Capítulo Único
estava com olheiras profundas que não poderiam ser escondidas nem com toda a maquiagem do mundo. Estava surpreso de ao menos ter conseguido pentear os cabelos com todo aquele sono que o consumia. O estágio estava muito perto de matá-lo e ele sabia bem disso. Infelizmente, não podia fazer nada sobre essa situação. Precisava começar a ganhar algum dinheiro se não quisesse morrer de fome ou depender da família para o resto de sua vida. Depois de seu último surto sobre independência, seria bem vergonhoso voltar para casa com o rabo entre as pernas e admitir que não aguentava a pressão. Não queria ser fraco, nem para si e nem para a sua família. E, após perder os últimos dois empregos, não era como se ele tivesse lá grandes perspectivas ou escolhas.
Ainda residia em um apartamento vago que seus tios gentilmente lhe emprestaram enquanto não organizasse sua vida e seu próprio dinheiro. Se dependesse de seus pais, jamais teria conseguido sair de casa antes de uma grande poupança. Por isso, era extremamente grato ao empréstimo dos tios e sempre seria.
— Um café expresso duplo, por favor - pediu ao se sentar em um dos bancos altos do balcão. — Ah! E um pedaço dessa torta também, que está com uma cara ótima.
apoiou o queixo sobre a mão fechada, sentindo os olhos pesando e ardendo. A cafeína e o açúcar definitivamente eram as suas últimas esperanças.
Uma mulher incrivelmente bela se aproximou, colocando a xícara de café e o prato com o doce logo em frente ao rapaz. Seus cabelos estavam presos em um coque alto - provavelmente por higiene, já que ela estava manuseando algo que as outras pessoas comeriam - e o avental que cobria apenas a sua cintura parecia estar frouxo demais em seu corpo. estava impressionado por sua beleza e, talvez, mais impressionado ainda por encontrar alguém que parecia tão cansada quanto ele.
— Perdoe a minha indiscrição - ele começou, chamando a atenção da moça cansada. — Mas é que eu sempre venho aqui e nunca te vi.
— E eu preferiria que assim continuasse - ela respondeu simplesmente e deu as costas para ele, indo em direção à cozinha da cafeteria.
piscou algumas vezes, como se tivesse acabado de tomar um soco inesperado no rosto. Será que havia sido invasivo demais?
Em questão de instantes, Hwan, dono da cafeteria apareceu. Parecia perturbado e ainda secava as mãos em um pano de prato branco. Suas rugas quase pareciam mais fundas pelo estresse que aparentava sentir.
— Escute, rapaz - ele chamou. — Sei que você vem aqui sempre e já é cliente da casa, então espero que possa aceitar meu pedido de desculpas. Sinto muito pelo tratamento que a te ofereceu, de verdade. Ela está passando por tempos incrivelmente difíceis e acaba descontando nos outros. Óbvio que isso não é desculpa pela atitude dela, mas espero que possa nos desculpar pelo acontecimento. Aceita mais um pedaço de torta por conta da casa? - Hwan perguntou abrindo um sorriso enorme. Aquilo lembrou exatamente o porquê de ter escolhido aquela cafeteria: a hospitalidade. A sensação de que, de alguma forma, estava em casa.
— Não se preocupe, Hwan. - O rapaz retribuiu o sorriso. — Todos nós temos dias ruins, certo? Eu entendo. Espero que ela fique bem, independentemente do que estiver acontecendo.
Com um sorriso agradecido, o dono do estabelecimento retornou para a sua cozinha. degustou calmamente a sua torta que, como esperava, estava maravilhosa.
Ele estava terminando o café quando reapareceu para retirar o seu prato vazio. Ela estava ruborizada e o cabelo parecia estar mais bagunçado.
— Posso retirar? - Ela perguntou.
empurrou as porcelanas um pouco para a frente, oferecendo um sorriso simpático de compaixão e compreensão. respirou fundo com a ação, sentindo-se quase obrigada a fazer aquilo.
— Eu queria pedir desculpas pela minha atitude. Hwan já deve ter dito que eu não estou bem e tudo o mais. Perdão por ter sido grossa e estúpida. Não é certo descontar nos clientes, muito menos nos que não agem como babacas. Droga, eu não deveria chamar os clientes de babacas. - riu de forma nervosa. — Você sabe o que eu quero dizer.
sorriu abertamente para ela.
— Sei sim. Está tudo bem. Não é como se eu fosse desistir dessa torta incrível por conta de uma cara feia. Espero que seu dia melhore, . De verdade.
O rapaz entregou o dinheiro a ela, garantindo que havia uma gorjeta extra. Com um sorriso e um aceno, deixou o lugar.
Fez o percurso até a sua casa o mais rápido possível, tentando fugir do vento gelado que decidira soprar de repente. Ao abrir a porta do apartamento, deu de cara com deitado em seu sofá, comendo alguns salgadinhos enquanto assistia a qualquer coisa na televisão.
ficou parado na porta, observando o amigo que sequer piscava. Pegou a mochila que estava na entrada e arremessou com força em .
— Mas que merda é essa? - gritou e jogou a mochila no chão, completamente revoltado.
— Eu é que te pergunto - gritou de volta. — Eu nem sei como você está aqui.
— Você me deu uma cópia da chave.
— Não, eu não dei.
se sentou rapidamente, pegando a chave no bolso de trás de sua calça. Abriu um sorriso amarelo ao se lembrar da versão real da história.
— Ok, talvez eu tenha levado a sua chave. E talvez eu tenha feito uma cópia dela enquanto você estava no trabalho. Mas somos melhores amigos, não? É quase como se isso fosse uma obrigação.
— Você é ridículo - o rapaz colocou as suas coisas sobre a mesa e arrancou os sapatos de qualquer jeito no meio da sala antes de se arremessar no sofá ao lado do amigo.
pegou o controle e mudou o canal, recebendo protestos do amigo. Tomou os salgadinhos e começou a comê-los por mais que seu estômago já estivesse satisfeito com a torta.
— Você está com uma cara esquisita - chamou a sua atenção. — O que houve?
— Eu conheci uma garota - o outro começou, mas logo foi interrompido.
— E por que não disse isso assim que entrou? Isso parece um milagre divino depois de seu último rompimento. Será que o próximo dilúvio vem?
deu um empurrão no amigo, fazendo com que ele caísse do sofá.
— Não desse jeito, seu idiota. Tinha uma garota nova servindo na cafeteria. Ela foi bem grossa comigo, mas depois veio se desculpar. Hwan disse que ela está passando por uns tempos difíceis. Isso ficou martelando na minha cabeça, sabe?
— A cafeteria do Hwan? Merda. Acho que conheço a sua garota.
— Ela não é a minha garota e o nome dela é .
jogou a cabeça para trás, esfregando os próprios olhos. Respirou fundo, antes de começar a reclamar de uma forma quase exausta.
— Por que você só mete em roubada? Você não consegue encontrar uma garota fofa e bonita que simplesmente te faz um carinho e age como uma pessoa normal?
— Do que você está falando? De onde você a conhece?
— é a melhor amiga da minha ex. A mãe dela é sócia do Hwan na cafeteria.
— Espere aí. é filha de ? Como eu não sabia disso?
riu, repousando a sua mão no ombro do amigo.
— Porque você nunca sabe de nada, . Mas eu sei. Fique longe dela.
— Por quê? Qual é o problema com ela?
— Ela só é esquisita. Ninguém sabe o motivo. Ela não se abre, não dialoga, não permite que ninguém ajude ou sequer se aproxime. E você é daqueles que se importa demais. Não vai dar certo e você vai fazer papel de bobo como sempre. Só esquece isso, ok?
meneou a cabeça, concordando a contragosto. O problema era que aquela história só tinha aguçado ainda mais a sua curiosidade e a sua vontade inexplicável de se aproximar. tinha razão sobre isso, afinal. Ele realmente se importava demais. E, droga, já tinha começado a se importar.
*****
estava terminando de mexer os ovos na panela, tomando o devido cuidado para que eles não grudassem e queimassem nas bordas da panela. Tinha que terminar o café da manhã logo, antes que o atraso para o colégio já fosse inevitável.
— ! - gritou na ponta da escada. — O café vai esfriar e você vai se atrasar. Não quero ficar assinando advertência depois e você já sabe das consequências.
Passos pesados foram ouvidos da cozinha, assinalando que o pequeno estava descendo correndo.
— O que a eu e a mamãe já dissemos sobre correr na escada? - perguntou, demonstrando todo o cansaço que estava estampado em sua face e marcado embaixo dos seus olhos em uma paleta quase artística de tons escuros.
— Bom dia para você também - respondeu, antes de enfiar uma garfada cheia em sua boca. — Hoje é o dia da minha apresentação de guitarra na escola. Você vai me ver? Quer dizer, não precisa ir, mas… Sei lá. Acho que seria legal.
— Já conversei com o Hwan e sairei da cafeteria mais cedo para ver a sua apresentação. Você pensou mesmo que eu fosse perder um momento desses? Que tipo de irmã mais velha você pensa que eu sou?
se sentou na cadeira ao lado do pequeno, bagunçando os seus cabelos o máximo que pôde enquanto ele tentava, em vão, desviar de seus ataques. Os dois riam como crianças pequenas. Eram momentos como aquele que faziam comentar que a vida deveria carregar uma câmera para eternizar os momentos, no caso de eles fugirem de nossa memória. Algumas coisas valiam a pena serem guardadas, independentemente do esforço que isso demandava.
— Quanto tempo você vai ficar na cafeteria? E o seu trabalho de verdade?
inspirou fundo, sentindo o desespero do irmão em suas palavras. Todos queriam ter uma data marcada para o fim daquele caos e, Deus, ela bem queria possuí-la também. Seria incrivelmente mais fácil levar os dias se pudesse rabiscá-los em um calendário na parede até que a contagem regressiva se esgotasse no término daquilo tudo.
— Vou ficar por lá enquanto a mamãe estiver no hospital. Eu larguei o serviço no restaurante para ajudar com as coisas.
— Mas você estava adorando o seu emprego - protestou. — Disse que estava aprendendo muito.
— Eu estava, mas nós temos prioridades na família. Posso arranjar outro emprego depois que a mamãe estiver bem. Não se preocupe comigo, ok? Agora, ande. Vai se atrasar.
O irmão deu um beijo na bochecha dela e saiu correndo pela porta, carregando aquela mochila pesada. expirou fundo, decidindo aproveitar aqueles poucos minutos de alívio antes de tomar o próximo passo.
Ela pegou a sua bolsa em cima do sofá e pediu um táxi até o hospital. O caminho, de repente, parecia incrivelmente mais longo do que deveria ser. A atmosfera aparentava ter ganhado uma pressão extra nos últimos minutos por uma jogada odiosa do universo. Às vezes, tinha certeza de que o universo tomava a decisão diária de conspirar contra ela.
Depois de anunciar que pretendia visitar no quarto em que estava, a mulher subiu rapidamente pelo elevador e foi acompanhada por uma enfermeira responsável pelo corredor até a porta do cômodo em que encontraria sua mãe. A mais velha estava lá, dormindo pacificamente contra a própria vontade.
— Oi, mãe - cumprimentou, já sentindo os olhos acumulando algumas lágrimas indesejadas.
— Vou deixar vocês a sós - a enfermeira anunciou, antes de se retirar com um sorriso de compaixão.
Assim que ouviu o som da porta se fechando em definitivo, se sentou na poltrona ao lado da cama e tomou a mão fria da mãe entre as suas. Levou os próprios lábios aos dedos da progenitora, beijando-os carinhosamente.
— Você faz tanta falta. - Ela soluçava entre as próprias palavras. — Estou cuidando do e me virando como posso na cafeteria, mas é difícil demais sem você, mãe. Vou conseguir segurar a barra, sei que vou. Leve seu tempo para se recuperar, mas, por favor, volte para nós.
acariciou o rosto da mãe, colocando alguns fios do cabelo dela atrás da orelha. As cicatrizes na bochecha e no pescoço já estavam mais finas, enquanto o maior corte do braço parecia estar dando o seu melhor para fechar logo. As cirurgias haviam corrido bem, mas o coma ainda era uma incógnita para todos. O acidente tinha sido tão grave que os médicos já consideravam um milagre que tivesse sobrevivido. As esperanças deles permaneciam, justificando que uma mulher tão forte como ela deveria sair daquele estado mais cedo ou mais tarde.
se despediu da mãe quando o horário aberto às visitas terminou. Passou ainda alguns minutos trancada em uma das cabines do banheiro do hospital, esperando que suas bochechas estivessem menos vermelhas e os olhos menos inchados. Tinha que voltar ao trabalho e a última coisa que precisava era da atenção e do estranhamento dos clientes àquela pessoa que parecia ter virado a noite aos prantos. Não queria conversar sobre aquilo e a melhor maneira de cumprir suas intenções era não demonstrar.
Chegando à cafeteria, ela deixou a sua bolsa no armário de e foi às pressas vestir o seu avental na cozinha.
— Você foi vê-la? - Hwan perguntou enquanto passava mais café, recebendo a confirmação dela. — E como ela está?
— Do mesmo jeito - murmurou, dando de ombros para não transparecer sua dor. — Ela é forte. Logo estará de volta.
— Eu sei que sim - Hwan confirmou, oferecendo um sorriso a ela. — Pode fazer aqueles brownies de chocolate? Acho que pode ser uma boa pedida para esse frio que vem chegando.
confirmou com a cabeça e começou a separar os ingredientes daquela receita que ela já havia decorado até mesmo de trás para frente. Eram os doces preferidos de , o que só fazia com que ela cozinhasse aqueles brownies com mais carinho ainda pela boa lembrança.
Enquanto os brownies assavam, a mulher foi ajudar a atender os pedidos no balcão. Aproximou-se de um homem que estava de costas, torcendo para que ele não tivesse sido atendido e não se incomodasse com a invasão. Infelizmente, era uma reação relativamente comum. Algumas pessoas não tinham nascido com o dom da paciência. Ou dos bons modos.
— Bom dia, senhor - chamou educadamente. — Já foi servido? Posso oferecer algo?
Quando ele se virou no banco rotativo, quase prendeu a respiração. Como ela poderia ser tão azarada ao ponto de ter de dar de cara com ele de novo em tão pouco tempo?
— Hwan já foi buscar um café para mim - disse. — Mas esse cheiro de chocolate fez a minha barriga implorar de joelhos. O que é?
— Brownies de chocolate. É uma receita de família, na verdade. Estão terminando de assar.
soltou um longo suspiro, imaginando se o sabor do doce conseguia ser tão maravilhoso quanto aquele cheiro inebriante que quase fazia seu estômago dar cambalhotas dentro do próprio corpo.
— Eu quero um pedaço - ele avisou.
— Pode deixar - ela respondeu simplesmente, esboçando um sorriso antes de retornar à cozinha para retirar os doces do forno. O cheiro do chocolate realmente aqueceria facilmente qualquer coração.
serviu um pedaço generoso para o rapaz, torcendo para que o brownies servisse como uma bandeira branca, uma oferta de paz.
