Fanfic finalizada

Capítulo Único

Eu me vi. Literalmente, eu estava me encarando bem na minha frente. Mesmos cabelos, mesma cor de pele, mesmos olhos, mesma sobrancelha arqueada.
- Prazer em te conhecer. – Minha voz soou pelos seus lábios. Ou menos? Isso é confuso. Ela era igualzinha a mim.
- Quem é você?
- Suas memórias. Sua vida. Sua guia. – Ela esticou a mão para mim em um convite silencioso.
- Para onde? – Perguntei.
- Você morreu. – Seus dedos gelados envolveram meu braço.

Think I just remembered something



- É meu quarto, mas ele não é mais assim. - Eu me lembrava das paredes rosa que eu sempre odiei, cobertas com pôsteres de bandas de rock que eu amava na adolescência, mas que haviam sido retirados anos atrás. Eles não deviam estar mais lá.
- Você vai para outro lugar, mas não pode deixar que essas coisas te prendam aqui.
- Para onde eu vou? Pro céu? Inferno?
- Não acredite nas histórias que os humanos te contaram, eles distorcem muita coisa.
- Como eu morri? – Minha voz raspava na garganta.
- Ainda não estamos nessa parte, estamos no começo. Me conte sobre esse lugar.
- Era meu quarto, na casa dos meus pais. – Baixei meus olhos, queria que as coisas acabassem logo. Por que não acabavam? A morte não era o final de tudo?
- O que aconteceu aqui? – A guia instigou.
- Nada. – Respondi.
- Sinto muito, querida, mas você não pode mais mentir para si mesmo.
- Então eu não preciso dizer. Você sabe. – Resmunguei. Meu estômago embrulhava. Eu ainda devia ter um estômago?
- Eu sei que é confuso, mas você precisa descobrir antes de partir. – Seus dedos afagaram meus cabelos em conforto.
- Descobrir o que?
- De quem é a culpa, querida.

Should've never said the word love



- Foi nesse quarto a primeira vez, certo? – Engoli tudo o que poderia dizer e apenas balancei a cabeça. Me lembrar daquilo me dava vergonha.
Eu era adolescente, 15 anos. Eu mal me lembro qual foi o primeiro gatilho, mas me lembro da sensação que sempre me perseguia. Eu nunca seria boa o bastante. Nunca seria como os outros. Aquela era eu, a garota gorda, com espinhas no rosto, roupas grandes com as quais eu tentava esconder o meu corpo. Eu nunca me achei bonita.
Aquela foi a primeira vez em que me machuquei, usando minhas próprias unhas. Não foi forte, mas foi a primeira vez.
O mesmo turbilhão de sentimentos parecia me soterrar novamente. Eu me sentia fraca, como se o peso dos meus problemas fosse me afundar no chão. Quando me arranhei, ali, deitada no chão do meu quarto depois de voltar da escola, eu me senti completamente exposta, me agarrando naquela ideia de que está tudo bem, porque ninguém jamais saberia. Mas eu sabia. Sempre soube.
É como se algo te amarasse por dentro. Tudo o que você precisa é um abraço e um “tudo vai ficar bem”, mas ninguém consegue chegar até você.
Há uma barreira que mantém tudo longe, porque você quer manter todos fora, mas por consequência, acaba mantendo tudo dentro.
Há tanta mágoa e tanta raiva que você não sabe mais para quem direcionar.
É um poço. A cada lágrima eu me afundava mais. A cada machucado desesperado, eu me enterrava mais.
- Tudo vai ficar bem. – A guia me envolveu em um abraço.
Meu quarto de adolescente desapareceu. Eu estava no banheiro da empresa onde tive meu primeiro emprego. Ele era pequeno e apertado.
“Tudo bem, aí?” Ouvi uma voz familiar de Miguel.
“Sim, estou saindo” Respondi. Foi o mesmo que respondi da primeira vez.
Ofegante, lembrei da crise de ansiedade que tive. Havia me escondido no banheiro para me recuperar, lavava o rosto com pressa tentando disfarçar meu estado. Treinava o sorriso. Saia pela porta. Voltava para a sala.
- Ei, estávamos combinando de ir no Mr. Jensen essa semana. – Miguel diz para mim.
- Nós estamos assistindo minha vida? – Pergunto para a guia.
- Alguns momentos. – Responde. – Miguel, não é? Ele era nosso amigo.
- Sempre me chamava para ir para a boate local, mesmo sabendo que eu nunca ia.
- Era legal da parte dele, se importava com a gente. Por isso nos apegamos tanto, não é?
- Acho que sim. Sinto falta dele. – Admiti.
“Talvez eu vá” A versão de mim do passado respondeu para Miguel.
“Sério?” – Ele rebateu surpreso “Nos vemos lá! Vai ser divertido!”
Nos vemos lá. Como aquela frase pode ser tão mal interpretada?
- Pensando no vestido, não é? – Ela perguntou.
- Sim. Parcelei aquele vestido em tantas vezes que nem me lembro quanto tempo fiquei pagando. Mas eu me senti tão bonita, eu achei que... Ah, eu fui tão boba.
- Era nossa primeira paixão, mal tínhamos feito dezoito anos, tudo bem ter sido um pouco boba.
Lembrei-me de comprar um vestido caro, muito mais caro do que eu deveria comprar de acordo com meu salário, mas eu estava empolgada e me senti tão bonita quando experimentei. Liana, minha amiga, concordou comigo e minha mãe estava realizada por eu finalmente estar sendo uma garota normal. Tudo parecia tão bem.
A guia me tocou novamente e nós fomos parar naquela festa. Caramba, eu odiava multidões. Odiava o estilo de música que tocava. Toda a sensação de segurança que tinha reunido havia sumido no minuto em que entrei lá. Liana estava comigo, e repetia várias vezes que eu estava linda. Ela era uma boa amiga.
“Oi! Oi! ” Miguel saiu espremendo as pessoas para chegar até a minha versão do passado. “Que bom que você veio! ” Deu um beijo em minha bochecha, me cumprimentando.
Eu não conseguia conversar, estava me sentindo sufocada pela multidão. Lembro que Liana também cumprimentou, então um amigo acenou para Miguel de longe e ele se despediu.
Pouco tempo depois ele estava com uma outra menina. E eu fiquei me sentindo horrível por aquilo, porque era óbvio que ele era só meu amigo. E aquilo não deveria ser um problema, porque ele realmente era um bom amigo. Eu só nunca havia tido coragem de dizer que queria ter sido mais. Ele nunca soube. Nós nunca fomos mais.
Sentindo um ataque de ansiedade chegando, pedi para Liana me levar embora. Mas estava tão nervosa que trombei com um cara e derrubei sua bebida.
“Olhe por onde anda, sua baleia”
Eu me lembro dele dizendo isso. Me lembro que o vestido era justo e que eu nunca mais o usei. Me lembro que parei de me sentir bonita, porque ser gorda e bonita ao mesmo tempo não parecia aceitável para as outras pessoas. Eu era gorda, sabia que era, então como poderia ser bonita?
No outro dia, Miguel continuou me contando piadas e me chamando para ir no Mrs Jensen, mas eu nunca mais fui.
Quando saí da empresa, perdi a maior parte do contato com Miguel. Não fomos mais que amigos e com o tempo, deixamos até de nos conhecer.
Era o muro novamente.

