06. Who Do You Think You Are

Última atualização: 21/06/2023

Capítulo 1: A esperança é uma boia

?
— Você se lembra, não é mesmo? — perguntei, sentindo as mãos tremerem de leve em compreensão clara do que tudo aquilo significava e deixava de significar.
me olhava com os olhos inquietos e por alguma razão nada sobre o comportamento dele me fazia sentir o que eu acreditava que fosse sentir quando fantasiava sobre aquele momento. Fazia bons meses desde a última vez que pensei ativamente sobre a possibilidade de ele recordar de tudo, porém nada havia me preparado para aquele gosto amargo na boca em antecipação pela quebra da imaginação em acordo com a realidade.
Ele se lembrava.
— Eu lembro, — ele me respondeu, com um tom sério e urgente.
Certo, ele se lembrava mesmo.
Não sabíamos como agir com aquela notícia, porque fazia anos para mim e poucos momentos para ele. Não sabia exatamente quantos momentos, porque ele não tinha me dado detalhes — nem ele, nem Vicente, seu filho — suficientes para entender se já havia tido a oportunidade de processar as informações, entender o que tudo implicava, o que tudo representava. Ele não sabia como reagir à minha reação, trancados em um ciclo imperfeito de imperfeições.
Ele se lembrava.
— Você já foi ao médico? — sorri fraco e me estendi um pouco para segurar sua mão, que estava pendurada solitária nas laterais de seu corpo. , meu ex-marido, estava parado na frente de minha porta, com o cabelo desarrumado e um perfume diferente. — Acho que vão precisar fazer uns exames e…
— A gente se separou mesmo? — Sua pergunta me fez notar que talvez aquele não fosse um assunto para ser tratado no corredor de meu apartamento, por isso o puxei para dentro e fechei a porta atrás dele. Arrastei-o até o sofá e fui até a cozinha pegar um pouco de água.
Devia ter pego um pouco de bebida para mim, mas só respirei fundo, enchi uma xícara com um pouco de café frio para ele e voltei para a sala, onde o homem parecia estático.
Nos olhamos por uns segundos antes de ele se levantar e me abraçar com urgência suficiente para me fazer derramar todo o café sem me incomodar em focar em qualquer coisa que não fosse seu toque.
havia perdido a memória aos trinta e um anos, em uma manhã qualquer. Era uma quinta-feira e eu acreditava que nada de importante acontecia nas quintas; não era tão perto do início da semana, nem tão próximo do final. Mas aquela quinta-feira de outono nunca saiu da minha mente, porque foi o dia em que minha vida havia mudado para sempre: aquele oito e quarenta e seis da manhã tumultuoso que deixou uma família devastada, dois carros com perda total e uma avenida extremamente engarrafada logo antes do início do dia de trabalho de muitos.
Depois de meses com acompanhamento médico próximo e um coma induzido, , na época meu marido de seis anos, acordou sem memórias de nosso tempo juntos. Suas últimas lembranças fortes eram a vida com Olivia, sua namorada e mãe de seu filho, e o pequeno Vicente; nada de Geisler e anos de companheirismo.
Como muitos casos de amnésia traumática, teve muita dificuldade em aceitar que a vida havia passado por ele sem que pudesse se apegar nos momentos que todos contavam, na idade que ele mostrava em seu rosto pelas marcas do tempo ou nas histórias que seus amigos contavam e ele não conseguia recordar.
Para ele, cada momento não existia de verdade, porque cada risada era parte de um universo que ele desconhecia, cada sorriso era um sentimento que não pertencia a ele. Para mim, cada estranhamento era uma punhalada no coração, cada distanciamento era uma dor que parecia não ter fim.
Efeito psicoemocional ou físico, a falta de recordações sobre nosso relacionamento fez com que nosso casamento acabasse de uma maneira silenciosa e natural para e letal para mim, matando todo o resquício de esperança que funcionava como uma boia para que eu não morresse afogada naquele acidente de carro.
Não leve facas para briga de armas e tampouco acredite que amor seja tudo.
, você está bem? Eu juro que não tinha controle nenhum e tentei meu melhor para lembrar, mas era impossível. Juro de verdade, eu tentei.
Seus braços me envolviam da maneira que seu cinto de segurança não fez três anos atrás, mantendo-me firme em uma realidade que eu não queria escapar. lembrava de mim, eu me lembrava dele e de alguma forma aquilo significava muito, por mais que não significasse nada depois de tanto tempo.
— Estou feliz que se lembre, amor. De verdade — respondi, deixando meus dedos subirem e descerem em suas costas, fazendo um carinho lento que me deixava viva no momento. — Mas você já foi ao hospital? Acho que é uma boa fazer um check-up, confirmar que você está bem e que não teve nenhuma complicação no seu cérebro, não sei.
Quando ele se afastou de mim, vi que ele estava chorando.
Não era um choro desesperado. Parecia que a água salgada pedia perdão por todo o dano que causou no nosso destino, marcando suas bochechas como um dia marcaram as minhas.
— Eu precisei vir aqui primeiro. Vince disse que vai vir da escola direto para cá e depois vai comigo ver o médico, mas eu… — Suas mãos passearam rapidamente por seu rosto, limpando evidências da confusão que sua cabeça devia estar. — Você… , eu sinto muito. Sinto tanto. Sinto tanto mesmo que parece que minha cabeça vai explodir em breve, de verdade.
Balancei a cabeça e então deixei que ela se acomodasse em seu peito, abraçando-o mais uma vez.
O começo havia sido fácil comparado com o final.
Nos primeiros meses, eu visitava com frequência, principalmente no primeiro ano depois de ele acordar e não lembrar de mim. Por mais que ele não trocasse muitas palavras comigo, muito menos olhasse em minha direção com qualquer sentimento que não fosse desconfiança, a esperança nutria em mim uma sensação de que seu quadro era somente um percalço; de que tudo bem eu deixar minha cafeteria nas mãos de minha gerente, porque meu marido era minha prioridade.
Na saúde e na doença, ele e Vince sempre estariam no topo das minhas prioridades, sempre. E Lua, claro.
Mesmo quando eu o ouvia perguntando pelo status de relacionamento de Olivia para seu filho, mesmo quando ele se afastava de meu toque, mesmo quando ele encarava a aliança em meu dedo com raiva, mesmo quando ele descontava um dia pesado de fisioterapia em mim — mesmo com tudo aquilo, eu ainda o amava e continuava ao seu lado, como havia prometido fazer.
— Sua cabeça não vai explodir, exagerado — comentei levemente, sentindo seu carinho em meu cabelo. — Você quer que eu vá com vocês? Só preciso acordar a Lua e dizer que volto em breve.
— A Lua… ela… , a nossa filha.
Como se soubesse que estava sendo convocada, minha filha apareceu na sala com a cara amassada e um ursinho na mão. Mesmo com seus treze anos, Lua era uma adolescente doce, gentil e amorosa, ao contrário de Vicente quando tinha aquela mesma idade. Claro que, talvez, o acidente de pudesse ter sido um catalisador para a aborrecência de Vince ou talvez minha filha ainda não estivesse no ápice daquela fase, porém era um alívio não ter que lidar com um pequeno ser humano incontrolável e raivoso em casa naquele momento.
Exceto, obviamente, quando se tratava de . Ele era o desgosto explícito (porém respeitoso) de Lua.
— Olá, — minha filha disse, com um leve aceno de cabeça. — Mãe, você vai sair com ele?
— Não sei ainda, filha. O tio vai ao médico e talvez precise de uma ajudinha por lá.
Lua olhou dos pés à cabeça, para a xícara no chão e voltou para seu quarto, murmurando algo que não consegui ouvir. Por mais que eu explicasse a situação para ela, nada trazia conforto ou entendimento para a situação; em sua cabeça, aquele homem era a pessoa que não somente havia a abandonado em meio ao processo de adoção, como também havia deixado sua mãe sozinha, atrasando a finalização dos documentos em meses e meses sem fim por conta de um divórcio inesperado.
Meu ex-marido ficou em silêncio por alguns minutos, então o empurrei de leve para sentar-se novamente no sofá. Estava com medo que tudo aquilo estivesse sendo demais para ele.
Digitei uma mensagem rápida para Vince, dizendo que iria com eles para o hospital e busquei na dispensa um pano para limpar o café derramado. Quando voltei ao encontro de , ele pegou o pano de minha mão e se agachou para limpar a bagunça sem questionar.
, ela… eu não entendia antes porque ela me odiava, mas agora eu lembro da gente. Eu lembro dela. Eu lembro de nós e, meu Deus, . Como isso foi acontecer?
Aconteceu antes do divórcio, mas não estava preparado para ouvir. Quando ele voltou a contatar Olivia buscando um relacionamento muito mais amoroso do que o que eles tinham ao dividir a guarda de Vince, as coisas tomaram um rumo que faziam aquela quinta-feira ser odiada por muitos.
Sem um marido presente, sem horas disponíveis para dedicar para a preparação da casa para receber uma nova criança e sem perspectiva de uma rotina agradável e saudável, Lua ficou no limbo por muito mais tempo do que o esperado. O sistema não se sentia seguro em enviá-la para um lar inconsistente e desfeito que tinha outras prioridades para lidar. pedir seu sobrenome de volta só acrescentou uns meses mais, já que a preferência sempre era para casais, não mães recém-divorciadas.
Lua ficou longe de mim por quase um ano antes que eu pudesse trazê-la para casa de acordo com a lei, tendo que explicar para uma menininha de dez anos que a pessoa que ela já chamava de pai não sabia mais quem ela era.
, ela não odeia você. Lu só não entende muito bem tudo que aconteceu, por mais que Vince e eu tenhamos explicado um pouco.
— Eu não acredito que deixei vocês assim. Não acredito que a nossa filha não me ama, . Isso é loucura!
“Nossa filha”.
sempre nos fazia sorrir quando a chamava assim antes do acidente, porém ouvir aquilo naquelas circunstâncias, com ele ali daquele jeito, era crueldade maior do que ter esquecido em primeiro lugar.
Antes que eu pudesse dizer algo, meu telefone apitou com uma mensagem de Vince, cravando ainda mais a faca em meu peito. Sem boia, sem forças e sem vontade, suspirei pesadamente e sorri amarelo para .
Eu o amava tanto que era dolorido saber que suas memórias estavam de volta e que ele finalmente se lembrava de tudo.
— Vá para o hospital, ok? Nos falamos depois. Vince disse que Olivia vai buscar você aqui e te levar, então me avise mais tarde se precisar de alguma coisa.
Peguei o pano de sua mão, já que ele não estava conseguindo finalizar o trabalho de limpeza por suas tantas interrupções e desacreditamentos.
, nós precisamos conversar sobre isso. Posso fazer os exames depois, mas agora eu preciso…
— Precisa cuidar de você mesmo, ok? Olivia já deve estar chegando aqui para levar você.
, a nossa filha não sabe de mim.
A incredulidade em sua voz me fez escarnecer. Ele provavelmente tinha lembranças antigas e atuais em seu cérebro, então não devia ser tão difícil entender meu desespero e desconforto. Olivia estava chegando e, por mais que tivéssemos uma ótima relação, eu não estava particularmente animada com a ideia de ver seu rosto e sua expressão clara de pena de mim mais uma vez.
— Sei que deve ter muita coisa se passando em sua cabeça, mas Lua não é sua filha e você sabe disso. De todo jeito, sei que vai demorar um tempo para você se acostumar, não é mesmo? Ainda mais, , que sua ex-esposa sabe da sua futura esposa. — A cara que ele fez ao me ouvir mencionar seu noivado foi dolorosa para mim, porém era importante colocar as coisas em perspectiva ali. — Olivia está quase chegando aqui para levar você para o hospital, então, por favor, vá. Eu realmente não gostaria de ter que pedir mais uma vez, ok? Falamos sobre o que você quiser mais tarde, mas só faça o que eu peço e desça antes que ela suba aqui, sim? Por favor.
O homem que eu tanto amava me olhou como eu provavelmente olhei para ele quando entrei na casa de sua mãe, na manhã de Natal, e encontrei sem querer um envelope com os papéis do divórcio na bancada da cozinha.
Lua voltou para a sala depois de um tempo, olhando para ele com cautela enquanto eu tentava não imaginar como a vida seria se ele nunca tivesse se acidentado.
— Você sabe muito bem ir embora, tio , não precisa se fazer de difícil agora.
A voz de Lu me chocou e notavelmente ao homem do meu lado também, já que ele murmurou um “me desculpe, de verdade” mais uma vez antes de ir em direção à porta com o olhar perdido.
— Lua, esse não foi o melhor jeito de lidar com a situação. — Seu rosto tomou um rubor que a fez parecer com um criminoso pego no flagra. — O tio passou por muitas coisas nos últimos tempos, então vamos tentar ser compreensivas, filha. Ele lembra de você agora, então deve ser dolorido para o coração dele, sim?
Ela abriu a boca algumas vezes e vi em seus olhos as respostas que ela queria dar. "Mas foi dolorido para o nosso coração", "ele não merece esse tempo, já que não deu nenhum aviso para nós antes" ou "odeio o perfume novo dele". Ela escolheu o silêncio, possivelmente sabendo que nenhuma daquelas frases ajudaria muito no processo de cicatrização de nossa família. Quando achei que ela tivesse desistido, ela pareceu decidida ao escolher sua arma e fez uma última mira ao dizer:
— Amo você, mãe. Obrigada por não se esquecer de mim.
Ao sair da sala mais uma vez, Lua levou consigo o perdão de para si e notei isso na maneira como seus ombros estavam tensos e como aquela ruga acima de seus olhos perdurava. Coloquei o indicador no espaço entre suas sobrancelhas, massageando sua pele como um lembrete para ele parar de enrugar a testa.
Ao analisar minhas atitudes, senti que aquele era um toque errado, então recolhi minhas mãos e abri a porta para que ele saísse.
— Como você sabia que eu me lembrava de você?
De volta no batente, ele pareceu mais frágil do que quando entrou. Não sabia o que ele esperava quando chegou, mas claramente aquela conversa havia sido diferente em sua mente. E, por mais que eu me sentisse mal, pesada e incomodada em ter que lidar com tudo aquilo de novo, já havia se passado tempo demais para que eu permitisse que aquele acidente marcasse meu futuro.
— O jeito que você disse meu nome. A última vez que ouvi você falando meu nome desse jeito foi há três anos, quase quatro — sorri para ele, sentindo o peso daquele momento cair em mim. — Nada vai mudar, . Você vai casar com Olivia em alguns meses, nós vamos continuar sendo amigos e tudo vai ficar bem.
— Exceto que tudo mudou, não é mesmo?
— Talvez aí dentro de você, porque aqui fora tudo continua igual.
— Então você está bem com tudo isso? É isso, ? Nosso casamento acabou e você só assinou aquele divórcio sem nem me falar nada? Eu nem pude conversar com você antes!
, você está sendo injusto, ok? Se tem alguém que não escolheu nada disso, essa pessoa foi eu. Eu não queria me separar, não queria que Lua te chamasse de tio, nem queria estar dizendo para você voltar para sua ex-namorada e atual noiva, mas isso aconteceu e nada vai mudar, mesmo tudo que mudou.
Não era culpa de , não era culpa de Olivia, nem minha ou de qualquer outra pessoa. Ou talvez a culpa fosse de todos, de cada envolvido naquele dia.
De Vince, por pedir uma viagem em família, fazendo começar o trabalho mais cedo. De Lua, por encantar nossa família e fazer com que meu ex-marido ficasse feliz demais, cantando alto no carro e sem ouvir a buzina dos outros carros. De minha mãe, por não ter atrasado em pelo menos mais dez segundos quando chegou em nossa casa naquela manhã para levar Vince para a escola. Minha, por não ter dado um beijo mais demorado naquela quinta-feira.
— Desculpa, . — Ele pareceu entender que apontar dedos e encontrar culpados não iria ajudar. — Desculpa.
Com um último beijo em minha bochecha, ele deu as costas e me deixou desejando que aquele não fosse outro momento em que eu procuraria culpados no futuro.