— Você bem disse que voltaria - ela comentou um tanto envergonhada. Ainda se perguntava por que tinha sido tão grossa com o rapaz. Aquela com certeza não era a educação que sua mãe havia lhe dado.
— Claro que sim. Acho que precisarei voltar mais vezes se esses brownies começarem a ser uma constante do estabelecimento. Você quem fez?
assentiu, recebendo um largo sorriso de . O rapaz tinha uma gotinha de chocolate sujando a sua bochecha, tornando aquela cena ainda mais fofa. A mulher balançou a própria cabeça entre um riso descrente. Aquilo não era nada justo. Golpe baixíssimo. As pessoas não poderiam simplesmente ser cordiais? Dizer um “muito obrigado”, virar as costas e sumir?
— Como estamos por aqui? - Hwan perguntou, na tentativa de checar os humores após os acontecimentos recentes.
— Muito bem - respondeu. — E muitos satisfeitos com um certo brownie de chocolate.
— E o atendimento? - Hwan perguntou para , recebendo um revirar de olhos dramático de .
— Eu sei tratar as pessoas - ela se manifestou. — Não preciso que você seja a minha babá.
riu alto, fazendo com que Hwan se desse por vencido e retornasse à sua panificação.
— Você não queria estar aqui, não é? - Ele perguntou, fazendo com que algo nela estremecesse.
— Acho que eu preciso voltar ao trabalho - tentou desviar, mas logo foi impedida pela risada do rapaz.
— Não tem ninguém para você atender agora. E todas as prateleiras já estão cheias, o que significa que há comida suficiente para o caso de um time de futebol faminto aparecer aqui de repente. Sem contar que eu tenho um longo dia de trabalho pela frente daqui a pouco e seria bem legal mesmo ter alguém para conversar antes. E eu ouvi dizer que o cliente tem sempre a razão.
— Não é assim que essa frase funciona e você sabe bem disso.
— Sei? - perguntou, fazendo uma careta desentendida. — Não faço ideia do que você está dizendo. Inclusive acho que eu te fiz uma pergunta e ainda não tive a minha resposta.
olhou ao seu redor, encontrando um banco baixinho que ficava encostado embaixo da pia do balcão. Puxou-o para trás e apoiou os joelhos no objeto, encostando os próprios cotovelos à pedra do balcão.
— Não, eu não queria estar aqui. Mas preciso estar, então a minha vontade não tem importância alguma.
— Mas deveria ter, sabe? Por que está aqui, afinal? É bem óbvio que não é o seu lugar.
Ela respirou fundo, pressionando as próprias pálpebras e bufando de leve.
— Eu estou fazendo isso pela minha mãe - respondeu simplesmente, desejando incondicionalmente que o assunto pudesse ser finalizado logo.
— Dona , não é? O meu amigo me disse.
sentiu um arrepio na espinha ao ouvir o nome da mãe ser pronunciado.
— Que amigo?
— . Ele disse que conhece você.
Ela repuxou os lábios em uma careta esquisita que não conseguiu decifrar. gostava de e sabia que a amiga tinha sido muito feliz ao lado dele. O fim daquele namoro era mais uma fatalidade do que um motivo para culpar alguém. O problema era o que ele pensava dela e de sua mania de guardar as coisas para si mesma.
Ainda se lembrava claramente do dia em que havia aparecido na porta dela, implorando para que ela conversasse com a amiga e dissesse o que estava acontecendo. Ela tinha explodido com ele por insistir tanto em oferecer ajuda quando ela só queria passar um tempo sozinha embaixo do seu cobertor estampado. Sabia bem que não podia contar com ninguém. Confiar nos outros sempre acabava dando errado. Depender de alguém, então…
— Ele deve ter me destruído para você - comentou, brincando com a pequena caixa metálica de saquinhos de adoçantes.
— Não destruiu. Você é uma boa pessoa, não devia ficar pensando essas coisas de si mesma.
— Você nem me conhece - se levantou bruscamente, recolocando a pequena caixa no seu devido lugar.
— É para isso que as pessoas conversam. O que é exatamente o que nós estamos fazendo.
— Eu preciso mesmo voltar ao trabalho - ela tentou desviar.
— Tudo bem - respondeu. — Já está dando a minha hora também.
O rapaz se levantou e estendeu o dinheiro para ela. Em um minuto de completa insanidade, surgiu com uma ideia maluca:
— O que você acha de sair comigo de noite? Só para continuarmos essa conversa, sabe? Sem segundas intenções, juro.
— Você é maluco.
— Não precisa mesmo aceitar se não quiser. Só… Sei lá. Acho que poderia ser legal.
parecia mesmo um cara legal e era incrivelmente educado. ouviu a voz de em sua mente, dizendo o quanto gostaria de ver a filha tentando se divertir às vezes.
— Certo - ela se deu por vencida. — Mas estarei de volta em casa antes das dez. Envie o endereço para o meu número.
puxou rapidamente um guardanapo é uma caneta, anotando os dígitos de seu celular com uma letra um tanto grosseira e apressada. recolheu aquilo com um sorriso e acenou antes de seguir o seu caminho.
Com uma pesada expiração, ela retornou à cozinha, pronta para começar a organizar as coisas para o horário do almoço.
*****
se olhava no espelho, mal acreditando que estava mesmo fazendo aquilo. Era ridículo. Estava usando uma calça preta e uma blusinha vermelha fina coberta por um sobretudo mais grosso de tons neutros. Colocara seus coturnos e até escolhera um par de brincos. Essa última escolha, inclusive, tinha rendido algumas lágrimas e uma irritação enorme nas orelhas após a incrível descoberta de que os seus furos estavam praticamente fechados pela falta de uso.
apareceu na porta do quarto da irmã e soltou uma risadinha.
— Você está muito bonita. De verdade. Faz tempo que eu não te vejo assim.
— Acho que eu vou me trocar - ela respondeu, já retornando ao closet.
— Por quê? - puxou a irmã de volta até que os dois estivessem sentados na ponta da cama de casal. — Por que você não pode simplesmente aceitar que pode se arrumar e ficar bonita? Não tem nada de errado nisso, sabia?
— Eu sei, eu sei. - Ela revirou os olhos. — Eu só me sinto idiota de estar fazendo isso para sair com um cara que no fim das contas deve ser um babaca como todos os outros.
puxou a irmã para um abraço longo e apertado.
— Nem todos os caras são iguais. Eu sei que você tem medo, mas precisa enfrentar isso. Você e a mamãe sempre me disseram para encarar as coisas por mais assustadoras que elas fossem. Acho que é a sua vez de ouvir o seu próprio conselho.
empurrou o irmão, fazendo com que o menino caísse de cara na cama.
— Odeio quando você é o mais responsável e sensato. É ridículo, sabia?
— Alguém tinha que ser, não é mesmo? Agora, vai embora logo que eu não quero ter que pegar na mão de ninguém.
— Que doce. Também te amo!
deixou um beijo estalado na bochecha da irmã e voltou para o próprio quarto, ligando sua televisão em um volume possivelmente muito acima do recomendado para a própria audição. checou se todas as janelas e portas estavam trancadas e, com uma respiração incrivelmente profunda, deixou a casa, pronta para correr o risco.
O restaurante que havia escolhido era bem decorado, com uma luz ambiente que deixava o lugar acolhedor, quase amigável. Ao menos, o bom gosto que ele tinha era inevitável.
A educação também era. Ele estava esperando por ela na porta do estabelecimento, trajando suas roupas sociais de uma forma levemente descontraída. Ofereceu o braço e a guiou para dentro, mostrando a mesa que já tinha reservado ao chegar.
Um garçom se aproximou, entregando um cardápio de capa dura para cada um. quase se distraiu com todos aqueles ornamentos dourados que decoravam o objeto. Foi difícil se concentrar no que era realmente importante com todas aquelas curvas brilhantes e chamativas.
— Posso oferecer ao casal uma taça de um dos nossos vinhos mais finos?
prontamente olhou para a moça, esperando que ela respondesse. Notando a espera, ela comentou da forma mais natural que pôde:
— Eu não bebo álcool. Pode ser uma limonada para mim - respondeu, tentando disfarçar um sorriso um tanto nervoso.
— Então, duas limonadas bem caprichadas - pediu e o garçom concordou, indo buscar as bebidas. — Não bebe álcool?
estava torcendo para que ele não fizesse aquela pergunta.
— Não mais. Já tive meus dias, mas abandonei.
— E quando foi isso?
parecia mesmo interessado na conversa. E irritantemente curioso para alguém que fazia de tudo para guardar os problemas para si.
— Pouco menos de um mês atrás. - A mulher deu de ombros, batendo a sola do coturno no chão em um ritmo leve, mas rápido. Seus dedos brincavam no próprio colo, buscando extravasar a ansiedade.
— Seria intromissão demais eu perguntar o porquê?
— Seria - ela respondeu simplesmente. — Não quero falar sobre isso.
assentiu, conhecendo os próprios limites que deveria tomar por respeito e consideração. Sua mãe sempre o elogiara por atitudes como aquela. Ele refutava todas as palavras doces, sabendo que não fazia absolutamente nada além de sua própria obrigação enquanto ser humano.
— Você poderia me contar sobre a sua família - comentou, contornando o assunto. — É meio entediante ser a única a falar.
Os copos de limonada foram gentilmente entregues ao que eles agradeceram sinceramente. ficou estranhamente feliz por ter sido questionado.
— Meus pais são professores. Minha mãe ensina matemática e meu pai dá aulas de literatura. Eu sei; não poderiam ser mais diferentes. Acho que é por isso que eu saí totalmente confuso e indeciso.
— Detesto números - ela admitiu, rindo da situação.
— Meu pai também. Eu não tenho uma opinião formada. Acho que fui obrigado a tolerar. Os dois ficaram a minha infância e adolescência inteiras buzinando nos meus ouvidos sobre seguir uma carreira como engenheiro ou escritor. Para piorar, meus tios decidiram que eu deveria ser um atleta profissional. - Os dois riram. — Eu fico verdadeiramente impressionado por não ter me tornado uma pessoa problemática.
— Quem garante que não é? - lançou um olhar de desafio, fazendo com que quase se engasgasse com a limonada ao tentar rir.
— Bom, faz sentido - ele ainda ria. — Eu joguei futebol por uns seis anos no colégio, acredita?
— Em que posição?
— Aquela que esquenta o banco - ele respondeu, dando de ombros e fazendo com que os dois rissem novamente.
— Basicamente, a mesma coisa que você faz na minha cafeteria.
abriu a boca em completa surpresa. Definitivamente não estava esperando por aquela tirada escancarada ao vivo e em cores.
— Essa doeu bem no fundo.
Ele ria tanto que seus olhos quase se fechavam. Alguns casais em volta sorriram ao ver o quanto aqueles dois estavam se divertindo. Outros apenas se sentiram nostálgicos ao recordar dos próprios relacionamentos em seus inícios ensolarados é incontestavelmente felizes. Era um tanto decepcionante perceber que muitos deles haviam deixado que as coisas deixassem de ser tão encantadoras como antes.
Os pratos não demoraram para chegar e ambos degustaram alegremente aquela mistura de sabores impecável. tinha vontade de invadir a cozinha só para dar um abraço apertado em quem tinha cozinhado aquilo. Aquela pessoa de luz provavelmente era um anjo enviado à Terra para dar um pouco de alegria aos meros mortais.
Continuaram conversando sem parar, de forma que nem os silêncios momentâneos fossem desconfortáveis. contou sobre o mico que pagou na única vez em que jogou de titular e acabou caindo de bunda no chão ao tentar chutar a bola. acabou falando sobre o dia em que decidiu pular na piscina logo após o banho e destruiu o vestido de dama de honra que usaria no casamento de uns amigos da família. Entre essas e outras histórias, a noite correu e a mulher também o fez ao perceber que já eram dez horas.
— Muito pontual, Cinderela - ele brincou, enquanto acompanhava a moça até o carro.
— Meu irmão está em casa. Preciso voltar. Desculpe.
sorriu ternamente. Ela sequer precisava se desculpar. Ele achava incrível o aparente cuidado que ela tinha com o irmão pelas histórias que contara.
— Não se preocupe. Podemos sair de novo.
travou com o quase convite. Não podia dizer sim. Não queria ser rude mais uma vez.
— Eu preciso mesmo ir - desconversou. — Falamo-nos depois, sim? Obrigada pelo jantar.
Quando o carro dela sumiu ao dobrar a esquina, suspirou. Tinha adorado a noite e, até poucos instantes, pensava que a recíproca fosse verdadeira. Tudo o que ele queria saber era o que tinha feito de errado.
*****
O barulho no quarto estava alto e misturado demais. De um lado, os tiros e gritos do videogame - acompanhados pelas risadas daqueles que o jogavam - e, do outro, os toques insistentes das notificações de um celular ignorado.
— Você não vai ver o que é? - perguntou, mantendo os olhos completamente fixos na tela e os dedos mexendo freneticamente os botões do controle.
— Não. - deu de ombros, sem desviar a atenção do jogo. — Você está tentando me distrair só para eu perder. Fica quieto e joga!
Com um tiro certeiro, o garoto matou a personagem da irmã sob os gritos e protestos dela. Em um rápido movimento, ele se levantou e puxou o celular da mulher antes de sair correndo com o objeto em suas mãos.
— Volta aqui agora, sua peste! - gritava enquanto corria atrás do irmão. — Eu juro que te deixo sem jantar.
ria, enquanto digitava a data de nascimento da mãe deles na tela. Em instantes, as mensagens estavam completamente visíveis e expostas às intenções do menino.
— Que interessante - ele disse, ainda entre risadas. — O quer saber se você está livre para fazer algo hoje. Algo, tipo, dar uns amassos.
— Ele com certeza não disse isso.
— Talvez não a parte dos amassos - admitiu. — Mas ele ainda quer te ver. Vou ligar para ele.
— Você não faria isso - disse, tentando esconder seu nervosismo.
Com um sorriso travesso e desafiador, apertou o pequeno ícone na forma de telefone. Bastaram dois toques para que uma voz masculina soasse ansiosa do outro lado da linha.
— Alô? ?
— Oi, - o garoto começou. — Aqui é o , o irmão dela. Eu te liguei porque ela está meio ocupada fazendo o jantar, mas queria te convidar para comer aqui em casa com a gente.
segurou o grito que queria subir pela garganta. Vários modos de tortura já haviam passado por sua mente fértil. Ela ia matar .
— Claro! Eu adoraria - parecia tão animado que o garoto teve que segurar o riso.
— Ótimo! Vou mandar o nosso endereço por mensagem. Esperamos você! Tchau! - E desligou.
— Corre - a irmã avisou, entre os dentes.
— O quê? Não dá pra te ouvir.
— Corre antes que eu torça esse seu pescoço! Você é um péssimo irmão!
— Não. Eu sou um ótimo irmão. Porque você adorou o primeiro encontro de vocês e mesmo assim ficou ignorando o coitado. Ele merece um prêmio por ser tão paciente, sabia?
A garota bufou, percebendo que era obrigada a dar o braço a torcer. Tinha ignorado o rapaz sem que ele tivesse feito nada contra ela.
— Você sabe que eu não quero me envolver. - sentia o peso sobre os próprios ombros ao externalizar aquilo que ela sentia.
