Finalizada em: 28/06/2021

2012

abriu a porta e já chutou os sapatos apertados, soltando um suspiro de alívio imediato ao sentir sua circulação voltando ao normal.
Adorava a sensação de se arrumar e usar roupas que a faziam parecer mais chique e refinada do que o normal, mas abominava o fato de elas conseguirem ser, em grande parte das vezes, tão desconfortáveis. Especialmente depois de várias horas de asfixia dos pobres dedos, prestes a se esguelar e implorar por misericórdia, enquanto eram obrigados a dividir o próprio espaço com o vizinho.
— Filha! Você chegou! — Sua mãe observou de forma animada. O pai, acompanhando-a a dois passos de distância apenas, retribuiui o mesmo sorriso. — Como foi a entrevista?
A garota pendurou o blazer enquanto tomava alguns segundos para pensar sobre a resposta que daria.
— Eu não quero criar expectativas e nem atrair azar, mas acho que foi boa.
— Tenho certeza de que sim — o pai concordou, aproximando-se para um abraço que a pegou de surpresa, deixando o seu cenho franzido.
— Ok, ok, o que é que está acontecendo nessa casa e por que vocês dois estão se comportando feito maníacos?
— Demonstrar alegria e orgulho da nossa filha é o comportamento que se espera de um maníaco? Que visão de mundo mais problemática — a mãe reclamou.
— Só estamos felizes por você.
estreitou os olhos, sabendo perfeitamente que toda aquela estranheza não poderia ser normal. Seus pais sempre a apoiaram e ela jamais poderia reclamar e dizer o contrário, mas aquele tipo de reação e preocupação sufocante como se fossem dois abutres não estava no script de seu dia comum. Nem de nenhum outro.
Seu momento de estranhamento foi interrompido por Rudolph, chegando correndo com o adereço de chifres de rena e pequenas caixinhas de presentes.
— Meu Deus, Rudolph! A gente está muito longe do natal para terem te colocado isso — ela brincou, afagando os pelos baixos e recém-tosados do pequeno Shih-Tzu.
— Vai ver é porque ele queria te trazer um presente — a mãe disse, como se estivesse pensando alto e não soubesse de muita coisa.
só não reafirmou como eles eram totalmente indiscretos e sabia desde o começo que estavam aprontando alguma coisa porque sua atenção tinha acendido um interruptor de foco completo em direção à sua própria curiosidade. Não existia nada que ela pudesse fazer naquele instante além de levar as mãos até as pequenas caixinhas penduradas que ela nem sabia que realmente abriam.
Com algum esforço, conseguiu abri-las e de lá retirou três pequenos papéis dobrados. “Casa da Árvore” era o que diziam juntos.
— Mas o quê?
— Só vai. — Sua mãe praticamente a empurrou para que seguisse o caminho em direção ao quintal.
— Bom, se está na casa da árvore, imagino que vocês não tenham decidido finalmente me dar um carro. Quer dizer, pode ser que tenham colocado a chave lá.
— Boa tentativa, mas não foi dessa vez. Agora vai logo.
encontrou os chinelos que havia deixado largados - para o completo desespero dos pais - pela sala na noite anterior e seguiu o caminho até a área externa da própria casa, não precisando dar mais do que um passo para fora para ver o cartaz azul gigante pendurado pela base da casa da árvore que ela tanto amara desde a infância. A garota soltou uma risada nervosa, sem decidir se estava mais surpresa ou maravilhada com a situação.
No papel azulado, podia ler “Are you UP for prom?”, envolto em vários balões coloridos. Entre eles, estava com o sorriso bobo e o jeito quase infantil que ela adorava, também segurando alguns balões escrito “Prom?”.
— Você é doido — ela disse, por falta de saber qualquer coisa melhor para dizer.
O garoto riu alto.
— Poderia ter sido pior. Eu quase arranjei uma roupa de escoteiro e entrei no personagem, mas achei que poderia ficar meio problemático já que ele é uma criança.
— Mas seria tão bom para tirar várias fotos.
Ele revirou os olhos, sabendo plenamente que ela, de fato, não perderia aquela chance de guardar em imagens a cena da pequena humilhação para chantageá-lo por todos os dias de sua vida sem exceção.
— Sobe logo aqui.
expressou uma fisionomia ofendida.
