seu sorriso de lado doce e gentil. Por sorte, ele está tão feliz quanto ela.
Quando a aeronave finalmente se estabiliza no ar, abre os olhos novamente, fitando-a com tanto amor e admiração que precisa desviar o próprio olhar por alguns instantes. Parece absurdo que seja tão amada assim.
I've found a reason for me
(Eu encontrei um motivo para mim)
To change who I used to be
(Para mudar quem eu costumava ser)
A reason to start over new
(Um motivo para começar de novo)
And the reason is you
(E o motivo é você)
Do lado de fora, as nuvens parecem mesmo feitas de algodão.
recosta sua cabeça no ombro de , e ele ajeita o braço em volta dela, que fica contente só por estar em seu lugar seguro, no melhor lugar do mundo.
I'm sorry that I hurt you
(Sinto muito por ter te magoado)
It's something I must live with everyday
(É algo com o que terei que lidar todo dia)
And all the pain I put you through
(E toda a dor que eu te causei)
I wish that I could take it all away
(Eu gostaria de poder retirar completamente)
And be the one who catches all your tears
(E ser quem apanha todas as suas lágrimas)
That's why I need you to hear
(É por isso que preciso que você escute)
— Eu amo você, . — diz, de olhos fechados, sem saber que os dela estão também.
— Eu sei, . Mas eu ainda amo você muito mais.
sorri, cutucando-a de brincadeira.
— Humanamente impossível. Como sociólogo, posso afirmar. Nenhuma outra criatura dessa espécie seria capaz de amar outro espécime como eu amo você. Nem em milhões de anos de evolução, .
I've found a reason for me
(Eu encontrei um motivo para mim)
To change who I used to be
(Para mudar quem eu costumava ser)
A reason to start over new
(Um motivo para começar de novo)
And the reason is you
(E o motivo é você)
I've found a reason to show
(Eu encontrei um motivo para mostrar)
A side of me you didn't know
(Um lado de mim que você não conhecia)
A reason for all that I do
(Um motivo para tudo que eu faço)
And the reason is you
(E o motivo é você)2
solta uma gargalhada, mas seu rosto está vermelho, e seu coração palpitando de alegria e entusiasmo. Por estar onde está, com quem está.
Alegria e entusiasmo por estar só começando uma história com .
E por saber que o poder sobre essa narrativa é todo seu.
1 America, da cantora Mabes.
2 The Reason, da banda Hoobastank.
Ela abre a porta que dá acesso à ala psiquiátrica, e dispara na frente dela, apenas para se lembrar de que não sabe onde está, e que a médica vai precisar levá-lo até lá.
Felizmente, a doutora Kress parece mais do que paciente. Ela parece animada.
— Onde ela está? — finalmente pergunta, ignorando o pouco de vergonha que ainda lhe resta. Ele só quer vê-la. deve estar apavorada.
— Venha comigo.
está no pequeno espaço que abriga um jardim de inverno. Ela tem a cabeça baixa apoiada sobre as mãos. Parece desolada, despedaçada, e não sabe quanto tempo mais vai aguentar vê-la dessa maneira.
Porque ele mesmo está se despedaçando. E, em pouco tempo, nada vai sobrar para se reconstruir.
Quando o vê, no entanto, seus olhos se iluminam.
Tudo acontece tão rápido que não consegue ver a cena inteira se desenrolar.
se levanta e, praticamente correndo, joga seus braços ao redor do pescoço de , pegando-o de surpresa e fazendo-o vacilar brevemente em seus pés.
Quando ela se afasta, seu rosto está encharcado de lágrimas de seus olhos vermelhos.
— Eu sinto muito, . — ela murmura, cabisbaixa.
não sabe o que fazer.
Ainda segurando-a, ele ergue a mão em direção em seu rosto, mas ela olha para ele antes disso.
— Eu amo você, . — diz, olhando-o nos olhos. — Eu amo você, e eu posso ter esquecido, mas eu sempre soube. Me perdoe, . Me perdoe, por favor.
aproveita sua mão sobre a cintura dela e a puxa para perto, levando seus lábios aos dela.
Parece que esperou tempo demais para isso. Mas não importa. Ele esperaria todo o tempo do mundo. Por , ele esperaria. Nenhum desafio seria o suficiente para fazê-lo desistir.
o abraça, apertando-o com tanta força que os nós de seus dedos ficam esbranquiçados.
— Eu amo você, . — responde, embrenhando os dedos por seus cabelos. — Eu amo você.