— Existe uma diferença enorme entre não querer e ter medo. Nem todo mundo é que nem ele, sabe? Nem todo mundo vai simplesmente te abandonar.
A mulher afagou os cabelos escuros do irmão, aproveitando o momento para bagunçá-los carinhosamente.
— Agora, você acabou de ganhar a obrigação de me ajudar na cozinha. Vai abrir a massa da lasanha para mim.
revirou os olhos ao passo que era empurrado pela irmã até a cozinha. Cozinhar em família era praticamente uma tradição naquela casa, fosse na presença ou na ausência de . A mãe tinha os melhores pães e bolos e as mais quentes e cremosas xícaras de chocolate quente. , por sua vez, decidira não competir diretamente com a mãe na panificação e na confeitaria. Usava seu talento para fazer pratos principais e entradas diferentes, mas incrivelmente saborosas. A lasanha era um desses pratos. Não importava se era a Coreia, a Itália, a Costa Rica ou o Brasil; lasanha era o tipo de comida que parecia negar o caminho do estômago só para ir diretamente ao coração.
A mulher entregava porções da massa para que o irmão abrisse as mesmas no grande cilindro. Enquanto isso, o molho concentrado de tomate estava prestes a ferver sobre uma das bocas do fogão.
Enquanto intercalavam todas as camadas de massa com as de molho e as de recheio, teve que se segurar para não rir dos pequenos focos de farinha branca que repousavam no cabelo do irmão. Ele sempre fora incrivelmente prestativo e dedicado a ajudar a família em qualquer situação. Ela tinha muito orgulho do grande homem que ele seria com aquele coração gigante e toda aquela racionalidade e sensatez.
Quando a campainha tocou, saiu correndo como um foguete até a porta. O pequeno sorriu de forma quase arteira para , que parecia não saber muito o que fazer enquanto esperava ali do lado de fora.
— Oi, . Seja bem-vindo!
achou graça na simpatia do garoto. Era uma daquelas pessoas para as quais você só conseguia sorrir sem esperar absolutamente nada em troca.
— Você deve ser o - analisou apenas para tentar dar início a algum tipo de diálogo. Sabia que era uma afirmação ridícula de tão óbvia. — Como está?
— Estou bem - ele respondeu simplesmente. — Por favor, entre.
passou para o lado de dentro, dando uma olhada cautelosa à sua volta. Estendeu uma caixa envolta por um embrulho prateado para o menino.
— Sabe que não precisa tentar me comprar com presentes, não sabe? - perguntou. — Você é bom com a minha irmã, isso já me faz começar a gostar de você.
O rapaz riu da sinceridade do pequeno, tentando evitar esboçar alguma reação para a segunda parte do que acabara de ouvir.
— É uma camisa que eu vi em uma loja. Pensei que, se eu ainda tivesse a sua idade, eu gostaria dela. Mas tudo bem, você não precisa aceitar. Eu posso devolver.
— Imagina, eu não faria uma desfeita dessas - ele pegou a caixa. — Eu fico com isso. Muito obrigado. está na cozinha. É a segunda entrada seguindo pela esquerda.
riu sozinho enquanto o garoto corria pelas escadas com o presente embaixo dos braços. Sentia sua ansiedade aumentando a cada passo que dava em direção a ela .
— O cheiro está ótimo - ele disse, chamando a atenção da mulher. — Eu já sabia que você cozinhava bem, mas isso parece muito melhor do que simplesmente bom.
riu, meneando a cabeça em descrença. Ainda não tinha se acostumado com o jeito que ele tinha para ser tão agradável com todos em todas as situações.
— Espero que esteja com fome - ela comentou. — Ou vai levar uma vasilha cheia de massa para casa.
— Não que eu vá reclamar - respondeu, rindo enquanto balançava os ombros. — Você quer ajuda com alguma coisa?
— Já está tudo pronto. Mas eu agradeceria se você levasse os pratos para a mesa.
Os dois arrumaram a mesa da sala de jantar rapidamente. A lasanha estava vistosa e apetitosa como de costume, com um cheiro de dar água na boca de qualquer um.
, e comeram enquanto conversavam. O mais velho questionou o pequeno sobre a escola e suas atividades favoritas para o tempo livre.
— Passo boa parte do tempo no colégio fazendo extracurriculares por lá mesmo - começou. — Participo do time de tênis de mesa e dos estudos históricos orientais.
— Queria que tivessem coisas legais assim na minha época - admitiu.
— Assim ele não precisaria passar vergonha no time de futebol - murmurou entre risos, recebendo um olhar de reprovação dele e fazendo com que o irmão tentasse esconder uma risada.
— Não precisa me envergonhar assim na frente do seu irmão. Talvez ele pudesse me achar maneiro.
— Você não faz o tipo maneiro, . Apenas aceite - ela disse, pegando na mão que ele repousava sobre a mesa.
Ele sorriu, sentindo uma sensação estranha percorrer o seu corpo. só se deu conta do próprio movimento instantes depois, puxando a sua mão de volta para si em um movimento um tanto brusco. Suas bochechas ardiam como se ela tivesse acabado de vivenciar uma febre inexplicavelmente alta. Talvez sua temperatura estivesse mesmo demasiadamente alta. Só um delírio poderia tê-la levado a agir daquela forma.
analisava os dois que dividiam a mesa do jantar com ele. estava sempre lançando olhares furtivos em admiração à mulher. tinha a bochecha mais vermelha a cada segundo, mesmo que estivesse tentando dar continuidade à conversa como se nada de diferente estivesse acontecendo ali. O garoto riu baixinho ao perceber que ambos se julgavam discretos demais, mas estavam longe de o ser. Como os adultos podiam ser tão ridículos com os próprios sentimentos? Precisava fazer alguma coisa para que aquele gelo cortante fosse minimamente menos esquisito e desconfortável
— Vou pegar o Banco Imobiliário para jogarmos - ele anunciou, levantando-se.
— Você nem sabe se o precisa ir embora ou se quer jogar - advertiu. — Não foi essa a educação que você recebeu.
— Na verdade, eu adoraria jogar - o homem admitiu. — Deve fazer pelo menos uma década que eu não jogo.
lançou um olhar para a irmã como se quisesse esfregar na cara dela o quão incrível ele era e como as suas ideias geniais estavam sempre precisamente certas.
Arrumaram o tabuleiro e distribuíram as cédulas iniciais. Em poucos minutos, a brincadeira começou a render boas risadas. já estava prestes a declarar falência por tirar sempre os mesmos números no dado e ser obrigada a pagar aluguéis sem fim aos locais comprados por . estava roubando descaradamente. Ao assumir o cargo de cuidar do banco, o garoto decidira puxar algumas notas extras a cada duas rodadas.
A cada rodada em que perdia mais dinheiro e os rapazes ganhavam, eles cantavam o refrão de Billionaire . O pequeno fez uma dancinha esquisita e desconexa quando ganhou o jogo, arrancando risadas de que acompanhou os movimentos ainda sentado no tapete felpudo da sala. jogou as peças nos dois tontos, revirando os olhos para aquela brincadeira - na qual ela via muita graça, mas não admitiria para eles e nem para si mesma.
— Depois dessa vitória massacrante e vergonhosa, vou para o meu quarto para dormir - anunciou, já se dirigindo para as escadas. — Estou cansado de ser tão bom contra jogadores tão ruins.
concordou, mas manteve as sobrancelhas franzidas. Estava cedo demais para um pré-adolescente enérgico realmente estar cansado. Não era como se Banco Imobiliário fosse uma atividade de grandes gastos calóricos afinal. A piscadinha que o irmão dirigiu a ela, no entanto, esclarecia absolutamente tudo. Aquela era a desculpa dele para deixar os outros dois a sós. Estranho ou não, já era noite. Quem reclamaria acerca do sono de alguém a uma hora daquelas?
— Ele é um bom garoto - comentou assim que ouviu o barulho da porta do quarto se fechando.
— Ele é mesmo - concordou. — É um bobo muitas vezes, mas é muito mais sensato que muitos adultos que eu conheço. Na verdade, isso até que me inclui vez ou outra.
— Queria ter um irmão que nem ele. A relação de vocês é muito bonita de se ver.
sorriu para si mesma, pensando em como amava aquele pequeno tonto que já era quase mais alto que ela.
— Nós temos nossos momentos.
— Tipo o momento em que ele roubou o seu celular e me convidou para um jantar mesmo depois de você claramente estar me evitando a todo custo? - sentiu a garota estremecer ao seu lado. — Relaxa. Não é como se eu estivesse me sentindo insultado nem nada do gênero. Não sou esse tipo de cara que acha que uma mulher lhe deve algum tipo de satisfação. Inclusive, se você quiser, eu posso ir embora.
— Não precisa. - As palavras saíram rápido demais pela boca dela, soando quase desesperadas. — Eu sinto muito por ter te ignorado.
— Não tem problema. - Ele sorriu daquela forma doce com a qual ela já estava quase se acostumando. — É só que a conversa fluiu tão bem naquele dia que eu pensei que as coisas fossem tomar um rumo diferente.
se levantou rapidamente, indo em direção à lareira e jogando alguns pedaços de lenha. O frio estava começando a lhe incomodar e, ao menos, a ação a manteria ocupada por alguns rápidos minutos.
— Esse é aquele momento em que nos sentamos em volta do fogo e vemos algum álbum de fotos incrivelmente vergonhoso da sua infância?
A mulher não conseguiu segurar a risada. Como era possível que alguém pudesse quebrar o gelo com tanta facilidade?
— Não. Eu jamais mostraria as minhas fotos quando bebê para você. A maioria delas consiste em um nu artístico cheio de dobras de gordura. Acho que seria um pouco precipitado da minha parte deixar você me ver tão exposta assim.
teve que rir também pela forma como ela falava. E ria porque gostava de estar com ela e nem ligava para os avisos estúpidos de . Era só uma pessoa, não um monstro prestes a arrancar o seu coração. Apesar de ele ter plena noção de que ela já o tinha alternando sístoles e diástoles em suas pequenas mãos.
— Na verdade, eu só queria te explicar minimamente o porquê de eu estar sendo uma pessoa tão distante. Não só com você.
— Como eu disse, você não me deve satisfação alguma. Mas, se é algo que você quer fazer por livre e espontânea vontade, sou todo ouvidos.
respirou fundo, sabendo que falar sobre a mãe ainda era delicado demais para ela. O sorriso encorajador de , no entanto, dava a ela as forças para encarar aquela pontada incômoda que sentia no coração e no estômago.
— Você conhece a minha mãe - ela começou. — Ela é a pessoa mais iluminada que eu já vi em toda a minha vida. Mesmo com todas as dificuldades e todos os obstáculos que a vida lançava, dona sempre teve um sorriso enorme para oferecer a qualquer um que aparecesse. Para ela, nunca houve tempo ruim, sabe? Ela simplesmente oferecia uma xícara de chocolate quente ou um café bem forte e tudo ficava bem.
— Consigo visualizá-la perfeitamente - admitiu. — Mas continue.
exalou o ar pesadamente, sentindo algumas lágrimas brotarem em seus olhos como se ali tivessem acabado de germinar. Engoliu em seco, evitando o choro que tentava ser mais forte que ela.
— Eu assumi a cafeteria porque a minha mãe está hospitalizada - soltou quase em um único sopro. — Ela entrou em coma depois que um maluco bateu no carro dela no meio da noite. Foi na madrugada e o motorista do outro carro estava completamente embriagado.
— Por isso você disse que tinha parado de beber há pouco tempo - ele concluiu, sentindo o peso das próprias palavras.
— Nunca mais quero ver álcool na minha frente. - As lágrimas já rolavam livremente por sua face, superando todos os esforços que ela fazia para segurá-las. — Ela sempre foi a única que esteve ao nosso lado e, de repente, ela está presa em uma cama de hospital sem dar qualquer indício de decidir se vai ou fica. As coisas são insuportáveis sem ela.
Em um impulso, se aproximou e abraçou a mulher, permitindo que ela chorasse em seu ombro. Podia sentir a manga de sua camisa acumulando a água, mas não se importava. Daria tudo que estivesse ao seu alcance só para que ela pudesse minimizar ao menos um pouco de sua dor.
Passados alguns segundos relutando, ergueu os próprios braços e os apertou ao redor do rapaz enquanto permitia que os soluços entalados em sua garganta se libertassem.
— Eu sinto muito, muito mesmo. Só quero que você saiba que eu estou aqui para qualquer coisa que você precisar, mesmo que seja só um ombro amigo ou ouvidos para te escutar.
se afastou, enquanto fungava e esfregava as mãos no próprio rosto. Correu os dedos pelas próprias calças, como se estivesse as limpando. Tudo o que queria era se manter ocupada. percebeu a atitude como um sinal de que era hora de ir embora. Antes de abandonar a casa, com um sorriso compreensivo, pediu que ela se cuidasse.
*****
Os bancos de pedra clara estavam mais gelados do que eles se lembravam. Na verdade, não fazia ideia de quando tinha sido a última vez que seu corpo realmente repousara nos assentos daquela praça florida. Recordava-se, sim, de brincar lá quando criança, mas a última vez havia se perdido no meio do longo e tempestuoso caminho de suas memórias.
Hwan havia cedido uma hora de intervalo para a moça a pedido de , bem como duas xícaras médias de cappuccino com chocolate extra. Ver finalmente seguindo a sua vida com alguma alegria era motivo suficiente para o patrão dispensar o tempo que fosse em prol da manutenção daquela novidade. A amizade de Hwan e remontava tempos distantes, fazendo com que ele se sentisse ainda mais responsável pela felicidade da filha da amiga na sua ausência. Tinha visto a menina crescer e amadurecer quase como se fosse a própria filha que ele não teve a chance de ter.
— Duvido que a minha mãe pegaria folga no meio do turno assim. Eu tenho certeza de que sou a vergonha da família.
riu alto, enquanto sacudia sua bebida para misturá-la - mais como uma mania do que como verdadeira necessidade.
— Sua mãe faria o que fosse necessário para ver você feliz. Um intervalo não faz mal a ninguém e nem arranca pedaços. Tenho certeza de que ela estaria orgulhosa de ver que você está tentando viver com um pouco mais de leveza.
o encarou com uma feição de ofendida, desferindo uma cotovelada de leve nas costelas do rapaz pelo comentário.
— Mais respeito comigo, senhor. Só porque eu resolvi ser sua amiga, não significa que eu tenha te dado liberdade para caçoar da minha paranoia.
riu alto, pensando em como era engraçado terem chegado àquele ponto. Realmente, estavam conversando quase sempre quando ele decidia passar pela cafeteria e trocavam mensagens com mais frequência. Estava feliz de poder ouvir a palavra “amiga”, sabendo que gigantesco passo aquele era.
Estavam tendo uma discussão incrivelmente séria acerca das flores da praça, quando acabou se engasgando com o café em meio à própria risada. teve que controlar a própria gargalhada enquanto tentava ajudá-la a reencontrar o fôlego para respirar normalmente.
— Droga, eu pareço uma criança tonta - ela reclamou, tentando arrumar o próprio cabelo.