— Você me faz uma surpresa, quer ser fofo e sei lá mais o quê e depois de dois minutos já está sendo rude? O que você quer de mim, homem?
— Uma resposta — ele respondeu simplesmente.
Ela meneou a cabeça, concordando e se agarrou à escada de madeira - por sorte lixada na semana anterior e livre de pequenas farpas - e subiu atrás dele.
— Oi!
Ela teve que controlar as próprias pernas para não desmancharem e derreterem bem ali, só de poder olhar para ele com aquele rosto que parecia se encher de carinho de uma forma tão específica e só dele. Só deles.
— Então, você aceita ser a minha acompanhante para o baile?
— Eu meio que já tinha aceitado antes mesmo de você realmente pedir — confessou. — É sério. Se você não me convidasse, acho que eu teria que me mudar para o Vietnam para que ninguém nunca visse a vergonha me destruindo.
riu, entregando os balões para ela.
— Nesse caso, isso é para você.
O rapaz tirou uma caixinha do bolso, abrindo-a para pegar uma pulseira fina e prateada retorcida, com um pingente único: um berloque de uma casinha pendurada por várias bexigas.
— Meu Deus, essa deve ser a coisa mais linda que eu já vi na minha vida!
— Pelo amor de Deus, ! Eu estou bem aqui na sua frente! Essa é no máximo a segunda da lista.
Ela estendeu o pulso direito, observando sorridente feito uma criança que acabava de ganhar o brinquedo que tanto queria enquanto ele prendia a joia ali.
Claro que eu vou ao baile com você. A esse e a todos os outros.
E quando ela estava prestes a cumprir sua vontade e selar seus lábios, ouviu uma exclamação vindo de baixo deles.
— Será que existe como vocês serem mais fofoqueiros? — reclamou, olhando para o chão e encontrando os pais logo embaixo da casa da árvore.
— A gente só queria registrar o momento — a mãe se justificou. — Vocês bem podiam descer para a gente tirar umas fotos, né?
revirou os olhos, antes de olhar para com o olhar de quem pedia desculpas.
— Acredite, se está sendo assim agora, talvez tenhamos que fugir no dia do baile.
Mas ela não fugiria. No fundo, ficava feliz que todos pudessem participar juntos daquele momento. E eles adoravam . Quase tanto quanto ela. Se dependesse de seus pais, o coitado já teria sido obrigado a pedi-la em namoro há algumas várias semanas.
Mas ela não fazia questão. Não fazia questão de mudar absolutamente nada. Tudo estava perfeito exatamente daquele jeito.


💛💛💛



tinha quase certeza de que havia tirado mais fotos naquela noite do que em todos seus pouco mais de dezessete anos de vida. Provavelmente os pais de agora tinham mais fotografias dele do que seus próprios pais e estes reclamariam se ele dissesse isso, por mais que simplesmente nunca tivessem dado bola para isso. Ainda menos quando se era o filho caçula.
Mas ele não reclamaria. Era fácil demais abrir largos sorrisos e posar para fotos do lado da mulher que ele tanto adorava, ainda mais quando ela parecia algum tipo de deusa naquele vestido vermelho.
o puxou de leve, arrumando a gravata mais uma vez e lhe dando um selinho rápido antes de entrelaçar os seus dedos e finalmente entrarem no salão em que o baile do colégio havia sido preparado.
O tema escolhido era outonal, de uma forma que poderia facilmente virar uma metáfora entre folhas caídas e fins de um ciclo. As pequenas luminárias amareladas e os tons quentes traziam um aconchego ao ambiente e combinavam perfeitamente com o seu vestido - e ela se gabaria disso pelo resto da vida, sempre que abrisse o álbum de formatura e encontrasse cada uma daquelas memórias eternizadas em fotos.
— Ora, ora, se não é o casal do momento — Freddie disse, abraçando os amigos.
— Ora, ora, se não é o rei do baile — disse, beijando suas bochechas e as esfregando logo em seguida, apenas para ter certeza de que não havia deixado nenhuma marca de batom perdida para trás.
— As pessoas não vão votar em mim para rei porque sabem que eu já atingi um nível muito mais alto que não pode ser resumido a esse nível de hierarquia monárquica.
riu abertamente.
— Ah, com certeza. Realmente faz todo o sentido.
— Eu sei — Freddie concordou. — Inclusive, é por isso que minha aposta desse ano é para você.