Capítulo 2: Lembrar pode ser uma maldição

— Mãe, você precisa de um prêmio, sério — Vince disse, largando sua mochila no chão de meu quarto e pulando em minha cama. Ele bagunçou os cabelos de Lu, que assistia um documentário, muito concentrada, e depois me deu um meio abraço, deitando-se do meu lado. — Começando por férias merecidas longe do meu pai. Ainda não acredito que ele recuperou a memória assim, do nada.
— Infelizmente não tenho como argumentar isso, por mais que não ache que seja possível, amorzinho. Mas como foi no médico? Deu tudo certo?
Beijar os cabelos macios de Vince me trouxe um medo real que o dia inteiro não havia me trazido: e se eu tivesse que ficar longe de ? E se Vince tivesse que escolher lados, abandonando nossa relação pela falta de laços sanguíneos? E se Lua perdesse seu irmão de coração porque Olivia preferia manter as vidas separadas?
— Não sei bem dos detalhes, mas vão fazer mais alguns exames. Pelo que entendi, não há nada de errado com a cabeça dele, só essas circunstâncias idiotas mesmo. — Vince aninhou-se mais em mim e voltou sua atenção para a televisão. Lu e ele gostavam de assistir documentários sobre animais e era sempre impossível falar com qualquer um deles quando aqueles narradores começavam a discorrer de forma ininterrupta fatos aleatórios sobre rinocerontes ou algum mamífero diferente que vivia em alguma parte remota do mundo. — Mas ele disse que ligaria para você mais tarde, então acredito que logo você descobre mais.
E, como prometido, ele ligou. Entre uma montagem sobre abelhas e seu sistema reprodutor e algumas filmagens de colmeias, o nome de apareceu em meu celular, me fazendo levantar e ir até a cozinha. Sabia que os dois em minha cama iriam me olhar atravessado se eu interrompesse seu momento.
, oi. Tudo bem?
Eu gostaria de ter ficado nos olhos de por mais tempo.
No dia do acidente, acordei ao seu lado e a primeira coisa que falei foi "mal consegui dormir pensando na nossa família. Você acha que Vince vai ser um bom irmão mais velho?" e recebi um sorriso de olhos fechados dele. Sem responder, o homem que mais amei na vida me puxou para um beijo e depois disse que sim, que mal conseguia esperar para que Lua estivesse conosco.
Naquele dia parecia que nada nos pararia e aquela sensação de plenitude e pertencimento havia me cegado o suficiente para que, anos depois, eu ainda pudesse sentir a felicidade me inebriando só de lembrar. ficara anos sem saber como eu era apaixonada por ele, sem entender nossas manias como casal, sem considerar um plano sequer que havíamos feito um dia — e não porque ele era uma má pessoa, mas sim porque a vida tinha acontecido e me tirado de seus olhos.
— Você está bem? Como foi lá?
— Eu estou bem segundo os médicos; falaram que não há nada de errado com meu cérebro. Eles me passaram alguns remédios para possíveis futuras dores de cabeça e provavelmente vou ter que voltar periodicamente até o fim do ano para fazer alguns exames, mas parece que é isso, nada para se preocupar. Além, claro, de todas as preocupações que não consigo evitar.
— Quais? O que houve?
, você. — Sua voz não passava de um sussurro, me fazendo sentir errada, como se ele estivesse traindo Olivia comigo. — Como espera que eu me sinta?
Eu não esperava que ele sentisse nada, porque há anos ele não sentia. não se lembrava da maneira como eu gostava de meus pêssegos, de como eu havia o pedido em casamento e como ele havia ganho uma cicatriz em seu ombro direito. Devia ser estranho para ele, claro, mas na metamorfose dos dias em anos eu acreditava que ele havia aceitado que alguns sentimentos, emoções e lembranças já não o pertenciam mais.
— Não sei, . Não sei mesmo. Faz alguma diferença? De verdade, fico feliz que você se lembre, mas não sei que tipo de reação espera de mim. O que você quer? O que posso fazer para ajudar?
— Posso contar algumas coisas que me lembrei? Tenho medo de estar criando tudo isso na minha imaginação.
Foi assim que acabou de novo na minha porta, tarde da noite. O olhar era semelhante ao do dia anterior, mas havia algo mais que me fez sorrir de leve. Não queria atacá-lo, dar respostas espertas ou questionar suas intenções; só queria oferecer explicações e confirmações que ninguém havia me dado anos antes quando tudo começou.
— Verdade ou falso: a primeira vez que Vin conheceu você, ele te chamou de mamis dois e você ficou sem reação?
Era verdade e talvez eu jamais superasse a sensação de plenitude que era ouvir eles me chamando de mãe. Lua e Vince eram meu mundo e era por eles que eu mantivera uma relação com , apesar da vontade constante de abandonar aquela vida e aquele sentimento amargo e constante de esperança.
Ele citou mais alguns momentos nossos, nenhum inventados, e quando estava próximo do feitiço da Cinderela terminar, Lua saiu do quarto com Vince em seu encalço. Meus filhos encararam o homem sentado ao meu lado no sofá como se ele fosse uma bomba prestes a explodir e obviamente sentiu a tensão. Ele, então, bateu nas almofadas macias, assinalando que eles se sentassem conosco e Vince obedeceu sem questionar. Lua, por outro lado, foi em direção à cozinha e nós três ficamos lá, ouvindo o tom da torneira sendo ligada. Parecia que havia muito a ser dito sem um idioma inventado para transformar as palavras em sons reais.
— Sei que isso deve ser estranho para vocês, mas lembro que antes do acidente fiquei com medo da Lu — Vince disse, colocando suas pernas em cima de mim. — Não dela em si, mas medo de vocês se esquecerem de mim, então rezei para trocarem ela por um cachorro.
— Ei, eu ouvi isso! — minha filha disse, nos fazendo rir. Quando ela apareceu no cômodo com um copo de água e uma feição falsa de irritação, estendemos um pouco a risada.
— Eu me culpei por um tempo, achando que meu pedido tinha chegado lá em cima diferente e eles tivessem me tirado o pai, como se tivesse um limite de pessoas para nossa casa.
— Mais fácil você ir embora do que eu, Vi. Se essa é a sua maneira de me expulsar da minha casa, você deveria dormir de olhos abertos, gracinha — Lua rebateu, rolando os olhos.
— Ei, ei, ei! Só estou querendo dizer que é estranho ter todo mundo junto aqui agora. Um estranho diferente. Diferente interessante. Interessante bom, eu acho.
— Eu me recuso a acreditar que meu irmão tem a clareza de um bebê para se expressar, sinceramente — Lua disse, o que me fez rir e quase a fez receber uma almofada na cabeça por cortesia dele. — Mas acho que entendo o que você quer dizer. Isso é realmente interessante e esquisito.
Lu ergueu seu copo em direção a , como se fizesse um brinde a ele e recebeu um sorriso torto dele em resposta. Eu sabia que devia significar algo maior do que ele estava expressando naquele momento, ao mesmo passo que sabia que ele ainda tinha muito o que pensar e sentir sobre ela. Era como se ele a perdesse pela primeira vez.
— Não é não, gente. e eu continuamos sendo amigos, nada mudou — decidi me pronunciar. Meu coração estava sentindo cada um daqueles sentimentos sufocantes de Cinderela prestes a ser exposta, mas tentava meu melhor para aproveitar enquanto a magia nos envolvia. — E não mudou também que os dois vão acordar cedo amanhã e deviam dormir. Agora. Você também, senhor . Hora de ir embora.
Eu vi glitter voar no ar, espalhando-se pelo ambiente e levando cada parte mágica que transformava aquele momento em algo memorável: a magia da fada madrinha estava se esvaindo.
Vince e Lua pareceram entender que aquilo não era um novo começo e sim um final já visto, assim como . Os três pareciam ter assinado um tratado que não os permitia racionalidade quando se tratava de nossa família e me impressionava que Lua estivesse no mesmo barco que eles, enfeitiçada por algo que ela não se permitia há anos: estar do mesmo lado que .
— Mãe, maldade falar isso agora para o — Lu disse, apontando para a cara de desapontado do homem ao meu lado. — Gostei — seus dedões se levantaram, me sinalizando que havia gostado de minha posição, o que fez rir.
Meu ex-marido se levantou e levou Vince pelo braço de brincadeira, murmurando que não eram bem-vindos em minha casa, para o que Vi respondeu "fale por si, queridão". Assim que eles saíram, depois dos boa noites murmurados e abraços de lado, Lua segurou meu mindinho com sua mão inteira e me puxou de volta para nosso quarto.
Em silêncio, desligamos as luzes, nos ajeitamos na cama e deixei que meus pensamentos me ninassem. Era difícil, porém, dormir sabendo que o único homem que havia amado, meu único marido, estava circulando pelo mundo com suas memórias intactas, recordando da primeira briga que Vince teve comigo e me chamou de madrasta, de quando ele decidiu que seria uma boa ideia que eu cortasse seu cabelo em casa e quando se arrependeu daquela decisão; de quando havíamos ficado sem gasolina no meio de uma viagem para a praia e quando ficamos trancados no elevador por horas sem fim, montando uma bucket list de casal.
Era difícil dormir quando eu sentia calor demais pela manta de memórias que havia construído com ele e que já não o aquecia há tanto tempo. Era difícil dormir porque minhas lágrimas entravam em minhas orelhas, deixando rastros molhados de dor de que tudo que não existia mais.