— Parece mesmo. Até porque tem um pouco de creme respingado na sua bochecha.
o encarou com os olhos semicerrados em completa desconfiança.
— Não, não tem.
— Não mesmo. - deu de ombros. — Pelo menos eu tentei.
Continuaram jogando conversa fora como velhos amigos, até que o papo decidiu acabar e dar lugar àquele silêncio embaraçoso. Por alguns instantes, quase se perdeu nos olhos brilhantes de . Como tinha levado tanto tempo para perceber como aquele olhar a fitava tão intensamente?
Foi trazida de volta à realidade pela rápida percepção de que o rosto dele estava mais próximo em relação a alguns segundos antes. Seu coração disparou como se tivesse acabado de tomar um grande susto. Era como se ela tivesse perdido todo o controle sobre o seu próprio corpo. Por que parecia uma idiota? Sentiu a própria cabeça pender levemente pela frente, diminuindo aquele espaço entre eles. Ela queria aquilo, Deus, como queria! E , como se ouvisse seus pensamentos, fez questão de transpor aquela mínima distância.
Os lábios se tocaram com uma delicadeza quase inimaginável, como a do bater de asas de uma pequena borboleta. Tanta leveza parecia quase paradoxal considerando o turbilhão de coisas que os dois sentiam por aquele contato. Era como choques. Como explosões. Como se sentir em casa e em uma exploração ao desconhecido. Como um pico de adrenalina seguido pela mais plena calmaria que o universo pudesse presenciar. Como um grande perigo que era apenas um enorme acerto. Como tudo o que eles quiseram por tanto tempo. E, assim como as melhores e mais desejadas coisas na vida, acabou rápido demais.
se afastou tão brutalmente que quase sentiu o impacto da ausência de apoio do próprio corpo. Sem uma palavra sequer, ela saiu correndo, largando o rapaz sozinho com a maior interrogação do mundo na cabeça.
— O que aconteceu? Onde está o ? - Hwan perguntou ao ver a moça entrando tão bruscamente na cozinha.
— Onde está o meu avental?
— , olha pra mim. Você não vai trabalhar alterada desse jeito. Sente-se um pouco. Respire. Não precisa me contar o que houve se não quiser, mas saiba que eu estou aqui.
Quando o homem abandonou o local, permitindo que ela absorvesse o peso da companhia dos próprios pensamentos, as lágrimas começaram a rolar rapidamente. Ela não podia ter feito aquilo. Como podia ser tão fraca? Depois de tudo o que vivera, ainda tinha a ousadia de entregar o seu coração com tanta facilidade.
Sentir o celular vibrando no bolso da calça só a irritou mais. Estava prestes a atender e gritar um palavrão horroroso quando foi impedida pelo nome do irmão no visor.
— , o que aconteceu? - Ela ainda fungava.
— Desculpa, eu não queria atrapalhar a sua folga. O Hwan me mandou uma mensagem avisando que você estava em um intervalo com o .
— O intervalo acabou - respondeu secamente. — O que houve?
— Será que você pode passar aqui em casa para me buscar? Precisamos ir para o hospital.
Ao digerir a palavra “hospital”, o coração de se desfez instantaneamente. Um novo soluço ficou preso em sua garganta.
— O que aconteceu com a mamãe?
Ela não queria realmente ouvir a resposta. Não estava pronta.
— A médica disse que ela está acordando. Eles ainda não sabem se ela tem alguma sequela. Disseram que podemos ir vê-la. Vamos?
A mais velha deixou que o próprio peso cedesse naquela cadeira. Não acreditava que, finalmente, estava ouvindo as palavras que aguardara dia e noite por tanto tempo. Já havia perdido as esperanças inúmeras vezes só para recuperá-las uma vez mais. Era como um ciclo interminável no qual alguém encontrara o caminho de saída. E como era bom respirar do lado de fora.
Tinha certeza de que poderia ter tomado ao menos uma dúzia de multas por excesso de velocidade entre o caminho da cafeteria até a casa e, depois, da casa ao hospital. Decidiu deixar para de preocupar com os gastos depois. Se, na próxima vez que entrasse naquele carro, fosse após a confirmação de que estava bem, pagaria o que fosse de bom grado. Não sabia nem como expressar a alegria e ansiedade de ter a mãe “acordada”.
entrou primeiro, deixando atordoada enquanto andava em círculos na recepção, tentando amassar sua expectativa em uma bolinha que pudesse ficar esmagada dentro de seu coração.
O irmão voltou com os lábios curvados em um sorriso de uma ponta à outra. Os olhos ainda estavam lacrimejando de alegria. Deu um abraço forte na irmã antes de ela poder entrar para compartilhar de algum tempo do lado da mãe que começava a responder aos poucos aos estímulos externos.
sabia que a irmã ia levar um bom tempo até que seus olhos acreditassem no que de fato viam. Por isso, decidiu abrir um joguinho qualquer em seu celular enquanto batia os pés um no outro. Só retirou os olhos da tela do aparelho quando percebeu uma movimentação estranha logo ao seu lado.
— O que você está fazendo aqui? - perguntou, apertando o botão que bloqueava a tela.
— Sua irmã saiu correndo - disse, tentando recuperar o fôlego.
— Pelo jeito, não foi só ela que andou correndo. Senta aí. E se for para ter um piripaque, aproveite que estamos no hospital.
praticamente jogou o próprio corpo na cadeira.
— Desabafe, pequeno gafanhoto - o garotinho pediu, arrancando uma risada do mais velho.
— Eu fui atrás da na cafeteria e Hwan me disse que ela tinha vindo ao hospital. Só fiquei preocupado.
— Minha mãe saiu do coma. - mal sabia se estava contando isso ou apenas falando em voz alta na tentativa de fazer com que a ficha caísse. Ainda parecia bom demais para ser verdade.
— Caramba! - O rapaz estava verdadeiramente feliz e entusiasmado. — Isso é incrível!
— Eu sei. - Ele ainda sorria. — Minha irmã está lá dentro com ela. Eu liguei para ela, pedindo que viesse. Ela estava com voz de choro. O que aconteceu?
respirou fundo, pensando em como escolher as palavras. Continuava se sentindo em um campo minado no qual um mísero passo em falso poderia simplesmente arremessar tudo pelos ares.
— Eu e a sua irmã saímos juntos para conversar.
— Dessa parte eu já sei - avisou. — Pule para os fatos importantes. Por que ela foi embora.
— Esse é o problema. - bufava, frustrado. — Eu não faço ideia do que aconteceu. Estava tudo bem. Estávamos conversando e aconteceu de nos beijarmos. Mutuamente, sabe?
— Eu sei o que é um beijo, ! Não tenho dois anos! Droga… Ela fugiu, não foi?
simplesmente assentiu pesarosamente. Tudo o que ele mais queria era alguém que tirasse aquela venda dos seus olhos e lhe esclarecesse o que ele estava fazendo de errado.
— Acho que eu preciso te contar uma história - confessou. — O nosso pai foi embora logo depois de eu nascer. Eu não o conheci e sequer lembro como ele se parecia. Agradeço de verdade por não lembrar. Tudo o que eu menos quero é alguma relação com esse homem.
Ele respirou fundo antes de continuar.
— Só que ele passou anos com a e ter um pai sumindo sem qualquer justificativa foi demais para ela. Desde que eu a conheço, ela sempre foi assim, sabe? Sempre afastou todo mundo quando percebia a aproximação. Ela não é uma pessoa ruim, não mesmo. Ela é incrível, na verdade. O problema é que ela se decepcionou tanto que simplesmente se fechou. Ela tem medo de amar tanto alguém e ver essa pessoa indo embora. Ela tem medo de confiar e se machucar de novo.
apenas ficou parado, tentando encontrar forças para continuar respirando. Todo aquele tempo pensando que ele tinha feito algo errado e a culpa em momento algum tinha sido dele.
— Eu nunca quis machucá-la - ele murmurou, sem ter a certeza de que tinha realmente lhe escutado.
— Eu sei - o pequeno respondeu. — E ela gosta de você também. Gosta muito.
Os passos sobre o chão da silenciosa recepção fizeram com que os dois levantassem o olhar apenas para encontrar o assunto da conversa andando até eles quase como se decidisse se deveria se aproximar ou sair correndo.
— Querem saber? - se levantou. — Eu vou comprar um doce ali no refeitório.
— Com que dinheiro? - perguntou, recebendo apenas um movimento de ombros do garoto que já sumia ao longe.
O silêncio se instaurou novamente entre eles. Se aquele momento se tornasse totalmente estático por um segundo, seria possível ouvir o mais simples caminhar de um inseto.
— Como ela está? - perguntou.
— Aparentemente bem. Os médicos ainda preferem mantê-la aqui em observação, mas estão esperançosos de que em breve ela poderá ir para casa.
— Fico feliz, de verdade.
— te contou tudo, não contou? - foi curta e grossa, atingindo diretamente o ponto que queria. Talvez nunca tivesse sido tão objetiva assim em toda a sua vida.
— Contou. E eu só quero que você saiba que eu não sou ele. Eu me importo contigo e quero, acima de tudo, o seu bem. Eu estou tentando me manter por perto, não fugir. Mas entendo que traumas são complicados de se lidar então vou forçar nada. Não vou te procurar mais. Leve o tempo que precisar para pensar, decidir ou sei lá. Se escolher que realmente me quer longe, eu vou entender. Só… Pense nisso, ok?
sorriu para ela antes de dar as costas para sair daquele hospital. De repente, todas aquelas luzes da sala de espera pareciam ainda mais incômodas e sufocantes.
sentiu uma mão sendo entrelaçada à sua. repousou a cabeça lateralmente sobre o braço da irmã, na intenção de lembrá-la de que, independentemente do que acontecesse nesse mundo doido, ele ainda estava ali do lado dela.
— Cadê o seu doce?
— Eu não tinha dinheiro - ele admitiu.
— Imaginei.
*****
estava respondendo bem aos tratamentos, tanto com medicamentos quanto com a fisioterapia. Ainda estava muito debilitada, mas, aos poucos, estava se recuperando. Os quadros apresentavam ótimas perspectivas.
Hwan vinha sendo incrivelmente compreensivo com a flexibilização dos horários de trabalho de , tendo consciência de que ela tinha o irmão e a mãe para cuidar. A amizade de anos era tanta que ele mesmo teria cuidado de caso não soubesse que tudo que os garotos precisavam era de um tempo para assumir a responsabilidade pela mãe. Após o acidente, eles tinham a necessidade quase inconsciente de ter tudo ali ao alcance das mãos; tudo sob controle. A progenitora quase achava graça em todos aqueles cuidados tão meticulosos.
se aproximou do quarto da mãe praticamente nas pontas dos pés. Esticou a cabeça para olhar para dentro, dando de cara com a encarando e achando graça naquilo tudo.
— Eu fiquei com medo de que você pudesse estar dormindo - a mais nova explicou. — Só queria tirar o lixo do banheiro.
— Filha, sente-se aqui ao meu lado um pouquinho. Precisamos conversar.
arregalou os olhos, lembrando-se de todo o pavor e a tremedeira que acompanharam essa frase por toda a sua infância e adolescência. Como era possível que ela crescesse e continuasse se sentindo tão aterrorizada pela união das palavras “precisamos” e “conversar”.
— Está tudo bem? Você precisa de alguma coisa, mãe? Mais travesseiros? Mais água? Quer um lanche? Talvez um cobertor?
— Eu só quero conversar. - A mãe riu. — Estou ótima, mas como você está?
arqueou as sobrancelhas, sem compreender exatamente de onde aquilo tinha acabado de vir.
— Estou bem. Por quê?
— Porque o seu irmão me contou que você conheceu um rapaz muito legal enquanto eu estive no hospital. E você sabe que o tem um ótimo sentido para identificar pessoas boas.
— Por que você criou um filho tão fofoqueiro, hein? Acho que a frase que mais me atormentou nos últimos dias foi essa: “Seu irmão me contou.”.
— Ele só faz isso porque ama você e se preocupa. É o jeito dele de se sentir tão responsável por nós quanto somos por ele. Ele também me disse que pode ou não ter ficado espiando a conversa de vocês dois na sala de espera do hospital e pode ou não ter ouvido o tal dizer que esperaria o seu próprio tempo.
— Ótimo! Além de tudo, ele escuta as conversas dos outros agora!
riu, passando vagarosamente o braço ao redor da filha.
— Seu irmão não é o foco agora. Acho que todos nesta casa sabem bem o que aconteceu e o quão difícil foi para você, mas você não pode se anular para o mundo, filha. Você não pode se fechar para impedir que alguém te magoe. Você é apenas um ser humano que ama, que chora, que sorri e que sofre. Nem todos são como o seu pai. Você não pode viver com medo. Se você gosta mesmo desse rapaz, precisa ir atrás dele e dar uma resposta. Mesmo que seja a passinhos de tartaruga, mostre que você está se abrindo aos pouquinhos. Dê uma chance à possibilidade de amar e ser amada.
— E se ele me machucar?
— Todos nós erramos e machucamos uns aos outros. Mas, se for para valer, eu e o estaremos aqui para catar todos os pedacinhos e colar com super bonder. E, então, você vai lá fora de novo e vai amar de novo, porque é o amor que move a humanidade, seja ele por quem ou pelo que for.
apenas ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo tudo que ela já sabia, mas precisava ouvir da pessoa que esteve com ela a todo segundo e a conhecia melhor do que a palma da própria mão. Independentemente do que acontecesse, ela sempre voltaria para casa e encontraria aqueles dois que a amavam incondicionalmente e a apoiariam até o fim de seus dias.
De repente, a jovem puxou o celular do bolso, verificando se ainda tinha salvo um antigo contato.
— Está ligando para ele? - perguntou.
— Não - ela admitiu. — Eu só espero que o não me ignore.
*****
anunciou na portaria do prédio para onde ia, recebendo do porteiro a resposta de que ela já tinha sido autorizada a subir pelo “senhor ”. A subida de um elevador nunca lhe parecera tão dolorosamente lenta como naquele momento.
Precisou inspirar e expirar ao menos umas vinte vezes ao encarar a porta com o número que lhe havia sido passado. Pensou em dar meia volta e fingir que nada tinha acontecido. Pensou em sumir no mundo e nunca mais dar notícias. Mas o fato era que ela já estava cansada de se esconder. Estava cansada de dar dois passos assustados para trás sempre que alguém dava um em sua direção.
Em um ímpeto de coragem, ela levantou a mão para tocar a campainha.
— Eu definitivamente não esperava você por aqui - admitiu, dando o sorriso mais largo que ela já tinha visto. Droga, como adorava aquele sorriso.
— Eu cansei de me esconder do mundo. Se você quiser tentar ver aonde isso vai dar, eu também quero.
O rapaz quase sentiu como se seu peito fosse explodir de felicidade.
— O que você trouxe aí? - perguntou, reparando que ela carregava uma grande vasilha.
— Fiz duas receitas de brownies. Pensei que talvez pudéssemos conversar e comer.
Ele respirou fundo, suspirando em deleite.
— Conversar e comer é o meu tipo de programa preferido. Entre.
pisou no apartamento com um sorriso ainda meio incerto, mas um peso a menos sobre os ombros e sobre o coração.