— Se eu fosse você, não apostaria. Vai perder seu dinheiro à toa.
— Qual é, ? Você foi a revelação do nosso lacrosse e absolutamente todo mundo do universo sabe quem você é à essa altura. Você é basicamente a pessoa mais importante desse colégio. Não é à toa que conseguiu a bolsa para a faculdade.
— Bom, eu vou votar em você — declarou.
— Eu já votei em vocês dois — Freddie completou. — E fiz campanha. Então aproveitem para comer enquanto não decidem tirar mil fotos.
— Isso se você tiver deixado alguma coisa sobrar.
Freddie mostrou o dedo do meio antes de sumir em direção à pista de dança, provavelmente encontrando qualquer que fosse a garota que ele havia decidido chamar de última hora, confiante demais de que a resposta que alguém lhe daria jamais poderia ser qualquer coisa além de sim. Quer dizer, talvez um ‘claro’, um ‘com certeza’ ou uma declaração de amor pronta para amaciar seu ego. Ao menos era no que ele gostava de acreditar.
— Milady, me concede esta dança? — convidou, curvando o tronco para frente e lhe estendendo a mão.
puxou a saia do vestido em ambos os lados, realizando uma reverência comedida antes de responder:
— Será uma imensa honra, meu senhor.
A música que tocava pela aparelhagem de som estava longe de ser romântica e calma, contradizendo de forma direta quaisquer que fossem as bases da brincadeira de tom antiquado deles. No máximo, talvez estivessem se aproximando dos bailes de Bridgerton, mas mesmo eles deixavam apenas o instrumental, fingindo que a letra não importava.
riu, pensando no diretor se revirando em algum canto do salão ao ouvir o palavreado chulo e altamente sexual da faixa que se iniciava, vinda diretamente da playlist do DJ contratado pelo colégio e, portanto, culpa dele.
O rapaz não era nem de perto um dançarino nato. Seus passos eram rígidos e pouco dotados de qualquer malemolência. o acompanhava, movendo braços e pés ao seu redor enquanto riam um do outro e um com o outro. Exatamente da forma que sempre foi tão fácil fazer.
e haviam se conhecido durante a pré-adolescência, pois estudavam na mesma série. A amizade tinha surgido com a maior naturalidade do universo e fora uma surpresa para todos o fato de que tivessem demorado tanto para perceber que talvez devessem ficar juntos para além das considerações de amigos.
Eles sabiam se divertir juntos, era bem verdade. Souberam se divertir enquanto combinavam como se ajudar tanto antes quanto durante as provas; quando competiram juntos e ficaram em segundo lugar na competição beneficente de arrecadação de fundos do colégio; quando viajaram com os amigos para San Francisco e quando faziam literalmente qualquer coisa juntos. Cinema, teatro, jogando conversa fora na casa da árvore, estudando juntos, assistindo aos jogos dele, controlando-se para não berrar durante os jogos de xadrez dela… tinha certeza de que seu sedentarismo sabia perfeitamente que os músculos mais trabalhados de seu corpo eram os da face, para rir. Mesmo nos maus momentos, ele parecia ter o talento impagável de arrancar dela um sorriso fácil. Era simples demais ser feliz ao seu lado, mesmo que fosse dançando desajeitadamente sobre saltos finos ou sob uma gravata apertada.
tomou sua mão, rodando-a juntamente à fluidez da própria saia. não conseguiu evitar as gargalhadas e nem os pequenos gritinhos quando ele parecia errar a velocidade do movimento por pouco e ela quase se perdia do aperto de sua mão e do controle de sua postura que ainda a mantinha de pé, sem causar uma grande cena na frente de todos ali presentes.
Após vários minutos se sacudindo de um lado para o outro, já tinha escondido os sapatos embaixo de uma mesa qualquer e havia deixado o blazer sobre o encosto da cadeira e puxado as mangas da camisa social até os cotovelos. Estavam suados de tanto dançar - ou fosse lá o que era aquilo que estavam fazendo enquanto pulavam e cantavam todas as músicas que tocavam - e os pés já pareciam prestes a implorar por socorro. Faltava muito pouco para que ele se livrasse da gravata e acabasse perdendo-a pelo salão.