Não podia contar para ninguém, mas em meu peito batia uma vontade imensa de pedir que ele me considerasse outra vez. Que pensasse muito sobre deixar a segurança que era todas as memórias que tinha com Olivia e tentasse passar o inverno comigo, sentindo o conforto dos fios bem tecidos que havíamos tricotados juntos um dia. Que cogitasse adiar um pouco o casamento para me dar alguma chance de tudo que aquele acidente havia me roubado; de me olhar um pouco mais, de me segurar um pouco mais forte.
Mais do que tudo, no entanto, a manta aquecia demais porque nossa estação já havia passado e não fazia sentido algum interferir no seu futuro quando eu só fazia parte do passado e do presente.
— Mãe, sabia que as abelhas competem mortalmente pelo trono? Elas se matam na competição para ser rainha e ter filhos. Pelo que entendi, não é bem pelo amor dos zangões e sim pelo poder ou instinto animal, mas achei legal. Inclusive, mais interessante, porque não é sobre os machos e sim sobre as fêmeas e toda a sua capacidade.
— É, filha? Que legal.
— Não sei se usaria o termo "legal", mas pensei em você quando soube disso. Porque você não precisa do amor de nenhum zangão já que você me tem, não é?
Lua me fez chorar mais ainda, virando-me para ela e a puxando mais perto. Minha menina era tão inteligente, tão gentil e otimista que eu me sentia a mulher mais sortuda do mundo em tê-la. De fato, não precisava dos zangões e era bom saber que dentre os "e se", perdê-la não estava na lista de coisas que eu precisava me questionar sobre.
— Amo tanto você, meu amor. Você e o Vi são os meus maiores amores e espero que saiba disso, viu?
— Eu sei, eu sei — ela respondeu, em um tom convencido que nos fez rir. Ela mexeu em meus cabelos, como sempre fazia quando estava prestes a dormir ou me consolar. — Só queria te lembrar que o é um grande idiota e que ele que deveria estar se matando por você.
— Idiota não é uma palavra muito forte, senhorita?
— Ué, mãe. Você perdeu alguma parte de quando ele agiu todo… blé tentando se explicar? Até o Vi achou estranho ele querer vir aqui para reviver os velhos tempos.
Nem mesmo os documentários mais interessantes do mundo eram possíveis de impedir que filhos fofocassem sobre os pais e ouvissem atrás da porta, aparentemente.
— Seus enxeridos! Ouvir conversa atrás da porta é feio, sabia?
— Feio é ele vir aqui e achar que pode te ganhar de volta. Porque ele não vai, não é?
— Filha, ele tem uma noiva, a mãe do Vi. Você esqueceu?
— Não foi isso que perguntei, mãe. Perguntei se ele vai te ganhar de volta.
Minha filha era espertinha demais para a idade dela. Não consegui não me orgulhar de sua maneira de conversar; toda inteligente, toda atenta.
— Não há nada para se ganhar aqui, Lu. Não é uma competição.
— É, não há nada para ganhar quando ele nunca perdeu você, não é?
— O quê?
— Mãe, todo mundo sabe que você ainda o ama. Eu te confesso que não entendo, mas não é preciso muito para saber que esse coração aí ainda bate por ele.
— Ah, é? Pois você se engana exatamente aí: meu coração bate por você e pelo Vince, baixinha.
Ela começou a se engasgar em seu riso quando fiz cosquinhas em seu pescoço e deixou o assunto morrer depois de murmurar um "acho bom".
E era verdade, meu coração batia pelos meus filhos, por isso que não podia me matar por . Amá-lo de novo era dar espaço para ele magoar minha filha, destruir a dinâmica que tinha com Olivia e Vince em sua casa. Sem falar em como eu ficaria com um término depois de um divórcio; não, ninguém precisava de todo o caos que poderia resultar caso eu abrisse meu coração para ele agora.
Por mais que, assim como , eu tivesse medo de estar criando tudo na minha imaginação, algumas oportunidades morreram naquele acidente e abelhas não renasciam; elas simplesmente decidiam pelo que valia lutar e se focavam até o final.

Capítulo 3: As estações mudam por uma razão

Sete semanas atrás não havia problema algum que eu tivesse concordado em ser um dos pais que ajudariam a monitorar o acampamento da escola de Vince, ainda mais que seria em um fim de semana sem plano algum.
Meus pais estavam viajando em um cruzeiro, Lua queria ir para a casa de umas amigas para um fim de semana de aniversário de uma delas e meus amigos recusavam todas minhas sugestões de programa por já terem outros planos. Então, quando Vi chegou em casa e comentou que Olivia estaria ocupada com planejamentos do casamento na casa de sua família (que morava em outra cidade) e que precisaria de companhia para não surtar e agredir algum adolescente, não me importei em nada.
Quando falei que sim, porém, não fazia ideia que meu ex-marido teria suas memórias de volta e que sua presença me machucaria.
Não era como se eu não quisesse o ver, mas parecia que enxergar os lábios que havia beijado tantas vezes me recordava de toda a dor que foi vê-lo depois do acidente sabendo que ele não se lembrava de um beijo sequer. Era cruel; uma maneira dolorida de ver a vida e tentar continuar sendo otimista, acreditando que eu poderia ajudar seu cérebro a revisitar cada memória nossa, mesmo que fisicamente fosse difícil.
Quando acordou do coma, eu o beijei. Seus olhos ainda estavam vagos, mas o alívio que havia percorrido meu corpo ao saber que ele estava vivo e bem havia me feito querer celebrar da melhor maneira que sabia: deixando que meus lábios procurassem os dele para encontrar um carinho compartilhado. Talvez sequer recordasse de minha reação por ainda estar inebriado por tudo que havia acontecido, mas aquele tinha sido nosso último beijo e era triste lembrar que não havia sido recíproco, que não havia amor ou felicidade da parte dele.
Amor, eu notei a partir daquele momento, não era um sentimento. Amor era escolha, era lembrança, era ele.
Era ele, não mais nós.
Por isso que o fato de ele lembrar me incomodava tanto; porque depois de tantos anos, o amor era novamente nós.
— Tem certeza que não tem problema eu ir? — me perguntou. Estávamos sentados no fundo do ônibus escolar, com nossas mochilas abarrotadas em nossos pés e um casaco sob o colo, nervosos com a presença um do outro. Devíamos parecer qualquer casal adolescente dali — mas com menos mão boba e mais rugas no rosto.
— Claro que não, . Por que teria?
Porque ele se lembrava de mim quando eu já estava tentando esquecer dele daquela maneira.
— Porque sou seu ex-marido e lembrei de tudo que vivemos? Ou porque você deve me odiar? — ele riu sem humor e batucou os dedos de leve no banco da frente. — Ou porque sabe que vou roncar no caminho até lá?
Ele roncava muito mesmo, mas já não sabia dos seus hábitos, então optei por balançar a cabeça e procurar Vi com o olhar. Ele estava sentado um pouco mais para frente com sua melhor amiga e, ao encontrá-lo, vi que ele me encarava. Apontando para seu celular, que balançava freneticamente na frente de seu corpo, fiz cara de confusa e, quando ele apontou para mim, entendi que ele queria que eu olhasse o meu aparelho.
A notificação na tela me dizia que Lua queria saber onde estava seu protetor solar. Outra notificação de Vince me falava que sua irmã estava me chamando impacientemente e que ele não era mensageiro. E depois mais uma dizendo "mas você trouxe um para nós também, ? Porque acho que Nina esqueceu o dela" que me fez sorrir grande, porque Nina já era da família, sendo uma das amigas mais próximas e gentis de Vicente. Respondi os dois, pedi que se cuidassem e que os amava.
— Você namora?
A voz incerta e baixa me fez olhar ao redor, achando que era algum adolescente sendo desafiado a dar em cima de uma das mães, porém quando identifiquei me olhando com os olhos curiosos, quase ri.
Ele me perguntou se eu namorava.
— De onde você tirou isso?
— Eu só… não sei. Acho que a gente conversou sobre isso umas semanas atrás, mas não sei se foi uma resposta honesta.
— E acha que porque sua memória voltou eu vou dar uma resposta diferente?
— Não, mas quem sabe a resposta pode ter mudado mesmo agora.
— Em semanas? Você está me superestimando, — escarneci e larguei o celular no colo. O ônibus começava a andar e gritinhos animados podiam ser ouvidos. Com minha boa partilha de filhos adolescentes, eu sabia que a animação morreria em breve, mas a conversa não cessaria tão cedo. — Nós todos sabemos que eu só tenho tempo para trabalhar e para cuidar dos meus filhos e de mim.
— Lua pediu para Olivia encontrar alguém para você, sabia?
Virei meu pescoço em sua direção com tanta urgência que alguma coisa estralou. Desconfortável, procurei resquícios em seu rosto que me falasse que era uma brincadeira, mas a maneira como ele mordia seu lábio me revelava que não era.
Ele havia feito aquela mesma expressão quando o confrontei sobre o divórcio com os papéis já assinados e também quando me contou sobre o noivado com Olivia. Aquela sua mania era como um sinal vermelho para mim, me alertando que seu coração levava o assunto a sério.
— Não sabia e nunca achei que a Lu quisesse alguém pra mim. Será que eu virei a tia solteirona e chata?
… você não está mesmo namorando?
Lu mandou mensagem dizendo que me amava também.
— Não estou; acho que eu saberia, .
— E por que nunca namorou depois da gente?
"Porque ainda te amo" seria a resposta mais simples, mas eu não precisava de mais um problema, então só levantei os ombros, dizendo que não sabia e olhei pela janela. Fechei os olhos pouco tempo depois e fingi dormir o resto do caminho.
O que eu não contava, na verdade, era que tentar esquecer era uma forma de lembrar.