— Aliás, quando eu vou ver o seu álbum de bebê posando para um nu artístico?
A mulher riu alto com a brincadeira. Aquele era o tonto por quem ela tinha decidido permitir que seu coração palpitasse mais rápido.
— Nunca, .
O rapaz fechou a porta atrás deles.
Ainda residia em um apartamento vago que seus tios gentilmente lhe emprestaram enquanto não organizasse sua vida e seu próprio dinheiro. Se dependesse de seus pais, jamais teria conseguido sair de casa antes de uma grande poupança. Por isso, era extremamente grato ao empréstimo dos tios e sempre seria.
— Um café expresso duplo, por favor - pediu ao se sentar em um dos bancos altos do balcão. — Ah! E um pedaço dessa torta também, que está com uma cara ótima.
apoiou o queixo sobre a mão fechada, sentindo os olhos pesando e ardendo. A cafeína e o açúcar definitivamente eram as suas últimas esperanças.
Uma mulher incrivelmente bela se aproximou, colocando a xícara de café e o prato com o doce logo em frente ao rapaz. Seus cabelos estavam presos em um coque alto - provavelmente por higiene, já que ela estava manuseando algo que as outras pessoas comeriam - e o avental que cobria apenas a sua cintura parecia estar frouxo demais em seu corpo. estava impressionado por sua beleza e, talvez, mais impressionado ainda por encontrar alguém que parecia tão cansada quanto ele.
— Perdoe a minha indiscrição - ele começou, chamando a atenção da moça cansada. — Mas é que eu sempre venho aqui e nunca te vi.
— E eu preferiria que assim continuasse - ela respondeu simplesmente e deu as costas para ele, indo em direção à cozinha da cafeteria.
piscou algumas vezes, como se tivesse acabado de tomar um soco inesperado no rosto. Será que havia sido invasivo demais?
Em questão de instantes, Hwan, dono da cafeteria apareceu. Parecia perturbado e ainda secava as mãos em um pano de prato branco. Suas rugas quase pareciam mais fundas pelo estresse que aparentava sentir.
— Escute, rapaz - ele chamou. — Sei que você vem aqui sempre e já é cliente da casa, então espero que possa aceitar meu pedido de desculpas. Sinto muito pelo tratamento que a te ofereceu, de verdade. Ela está passando por tempos incrivelmente difíceis e acaba descontando nos outros. Óbvio que isso não é desculpa pela atitude dela, mas espero que possa nos desculpar pelo acontecimento. Aceita mais um pedaço de torta por conta da casa? - Hwan perguntou abrindo um sorriso enorme. Aquilo lembrou exatamente o porquê de ter escolhido aquela cafeteria: a hospitalidade. A sensação de que, de alguma forma, estava em casa.
— Não se preocupe, Hwan. - O rapaz retribuiu o sorriso. — Todos nós temos dias ruins, certo? Eu entendo. Espero que ela fique bem, independentemente do que estiver acontecendo.
Com um sorriso agradecido, o dono do estabelecimento retornou para a sua cozinha. degustou calmamente a sua torta que, como esperava, estava maravilhosa.
Ele estava terminando o café quando reapareceu para retirar o seu prato vazio. Ela estava ruborizada e o cabelo parecia estar mais bagunçado.
— Posso retirar? - Ela perguntou.
empurrou as porcelanas um pouco para a frente, oferecendo um sorriso simpático de compaixão e compreensão. respirou fundo com a ação, sentindo-se quase obrigada a fazer aquilo.
— Eu queria pedir desculpas pela minha atitude. Hwan já deve ter dito que eu não estou bem e tudo o mais. Perdão por ter sido grossa e estúpida. Não é certo descontar nos clientes, muito menos nos que não agem como babacas. Droga, eu não deveria chamar os clientes de babacas. - riu de forma nervosa. — Você sabe o que eu quero dizer.
sorriu abertamente para ela.
— Sei sim. Está tudo bem. Não é como se eu fosse desistir dessa torta incrível por conta de uma cara feia. Espero que seu dia melhore, . De verdade.
O rapaz entregou o dinheiro a ela, garantindo que havia uma gorjeta extra. Com um sorriso e um aceno, deixou o lugar.
Fez o percurso até a sua casa o mais rápido possível, tentando fugir do vento gelado que decidira soprar de repente. Ao abrir a porta do apartamento, deu de cara com deitado em seu sofá, comendo alguns salgadinhos enquanto assistia a qualquer coisa na televisão.
ficou parado na porta, observando o amigo que sequer piscava. Pegou a mochila que estava na entrada e arremessou com força em .
— Mas que merda é essa? - gritou e jogou a mochila no chão, completamente revoltado.
— Eu é que te pergunto - gritou de volta. — Eu nem sei como você está aqui.
— Você me deu uma cópia da chave.
— Não, eu não dei.
se sentou rapidamente, pegando a chave no bolso de trás de sua calça. Abriu um sorriso amarelo ao se lembrar da versão real da história.
— Ok, talvez eu tenha levado a sua chave. E talvez eu tenha feito uma cópia dela enquanto você estava no trabalho. Mas somos melhores amigos, não? É quase como se isso fosse uma obrigação.
— Você é ridículo - o rapaz colocou as suas coisas sobre a mesa e arrancou os sapatos de qualquer jeito no meio da sala antes de se arremessar no sofá ao lado do amigo.
pegou o controle e mudou o canal, recebendo protestos do amigo. Tomou os salgadinhos e começou a comê-los por mais que seu estômago já estivesse satisfeito com a torta.
— Você está com uma cara esquisita - chamou a sua atenção. — O que houve?
— Eu conheci uma garota - o outro começou, mas logo foi interrompido.
— E por que não disse isso assim que entrou? Isso parece um milagre divino depois de seu último rompimento. Será que o próximo dilúvio vem?
deu um empurrão no amigo, fazendo com que ele caísse do sofá.
— Não desse jeito, seu idiota. Tinha uma garota nova servindo na cafeteria. Ela foi bem grossa comigo, mas depois veio se desculpar. Hwan disse que ela está passando por uns tempos difíceis. Isso ficou martelando na minha cabeça, sabe?
— A cafeteria do Hwan? Merda. Acho que conheço a sua garota.
— Ela não é a minha garota e o nome dela é .
jogou a cabeça para trás, esfregando os próprios olhos. Respirou fundo, antes de começar a reclamar de uma forma quase exausta.
— Por que você só mete em roubada? Você não consegue encontrar uma garota fofa e bonita que simplesmente te faz um carinho e age como uma pessoa normal?
— Do que você está falando? De onde você a conhece?
— é a melhor amiga da minha ex. A mãe dela é sócia do Hwan na cafeteria.
— Espere aí. é filha de ? Como eu não sabia disso?
riu, repousando a sua mão no ombro do amigo.
— Porque você nunca sabe de nada, . Mas eu sei. Fique longe dela.
— Por quê? Qual é o problema com ela?
— Ela só é esquisita. Ninguém sabe o motivo. Ela não se abre, não dialoga, não permite que ninguém ajude ou sequer se aproxime. E você é daqueles que se importa demais. Não vai dar certo e você vai fazer papel de bobo como sempre. Só esquece isso, ok?
meneou a cabeça, concordando a contragosto. O problema era que aquela história só tinha aguçado ainda mais a sua curiosidade e a sua vontade inexplicável de se aproximar. tinha razão sobre isso, afinal. Ele realmente se importava demais. E, droga, já tinha começado a se importar.
estava terminando de mexer os ovos na panela, tomando o devido cuidado para que eles não grudassem e queimassem nas bordas da panela. Tinha que terminar o café da manhã logo, antes que o atraso para o colégio já fosse inevitável.
— ! - gritou na ponta da escada. — O café vai esfriar e você vai se atrasar. Não quero ficar assinando advertência depois e você já sabe das consequências.
Passos pesados foram ouvidos da cozinha, assinalando que o pequeno estava descendo correndo.
— O que a eu e a mamãe já dissemos sobre correr na escada? - perguntou, demonstrando todo o cansaço que estava estampado em sua face e marcado embaixo dos seus olhos em uma paleta quase artística de tons escuros.
— Bom dia para você também - respondeu, antes de enfiar uma garfada cheia em sua boca. — Hoje é o dia da minha apresentação de guitarra na escola. Você vai me ver? Quer dizer, não precisa ir, mas… Sei lá. Acho que seria legal.
— Já conversei com o Hwan e sairei da cafeteria mais cedo para ver a sua apresentação. Você pensou mesmo que eu fosse perder um momento desses? Que tipo de irmã mais velha você pensa que eu sou?
se sentou na cadeira ao lado do pequeno, bagunçando os seus cabelos o máximo que pôde enquanto ele tentava, em vão, desviar de seus ataques. Os dois riam como crianças pequenas. Eram momentos como aquele que faziam comentar que a vida deveria carregar uma câmera para eternizar os momentos, no caso de eles fugirem de nossa memória. Algumas coisas valiam a pena serem guardadas, independentemente do esforço que isso demandava.
— Quanto tempo você vai ficar na cafeteria? E o seu trabalho de verdade?
inspirou fundo, sentindo o desespero do irmão em suas palavras. Todos queriam ter uma data marcada para o fim daquele caos e, Deus, ela bem queria possuí-la também. Seria incrivelmente mais fácil levar os dias se pudesse rabiscá-los em um calendário na parede até que a contagem regressiva se esgotasse no término daquilo tudo.
— Vou ficar por lá enquanto a mamãe estiver no hospital. Eu larguei o serviço no restaurante para ajudar com as coisas.
— Mas você estava adorando o seu emprego - protestou. — Disse que estava aprendendo muito.
— Eu estava, mas nós temos prioridades na família. Posso arranjar outro emprego depois que a mamãe estiver bem. Não se preocupe comigo, ok? Agora, ande. Vai se atrasar.
O irmão deu um beijo na bochecha dela e saiu correndo pela porta, carregando aquela mochila pesada. expirou fundo, decidindo aproveitar aqueles poucos minutos de alívio antes de tomar o próximo passo.
Ela pegou a sua bolsa em cima do sofá e pediu um táxi até o hospital. O caminho, de repente, parecia incrivelmente mais longo do que deveria ser. A atmosfera aparentava ter ganhado uma pressão extra nos últimos minutos por uma jogada odiosa do universo. Às vezes, tinha certeza de que o universo tomava a decisão diária de conspirar contra ela.
Depois de anunciar que pretendia visitar no quarto em que estava, a mulher subiu rapidamente pelo elevador e foi acompanhada por uma enfermeira responsável pelo corredor até a porta do cômodo em que encontraria sua mãe. A mais velha estava lá, dormindo pacificamente contra a própria vontade.
— Oi, mãe - cumprimentou, já sentindo os olhos acumulando algumas lágrimas indesejadas.
— Vou deixar vocês a sós - a enfermeira anunciou, antes de se retirar com um sorriso de compaixão.
Assim que ouviu o som da porta se fechando em definitivo, se sentou na poltrona ao lado da cama e tomou a mão fria da mãe entre as suas. Levou os próprios lábios aos dedos da progenitora, beijando-os carinhosamente.
— Você faz tanta falta. - Ela soluçava entre as próprias palavras. — Estou cuidando do e me virando como posso na cafeteria, mas é difícil demais sem você, mãe. Vou conseguir segurar a barra, sei que vou. Leve seu tempo para se recuperar, mas, por favor, volte para nós.
acariciou o rosto da mãe, colocando alguns fios do cabelo dela atrás da orelha. As cicatrizes na bochecha e no pescoço já estavam mais finas, enquanto o maior corte do braço parecia estar dando o seu melhor para fechar logo. As cirurgias haviam corrido bem, mas o coma ainda era uma incógnita para todos. O acidente tinha sido tão grave que os médicos já consideravam um milagre que tivesse sobrevivido. As esperanças deles permaneciam, justificando que uma mulher tão forte como ela deveria sair daquele estado mais cedo ou mais tarde.
se despediu da mãe quando o horário aberto às visitas terminou. Passou ainda alguns minutos trancada em uma das cabines do banheiro do hospital, esperando que suas bochechas estivessem menos vermelhas e os olhos menos inchados. Tinha que voltar ao trabalho e a última coisa que precisava era da atenção e do estranhamento dos clientes àquela pessoa que parecia ter virado a noite aos prantos. Não queria conversar sobre aquilo e a melhor maneira de cumprir suas intenções era não demonstrar.
Chegando à cafeteria, ela deixou a sua bolsa no armário de e foi às pressas vestir o seu avental na cozinha.
— Você foi vê-la? - Hwan perguntou enquanto passava mais café, recebendo a confirmação dela. — E como ela está?
— Do mesmo jeito - murmurou, dando de ombros para não transparecer sua dor. — Ela é forte. Logo estará de volta.
— Eu sei que sim - Hwan confirmou, oferecendo um sorriso a ela. — Pode fazer aqueles brownies de chocolate? Acho que pode ser uma boa pedida para esse frio que vem chegando.
confirmou com a cabeça e começou a separar os ingredientes daquela receita que ela já havia decorado até mesmo de trás para frente. Eram os doces preferidos de , o que só fazia com que ela cozinhasse aqueles brownies com mais carinho ainda pela boa lembrança.
Enquanto os brownies assavam, a mulher foi ajudar a atender os pedidos no balcão. Aproximou-se de um homem que estava de costas, torcendo para que ele não tivesse sido atendido e não se incomodasse com a invasão. Infelizmente, era uma reação relativamente comum. Algumas pessoas não tinham nascido com o dom da paciência. Ou dos bons modos.
— Bom dia, senhor - chamou educadamente. — Já foi servido? Posso oferecer algo?
Quando ele se virou no banco rotativo, quase prendeu a respiração. Como ela poderia ser tão azarada ao ponto de ter de dar de cara com ele de novo em tão pouco tempo?
— Hwan já foi buscar um café para mim - disse. — Mas esse cheiro de chocolate fez a minha barriga implorar de joelhos. O que é?
— Brownies de chocolate. É uma receita de família, na verdade. Estão terminando de assar.
soltou um longo suspiro, imaginando se o sabor do doce conseguia ser tão maravilhoso quanto aquele cheiro inebriante que quase fazia seu estômago dar cambalhotas dentro do próprio corpo.
— Eu quero um pedaço - ele avisou.
— Pode deixar - ela respondeu simplesmente, esboçando um sorriso antes de retornar à cozinha para retirar os doces do forno. O cheiro do chocolate realmente aqueceria facilmente qualquer coração.
serviu um pedaço generoso para o rapaz, torcendo para que o brownies servisse como uma bandeira branca, uma oferta de paz.
— Você bem disse que voltaria - ela comentou um tanto envergonhada. Ainda se perguntava por que tinha sido tão grossa com o rapaz. Aquela com certeza não era a educação que sua mãe havia lhe dado.
— Claro que sim. Acho que precisarei voltar mais vezes se esses brownies começarem a ser uma constante do estabelecimento. Você quem fez?
assentiu, recebendo um largo sorriso de . O rapaz tinha uma gotinha de chocolate sujando a sua bochecha, tornando aquela cena ainda mais fofa. A mulher balançou a própria cabeça entre um riso descrente. Aquilo não era nada justo. Golpe baixíssimo. As pessoas não poderiam simplesmente ser cordiais? Dizer um “muito obrigado”, virar as costas e sumir?