Comeram alguns salgadinhos durante as raras faixas que não conheciam e tomaram o suco que já havia sido batizado com a vodka barata que alguém havia conseguido despejar no grande recipiente sem que ninguém percebesse. Estava tão diluído que demoraria a fazer algum efeito gritante o suficiente para causar alarde nos adultos responsáveis, mas era o bastante para que ela se sentisse só um pouquinho mais flutuante enquanto parecia ter resgatado algum ritmo musical dos anos 20 cujo nome jamais havia ouvido falar.
— Você precisa ir comigo para o casamento da minha prima. Minha família vai te amar. Especialmente quando você dançar — brincou.
— Obviamente — concordou. — Eu estou perdendo um grande talento aqui, sabe? Por não seguir carreira na dança.
— A Broadway está perdendo uma gigante promessa da arte.
Ela assentiu, concordando.
— Fica ainda pior se nos lembrarmos de como eu canto incrivelmente bem.
concordou, mantendo a brincadeira. Os dois sabiam que estava concorrendo na árdua disputa dos piores cantores de todo o mundo, na categoria dos que amavam cantar, mesmo tendo completa ciência do quão ruins eram o fazendo. Isso só tornava as noites de karaokê mais divertidas, especialmente quando ele levava rosas de plástico apenas para lançar nela e berrar como uma fã adolescente enquanto ela desafinava em mais notas do que a partitura da canção sequer previa.
A música do salão foi interrompida de repente, provocando vaias generalizadas dos alunos descontentes. O diretor subiu rapidamente ao palco, já estendendo a mão em um gesto que, simultaneamente, pedia desculpas pela interrupção, mas também sinalizava para que se calassem para que ele terminasse logo o que precisava fazer.
— Não quero tomar muito o tempo de vocês, então vamos direto ao ponto. Os votos de rei e rainha do baile já foram contabilizados.
Pequenas exclamações e assobios soaram pelo salão em expectativa.
— E a maioria dos votos foi para o casal e . Subam aqui!
O canhão de luz foi movido em direção aos dois, ofuscando suas vistas. sabia que provavelmente estava com as maçãs do rosto tão vermelhas quanto o tecido minuciosamente escolhido para seu vestido.
— Eu vou matar o Freddie - ela murmurou.
— A gente sabe que ele realmente não desiste das coisas quando coloca uma ideia dessas na cabeça.
— Ele sempre consegue o que quer. Mas eu odeio quando ele faz isso às minhas custas.
— Às nossas — corrigiu, tomando-a pela mão. — Agora, acho que Vossa Majestade deveria me acompanhar.
Os dois correram escada acima, gargalhando com cada cambaleio e sentindo as bochechas doerem por sorrirem largamente enquanto recebiam coroas patéticas e faixas ainda piores.
— Majestade, acho que agora a senhora é meio que obrigada a me conceder uma dança.
— Então que bom que a resposta já seria sim de qualquer forma.
E ela se lembraria da sensação de estar nas nuvens e do torpor que era dar pequenos passos para um lado e o outro com as mãos dele em sua cintura sempre que olhasse para o pequeno corsage guardado em uma cuidadosa caixa de acrílico.


💛💛💛



tinha certeza de que ia vomitar a qualquer instante. O que a apavorava eram as suspeitas de que talvez o que fosse encontrar saindo pela boca fosse o próprio coração, desesperado em meio à expectativa e ao mais sincero pânico só de pensar em terminar de realizar o login daquele site.
— Respira — a mãe disse, massageando suas costas em círculos regulares e praticamente não seguindo sua própria sugestão.
— Eu não quero abrir.
— Deixar para mais tarde não vai mudar o resultado — o pai justificou, puxando uma cadeira. — Mas é claro que a decisão é sua.
A garota meneou a cabeça.
— Se eu não olhar logo, não vou conseguir fazer mais absolutamente nada o dia todo e vou ficar me corroendo de ansiedade. Para o bem ou para o mal, acho que eu preciso abrir isso logo.
Ela precisou respirar fundo algumas vezes até tomar coragem de levar os dedos frios e trêmulos até o teclado e digitar seu e-mail e senha de acesso.
O site demorou alguns instantes extras rodando e carregando, provavelmente reagindo ao alto número de acessos de pessoas tão preocupadas e surtadas quanto ela, que poderiam dizer que haviam esperado por esse momento durante praticamente toda a sua vida.
A página de início de boas-vindas ao cadastro ao site de aplicação para Stanford finalmente abriu, fazendo seu coração dar um pulo errado em sua corrida de obstáculos e parecer prestes a entrar em uma crise de arritmia.