Quando chegamos no acampamento, as boas vindas fizeram todos os pais ficarem de pé ao fundo do auditório para se certificar de que ninguém ia fugir e tentar voltar para a cidade a pé ao notar que não havia sinal, ar-condicionado ou videogames. Muitos dos colegas de Vince gostavam de socializar, então eu sabia que não seria o completo caos, mas já via indícios de vício se manifestando em alguns alunos que moviam suas pernas nervosamente ao notar que seria o fim de semana inteiro sem contato com a realidade que conheciam.
Quando todos os avisos foram dados e eles já estavam divididos por cores em seus times, Vi passou por nós para dar um abraço antes de ir para sua cabana. Educado como era, cumprimentou todos os dez pais que vieram para ajudar e depois saiu correndo e pulando com seus amigos.
sorriu ao olhar sua silhueta animada e eu sorri, olhando sua expressão feliz.
Eu tinha saudade daquela vida, de poder amá-lo sem receios e reservas.
— Preparada para esse fim de semana super animado? — perguntou, mas não consegui responder, porque Daniel, pai de uma menina muito querida que Vince não conversava muito, se colocou entre nós, me dando um meio abraço e questionando sobre meu bem-estar.
Daniel era um homem gentil, assim como a filha. Sempre conversava com ele nas reuniões de pais e em eventos escolares. Eu sentia que ele conversava particularmente mais para se sentir menos deslocado. A maioria dos pais não eram muito amigáveis e ele, que havia se mudado fazia pouco, parecia sentir falta de interações e não seria eu quem o privaria disso.
Era por isso que, mesmo sem perguntar, sabia sobre sua vida inteira e como ele sentia falta de ter alguém, já que sua esposa o havia abandonado e sua menina há anos, sem explicações.
— Não sabia que você vinha, Dani. Como está?
— Bem melhor. Você acredita que os tomatinhos realmente pegaram? Aquela dica da borra de café salvou a horta, juro!
Sua animação me fez rir, abanando o ar como se falasse que não precisava agradecer. Meus pais ficariam orgulhosos de eu estar compartilhando a sabedoria que eles me passavam depois de tantos anos morando no interior.
— Daniel, olá. Como está?
! — Dani respondeu, com o mesmo entusiasmo. Aquele homem era um Golden Retriever humano e tomando esteroides. Sua animação me deixava tonta, mas era sempre leve e divertido falar com ele. — Estou bem, obrigado por perguntar. Como estão os preparativos para o casamento?
Foi o suficiente para que eu não quisesse continuar ouvindo.
Quando me contou que havia voltado com Olivia, eu bebi tanto que nunca mais coloquei outro pingo de álcool na boca. Não até meses atrás, quando ele me contou que estava noivo de novo.
Quando soube que outra mulher ia viver a vida que eu sonhava, foi como se os céus tocassem uma risada de escárnio e anjos viessem me felicitar por ser tão idiota de esperar por ele. Todo mundo sabia que era inevitável que eles ficassem juntos (incluindo os médicos, que me avisaram sutilmente sobre "os pacientes voltarem para seus hábitos antigos, para rotinas que conheciam e que poderiam fazer com que se sentissem confortáveis e seguros") e ainda assim eu tomei como um grande baque quando os vi se beijando no estacionamento da escola de Vince.
E Olivia era tão gentil, uma mãe tão boa, que eu não chorei por raiva ou desgosto; chorei porque parecia injusto existir somente um . Era óbvio que ela ainda era apaixonada por ele e eu, mais do que ninguém, não podia culpá-la de nada, por isso que só os observara de longe naquela noite e depois dirigi para o bar mais perto para esquecer tudo da maneira mais sensata que poderia ter feito, depois de ligar para minha mãe ficar a noite inteira com Lua.
Álcool algum apagou o rosto dele da minha mente. Diferente do que o Universo havia feito comigo, só que das memórias dele, claro. A única coisa que a bebida fez foi me mostrar que seria praticamente impossível não amar , que ele estaria sempre no meu coração, por mais que mais silencioso algumas vezes e mais barulhento em outras. E que tinha sido irresponsável deixar meu carro sem seguro estacionado à noite inteira na frente de um bar fuleiro em uma vizinhança duvidosa.
Eu também não me culpava por amá-lo — ou pelo menos tentava não o fazer. Ele era um homem com um coração bom, um senso de responsabilidade gigante, tinha sempre palavras gentis e encorajadoras para compartilhar e tinha um senso de humor peculiar com suas piadas sem graça. Ele era inteligente, dedicado, amoroso, sincero, humilde e parecia que me fazia descobrir, dia após dia, mais qualidades que me faziam sentir como alguém abençoada de estar viva na mesma época que ele.
Porém, ia se casar mesmo lembrando que um dia me amou.
, o que acha de ficarmos juntos ajudando a montar o espaço para a gincana de abertura? Eles precisam de um par para montar a área dos jogos. — A voz de Daniel me fez prestar atenção outra vez, depois de ignorar o que quer que tivesse respondido.
— Claro, vamos.
E fomos, sem olhar para trás. Dani começou a fazer perguntas sobre meu trabalho, falar sobre uns documentários que ele achava que Vince ia gostar e até perguntou como Lua estava. Seus questionamentos eram amigáveis e eu agradeci em segredo que ele estivesse sendo gentil e tirando minha mente do fato que eu ainda estava apaixonada por meu ex-marido.
Arrumamos o espaço enquanto as crianças se divertiam no lago e não vi até a hora do almoço, quando sentei longe dele e procurei conversar com o máximo de pais e assistentes possíveis, evitando aberturas para ele se aproximar.
Na hora do jantar, porém, não consegui evitar quando ele me encontrou sentada perto da fogueira, enquanto arrumava os gravetos e organizava os pacotes de marshmallow. Os troncos de árvores já estavam alinhados, o fogo já estalava e os cobertores já estavam dobrados da maneira correta para quem quer que precisasse.
— Você se lembra do nosso casamento? — ele perguntou, depois de um curto olá.
— A gente foi casado? — perguntei, surpresa. Estava dando meu melhor para manter a atmosfera gentil e leve. — Eu nem lembrava.
— Como você é engraçada, não é? — Sentando-se de meu lado, ele me estendeu uma garrafa de meu chá gelado favorito. Nem sabia que a cozinha tinha aqueles. — Lembra como a gente demorou para encontrar aquela fazenda? E como os mosquitos foram bonzinhos e não deram o ar da graça?
— Acho que era mais fácil para mim porque meu vestido era grande e eles não conseguiriam passar por aquela barra nem se se esforçassem muito.
— Olha, ninguém reclamou comigo, mas realmente a ideia de deixar cestinhas com repelente foi uma boa. E as lembrancinhas como canecas diferentes que achamos em lojas aleatórias também, ? Que dia bonito, nossa.
— As fotos não nos deixam mentir, realmente.
— Você ainda tem os negativos? — Ele se referia ao filme das câmeras descartáveis que havíamos disponibilizado para os convidados.
A cerimônia tinha sido uma das mais lindas que eu havia visto, repleta de amor e leveza. Muitas pessoas choravam de felicidade, o clima estava perfeito e havia tanta alegria no ar que e eu nos olhávamos e começávamos a rir de tempos em tempos, absortos em carinho e incredulidade pelo momento perfeito.
Parecia vidas atrás.
— Tenho sim, na casa dos meus pais.
— Você vai ao meu casamento agora?
— Vou sim. Olivia parece estar bem animada, não é?
— Ela está, fez um mural de inspirações e tudo.
— Que bom. — Bati minhas mãos na calça como se as limpasse e me dei por finalizada ali. — Vou ver se precisam de alguma ajuda na cozinha. Você pode se assegurar de que o fogo não vai apagar, não pode? As crianças vão chegar logo.
— ele segurou minha mão, impedindo-me de levantar.
Seus olhos encontraram os meus, pedindo por asilo depois da guerra. Era um certo desespero que estava no ar, além do som dos mosquitos, grilos e todos os outros bichos que estavam sendo testemunhas do momento que me machucava outra vez, mesmo sem culpa.
— Eu não sei qual seu plano, . Não sei se entende o quanto isso está me magoando de novo, se está buscando alguma resposta que não posso te dar, mas, por favor, pare com isso, o que quer que seja.
— Eu só quero entender, . Entender e saber se… não sei, é complicado demais para eu conseguir te explicar o que sinto quando olho para você. — , a gente só tem um "e se", ok? Nada além disso e não tem problema. Você não precisa se sentir culpado por ter perdido a memória, por ter me deixado, por ter abandonado a Lua. Você não tem culpa, mas isso não dá passe livre para se esquivar das consequências. E, sejamos sinceros, talvez você nem queira fugir delas porque está feliz com a sua vida, não está? A noiva maravilhosa, o filho incrível e a vida que você não pôde ter anos atrás. Com ela, , não comigo, então eu te peço — Os olhos dele brilhavam como o fogo e talvez os meus produzissem um fogo individual, acalentado pela coragem de me expressar e tentar fazê-lo entender que me dar esperanças era cruel — que deixe as coisas como estão.
— Sabe a primeira coisa que lembrei antes de tudo voltar para mim como um furacão? — Ele não me ouviu, claramente, porque não se deu por contente. — Lembrei da conversa que tivemos no dia do acidente. De manhã, na cama. A gente falou sobre como nossos filhos seriam juntos, que Lua ia adorar aquela aquarela que você tinha comprado para ela e aquela mochila de lua e estrelas, lembra? Lembrei do seu sorriso falando do futuro, de como estávamos animados por aquelas férias e como meu peito estava cheio. Fisicamente parecia que eu ia explodir de felicidade, , e então tudo acabou e eu nem imagino como foi tudo isso pra você, principalmente com Lua. Com Vin, comigo e Olivia, . Eu sinto muito de verdade, por tudo.
Eu sabia que ele sentia muito, porque eu também sentia. No entanto, novamente estava eu em uma posição de "sobra", de "eu aceito seus sentimentos, obrigada por nada".
— Eu sei que sente, . Mas você entende que é minha vez de não lembrar de nós para que eu consiga seguir, não entende? Não como vingança, mas como uma maneira de ser responsável por mim, por Lua e por Vince.
— Amar você não é irresponsabilidade, .
O tom magoado de quebrou algo em mim e o abracei instantaneamente. Ele beijou meus cabelos e pediu desculpas um milhão de vezes, bem baixinho. Era trilha sonora para o instrumental proporcionado pela natureza e não deixei de sorrir ao sentir que ele de fato sentia cada um daqueles "sinto muito" e "me desculpa" que murmurava. Sorri, porque, por mais cruel que fosse, era bom não amar sozinha.
— Sempre vou amar você, sabe? Essa promessa não caiu por terra só porque nos separamos. Nossos votos ainda valem e vou continuar me importando com você, por isso vou naquele casamento. Para ver sua felicidade e sair de fininho antes de começar a chorar alto demais.
Ele me afastou e vi aquela dor em seus olhos; a dor que vi no espelho quando acordei na manhã seguinte ao vê-los se beijando no estacionamento.
Era um vazio de compreensão.
— A última coisa que quero é magoar você.
— E a primeira que quero é que tudo volte a ser como era antes, então pare de se desculpar, sim? Agora vou lá na cozinha, você não vai deixar o fogo apagar e nós vamos dar nosso melhor para não envergonhar o Vi hoje.
Com um aceno de cabeça, afastei-me dele pensando que o "antes" que me referi de verdade era quando eu era dele, ele era meu e a coisa mais difícil era lidar com seu ronco.