— Como estamos por aqui? - Hwan perguntou, na tentativa de checar os humores após os acontecimentos recentes.
— Muito bem - respondeu. — E muitos satisfeitos com um certo brownie de chocolate.
— E o atendimento? - Hwan perguntou para , recebendo um revirar de olhos dramático de .
— Eu sei tratar as pessoas - ela se manifestou. — Não preciso que você seja a minha babá.
riu alto, fazendo com que Hwan se desse por vencido e retornasse à sua panificação.
— Você não queria estar aqui, não é? - Ele perguntou, fazendo com que algo nela estremecesse.
— Acho que eu preciso voltar ao trabalho - tentou desviar, mas logo foi impedida pela risada do rapaz.
— Não tem ninguém para você atender agora. E todas as prateleiras já estão cheias, o que significa que há comida suficiente para o caso de um time de futebol faminto aparecer aqui de repente. Sem contar que eu tenho um longo dia de trabalho pela frente daqui a pouco e seria bem legal mesmo ter alguém para conversar antes. E eu ouvi dizer que o cliente tem sempre a razão.
— Não é assim que essa frase funciona e você sabe bem disso.
— Sei? - perguntou, fazendo uma careta desentendida. — Não faço ideia do que você está dizendo. Inclusive acho que eu te fiz uma pergunta e ainda não tive a minha resposta.
olhou ao seu redor, encontrando um banco baixinho que ficava encostado embaixo da pia do balcão. Puxou-o para trás e apoiou os joelhos no objeto, encostando os próprios cotovelos à pedra do balcão.
— Não, eu não queria estar aqui. Mas preciso estar, então a minha vontade não tem importância alguma.
— Mas deveria ter, sabe? Por que está aqui, afinal? É bem óbvio que não é o seu lugar.
Ela respirou fundo, pressionando as próprias pálpebras e bufando de leve.
— Eu estou fazendo isso pela minha mãe - respondeu simplesmente, desejando incondicionalmente que o assunto pudesse ser finalizado logo.
— Dona , não é? O meu amigo me disse.
sentiu um arrepio na espinha ao ouvir o nome da mãe ser pronunciado.
— Que amigo?
— . Ele disse que conhece você.
Ela repuxou os lábios em uma careta esquisita que não conseguiu decifrar. gostava de e sabia que a amiga tinha sido muito feliz ao lado dele. O fim daquele namoro era mais uma fatalidade do que um motivo para culpar alguém. O problema era o que ele pensava dela e de sua mania de guardar as coisas para si mesma.
Ainda se lembrava claramente do dia em que havia aparecido na porta dela, implorando para que ela conversasse com a amiga e dissesse o que estava acontecendo. Ela tinha explodido com ele por insistir tanto em oferecer ajuda quando ela só queria passar um tempo sozinha embaixo do seu cobertor estampado. Sabia bem que não podia contar com ninguém. Confiar nos outros sempre acabava dando errado. Depender de alguém, então…
— Ele deve ter me destruído para você - comentou, brincando com a pequena caixa metálica de saquinhos de adoçantes.
— Não destruiu. Você é uma boa pessoa, não devia ficar pensando essas coisas de si mesma.
— Você nem me conhece - se levantou bruscamente, recolocando a pequena caixa no seu devido lugar.
— É para isso que as pessoas conversam. O que é exatamente o que nós estamos fazendo.
— Eu preciso mesmo voltar ao trabalho - ela tentou desviar.
— Tudo bem - respondeu. — Já está dando a minha hora também.
O rapaz se levantou e estendeu o dinheiro para ela. Em um minuto de completa insanidade, surgiu com uma ideia maluca:
— O que você acha de sair comigo de noite? Só para continuarmos essa conversa, sabe? Sem segundas intenções, juro.
— Você é maluco.
— Não precisa mesmo aceitar se não quiser. Só… Sei lá. Acho que poderia ser legal.
parecia mesmo um cara legal e era incrivelmente educado. ouviu a voz de em sua mente, dizendo o quanto gostaria de ver a filha tentando se divertir às vezes.
— Certo - ela se deu por vencida. — Mas estarei de volta em casa antes das dez. Envie o endereço para o meu número.
puxou rapidamente um guardanapo é uma caneta, anotando os dígitos de seu celular com uma letra um tanto grosseira e apressada. recolheu aquilo com um sorriso e acenou antes de seguir o seu caminho.
Com uma pesada expiração, ela retornou à cozinha, pronta para começar a organizar as coisas para o horário do almoço.
se olhava no espelho, mal acreditando que estava mesmo fazendo aquilo. Era ridículo. Estava usando uma calça preta e uma blusinha vermelha fina coberta por um sobretudo mais grosso de tons neutros. Colocara seus coturnos e até escolhera um par de brincos. Essa última escolha, inclusive, tinha rendido algumas lágrimas e uma irritação enorme nas orelhas após a incrível descoberta de que os seus furos estavam praticamente fechados pela falta de uso.
apareceu na porta do quarto da irmã e soltou uma risadinha.
— Você está muito bonita. De verdade. Faz tempo que eu não te vejo assim.
— Acho que eu vou me trocar - ela respondeu, já retornando ao closet.
— Por quê? - puxou a irmã de volta até que os dois estivessem sentados na ponta da cama de casal. — Por que você não pode simplesmente aceitar que pode se arrumar e ficar bonita? Não tem nada de errado nisso, sabia?
— Eu sei, eu sei. - Ela revirou os olhos. — Eu só me sinto idiota de estar fazendo isso para sair com um cara que no fim das contas deve ser um babaca como todos os outros.
puxou a irmã para um abraço longo e apertado.
— Nem todos os caras são iguais. Eu sei que você tem medo, mas precisa enfrentar isso. Você e a mamãe sempre me disseram para encarar as coisas por mais assustadoras que elas fossem. Acho que é a sua vez de ouvir o seu próprio conselho.
empurrou o irmão, fazendo com que o menino caísse de cara na cama.
— Odeio quando você é o mais responsável e sensato. É ridículo, sabia?
— Alguém tinha que ser, não é mesmo? Agora, vai embora logo que eu não quero ter que pegar na mão de ninguém.
— Que doce. Também te amo!
deixou um beijo estalado na bochecha da irmã e voltou para o próprio quarto, ligando sua televisão em um volume possivelmente muito acima do recomendado para a própria audição. checou se todas as janelas e portas estavam trancadas e, com uma respiração incrivelmente profunda, deixou a casa, pronta para correr o risco.
O restaurante que havia escolhido era bem decorado, com uma luz ambiente que deixava o lugar acolhedor, quase amigável. Ao menos, o bom gosto que ele tinha era inevitável.
A educação também era. Ele estava esperando por ela na porta do estabelecimento, trajando suas roupas sociais de uma forma levemente descontraída. Ofereceu o braço e a guiou para dentro, mostrando a mesa que já tinha reservado ao chegar.
Um garçom se aproximou, entregando um cardápio de capa dura para cada um. quase se distraiu com todos aqueles ornamentos dourados que decoravam o objeto. Foi difícil se concentrar no que era realmente importante com todas aquelas curvas brilhantes e chamativas.
— Posso oferecer ao casal uma taça de um dos nossos vinhos mais finos?
prontamente olhou para a moça, esperando que ela respondesse. Notando a espera, ela comentou da forma mais natural que pôde:
— Eu não bebo álcool. Pode ser uma limonada para mim - respondeu, tentando disfarçar um sorriso um tanto nervoso.
— Então, duas limonadas bem caprichadas - pediu e o garçom concordou, indo buscar as bebidas. — Não bebe álcool?
estava torcendo para que ele não fizesse aquela pergunta.
— Não mais. Já tive meus dias, mas abandonei.
— E quando foi isso?
parecia mesmo interessado na conversa. E irritantemente curioso para alguém que fazia de tudo para guardar os problemas para si.
— Pouco menos de um mês atrás. - A mulher deu de ombros, batendo a sola do coturno no chão em um ritmo leve, mas rápido. Seus dedos brincavam no próprio colo, buscando extravasar a ansiedade.
— Seria intromissão demais eu perguntar o porquê?
— Seria - ela respondeu simplesmente. — Não quero falar sobre isso.
assentiu, conhecendo os próprios limites que deveria tomar por respeito e consideração. Sua mãe sempre o elogiara por atitudes como aquela. Ele refutava todas as palavras doces, sabendo que não fazia absolutamente nada além de sua própria obrigação enquanto ser humano.
— Você poderia me contar sobre a sua família - comentou, contornando o assunto. — É meio entediante ser a única a falar.
Os copos de limonada foram gentilmente entregues ao que eles agradeceram sinceramente. ficou estranhamente feliz por ter sido questionado.
— Meus pais são professores. Minha mãe ensina matemática e meu pai dá aulas de literatura. Eu sei; não poderiam ser mais diferentes. Acho que é por isso que eu saí totalmente confuso e indeciso.
— Detesto números - ela admitiu, rindo da situação.
— Meu pai também. Eu não tenho uma opinião formada. Acho que fui obrigado a tolerar. Os dois ficaram a minha infância e adolescência inteiras buzinando nos meus ouvidos sobre seguir uma carreira como engenheiro ou escritor. Para piorar, meus tios decidiram que eu deveria ser um atleta profissional. - Os dois riram. — Eu fico verdadeiramente impressionado por não ter me tornado uma pessoa problemática.
— Quem garante que não é? - lançou um olhar de desafio, fazendo com que quase se engasgasse com a limonada ao tentar rir.
— Bom, faz sentido - ele ainda ria. — Eu joguei futebol por uns seis anos no colégio, acredita?
— Em que posição?
— Aquela que esquenta o banco - ele respondeu, dando de ombros e fazendo com que os dois rissem novamente.
— Basicamente, a mesma coisa que você faz na minha cafeteria.
abriu a boca em completa surpresa. Definitivamente não estava esperando por aquela tirada escancarada ao vivo e em cores.
— Essa doeu bem no fundo.
Ele ria tanto que seus olhos quase se fechavam. Alguns casais em volta sorriram ao ver o quanto aqueles dois estavam se divertindo. Outros apenas se sentiram nostálgicos ao recordar dos próprios relacionamentos em seus inícios ensolarados é incontestavelmente felizes. Era um tanto decepcionante perceber que muitos deles haviam deixado que as coisas deixassem de ser tão encantadoras como antes.
Os pratos não demoraram para chegar e ambos degustaram alegremente aquela mistura de sabores impecável. tinha vontade de invadir a cozinha só para dar um abraço apertado em quem tinha cozinhado aquilo. Aquela pessoa de luz provavelmente era um anjo enviado à Terra para dar um pouco de alegria aos meros mortais.
Continuaram conversando sem parar, de forma que nem os silêncios momentâneos fossem desconfortáveis. contou sobre o mico que pagou na única vez em que jogou de titular e acabou caindo de bunda no chão ao tentar chutar a bola. acabou falando sobre o dia em que decidiu pular na piscina logo após o banho e destruiu o vestido de dama de honra que usaria no casamento de uns amigos da família. Entre essas e outras histórias, a noite correu e a mulher também o fez ao perceber que já eram dez horas.
— Muito pontual, Cinderela - ele brincou, enquanto acompanhava a moça até o carro.
— Meu irmão está em casa. Preciso voltar. Desculpe.
sorriu ternamente. Ela sequer precisava se desculpar. Ele achava incrível o aparente cuidado que ela tinha com o irmão pelas histórias que contara.
— Não se preocupe. Podemos sair de novo.
travou com o quase convite. Não podia dizer sim. Não queria ser rude mais uma vez.
— Eu preciso mesmo ir - desconversou. — Falamo-nos depois, sim? Obrigada pelo jantar.
Quando o carro dela sumiu ao dobrar a esquina, suspirou. Tinha adorado a noite e, até poucos instantes, pensava que a recíproca fosse verdadeira. Tudo o que ele queria saber era o que tinha feito de errado.
O barulho no quarto estava alto e misturado demais. De um lado, os tiros e gritos do videogame - acompanhados pelas risadas daqueles que o jogavam - e, do outro, os toques insistentes das notificações de um celular ignorado.
— Você não vai ver o que é? - perguntou, mantendo os olhos completamente fixos na tela e os dedos mexendo freneticamente os botões do controle.
— Não. - deu de ombros, sem desviar a atenção do jogo. — Você está tentando me distrair só para eu perder. Fica quieto e joga!
Com um tiro certeiro, o garoto matou a personagem da irmã sob os gritos e protestos dela. Em um rápido movimento, ele se levantou e puxou o celular da mulher antes de sair correndo com o objeto em suas mãos.
— Volta aqui agora, sua peste! - gritava enquanto corria atrás do irmão. — Eu juro que te deixo sem jantar.
ria, enquanto digitava a data de nascimento da mãe deles na tela. Em instantes, as mensagens estavam completamente visíveis e expostas às intenções do menino.
— Que interessante - ele disse, ainda entre risadas. — O quer saber se você está livre para fazer algo hoje. Algo, tipo, dar uns amassos.
— Ele com certeza não disse isso.
— Talvez não a parte dos amassos - admitiu. — Mas ele ainda quer te ver. Vou ligar para ele.
— Você não faria isso - disse, tentando esconder seu nervosismo.
Com um sorriso travesso e desafiador, apertou o pequeno ícone na forma de telefone. Bastaram dois toques para que uma voz masculina soasse ansiosa do outro lado da linha.
— Alô? ?
— Oi, - o garoto começou. — Aqui é o , o irmão dela. Eu te liguei porque ela está meio ocupada fazendo o jantar, mas queria te convidar para comer aqui em casa com a gente.
segurou o grito que queria subir pela garganta. Vários modos de tortura já haviam passado por sua mente fértil. Ela ia matar .
— Claro! Eu adoraria - parecia tão animado que o garoto teve que segurar o riso.
— Ótimo! Vou mandar o nosso endereço por mensagem. Esperamos você! Tchau! - E desligou.
— Corre - a irmã avisou, entre os dentes.
— O quê? Não dá pra te ouvir.
— Corre antes que eu torça esse seu pescoço! Você é um péssimo irmão!
— Não. Eu sou um ótimo irmão. Porque você adorou o primeiro encontro de vocês e mesmo assim ficou ignorando o coitado. Ele merece um prêmio por ser tão paciente, sabia?
A garota bufou, percebendo que era obrigada a dar o braço a torcer. Tinha ignorado o rapaz sem que ele tivesse feito nada contra ela.
— Você sabe que eu não quero me envolver. - sentia o peso sobre os próprios ombros ao externalizar aquilo que ela sentia.
— Existe uma diferença enorme entre não querer e ter medo. Nem todo mundo é que nem ele, sabe? Nem todo mundo vai simplesmente te abandonar.
A mulher afagou os cabelos escuros do irmão, aproveitando o momento para bagunçá-los carinhosamente.