As orientações médicas são claras: ela deve seguir o tratamento por pelo menos mais um ano, frequentando a terapia e fazendo outras atividades, além de continuar tomando os medicamentos.
O primeiro passo — e verdadeiro indício de que ela está seguindo em frente, enfrentando seus medos — pode passar despercebido para a maioria das pessoas, mas não para a senhora , e : vai embora do hospital de carro.
O nervosismo está estampado em seu rosto, e expresso no calafrio que percorre seu corpo. No entanto, ela segura a mão de com força no banco de trás, e a situação não se parece tanto com um pesadelo. É só a vida real, difícil como às vezes pode ficar.
— Para onde você quer ir? — a senhora pergunta, olhando para a filha pelo retrovisor.
Até então, não pensara realmente nisso.
Parece que não se encaixa mais em nenhum dos lugares onde já viveu.
A casa dos pais é grande demais, e tem exatamente o cheiro de sua adolescência, só que com as adaptações que vieram com a chegada de seus sobrinhos. De alguma forma, tem certeza de que viver rodeada pela família não é a melhor opção curativa.
O apartamento que dividira com até o acidente tampouco parece o ideal. É pequeno demais, quase tão restrito quanto seu quarto no hospital, ainda que tenha a presença constante de sua melhor amiga.
Ela ainda não sabe onde vai morar. Mas sabe para onde quer ir.
O cheiro de mofo toma conta de tudo logo que a porta se abre.
Apesar de terem todos ficado apreensivos quando dissera para onde queria ir, ninguém se opusera. Ninguém forçara sua presença.
Então está parada, sozinha, encarando um cenário de seu passado que fora demasiadamente ignorado por ela mesma por muito tempo.
Os móveis estão todos cobertos com lençóis brancos, mas, apesar disso — e do tempo que se passou —, ela consegue ver sua antiga casa como era antigamente: a mesinha de madeira em formato octagonal, comprada em um brechó antes mesmo do casamento é o primeiro móvel, logo ao lado da porta. Na parede acima dela, o porta-chaves que tem o formato de uma casinha, com um pássaro pintado a mão pendurado em um poleiro está coberto de poeira que remove com os dedos.
O sofá de camurça bege, as poltronas brancas, de couro, a mesinha de centro de vidro — antigamente coberta por livros muito bem organizados e pela escultura dourada de um pinguim —, o tapete bordado a mão que viera da Índia…
Ainda que algumas coisas não estejam mais lá, ainda consegue visualizar. Porque nunca esteve ali depois que as coisas saíram do lugar. Nunca voltou para casa sem Dave. Não até agora.
Ela fecha a porta atrás de si, sozinha no palco do passado, e caminha pelo apartamento que um dia fora seu lar.
Sobre o console da lareira ainda estão emolduradas as fotos do casamento, e o pequeno porta-retrato que fizera de última hora com uma imagem do bebê no exame de ultrassom para levar quando fosse dar a notícia à família, mas que esquecera em casa.
Ela engole em seco e segue pelo corredor.
Na parede, um quadro comprado de um artista de rua durante a lua de mel, uma foto de e Dave ainda adolescentes, no baile de formatura, um espelho de moldura dourada, tão empoeirado que não consegue ver a si mesma no momento, só a do passado.
Em seu antigo quarto, se ela fechar um pouco os olhos, ainda pode ver a roupa de cama favorita — de cetim azul, tão confortável que parecia fazer carinho na pele —, seu robe no encosto da poltrona em frente à penteadeira — abarrotada de coisas — e as mesinhas de cabeceira de cada um: a de Dave com nada além de seu abajur, e a sua com um amontoado de coisas, de livros a post-its e hidratantes labiais, passando pelo creme que passara a usar obsessivamente depois de descobrir a gravidez, a fim de evitar as estrias.
Agora está tudo coberto pelos lençóis brancos.
Assim como o quarto do bebê, que não chegara a ganhar nenhuma mobília, exceto por uma cômoda vintage grande, com passarinhos incrustados na madeira da lateral, que Dave comprara impulsivamente depois de passar na frente de uma loja, no dia seguinte a quando descobrira que ia ser pai.
Tudo coberto por lençóis brancos.
tira todos do lugar. Descobre todos os móveis, porque precisa olhar para eles como estão. As gavetas vazias, a poeira que conseguira penetrar o tecido, as marcas do tempo, uma família de cupins no armário da despensa e formigas tomando conta do armário da cozinha.