Capítulo 4: Entre se lembrar e não esquecer

e eu ficamos ótimos amigos depois de uns cinco meses que ele já estava namorando Olivia de novo.
Foi entre uma reunião no colégio de Vicente e uma janta com meus pais, quando eles perguntaram de pela décima vez naquela noite, me lembrando do quanto eu sentia falta de meu melhor amigo. Liguei para ele naquela noite e pedi que tentássemos ser amigos outra vez, que ele me desse uma chance de mostrar que amor romântico não era tudo que eu tinha por ele — quando ele fez piada sobre o professor desajeitado de nosso filho, eu me permiti rir e engajar em uma relação leve com ele.
Assim, prosseguimos por todo aquele tempo com companheirismo, carinho e respeito. E, assim, meu coração foi ficando cada vez mais escondido no fundo da gaveta, esquecido para todos os olhares. Algumas pessoas sequer lembravam que um dia eu havia dividido o sobrenome e a cama com ele, o que me fez questionar o poder de um sentimento.
Fosse esquecer, lembrar ou amar, tudo era baseado em uma decisão, um caminho diferente a ser trilhado, por isso que, quando Dani me perguntou como eu havia superado, no café da manhã do dia seguinte, eu precisei explicar que tudo aquilo era como um aprendizado constante.
— Então você não o ama mais desse jeito? — ele questionou, mordendo seu pão com vontade. Daniel falava de boca cheia sem se importar e admirei que as pessoas fossem ruído de fundo para ele, que agia sem pensar duas vezes. Foi um pouco nojento, claro, mas admirável de certa forma.
— Uma parte de mim sempre vai amá-lo desse jeito. Seja pela parte que se apega nas memórias ou pela que foi sincera em nossos votos de casamento — respondi, dando um sorriso triste. — Você também se sente assim sobre sua ex?
— Não, com certeza não. Sei que ela não merecia um lugar em nossas vidas, então acho que isso serve de consolo. No seu caso, nunca deixou de ser uma pessoa boa e acho que aí que mora a dor: ele continuou a ser a pessoa que mexe com o seu coração, não é?
Mais e mais alunos chegaram no refeitório, incluindo Vince e tive que encurtar o assunto. Não queria que ele sentisse que estava no meio de nós dois, eu e seu pai.
— Terapia de manhã e de graça, como não amar — rimos juntos. — Mas podemos conversar sobre isso em outro momento.
— Que tal semana que vem, na sexta?
-—O que tem sexta? — Senti mãos quentes em meus ombros e olhei para cima, sentindo minha pele ficar mais quente e meu coração bater mais forte.
— Convidei para sair na sexta, só isso — Dani respondeu, de boca cheia outra vez.
, com seus olhos inchados e cabelo cheiroso, sentou-se ao meu lado e pegou a jarra de leite. Serviu seu copo em silêncio e encarou o homem do outro lado da mesa com paciência, talvez escolhendo suas próximas palavras.
Fomos salvos por um “bom dia, mãe” de Vince e um olá animado de Nina. Eles logo se moveram para a mesa mais no canto do local e outros pais chegaram para falar da noite mal dormida e dos mosquitos imperdoáveis, o que fez com que a pergunta de Dani não tivesse resposta e o olhar de questionamento de ficasse no ar.
Durante o dia, não cruzei muito com meu ex-marido, mas não pude deixar de observá-lo de longe. Ele era bom com as crianças, sorria grande e estava sempre disposto a ajudar e fazer alguém rir. Sua leveza me fazia voar com os pés no chão e sua alegria era remédio para as dores físicas e emocionais.
Ele ainda era meu grande amor e era inevitável notar que nunca haveria alguém como ele para mim. Eu poderia amar outros abraços, abrir outras portas para novos lares, mas nenhum seria ele.
?
veio correndo em minha direção enquanto era meu turno de ficar de olho nas crianças no lago. Eu não era a melhor nadadora, mas com certeza poderia ajudar e gritar bastante caso qualquer coisa acontecesse.
— Você sabe que não gosto quando dizem meu nome inteiro assim. Parece que… — “Que você vai dizer outra vez que não me ama e que não me quer mais”, “que vai falar que só existe espaço para Olivia na sua vida”, “que não faz sentido mantermos uma amizade” — que está brabo comigo. Achei que o turno agora era do Dani, vocês mudaram?
— Não, só queria falar com você.
— Então está mesmo brabo comigo?
Ele riu baixo e pareceu envergonhado.
— Na verdade, não, só queria te perguntar uma coisa.
— Sim, , o Vince me ama mais do que ama você. Achei que já soubesse disso, que já tivéssemos resolvido essa questão.
— Pare de mentir, Pinóquio. Todos nós sabemos que ele ama a Lua mais do que nós dois juntos.
— Verdade.
— Eu queria mesmo era saber se você tem um tempinho na sexta. Achei que poderíamos jantar juntos, o que acha?
Sexta. O mesmo dia que Daniel havia sugerido.
— Preciso ver, não tenho certeza. Está tudo bem com você?
— Está sim, só queria sair com você para conversar, falar da vida, sabe?
— Talvez tenhamos que fazer isso outro dia, mas aviso você na segunda, pode ser?
— Pode. Então isso quer dizer que você vai sair mesmo com o Daniel na sexta?
!
Daniel veio correndo em nossa direção, sem camisa, com um boné engraçado de salva-vidas e uma boia de criança nos braços. Ri de sua vestimenta e imaginei que sua filha ia se sentir envergonhada pelo senso de humor dele. Os outros, porém, iam adorar ver que aquele homem era autêntico e desprendido.
— Já chegou para o seu turno? Posso descansar um pouco? — perguntei, tentada a roubar seu boné. O sol estava forte, eu já precisava retocar o protetor solar e praticamente ouvia um copo de água gelada clamando por mim.
— Pode ir, senhorita. Inclusive, acho que Vince estava procurando você, — ele disse, se virando para meu ex-marido. — Algo sobre sua noiva? Não sei bem, mas ele está na cabana 3.
sequer respondeu e saiu com passos fortes, tomando minhas mãos nas suas e me puxando naquela direção, como se eu quisesse saber o que quer que Olivia tinha para falar com ele.
Sem querer, Daniel estava fazendo o papel perfeito para enganar e provocar ciúme. Os comentários, as escolhas de palavras, as insinuações eram carregadas de duplo sentido, por mais que eu soubesse que não tinha nada ali; eu e Dani sabíamos, porque até conhecia de vista a mulher com quem ele estava saindo. Não havia nada romântico ali; só uma pessoa engraçada e quase inconveniente. Mas eu não estava reclamando, com certeza.
, o Vince está procurando você, não eu. Por que estou indo com você até lá?
, só me responde: você vai sair com ele?
Parei de caminhar naquele momento. Não tinha nenhuma alma por perto para ser palco do que estava para acontecer e subitamente a falta de hidratação e o calor se tornaram combustível para minha explosão.
— Pelo amor de tudo que é mais sagrado, , me deixe viver! Fiquei anos presa em um amor que não tinha futuro e agora você acha que o presente é suficiente para eu esquecer tudo e fugir com você? Porque, se é disso que tudo isso se trata, saiba que não vai acontecer. Você não vai voltar para minha vida pra se arrepender depois, para sair da vida de Lua, para achar que vou fazer parte de um experimento no qual você mede qual amor vale mais a pena.
, não é isso.
— Ah, não? Então o que é?
— Eu não sei, . Eu não sei.
A cara que ele fez me deu vontade de o abraçar, mesmo sabendo que era uma reação natural de meu corpo depois de tanto tempo dando apoio daquela forma, sem pensar duas vezes. Meu corpo reagir antes de meu cérebro era normal e parecia fácil demais sucumbir e aceitar o que quer que ele estivesse me oferecendo.
— Não é justo com ninguém, . Não vale a pena criar uma fantasia na cabeça achando que tudo vai ficar bem entre nós, pelo menos não desse jeito. — Ele continuou com o olhar perdido e me preparei para ir na direção contrária a que ele me levava, querendo ar, água e paz de espírito. — E vou dizer uma vez só: se quiser minha amizade, ótimo. Caso contrário, vamos ter que repensar nossa relação, porque não vou aceitar nada disso que você está pensando que pode me oferecer enquanto vai casar com outra pessoa. Se pensa que vou ser a segunda opção, está muito enganado.
Antes que ele pudesse abrir a boca, caminhei rápido para a cozinha e respondi Lua com muito esforço, já que a internet parecia inexistente por lá. Conversei um pouco com outros professores, ajudei as cozinheiras e, lá pela hora do jantar, fui até minha cabana para tomar um banho antes de comer.
Enquanto a água caia em meu corpo, fiquei pensando que talvez eu devesse aceitar o convite de Daniel, por mais que não fosse nada nem perto de um encontro. Quem sabe Olivia poderia mesmo me encontrar alguém, assim como Lua havia pedido. Ou eu poderia fazer um perfil em algum aplicativo de relacionamentos.
Eu não queria alguém para me sentir completa nem nada assim. Tampouco esperava que uma outra pessoa completasse o espaço deixado por . O que eu procurava, de verdade, era ter uma vida repleta de amor de todos os tipos. Porque sentia falta de me sentir quista. Porque era bom ter alguém para dividir a cama. Porque eu merecia beijos animados e fofocas compartilhadas antes de dormir. Porque um amor romântico fazia bem para o coração.
Depois do banho, mandei outra mensagem para Lua, perguntando como estava as coisas por lá e notei que Vince havia me ligado. Tentei retornar e, quando a chamada sequer completou, peguei minhas coisas e fui em direção à porta.
Vozes do lado de fora me fizeram parar antes que pudesse girar a maçaneta, colocando meu ouvido na madeira para tentar ouvir melhor. A conversa parecia animada.
Lu e Vi realmente tinham a quem puxar.
— O que você não entende, pai — Vince disse, me fazendo ter que fazer um esforço maior para prestar atenção na conversa deles. Já conseguia ouvir mais gente gritando e correndo, dificultando minha capacidade de bisbilhotar —, é que você se lembra. A mãe não esqueceu. Dá para ver a diferença disso? Enquanto tudo isso é novidade para você, para ela é a realidade e não é justo que você ache que tem o direito de agir desse jeito, marcando território como se fosse um cachorro mijando por aí.
— Olha, eu não estou…
— Está, está sim. Está agindo como se vocês fossem casados, mas vocês não são mais.
— Filho, é óbvio que eu sei. Eu nunca faria isso com a sua mãe, Vin.
— Agora resta saber com qual delas você faria então, não é? Porque só você pode dizer qual delas vai chorar por você mais uma vez.
— Vin, não é bem assim.
— Ah, não é? Então porque a mamãe me mandou mensagem dizendo que você não está interessado em mais nada do casamento? Porque parece que a qualquer momento você vai dizer que ama a mãe? Até a Lua notou, pai. Você se lembrou, ótimo, mas ninguém aqui esqueceu de nada, especialmente a mãe.
— Você sabe que eu amo a , Vin. Sei que ela não esqueceu de nada, mas vocês todos precisam entender que é horrível lembrar de uma vida que eu nem sabia que tinha, ter sentimentos que parecem ter florescido dentro de mim do nada.
— Ninguém entende, pai. E ninguém vai, porque é a sua vida. Fico feliz que se lembre, só que a gente nunca esqueceu e, diferente de você, não deu para simplesmente ignorar tudo. E digo isso com todo o amor do mundo, só que você está sendo um grande idiota.
— Imagina o que você fala sem amor.
— Sem amor eu digo que Daniel é bem charmoso e ele e a mãe iam fazer um casal lindo.
— Vicente!
— Viu? É disso que estou falando: você não tem moral alguma aqui, ok? Pare de querer o pirulito do coleguinha e aja como um adulto, homem. Você está tendo crise de ciúme como se pudesse, correndo atrás da mãe como se não fosse noivo de outra pessoa, da minha mãe.
Imaginei que Vince ia ser xingado pelo seu comentário, então vi naquela hora o momento perfeito para fingir que não havia ouvido nada e sair pela porta. Já estava com fome e pensar em com ciúme não alimentava nada de bom dentro de mim.
— Ah, olá! Já estava indo procurar você, filho. Você me ligou?
— Mãe, oi! — ele respondeu com um certo medo na voz, provavelmente se questionando se eu havia ouvido algo. Não havia nada que o incriminasse (pelo contrário, eu estava grata por seu apoio e maturidade), mas não deixou de ser engraçado. — Liguei; queria saber se posso dormir na sua casa hoje, quando voltarmos.
— Isso e porque ele ouviu Daniel dizendo que vai sair com você na sexta. — Vince se virou para seu pai como se quisesse bater nele. A maneira como havia dito aquilo fez com que minhas entranhas se revirassem.
Eu podia senti-lo desistindo de mim.
Aquele era o momento que ele me deixava ir outra vez, eu já conseguia sentir.
— E eu e o pai comentamos que seria bem legal e que até Lua ia gostar dele, não é mesmo, pai?
Assinatura do divórcio, o anel no fundo da gaveta, o álbum de fotos de baixo da cama, o negativo do filme na casa dos meus pais; todas confirmações de um amor que não havia sobrevivido aos percalços da vida.
E se juntava a lista, naquele momento, a resposta dele:
— É, eu acho.