— Agora, você acabou de ganhar a obrigação de me ajudar na cozinha. Vai abrir a massa da lasanha para mim.
revirou os olhos ao passo que era empurrado pela irmã até a cozinha. Cozinhar em família era praticamente uma tradição naquela casa, fosse na presença ou na ausência de . A mãe tinha os melhores pães e bolos e as mais quentes e cremosas xícaras de chocolate quente. , por sua vez, decidira não competir diretamente com a mãe na panificação e na confeitaria. Usava seu talento para fazer pratos principais e entradas diferentes, mas incrivelmente saborosas. A lasanha era um desses pratos. Não importava se era a Coreia, a Itália, a Costa Rica ou o Brasil; lasanha era o tipo de comida que parecia negar o caminho do estômago só para ir diretamente ao coração.
A mulher entregava porções da massa para que o irmão abrisse as mesmas no grande cilindro. Enquanto isso, o molho concentrado de tomate estava prestes a ferver sobre uma das bocas do fogão.
Enquanto intercalavam todas as camadas de massa com as de molho e as de recheio, teve que se segurar para não rir dos pequenos focos de farinha branca que repousavam no cabelo do irmão. Ele sempre fora incrivelmente prestativo e dedicado a ajudar a família em qualquer situação. Ela tinha muito orgulho do grande homem que ele seria com aquele coração gigante e toda aquela racionalidade e sensatez.
Quando a campainha tocou, saiu correndo como um foguete até a porta. O pequeno sorriu de forma quase arteira para , que parecia não saber muito o que fazer enquanto esperava ali do lado de fora.
— Oi, . Seja bem-vindo!
achou graça na simpatia do garoto. Era uma daquelas pessoas para as quais você só conseguia sorrir sem esperar absolutamente nada em troca.
— Você deve ser o - analisou apenas para tentar dar início a algum tipo de diálogo. Sabia que era uma afirmação ridícula de tão óbvia. — Como está?
— Estou bem - ele respondeu simplesmente. — Por favor, entre.
passou para o lado de dentro, dando uma olhada cautelosa à sua volta. Estendeu uma caixa envolta por um embrulho prateado para o menino.
— Sabe que não precisa tentar me comprar com presentes, não sabe? - perguntou. — Você é bom com a minha irmã, isso já me faz começar a gostar de você.
O rapaz riu da sinceridade do pequeno, tentando evitar esboçar alguma reação para a segunda parte do que acabara de ouvir.
— É uma camisa que eu vi em uma loja. Pensei que, se eu ainda tivesse a sua idade, eu gostaria dela. Mas tudo bem, você não precisa aceitar. Eu posso devolver.
— Imagina, eu não faria uma desfeita dessas - ele pegou a caixa. — Eu fico com isso. Muito obrigado. está na cozinha. É a segunda entrada seguindo pela esquerda.
riu sozinho enquanto o garoto corria pelas escadas com o presente embaixo dos braços. Sentia sua ansiedade aumentando a cada passo que dava em direção a ela .
— O cheiro está ótimo - ele disse, chamando a atenção da mulher. — Eu já sabia que você cozinhava bem, mas isso parece muito melhor do que simplesmente bom.
riu, meneando a cabeça em descrença. Ainda não tinha se acostumado com o jeito que ele tinha para ser tão agradável com todos em todas as situações.
— Espero que esteja com fome - ela comentou. — Ou vai levar uma vasilha cheia de massa para casa.
— Não que eu vá reclamar - respondeu, rindo enquanto balançava os ombros. — Você quer ajuda com alguma coisa?
— Já está tudo pronto. Mas eu agradeceria se você levasse os pratos para a mesa.
Os dois arrumaram a mesa da sala de jantar rapidamente. A lasanha estava vistosa e apetitosa como de costume, com um cheiro de dar água na boca de qualquer um.
, e comeram enquanto conversavam. O mais velho questionou o pequeno sobre a escola e suas atividades favoritas para o tempo livre.
— Passo boa parte do tempo no colégio fazendo extracurriculares por lá mesmo - começou. — Participo do time de tênis de mesa e dos estudos históricos orientais.
— Queria que tivessem coisas legais assim na minha época - admitiu.
— Assim ele não precisaria passar vergonha no time de futebol - murmurou entre risos, recebendo um olhar de reprovação dele e fazendo com que o irmão tentasse esconder uma risada.
— Não precisa me envergonhar assim na frente do seu irmão. Talvez ele pudesse me achar maneiro.
— Você não faz o tipo maneiro, . Apenas aceite - ela disse, pegando na mão que ele repousava sobre a mesa.
Ele sorriu, sentindo uma sensação estranha percorrer o seu corpo. só se deu conta do próprio movimento instantes depois, puxando a sua mão de volta para si em um movimento um tanto brusco. Suas bochechas ardiam como se ela tivesse acabado de vivenciar uma febre inexplicavelmente alta. Talvez sua temperatura estivesse mesmo demasiadamente alta. Só um delírio poderia tê-la levado a agir daquela forma.
analisava os dois que dividiam a mesa do jantar com ele. estava sempre lançando olhares furtivos em admiração à mulher. tinha a bochecha mais vermelha a cada segundo, mesmo que estivesse tentando dar continuidade à conversa como se nada de diferente estivesse acontecendo ali. O garoto riu baixinho ao perceber que ambos se julgavam discretos demais, mas estavam longe de o ser. Como os adultos podiam ser tão ridículos com os próprios sentimentos? Precisava fazer alguma coisa para que aquele gelo cortante fosse minimamente menos esquisito e desconfortável
— Vou pegar o Banco Imobiliário para jogarmos - ele anunciou, levantando-se.
— Você nem sabe se o precisa ir embora ou se quer jogar - advertiu. — Não foi essa a educação que você recebeu.
— Na verdade, eu adoraria jogar - o homem admitiu. — Deve fazer pelo menos uma década que eu não jogo.
lançou um olhar para a irmã como se quisesse esfregar na cara dela o quão incrível ele era e como as suas ideias geniais estavam sempre precisamente certas.
Arrumaram o tabuleiro e distribuíram as cédulas iniciais. Em poucos minutos, a brincadeira começou a render boas risadas. já estava prestes a declarar falência por tirar sempre os mesmos números no dado e ser obrigada a pagar aluguéis sem fim aos locais comprados por . estava roubando descaradamente. Ao assumir o cargo de cuidar do banco, o garoto decidira puxar algumas notas extras a cada duas rodadas.
A cada rodada em que perdia mais dinheiro e os rapazes ganhavam, eles cantavam o refrão de Billionaire . O pequeno fez uma dancinha esquisita e desconexa quando ganhou o jogo, arrancando risadas de que acompanhou os movimentos ainda sentado no tapete felpudo da sala. jogou as peças nos dois tontos, revirando os olhos para aquela brincadeira - na qual ela via muita graça, mas não admitiria para eles e nem para si mesma.
— Depois dessa vitória massacrante e vergonhosa, vou para o meu quarto para dormir - anunciou, já se dirigindo para as escadas. — Estou cansado de ser tão bom contra jogadores tão ruins.
concordou, mas manteve as sobrancelhas franzidas. Estava cedo demais para um pré-adolescente enérgico realmente estar cansado. Não era como se Banco Imobiliário fosse uma atividade de grandes gastos calóricos afinal. A piscadinha que o irmão dirigiu a ela, no entanto, esclarecia absolutamente tudo. Aquela era a desculpa dele para deixar os outros dois a sós. Estranho ou não, já era noite. Quem reclamaria acerca do sono de alguém a uma hora daquelas?
— Ele é um bom garoto - comentou assim que ouviu o barulho da porta do quarto se fechando.
— Ele é mesmo - concordou. — É um bobo muitas vezes, mas é muito mais sensato que muitos adultos que eu conheço. Na verdade, isso até que me inclui vez ou outra.
— Queria ter um irmão que nem ele. A relação de vocês é muito bonita de se ver.
sorriu para si mesma, pensando em como amava aquele pequeno tonto que já era quase mais alto que ela.
— Nós temos nossos momentos.
— Tipo o momento em que ele roubou o seu celular e me convidou para um jantar mesmo depois de você claramente estar me evitando a todo custo? - sentiu a garota estremecer ao seu lado. — Relaxa. Não é como se eu estivesse me sentindo insultado nem nada do gênero. Não sou esse tipo de cara que acha que uma mulher lhe deve algum tipo de satisfação. Inclusive, se você quiser, eu posso ir embora.
— Não precisa. - As palavras saíram rápido demais pela boca dela, soando quase desesperadas. — Eu sinto muito por ter te ignorado.
— Não tem problema. - Ele sorriu daquela forma doce com a qual ela já estava quase se acostumando. — É só que a conversa fluiu tão bem naquele dia que eu pensei que as coisas fossem tomar um rumo diferente.
se levantou rapidamente, indo em direção à lareira e jogando alguns pedaços de lenha. O frio estava começando a lhe incomodar e, ao menos, a ação a manteria ocupada por alguns rápidos minutos.
— Esse é aquele momento em que nos sentamos em volta do fogo e vemos algum álbum de fotos incrivelmente vergonhoso da sua infância?
A mulher não conseguiu segurar a risada. Como era possível que alguém pudesse quebrar o gelo com tanta facilidade?
— Não. Eu jamais mostraria as minhas fotos quando bebê para você. A maioria delas consiste em um nu artístico cheio de dobras de gordura. Acho que seria um pouco precipitado da minha parte deixar você me ver tão exposta assim.
teve que rir também pela forma como ela falava. E ria porque gostava de estar com ela e nem ligava para os avisos estúpidos de . Era só uma pessoa, não um monstro prestes a arrancar o seu coração. Apesar de ele ter plena noção de que ela já o tinha alternando sístoles e diástoles em suas pequenas mãos.
— Na verdade, eu só queria te explicar minimamente o porquê de eu estar sendo uma pessoa tão distante. Não só com você.
— Como eu disse, você não me deve satisfação alguma. Mas, se é algo que você quer fazer por livre e espontânea vontade, sou todo ouvidos.
respirou fundo, sabendo que falar sobre a mãe ainda era delicado demais para ela. O sorriso encorajador de , no entanto, dava a ela as forças para encarar aquela pontada incômoda que sentia no coração e no estômago.
— Você conhece a minha mãe - ela começou. — Ela é a pessoa mais iluminada que eu já vi em toda a minha vida. Mesmo com todas as dificuldades e todos os obstáculos que a vida lançava, dona sempre teve um sorriso enorme para oferecer a qualquer um que aparecesse. Para ela, nunca houve tempo ruim, sabe? Ela simplesmente oferecia uma xícara de chocolate quente ou um café bem forte e tudo ficava bem.
— Consigo visualizá-la perfeitamente - admitiu. — Mas continue.
exalou o ar pesadamente, sentindo algumas lágrimas brotarem em seus olhos como se ali tivessem acabado de germinar. Engoliu em seco, evitando o choro que tentava ser mais forte que ela.
— Eu assumi a cafeteria porque a minha mãe está hospitalizada - soltou quase em um único sopro. — Ela entrou em coma depois que um maluco bateu no carro dela no meio da noite. Foi na madrugada e o motorista do outro carro estava completamente embriagado.
— Por isso você disse que tinha parado de beber há pouco tempo - ele concluiu, sentindo o peso das próprias palavras.
— Nunca mais quero ver álcool na minha frente. - As lágrimas já rolavam livremente por sua face, superando todos os esforços que ela fazia para segurá-las. — Ela sempre foi a única que esteve ao nosso lado e, de repente, ela está presa em uma cama de hospital sem dar qualquer indício de decidir se vai ou fica. As coisas são insuportáveis sem ela.
Em um impulso, se aproximou e abraçou a mulher, permitindo que ela chorasse em seu ombro. Podia sentir a manga de sua camisa acumulando a água, mas não se importava. Daria tudo que estivesse ao seu alcance só para que ela pudesse minimizar ao menos um pouco de sua dor.
Passados alguns segundos relutando, ergueu os próprios braços e os apertou ao redor do rapaz enquanto permitia que os soluços entalados em sua garganta se libertassem.
— Eu sinto muito, muito mesmo. Só quero que você saiba que eu estou aqui para qualquer coisa que você precisar, mesmo que seja só um ombro amigo ou ouvidos para te escutar.
se afastou, enquanto fungava e esfregava as mãos no próprio rosto. Correu os dedos pelas próprias calças, como se estivesse as limpando. Tudo o que queria era se manter ocupada. percebeu a atitude como um sinal de que era hora de ir embora. Antes de abandonar a casa, com um sorriso compreensivo, pediu que ela se cuidasse.
Os bancos de pedra clara estavam mais gelados do que eles se lembravam. Na verdade, não fazia ideia de quando tinha sido a última vez que seu corpo realmente repousara nos assentos daquela praça florida. Recordava-se, sim, de brincar lá quando criança, mas a última vez havia se perdido no meio do longo e tempestuoso caminho de suas memórias.
Hwan havia cedido uma hora de intervalo para a moça a pedido de , bem como duas xícaras médias de cappuccino com chocolate extra. Ver finalmente seguindo a sua vida com alguma alegria era motivo suficiente para o patrão dispensar o tempo que fosse em prol da manutenção daquela novidade. A amizade de Hwan e remontava tempos distantes, fazendo com que ele se sentisse ainda mais responsável pela felicidade da filha da amiga na sua ausência. Tinha visto a menina crescer e amadurecer quase como se fosse a própria filha que ele não teve a chance de ter.
— Duvido que a minha mãe pegaria folga no meio do turno assim. Eu tenho certeza de que sou a vergonha da família.
riu alto, enquanto sacudia sua bebida para misturá-la - mais como uma mania do que como verdadeira necessidade.
— Sua mãe faria o que fosse necessário para ver você feliz. Um intervalo não faz mal a ninguém e nem arranca pedaços. Tenho certeza de que ela estaria orgulhosa de ver que você está tentando viver com um pouco mais de leveza.
o encarou com uma feição de ofendida, desferindo uma cotovelada de leve nas costelas do rapaz pelo comentário.
— Mais respeito comigo, senhor. Só porque eu resolvi ser sua amiga, não significa que eu tenha te dado liberdade para caçoar da minha paranoia.
riu alto, pensando em como era engraçado terem chegado àquele ponto. Realmente, estavam conversando quase sempre quando ele decidia passar pela cafeteria e trocavam mensagens com mais frequência. Estava feliz de poder ouvir a palavra “amiga”, sabendo que gigantesco passo aquele era.
Estavam tendo uma discussão incrivelmente séria acerca das flores da praça, quando acabou se engasgando com o café em meio à própria risada. teve que controlar a própria gargalhada enquanto tentava ajudá-la a reencontrar o fôlego para respirar normalmente.
— Droga, eu pareço uma criança tonta - ela reclamou, tentando arrumar o próprio cabelo.
— Parece mesmo. Até porque tem um pouco de creme respingado na sua bochecha.
o encarou com os olhos semicerrados em completa desconfiança.
— Não, não tem.
— Não mesmo. - deu de ombros. — Pelo menos eu tentei.
Continuaram jogando conversa fora como velhos amigos, até que o papo decidiu acabar e dar lugar àquele silêncio embaraçoso. Por alguns instantes, quase se perdeu nos olhos brilhantes de . Como tinha levado tanto tempo para perceber como aquele olhar a fitava tão intensamente?