I'm sick of all the games I have to play



- O novo apartamento. – A guia quase sorriu.
- Achei que ia ficar tudo bem quando me mudasse, quando fosse independente... – Gaguejei.
- Não foi bem assim que aconteceu, não é? – Ela disse.
- Não. – Admiti encarando a cama, aonde eu me escondia do mundo.
Não podemos fugir de nós mesmos.

Let me under your skin



- Você sabe como morreu, não sabe? – A guia me encarou.
- Sim. – Afaguei meus pulsos. Ela estava certa, não podia mais mentir para mim.
- Se você pudesse rever alguma coisa, qualquer coisa, o que seria? – Perguntou.
- Sorvete de domingo com Liana. – Respondi. – O abraço de minha mãe. Quando eu recebi meu primeiro salário... Não sei.
- Você teve bons momentos, também, não é? – A guia instigou.
- Sim. – Admiti, tentando me agarrar as lembranças. Era incrível como eu sempre me concentrava nas coisas ruins antes, o sorvete que me engordaria ainda mais, as brigas que pareciam maiores que o abraços, o salário baixo... – Agora eu perdi tudo.
- Não. – A guia segurou meus braços. Seu toque não era mais frio, mas confortável. Meu toque. Minha pele. Eu era confortável.
- Eu vivi tudo. – Fechei meus olhos.
Tanto tempo acreditando que era um desperdício de espaço. Tanto tempo deixando que os outros dissessem se eu devia ou não me sentir bonita, se devia ou não me vestir daquela forma... se o que eu passava era sério ou não.
Ninguém nunca me ajudou a sair da depressão. E eu nunca deixei que ninguém tentasse. Eu escondia isso. Eu tinha vergonha de ser doente. Vergonha de mim. Parecia que eu fazia tudo errado, parecia que eu era culpada...
Por quê?
Eu era linda. Eu era inteligente. Eu queria me sentir confortável em minha própria pele.
- Você entende agora? – Minha voz soou.
A culpa nunca foi minha. Nunca foi de ninguém.
Liana, mamãe, Miguel, ninguém era culpado pela minha doença. Mas o mais importante, eu também não era.
Não foi minha culpa.
Então tudo se transformou em silêncio e paz.




Fim



Nota da autora: Oi! Espero mesmo que eu tenha conseguido abordar um pouquinho sobre essa doença tão séria que é depressão. Lembre-se, você sempre pode pedir ajuda ao www.cvv.org.br.
Eu sou a @brunacagnin no twitter, e tenho um grupo de fanfics no facebook chamado Leitoras da Bruna. Será que te vejo por lá?



Nota da beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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