Quando chegou sexta, almocei com Daniel sem grandes expectativas ou intenções. Notei, ao longo de nossa conversa, que ele se sentia da mesma maneira e fiquei feliz de notar que aquele era sim o encontro: duas pessoas que queriam muito encontrar compreensão e um ombro amigo no outro. Nada de romance, beijos e futuros corações quebrados; só companhia, amizade e parceria.
Lua ficou um pouco decepcionada quando contei que não tinha nenhuma intenção de tornar Daniel meu namorado, mas Olivia, que deixava Vince em minha casa depois da escola, ouviu a história por acidente e comentou que tinha um amigo que havia me visto na última festa de aniversário de e ele já havia pedido meu número algumas vezes.
— Então, o que me diz? Juro que Natan é uma boa pessoa.
Era no mínimo estranho conversar com ela sobre aquilo.
Olivia era uma mulher sensacional, de verdade. Ela era muito amorosa, trabalhadora, querida e inteligente. Sem mencionar sua beleza, claro, que era estonteante. Era fácil conversar com ela, se sentir confortável para contar tudo e querer ver nela uma confidente gentil. Lua poderia discorrer horas e horas sobre a mulher, inclusive; ela adorava os bolos que ela fazia, os penteados que adornavam seu cabelo sempre e até a disposição dela para ouvir sempre que ela e Vince se reuniam para apostar quem sabia mais fatos aleatórios sobre qualquer assunto que chegavam em um consenso sobre.
Não chegava nem perto de odiá-la, com certeza; era impossível, sem fundamentos e só faria mal para nossa dinâmica familiar considerando o quanto nossos filhos se amavam.
— Que tal você sair com ele na próxima semana? Ele é médico, então tem feito muitos plantões ultimamente, mas parece que ele vai estar sem planos no domingo que vem. — ela insistiu.
Com um pouco de medo e receosa de soltar qualquer informação que não deveria sobre os assuntos do coração, olhei ao redor de minha cozinha, buscando alguma desculpa. O calendário na minha geladeira me lembrou que seria o dia de um show que Lua queria muito ir, então vi naquilo a minha saída perfeita.
— Eu adoraria ir, de verdade, mas temos um show nesse dia. Lua está super animada; quem sabe outro dia?
Meia hora depois, recebi uma mensagem de Olivia me dizendo que não teria problema: havia se oferecido para levar Lua e que Natan, o amigo médico, estava mais que feliz em poder finalmente sair comigo.