Foi trazida de volta à realidade pela rápida percepção de que o rosto dele estava mais próximo em relação a alguns segundos antes. Seu coração disparou como se tivesse acabado de tomar um grande susto. Era como se ela tivesse perdido todo o controle sobre o seu próprio corpo. Por que parecia uma idiota? Sentiu a própria cabeça pender levemente pela frente, diminuindo aquele espaço entre eles. Ela queria aquilo, Deus, como queria! E , como se ouvisse seus pensamentos, fez questão de transpor aquela mínima distância.
Os lábios se tocaram com uma delicadeza quase inimaginável, como a do bater de asas de uma pequena borboleta. Tanta leveza parecia quase paradoxal considerando o turbilhão de coisas que os dois sentiam por aquele contato. Era como choques. Como explosões. Como se sentir em casa e em uma exploração ao desconhecido. Como um pico de adrenalina seguido pela mais plena calmaria que o universo pudesse presenciar. Como um grande perigo que era apenas um enorme acerto. Como tudo o que eles quiseram por tanto tempo. E, assim como as melhores e mais desejadas coisas na vida, acabou rápido demais.
se afastou tão brutalmente que quase sentiu o impacto da ausência de apoio do próprio corpo. Sem uma palavra sequer, ela saiu correndo, largando o rapaz sozinho com a maior interrogação do mundo na cabeça.
— O que aconteceu? Onde está o ? - Hwan perguntou ao ver a moça entrando tão bruscamente na cozinha.
— Onde está o meu avental?
— , olha pra mim. Você não vai trabalhar alterada desse jeito. Sente-se um pouco. Respire. Não precisa me contar o que houve se não quiser, mas saiba que eu estou aqui.
Quando o homem abandonou o local, permitindo que ela absorvesse o peso da companhia dos próprios pensamentos, as lágrimas começaram a rolar rapidamente. Ela não podia ter feito aquilo. Como podia ser tão fraca? Depois de tudo o que vivera, ainda tinha a ousadia de entregar o seu coração com tanta facilidade.
Sentir o celular vibrando no bolso da calça só a irritou mais. Estava prestes a atender e gritar um palavrão horroroso quando foi impedida pelo nome do irmão no visor.
— , o que aconteceu? - Ela ainda fungava.
— Desculpa, eu não queria atrapalhar a sua folga. O Hwan me mandou uma mensagem avisando que você estava em um intervalo com o .
— O intervalo acabou - respondeu secamente. — O que houve?
— Será que você pode passar aqui em casa para me buscar? Precisamos ir para o hospital.
Ao digerir a palavra “hospital”, o coração de se desfez instantaneamente. Um novo soluço ficou preso em sua garganta.
— O que aconteceu com a mamãe?
Ela não queria realmente ouvir a resposta. Não estava pronta.
— A médica disse que ela está acordando. Eles ainda não sabem se ela tem alguma sequela. Disseram que podemos ir vê-la. Vamos?
A mais velha deixou que o próprio peso cedesse naquela cadeira. Não acreditava que, finalmente, estava ouvindo as palavras que aguardara dia e noite por tanto tempo. Já havia perdido as esperanças inúmeras vezes só para recuperá-las uma vez mais. Era como um ciclo interminável no qual alguém encontrara o caminho de saída. E como era bom respirar do lado de fora.
Tinha certeza de que poderia ter tomado ao menos uma dúzia de multas por excesso de velocidade entre o caminho da cafeteria até a casa e, depois, da casa ao hospital. Decidiu deixar para de preocupar com os gastos depois. Se, na próxima vez que entrasse naquele carro, fosse após a confirmação de que estava bem, pagaria o que fosse de bom grado. Não sabia nem como expressar a alegria e ansiedade de ter a mãe “acordada”.
entrou primeiro, deixando atordoada enquanto andava em círculos na recepção, tentando amassar sua expectativa em uma bolinha que pudesse ficar esmagada dentro de seu coração.
O irmão voltou com os lábios curvados em um sorriso de uma ponta à outra. Os olhos ainda estavam lacrimejando de alegria. Deu um abraço forte na irmã antes de ela poder entrar para compartilhar de algum tempo do lado da mãe que começava a responder aos poucos aos estímulos externos.
sabia que a irmã ia levar um bom tempo até que seus olhos acreditassem no que de fato viam. Por isso, decidiu abrir um joguinho qualquer em seu celular enquanto batia os pés um no outro. Só retirou os olhos da tela do aparelho quando percebeu uma movimentação estranha logo ao seu lado.
— O que você está fazendo aqui? - perguntou, apertando o botão que bloqueava a tela.
— Sua irmã saiu correndo - disse, tentando recuperar o fôlego.
— Pelo jeito, não foi só ela que andou correndo. Senta aí. E se for para ter um piripaque, aproveite que estamos no hospital.
praticamente jogou o próprio corpo na cadeira.
— Desabafe, pequeno gafanhoto - o garotinho pediu, arrancando uma risada do mais velho.
— Eu fui atrás da na cafeteria e Hwan me disse que ela tinha vindo ao hospital. Só fiquei preocupado.
— Minha mãe saiu do coma. - mal sabia se estava contando isso ou apenas falando em voz alta na tentativa de fazer com que a ficha caísse. Ainda parecia bom demais para ser verdade.
— Caramba! - O rapaz estava verdadeiramente feliz e entusiasmado. — Isso é incrível!
— Eu sei. - Ele ainda sorria. — Minha irmã está lá dentro com ela. Eu liguei para ela, pedindo que viesse. Ela estava com voz de choro. O que aconteceu?
respirou fundo, pensando em como escolher as palavras. Continuava se sentindo em um campo minado no qual um mísero passo em falso poderia simplesmente arremessar tudo pelos ares.
— Eu e a sua irmã saímos juntos para conversar.
— Dessa parte eu já sei - avisou. — Pule para os fatos importantes. Por que ela foi embora.
— Esse é o problema. - bufava, frustrado. — Eu não faço ideia do que aconteceu. Estava tudo bem. Estávamos conversando e aconteceu de nos beijarmos. Mutuamente, sabe?
— Eu sei o que é um beijo, ! Não tenho dois anos! Droga… Ela fugiu, não foi?
simplesmente assentiu pesarosamente. Tudo o que ele mais queria era alguém que tirasse aquela venda dos seus olhos e lhe esclarecesse o que ele estava fazendo de errado.
— Acho que eu preciso te contar uma história - confessou. — O nosso pai foi embora logo depois de eu nascer. Eu não o conheci e sequer lembro como ele se parecia. Agradeço de verdade por não lembrar. Tudo o que eu menos quero é alguma relação com esse homem.
Ele respirou fundo antes de continuar.
— Só que ele passou anos com a e ter um pai sumindo sem qualquer justificativa foi demais para ela. Desde que eu a conheço, ela sempre foi assim, sabe? Sempre afastou todo mundo quando percebia a aproximação. Ela não é uma pessoa ruim, não mesmo. Ela é incrível, na verdade. O problema é que ela se decepcionou tanto que simplesmente se fechou. Ela tem medo de amar tanto alguém e ver essa pessoa indo embora. Ela tem medo de confiar e se machucar de novo.
apenas ficou parado, tentando encontrar forças para continuar respirando. Todo aquele tempo pensando que ele tinha feito algo errado e a culpa em momento algum tinha sido dele.
— Eu nunca quis machucá-la - ele murmurou, sem ter a certeza de que tinha realmente lhe escutado.
— Eu sei - o pequeno respondeu. — E ela gosta de você também. Gosta muito.
Os passos sobre o chão da silenciosa recepção fizeram com que os dois levantassem o olhar apenas para encontrar o assunto da conversa andando até eles quase como se decidisse se deveria se aproximar ou sair correndo.
— Querem saber? - se levantou. — Eu vou comprar um doce ali no refeitório.
— Com que dinheiro? - perguntou, recebendo apenas um movimento de ombros do garoto que já sumia ao longe.
O silêncio se instaurou novamente entre eles. Se aquele momento se tornasse totalmente estático por um segundo, seria possível ouvir o mais simples caminhar de um inseto.
— Como ela está? - perguntou.
— Aparentemente bem. Os médicos ainda preferem mantê-la aqui em observação, mas estão esperançosos de que em breve ela poderá ir para casa.
— Fico feliz, de verdade.
— te contou tudo, não contou? - foi curta e grossa, atingindo diretamente o ponto que queria. Talvez nunca tivesse sido tão objetiva assim em toda a sua vida.
— Contou. E eu só quero que você saiba que eu não sou ele. Eu me importo contigo e quero, acima de tudo, o seu bem. Eu estou tentando me manter por perto, não fugir. Mas entendo que traumas são complicados de se lidar então vou forçar nada. Não vou te procurar mais. Leve o tempo que precisar para pensar, decidir ou sei lá. Se escolher que realmente me quer longe, eu vou entender. Só… Pense nisso, ok?
sorriu para ela antes de dar as costas para sair daquele hospital. De repente, todas aquelas luzes da sala de espera pareciam ainda mais incômodas e sufocantes.
sentiu uma mão sendo entrelaçada à sua. repousou a cabeça lateralmente sobre o braço da irmã, na intenção de lembrá-la de que, independentemente do que acontecesse nesse mundo doido, ele ainda estava ali do lado dela.
— Cadê o seu doce?
— Eu não tinha dinheiro - ele admitiu.
— Imaginei.
estava respondendo bem aos tratamentos, tanto com medicamentos quanto com a fisioterapia. Ainda estava muito debilitada, mas, aos poucos, estava se recuperando. Os quadros apresentavam ótimas perspectivas.
Hwan vinha sendo incrivelmente compreensivo com a flexibilização dos horários de trabalho de , tendo consciência de que ela tinha o irmão e a mãe para cuidar. A amizade de anos era tanta que ele mesmo teria cuidado de caso não soubesse que tudo que os garotos precisavam era de um tempo para assumir a responsabilidade pela mãe. Após o acidente, eles tinham a necessidade quase inconsciente de ter tudo ali ao alcance das mãos; tudo sob controle. A progenitora quase achava graça em todos aqueles cuidados tão meticulosos.
se aproximou do quarto da mãe praticamente nas pontas dos pés. Esticou a cabeça para olhar para dentro, dando de cara com a encarando e achando graça naquilo tudo.
— Eu fiquei com medo de que você pudesse estar dormindo - a mais nova explicou. — Só queria tirar o lixo do banheiro.
— Filha, sente-se aqui ao meu lado um pouquinho. Precisamos conversar.
arregalou os olhos, lembrando-se de todo o pavor e a tremedeira que acompanharam essa frase por toda a sua infância e adolescência. Como era possível que ela crescesse e continuasse se sentindo tão aterrorizada pela união das palavras “precisamos” e “conversar”.
— Está tudo bem? Você precisa de alguma coisa, mãe? Mais travesseiros? Mais água? Quer um lanche? Talvez um cobertor?
— Eu só quero conversar. - A mãe riu. — Estou ótima, mas como você está?
arqueou as sobrancelhas, sem compreender exatamente de onde aquilo tinha acabado de vir.
— Estou bem. Por quê?
— Porque o seu irmão me contou que você conheceu um rapaz muito legal enquanto eu estive no hospital. E você sabe que o tem um ótimo sentido para identificar pessoas boas.
— Por que você criou um filho tão fofoqueiro, hein? Acho que a frase que mais me atormentou nos últimos dias foi essa: “Seu irmão me contou.”.
— Ele só faz isso porque ama você e se preocupa. É o jeito dele de se sentir tão responsável por nós quanto somos por ele. Ele também me disse que pode ou não ter ficado espiando a conversa de vocês dois na sala de espera do hospital e pode ou não ter ouvido o tal dizer que esperaria o seu próprio tempo.
— Ótimo! Além de tudo, ele escuta as conversas dos outros agora!
riu, passando vagarosamente o braço ao redor da filha.
— Seu irmão não é o foco agora. Acho que todos nesta casa sabem bem o que aconteceu e o quão difícil foi para você, mas você não pode se anular para o mundo, filha. Você não pode se fechar para impedir que alguém te magoe. Você é apenas um ser humano que ama, que chora, que sorri e que sofre. Nem todos são como o seu pai. Você não pode viver com medo. Se você gosta mesmo desse rapaz, precisa ir atrás dele e dar uma resposta. Mesmo que seja a passinhos de tartaruga, mostre que você está se abrindo aos pouquinhos. Dê uma chance à possibilidade de amar e ser amada.
— E se ele me machucar?
— Todos nós erramos e machucamos uns aos outros. Mas, se for para valer, eu e o estaremos aqui para catar todos os pedacinhos e colar com super bonder. E, então, você vai lá fora de novo e vai amar de novo, porque é o amor que move a humanidade, seja ele por quem ou pelo que for.
apenas ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo tudo que ela já sabia, mas precisava ouvir da pessoa que esteve com ela a todo segundo e a conhecia melhor do que a palma da própria mão. Independentemente do que acontecesse, ela sempre voltaria para casa e encontraria aqueles dois que a amavam incondicionalmente e a apoiariam até o fim de seus dias.
De repente, a jovem puxou o celular do bolso, verificando se ainda tinha salvo um antigo contato.
— Está ligando para ele? - perguntou.
— Não - ela admitiu. — Eu só espero que o não me ignore.
anunciou na portaria do prédio para onde ia, recebendo do porteiro a resposta de que ela já tinha sido autorizada a subir pelo “senhor ”. A subida de um elevador nunca lhe parecera tão dolorosamente lenta como naquele momento.
Precisou inspirar e expirar ao menos umas vinte vezes ao encarar a porta com o número que lhe havia sido passado. Pensou em dar meia volta e fingir que nada tinha acontecido. Pensou em sumir no mundo e nunca mais dar notícias. Mas o fato era que ela já estava cansada de se esconder. Estava cansada de dar dois passos assustados para trás sempre que alguém dava um em sua direção.
Em um ímpeto de coragem, ela levantou a mão para tocar a campainha.
— Eu definitivamente não esperava você por aqui - admitiu, dando o sorriso mais largo que ela já tinha visto. Droga, como adorava aquele sorriso.
— Eu cansei de me esconder do mundo. Se você quiser tentar ver aonde isso vai dar, eu também quero.
O rapaz quase sentiu como se seu peito fosse explodir de felicidade.
— O que você trouxe aí? - perguntou, reparando que ela carregava uma grande vasilha.
— Fiz duas receitas de brownies. Pensei que talvez pudéssemos conversar e comer.
Ele respirou fundo, suspirando em deleite.
— Conversar e comer é o meu tipo de programa preferido. Entre.
pisou no apartamento com um sorriso ainda meio incerto, mas um peso a menos sobre os ombros e sobre o coração.
— Aliás, quando eu vou ver o seu álbum de bebê posando para um nu artístico?
A mulher riu alto com a brincadeira. Aquele era o tonto por quem ela tinha decidido permitir que seu coração palpitasse mais rápido.
— Nunca, .
O rapaz fechou a porta atrás deles.
FIM
Nota da autora: Será que eu estou quase morrendo de ansiedade para vocês lerem?
Por favor, digam o que acharam aqui nos comentários.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo
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