É assim que ela sabe que acabou, que passou, porque nada daquilo parece mais parte de sua vida, nada daquilo, quando ela olha, a encara de volta e grita a palavra lar.
Parece triste que ela não tenha um para onde ir agora, mas só porque nada disso é real. Lar é um conceito abstrato demais e, no momento, o que evoca esse significado para ela a está esperando no saguão do prédio, provavelmente ansioso e preocupado, como ela não gostaria que ele estivesse.
Então se apressa em limpar as mãos empoeiradas, deixar o apartamento, pegar o elevador e voltar para ele lá embaixo.
Três meses depois
sorri também.
— Vou sentir tanta saudade… — diz, olhando para com carinho. Deve tanto a ela. É tão grata a ela.
— Eu também! Mas vou te ligar de madrugada todos os dias, até você enjoar de mim e parar de sentir. — responde, e dá uma gargalhada. — Só estou chateada por ser tão rápido… quer dizer, você vai embora em menos de uma semana!
— Vou estar de volta em seis meses. — diz, empurrando a amiga com o ombro só para vê-la sorrir.
— Eu espero que não. — dá de ombros. — Imagine só os bebezinhos fofos que você e o teriam, com os genes de vocês dois e a influência do clima da Irlanda? — ela fala sorrindo, mas, depois, sente-se mal por ter falado de bebês.
Só que começa a rir. E sabe que está tudo bem agora.
I'm not a perfect person
(Eu não sou uma pessoa perfeita)
There's many things I wish I didn't do
(Há muitas coisas que eu gostaria de não ter feito)
But I continue learning
(Mas continuo aprendendo)
I never meant to do those things to you
(Eu nunca quis fazer aquelas coisas com você)
And so, I have to say before I go
(Então eu tenho que dizer antes de ir)
That I just want you to know
(Que só quero que você saiba)
Eles estão sentados lado a lado no avião.
Não é nem um pouco surpreendente que se sinta enjoado, e segura sua mão enquanto decolam, acariciando-a com seu polegar.
Ela pode ver, pelo canto do olho, que ele sorri seu sorriso de lado doce e gentil. Por sorte, ele está tão feliz quanto ela.
Quando a aeronave finalmente se estabiliza no ar, abre os olhos novamente, fitando-a com tanto amor e admiração que precisa desviar o próprio olhar por alguns instantes. Parece absurdo que seja tão amada assim.
I've found a reason for me
(Eu encontrei um motivo para mim)
To change who I used to be
(Para mudar quem eu costumava ser)
A reason to start over new
(Um motivo para começar de novo)
And the reason is you
(E o motivo é você)
Do lado de fora, as nuvens parecem mesmo feitas de algodão.
recosta sua cabeça no ombro de , e ele ajeita o braço em volta dela, que fica contente só por estar em seu lugar seguro, no melhor lugar do mundo.
I'm sorry that I hurt you
(Sinto muito por ter te magoado)
It's something I must live with everyday
(É algo com o que terei que lidar todo dia)
And all the pain I put you through
(E toda a dor que eu te causei)
I wish that I could take it all away
(Eu gostaria de poder retirar completamente)
And be the one who catches all your tears
(E ser quem apanha todas as suas lágrimas)
That's why I need you to hear
(É por isso que preciso que você escute)
— Eu amo você, . — diz, de olhos fechados, sem saber que os dela estão também.
— Eu sei, . Mas eu ainda amo você muito mais.
sorri, cutucando-a de brincadeira.
— Humanamente impossível. Como sociólogo, posso afirmar. Nenhuma outra criatura dessa espécie seria capaz de amar outro espécime como eu amo você. Nem em milhões de anos de evolução, .
I've found a reason for me
(Eu encontrei um motivo para mim)
To change who I used to be
(Para mudar quem eu costumava ser)
A reason to start over new
(Um motivo para começar de novo)
And the reason is you
(E o motivo é você)
I've found a reason to show
(Eu encontrei um motivo para mostrar)
A side of me you didn't know
(Um lado de mim que você não conhecia)
A reason for all that I do
(Um motivo para tudo que eu faço)
And the reason is you
(E o motivo é você)2
solta uma gargalhada, mas seu rosto está vermelho, e seu coração palpitando de alegria e entusiasmo. Por estar onde está, com quem está.
Alegria e entusiasmo por estar só começando uma história com .
E por saber que o poder sobre essa narrativa é todo seu.
1 America, da cantora Mabes.
2 The Reason, da banda Hoobastank.