Natan era ótimo.
Nosso primeiro encontro havia sido um pouco diferente do que eu esperava e aquilo só facilitou para que os outros seis acontecessem: ele não me fazia sentir nervosa. Claro, eu estava inquieta com a ideia de conhecer outra pessoa e tudo que aquilo implicava, porém não era nada que aniquilasse a presença gentil de Nate. Principalmente quando ele me elogiava e simplesmente parecia palavras queridas vindas de alguém que realmente acreditava nelas.
Ele não elogiava meu vestido porque queria, logo depois, tocar em minha pele exposta e fazer algum comentário sensual. Ele não parecia dizer que meu sorriso era bonito porque queria ser clichê — não, Natan parecia genuíno e era bom.
Por mais que, sem querer, na parte de trás do meu cérebro e na frontal do meu coração eu soubesse que ele não era .
— Você vai se atrasar — Natan disse, mexendo em meu cabelo de maneira preguiçosa. O filme já havia acabado e eu e ele continuávamos embolados em seu sofá, com preguiça de levar e ir para a confeitaria em que todo mundo já devia estar. Era dia de ajudar Olivia a escolher o bolo para o casamento e eu não estava nada animada.
Ninguém precisava saber daquele detalhe.
— Vou mesmo.
— E vamos continuar aqui mais um pouco, não vamos? — ele perguntou, beijando meus cabelos.
Era bom, claro que era.
Natan era querido, inteligente, bonito e outros diversos adjetivos que encantavam. As conversas com ele eram naturais e ele respeitava o tempo que eu tinha com minha própria vida, nunca cobrando demais, nunca falando coisas de um jeito que machucassem.
E eu queria ser uma boa pessoa para ele também, por isso estava presente sempre que podia, falava com ele por mensagem e deixava que aos poucos ele entrasse na minha vida, por mais que minha maior preocupação fosse Lua e ela estivesse mais que animada para passar um tempo com ele.
Os dois já conversaram por mensagem também e queria muito ir até um parque de diversões que estava para vir para a cidade. Depois que o show que ela queria havia sido postergado, eu estava buscando maneiras especiais de deixá-la animada e dizer sim para um dia nosso com Nate parecia uma boa.
— O que você acha de ir ao parque depois de comer as mil opções de bolo? Acho que a Lu vai gostar e com certeza Olivia não vai se importar de ter você lá.
Nate sentou abruptamente e sorriu, animado, para mim. Sua felicidade me fez rir.
— Sério mesmo? Vai me deixar conhecê-la?
Tudo bem se Natan cansasse de mim, se fosse embora. Minha vida amorosa não correspondia à minha capacidade de ser uma boa mãe e eu acreditava que Lua sabia disso também. Parte da minha decisão, inclusive, havia sido de uma conversa dela com Vince. Os dois falavam sobre a possibilidade de eu voltar com e meus filhos, com aquela inocência festiva, assumiram que seria o melhor para todos, incluindo Olivia. Então, era um bom momento para me permitir e permitir que as pessoas ao meu redor soubessem que a ideia de voltar com não era tão necessária para meu futuro, por mais que eu mesma a cogitasse com frequência.
— Ela está bem animada.
— Eu estou bem animado.
O beijo de Natan era como encontrar uma xícara bonita que eu nem sabia que queria. Era uma surpresa gratificante e leve, que eu levaria para a vida da maneira que pudesse.
Fechando os olhos, senti o cheiro dele e fiquei com medo de nunca amar alguém como amava , por isso o puxei do sofá e fui para a confeitaria, sorrindo para todos lá como se não me machucasse abandonar meu maior amor.
Natan cumprimentou todo mundo com elegância e até piscou para Vi. Quando chegou a vez de Lua, ela o abraçou, surpresa, murmurou um “finalmente” e voltou para o lado de Olivia, que contava alguma história para ela de quando viajou para um país legal.
sorriu, apertou sua mão e puxou a cadeira ao seu lado para que Natan se acomodasse.
Sentei do lado dele e de Lua, imaginando um futuro com aquela dinâmica.
A confeitaria era linda e o cheiro doce de bolo deixava o ambiente ainda melhor. Na mesa já estavam algumas opções pela metade, que pareciam ser de chocolate, morango e outra opção branca que eu não saberia dizer se era nata, chocolate branco ou algum outro sabor.
Vince comentou que o de chocolate tinha sido seu favorito e me ofereceu um pedaço que ainda estava em seu prato. Realmente era muito bom e, dentre os três ali (o sabor branco era leite condensado), também havia se tornado o meu escolhido.
— Você quer contar sobre o passeio de hoje para ela ou eu conto? — Natan me perguntou, cochichando e segurando minha mão.
Não era nervoso nem ansiedade, era carinho.
Eu sentia carinho por Natan.
— Pode contar, eu deixo.
Lua ficou tão feliz que convidou todo mundo. Seu sorriso ia de orelha a orelha e sua energia contagiante fez com que o dia se tornasse leve.
Olivia parecia bem feliz, o que me deixou feliz também. Ela era uma ótima pessoa e Lua era apaixonada por ela — o que era baseado no fato de ela ser uma mulher incrível, que tratava todos de maneira educada, com respeito e afeto na medida certa. Ela gostava de abraços, tinha sempre uma palavra de incentivo e seu humor era parecido com o de , com piadas sem graça que faziam as pessoas rirem justamente por serem tão intencionais.
— Sem pressionar nem nada — ela disse, com Lua no colo. Ela havia trocado de lugar com Vi para que eles conversassem melhor sobre uma viagem que estavam planejando —, mas Nate me falou que as coisas estão indo muito bem. Você está feliz, ?
O brilho nos olhos dela me desmontou. Não que eu tivesse criado barreiras com Olivia (era impossível, ela era querida demais), mas seu cuidado comigo e com minha filha me fez sentir remorso de pensar que amar era possível.
Eu não sabia quem havia dado a ideia de voltar depois do acidente e da amnésia, mas não os culpava e não pensava em nada do relacionamento deles como traição. Se nada, eu era a pessoa que estava traindo ali. Traindo a mim mesma quando jurei sempre estar do lado da felicidade de e ignorei que talvez me anulasse no processo.
Com Natan, talvez, eu pudesse associar tudo e ser parte da felicidade dele também.
— Estou sim, claro. Ele é incrível, Liv. Obrigada mesmo por apresentar a gente.
— Agradeça a ele e ao fato de Vince sempre falar bem de você para todo mundo. Nate ficou curioso sobre você e aí não me deixou descansar antes de prometer que falaria com você sobre ele.
— E quem diria que eu teria cupidos assim, hein?
— Não é mesmo? E ô se tem! Mas agora me fale dos bolos: qual o favorito até agora?
— Com licença, pessoal, mas chegamos com mais alguns. Preparados? — um garçom nos interrompeu, com uma bandeja bonita com mais opções. Segundo Olivia, o exterior já estava escolhido, mas o sabor ainda era uma dúvida cruel.
, que não gostava de doce, era voto morto, por mais que parecesse animado em sua conversa com nossos filhos. Lua até interagia com ele de vez em quando, ainda mais por ele estar tentando mais e mais se aproximar dela.
No dia que o show aconteceria, ele a levou para jantar (na companhia de Vince, que não deixaria que ela o matasse) e depois para uma livraria. Em outro fim de semana, fomos ao cinema, decidiu que iria também e ela não pareceu se importar, até dividindo um pouco de sua pipoca com ele. Eram passos lentos e incertos, porém não parecia estar com pressa.
— Quais os sabores, meu doce senhor? — Vince disse, com os braços cruzados e um tom engraçado.
— Abacaxi, pêssego e uma mistura de chocolate e coco — ele listou, enquanto meu instinto maternal apitava.
Antes que eu pudesse falar algo, Natan e Vince foram em direção ao prato com bolo de abacaxi e tentaram puxar para si. Lua riu, levantando os braços em rendimento e procurou meu olhar, tentando entender.
— Não quero ter que trabalhar hoje, princesa, então vamos ficar longe desse aqui, ? — Natan disse, respondendo subliminarmente a pergunta do meu ex-marido.
Olivia tomou sua decisão umas duas horas depois, quando não aguentávamos mais conversar e comer. Ela não disse qual seria, alegando surpresa, e então saímos para o parque enquanto eu rezava para ninguém vomitar em nenhum brinquedo.
— Não sabia que Lua era alérgica a abacaxi — falou, me assustando. Meus filhos, Olivia e Natan estavam na fila para a montanha-russa e eu conseguia ver que Lua estava conversando animada com Nate, que correspondia o sentimento.
— Pois é, desde pequena. Não é nada absurdo, mas ela fica com a pele incomodada.
— Eles não falaram nada para a gente antes, falaram? Porque não me lembro.
— Eles me falaram quando ela estava para ir lá para casa. Eles não sabiam direito o que era antes, por isso não tinham dito nada quando começamos o processo.
— Ah, entendi.
— Como está indo a terapia? Como você está?
chutou o chão e as luzes dos brinquedos pareceram brilhar mais forte quando ele me olhou de verdade pela primeira vez no dia. Ele parecia ter muita coisa para me falar.
Os gritos pareceram só barulho externo e a vida pareceu parar um pouco quando seus olhos se encheram de lágrimas.
— Não sei se posso dizer muito.
— Meu amor, está tudo bem. — Quando minha mão voou até a dele e a apertou, senti as faíscas que faziam falta. Amor que aquecia, que incendiava, que queimava. — Você não precisa falar de não quiser, ok? Estou aqui no que precisar.
— Sei que está, mas parece que dessa vez eu vou ter que lidar com tudo sozinho. Quer dizer, parece que foi isso que eu fiz da outra vez também, mas…
— Ei, não tem problema mesmo. Você vai ficar bem, sei que vai.
Com um aperto mais em minha mão, soltei-a e os vi entrarem no brinquedo. Acenei, animada, para Lua e Vince e vi que Natan parecia com medo.
— Sabe como o tempo vai passando e a gente pensa “nossa, ainda bem que não penso mais assim” ou “que bom que mudei meu ponto de vista”? Sinto que isso está acontecendo agora, só que com a minha vida de antes, com você, e a de mais tempo atrás ainda, com a Liv. O problema é que vivendo tudo que vivi, sabendo de tudo que sei, sentindo tudo que eu sinto… você já deve saber a resposta.
— Que resposta?
— De como estou.
— Você quer conversar sobre isso?
— Sinceramente, quero poder ficar chateado com tudo isso e gritar um pouco.
Gritar podia fazer bem, claro, então enviei uma mensagem para Natan dizendo que já voltávamos e pedi que me seguisse. Ao chegar à casa do terror e pagar por nossos ingressos, o homem ao meu lado riu. Gargalhando alto, ele beijou o topo da minha cabeça e me acompanhou para dentro do show de horrores.
Eu odiava aquele lugar e ele também não era o maior fã, no entanto, era uma piada interna nossa ver filmes de terror ou algo assustador para poder gritar quando estávamos estressados demais. Era como uma desculpa para poder extravasar que havia começado em forma de hábito quando ainda namorávamos.
Fizemos o percurso inteiro gritando, mesmo quando nenhum dos atores havia saído de seu esconderijo para nos assustar. Era possível que nós que estivéssemos os assustando com tamanha gritaria, na verdade.
— Eu precisava disso.
— Eu sei. Você não precisa abandonar sua vida antiga só porque acha que você era outra pessoa. Você continua sendo você, só com mais memórias.
— Como que você não me culpa, ? Eu não entendo como você conseguiu ficar do meu lado assim. Eu claramente estou fazendo um péssimo trabalho nisso tudo e você parece ter tirado de letra.
— Claro que não! Lembro de um dia que conversei com sua mãe e ela quis matar você pelo divórcio. Você já tinha começado a ver Olivia e o processo com Lua tinha sido atrasado por causa da nossa separação. — pareceu agir como se eu estivesse o agredindo, então sentamos em um banco para descansar o corpo calejado pela vida. — Nós duas choramos tanto juntas, . Você não tem ideia; até hoje lembro da dor de cabeça que fiquei no dia seguinte.
— Como que eu nunca soube disso?
— Foi difícil para todo mundo. A felicidade de você estar vivo, a esperança de você recuperar a memória, a saudade depois da separação, a dor de uma vida que não existia mais ou que tinha sido deixada para depois… todo mundo perdeu algo naquele acidente e tivemos que aprender a seguir. Se não em frente, para os lados, para trás, mas parados não podíamos ficar. Ninguém podia.
Ele concordou com a cabeça, mesmo parecendo não concordar de todo coração.
— Eu amo você, .
— Também amo você, .
— Eu falo sério, .
— Eu também — sorri, triste, para ele e me levantei. — Agora vamos voltar antes que eles vomitem em algum brinquedo ou em alguém.

Capítulo 5: Não me odeie quando não estivermos apaixonados

()

Se alguém me falasse que eu estaria em um show com Lua em um sábado chuvoso, eu acreditaria que o Universo estava desalinhado e que logo o céu começaria a cair, porém era verdade: mesmo depois de umas semanas de atraso, eu era a companhia de Lua para o concerto de seu artista favorito, tendo sido convidada por ela mesma (para que pudesse ir em um encontro, sim, mas contava de algo) e combinando tons de roupa porque havia certo código de vestimenta que eu sequer esperava.
Estava eu e ela vestidos em tons azul, com uma gravata royal (nela) e marinho (em mim) adornando nossos pescoços, porque aparentemente "era uma estética legal". Palavras dela.
Durante a fila e na entrada, nós trocamos mais palavras do que eu esperava. Ela ainda não estava aberta para criar uma relação de carinho comigo, mas eu já começava a notar que não era tão absurdo para ela a ideia de me olhar nos olhos e passar mais do que cinco minutos sem me ofender — o que eu não tirava sua razão depois de tudo, claro.
— A mãe disse que te mandou a playlist dele que fiz para ela — Lua falou. Já estávamos dentro do local do show e ela olhava animada para o palco montado alguns metros à nossa frente. Nossos lugares eram bons e ela com certeza enxergaria o "cabelo macio dele" sem precisar olhar pelo telão, então estava feliz por saber que ela teria uma experiência dessas. — Você ouviu?
— Ouvi sim. Gostei bastante de Not Thinkin' About You e As Long As You Care.
Ela virou seu rosto para mim e pude ver sua carinha linda e fofa reluzindo de felicidade. Quis me convencer que era em alegria por eu realmente me interessar pelas coisas que a fazia feliz, porém sabia que era muito provável que só fosse a animação de estar prestes a ver uma pessoa que admirava bastante.
Eu ainda tinha muito caminho para percorrer até que ela ficasse feliz por qualquer coisa que me envolvesse e aceitava o desafio com paciência, esperança e muitas artimanhas que Vin disse que ajudaria com.
— Bom, essa turnê é do novo álbum dele e elas não estavam na playlist, mas acho que você vai gostar do show — ela sorriu de leve, tirou algumas fotos e depois digitou algo em seu celular. Devia estar conversando com ou compartilhando de sua animação com amigas que queriam estar lá também. — Obrigada por me trazer, aliás. Não acho que isso vá contar pontos com a minha mãe, mas pelo menos você vai poder ouvir I Don't Wanna Be Like You ao vivo.
— Estou aqui porque me importo com você, Lua. Queria poder ajudar de alguma forma, só isso.
— Claro, claro. Como se você não estivesse tentando parecer o querido que é perfeito e ajuda todo mundo.
— É isso que pensa de mim de verdade?
Ela deu de ombros e deixei que os gritos das pessoas me assustassem. Não queria pensar em como havia estragado as coisas com ela anos atrás, como poderíamos estar lá como pai e filha, dividindo um momento especial sem precisar provar para ela que a amava pela pessoa que ela era, pela criança incrível e encantadora que havia me conquistado e conquistado a mulher que eu amava também. Pensei em tudo que podíamos fazer nos fins de semana, em como ela poderia cortar meu cabelo e eu poderia levá-la para os jogos de futebol que sabia que ela gostava. Imaginei as opiniões que daria sobre suas roupas quando ela me pedisse, as músicas que dividiríamos e os almoços de pai e filha; tudo que nunca havia acontecido.
— Não penso isso de verdade, — ela disse, me fazendo olhar em sua direção, confuso.
— Não?
— Isso não; que você é um grande idiota que deixou eu e minha mãe sim, mas parece que idiotas também tem coração e não posso julgar muito quando esse idiota me trouxe nesse show sem questionar, posso?
— Poder até pode, mas seria legal se você pegasse mais leve comigo. Eu estou tentando, Lu, juro.
— Consigo ver que está, só que não posso garantir que vou conseguir olhar para você como antes, bem antes, quando você não tinha batido a cabeça e se tornado esse pamonha. Com todo o respeito. Sei que não foi a intenção, assim como sei que nunca sonhei com um pai como você.
— Wow, ok.
— Com todo o respeito, viu? Pode contar comigo para ser sincera — Lua ajeitou seu cabelo, mexeu seu nariz de um jeito que me lembrou e depois olhou para o palco em antecipação. — Ah, eu sou Lua para você.
— E eu sou para você, então.
— Na verdade, é algo entre "chato" e "irritante", mas acho que também serve. Já ouviu falar sobre sinônimos?
Lua riu como se me desse permissão para deixar a atmosfera mais familiar e amigável, então aproveitei a oportunidade para tirar uma foto nossa e mandar para e Vin, comentando que o show estava para começar. Enviei também um "acredito que vou chegar mais tarde do que esperava; tem muita gente no show" para Olivia e, assim que apertei em enviar, as luzes diminuíram e então um homem alto, loiro e com postura duvidável apareceu, sendo o suficiente para Lua gritar e bater palma, animada.
Ele era bom, eu precisava admitir. Suas músicas eram bonitas, sua voz era peculiar, servindo como calmante e tudo estava bem, até que Lua me olhou com os olhos marejados entre uma música e outra e fiquei nervoso.
— Lua, o que aconteceu? Você está bem? — Segurando sua mão e me abaixando para enxergá-la melhor, senti meu coração se quebrar ao ver sua expressão tão dolorida.
— Eu não deveria dizer, , mas essa próxima música fez a minha mãe chorar. Ela disse que… esquece, não importa. Só escute, ok? Escute e lembre-se dela quando acabar, porque acho que é importante.

It's easy to want me while we are fallin'
All of the scariest parts are blocked out
Lost in a mansion, up in the canyon
Light from the sunset is blinding our doubts
Remember the way that you feel when it's only us, only us
It felt like forever but now we're just fucking up

Eu vi chorando. Imaginei-a cantando no carro, em um dia chuvoso como aquele, ouvindo a canção e se deixando levar pelas memórias que a assombravam. Aquela música, inclusive, não passaria despercebida por mim, já que minha mente foi diretamente para ela já na primeira frase: era fácil querê-la justamente porque era ela que bloqueava as partes assustadoras da vida.


Darling, don't hate me when you're not in love, oh-oh
Darling, don't break me when it's all too much, yeah
We were just laughin', sittin' in traffic
Said, we'd never let bad things happen to us
So please, don't ever hate me when we're not in love

— Você entendeu a letra, não entendeu? — Lua perguntou.
— Você acha que a sua mãe me odeia? De verdade mesmo, conto com a sua sinceridade.
— Acho que ela nunca conseguiria te odiar, mas alguma coisa se quebrou quando tudo foi demais. Agora o que peço é que não faça nada disso com ela de novo. Por favor.

I'll take an airplane back to the old days
Back when it felt like the sky was still real
And we were addicted to what was written in all of the stars
Now we can't even feel
Remember the way that you feel when it's only us, ooh
It felt like forever but now we're just fucking up

Lua começou a gravar um vídeo e imaginei que mandaria para sua mãe, o que me fez segurar ainda mais a vontade de chorar e implorar pelo amor de . Ela devia me odiar, devia cercar seu coração de mim e de todo mal que poderia fazer para Lua e ela se esquecesse de tudo de novo ou se as trocasse por outra pessoa outra vez.
Eu entendia seus receios, compreendia suas dores e me condenava por tudo que não tinha controle, rezando em silêncio para que ela não me odiasse quando não estivéssemos apaixonados.
O problema era que mesmo entendendo, era difícil considerar que mesmo o meu amor tão grande por ela não era suficiente para deixar tudo bem.
Eu queria tanto poder estar ao seu lado de novo.

All of the good things turnin' to bad things
How will you feel when you're lookin' back?
And all of the memories will turn to resentment
And where will I be when you forget the past?
Well, all of the good things turnin' to bad things
Tell me what happens when it all ends
Oh, I gotta tell you what I'm most afraid of
Is losin' you once and to lose you again

Quando o australiano cantou que "eu preciso te dizer que o que eu tenho mais medo é perder você uma vez e perder você novamente" eu entendi ainda mais o motivo pelo qual havia chorado. Eu nunca conseguiria odiá-la mesmo se não estivesse apaixonado por ela e talvez ela tivesse se emocionado por também não conseguir fazer isso comigo — ou porque ela havia notado que me odiava e as memórias não significavam muita coisa mais.
Era difícil saber quando ela não me dizia como sentia sobre mim sem todos os "mas" de sempre.

Darling, don't hate me when you're not in love, oh-oh
Darling, don't break me when it's all too much, oh-oh
We were just laughin', sittin' in traffic
Said, we'd never let bad things happen to us
So please, don't ever hate me when we're not in love, oh-oh
In love

— Ela continua amando você, — Lua sussurrou. — Espero que saiba disso.
Eu achava que sabia, porém, horas depois, quando subi com Lua para levá-la até a porta do apartamento delas e encontrei Natan abraçando e mexendo em seu cabelo, desconfiei que alguma coisa havia mesmo se quebrado quando tudo foi demais.
, olá. Lua! Como foi o show? Ele cantou Japanese Whiskey?
Claro que Natan sabia das músicas. Não bastava ele saber das alergias, de ter o carinho de Lua, ele ainda precisava ganhar tudo aquilo naturalmente, sem passar pelo desespero de tentar agradar e não conseguir.
Claro.
— Cantou sim, acredita? Foi muito legal. Até o gostou, não é? — Quando ela se virou para mim, pude pegar a deixa e focar em antes de responder. O sorriso leve em seu rosto me fazia querer gritar.
Eu queria que ela fosse feliz, queria ter uma boa relação com ela, porém era doloroso não ser a pessoa que gostaria de ser para ela.
Imaginava que era assim que ela tivesse se sentido anos atrás e quem sabe eu só estivesse provando do meu próprio veneno, porém era horrendo sofrer as consequências de algo que eu não tinha culpa e muito menos intenção. Eu realmente jamais esqueceria dela por pura indecência e falta de consideração.
— Gostei sim, ele canta muito bem ao vivo.
Mas ninguém se importava com a minha resposta; Natan e Lua começaram a conversar sobre festivais de música, foi abrindo a porta e tirando os sapatos e eu fiquei sem saber se ia embora ou se ficava para conversar um pouco mais. Um estalo se fez ouvir e notei que aquela era a realidade que eu teria se não fizesse nada: um mero figurante na história das duas, um tio de nome inteiro, um amor que não cabia mais no guarda-roupa dividido dela.
Naquele momento, e em tantos outros, era fácil notar que me arrependeria muito mais de ficar dias mais sem do que a eternidade sem Olivia — eu só precisava aceitar de bom grado o que quer que ela tivesse para me oferecer depois que dissesse o que queria dizer.
Que era meu grande amor e que, por mais que quisesse nunca esquecer dela, pelo menos agora eu lembrava.
E preferia a inconstância das nossas memórias do que um futuro certo com Olivia.
— Quer alguma coisa para tomar ou comer? Acho que tenho alguns cupcakes que Vince fez comigo esses dias — me perguntou, gritando da cozinha. Quando ela voltou com um copo na mão e aquele olhar questionador, quis abraçá-la e beijá-la da maneira que havia feito tantas e tantas vezes antes e que agora finalmente lembrava.
— Você pode deixar o fim de semana que vem reservado para mim?
Quando ela acenou que sim, sem nem questionar, soube que nossa história teria uma segunda parte merecida, com um epílogo feliz e tudo mais.


FIM.



Nota da autora: Não dá nem pra explicar o tanto que gostei de escrever essa história, ainda mais que sou uma fã gigante do clichê amnésia, mas resta saber de vocês: o que acharam? Pensei em introduzir a história no ficstape assim, menorzinha mesmo, e depois desenvolver mais ela caso vocês gostem (então, por favorzinho, comentem feedbacks, sugestões, críticas, etc) porque acho que tem potencial. Vão me avisando, tá? Mais uma vez obrigada por lerem e pelo apoio - significa demais pra mim!
Ah, e segue o link da playlist, caso gostem de acompanhar:




sim, o artista era o Ruel e caso não conheçam, recomendo DEMAIS.

Nota da beta: Depois desse final, eu só sei que preciso do epílogo para ontem hahaha ❤️


Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.

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