— Vou pegar água para você — a mãe disse e correu até a cozinha, voltando logo com um copo de água.
bebeu todo o conteúdo a pequenos goles, tentando balancear a ingestão com uma respiração profunda e lenta o suficiente para fazer seu corpo parar de responder tão gritantemente ao nervosismo.
— Certo. É agora — decidiu.
— Estamos aqui, seja qual for o resultado — seu pai assegurou, colocando a mão sobre o ombro.
Ela assentiu, respirando fundo mais uma vez e clicou na aba de sua inscrição.
Seus olhos correram rapidamente pelas palavras ali publicadas:

“É com muito prazer que declaramos sua aprovação no curso escolhido. Seja bem-vinda à Universidade de Stanford. As informações e instruções abaixo…”

Mas, ao menos naquele momento, não interessava nada que estivesse escrito depois daquele início.
deu um pulo, derrubando a cadeira e se assustando com o barulho logo depois. Em meio a gritos e lágrimas, abraçou os pais também muito emocionados, ainda sem acreditar no que seus olhos leram. Era surreal demais. Talvez tivesse visto errado e enxergado o que queria ver ali. Talvez sua capacidade de leitura e interpretação de texto tivesse sido sabotada por sua própria expectativa.
— Alguém lê esse aviso e me diz que eu não estou sonhando — pediu, ainda soluçando um pouco.
Os progenitores a soltaram rapidamente, apenas para confirmar a informação e partirem para um novo aperto esmagador de tanto orgulho e felicidade.
— Minha menina, você se dedicou tanto — a mãe disse. — Estamos tão felizes e orgulhosos do seu esforço, das suas conquistas e da mulher incrível que você está se tornando.
— Você será sempre o nosso maior orgulho — o pai continuou. — Espero que tudo seja exatamente como você sempre sonhou.
A campainha começou a tocar em frenesi. enxugou o rosto e correu para a porta, já imaginando quem seria.
E lá estava ele com um moletom vinho enorme. O sorriso de era tão largo que ele parecia prestes a rasgar os músculos da própria bochecha.
— Eu sabia que não deveria ter te dado a minha senha — ela brincou. — Você viu antes de mim! Eu literalmente acabei de abrir o site!
— Quem se importa? A gente vai para Stanford! — O rapaz berrou, tirando-a do chão e a rodando em seus braços.
Ela riu enquanto era girada, até se perceber ficando tonta e ter que pedir para que ele parasse.
— Trouxe um presente — ele falou, entregando a ela uma sacola de papel pardo.
Dela, retirou um moletom igual ao dele - apenas um tanto menor -, com o nome e o brasão enorme da universidade que agora poderiam chamar de deles.
— Você comprou isso para mim quando foi visitar a faculdade?
— Exatamente.
, e se eu não passasse? Você teria jogado dinheiro fora.
Ele deu de ombros.
— Eu sabia que você ia passar. Eles teriam que ser muito burros para não te aceitar e não podem ser burros se já tinham me aceitado. E, se tudo desse errado, você ainda poderia usar só nos meus jogos.
— Ela é perfeita. Obrigada!
vestiu o agasalho no mesmo instante, sem se importar com o suspiro nervoso da mãe às suas costas, ignorando o hábito dela de sempre querer lavar todas as roupas antes do uso. Dessa vez ela teria de esperar.
A garota correu até o espelho da sala de jantar, sorrindo para a própria imagem; o rosto inchado, o nariz avermelhado combinando perfeitamente com seu mais novo presente. Esticou o capuz atrás da cabeça, sentindo algo pinicando o seu pescoço.
— Droga, esqueci de arrancar a etiqueta.
Ela esticou os braços, tentando manobrar cada um de seus movimentos a fim de conseguir alcançar o local apenas para comprovar sua hipótese que responderia ao porquê da sensação estranha.
O que ela encontrou, entretanto, não se parecia com o plástico endurecido de uma etiqueta e, sim, como um papel mole, que demandou pouca força para que se desprendesse por completo e se soltasse em sua mão.
Quando trouxe o pequeno post-it para onde seus olhos pudessem vê-los, encontrou a caligrafia apressada e pouco cuidadosa de dizendo: “Quer ser minha namorada?”.
Ela ergueu o olhar, encontrando as íris esperançosas dele, que parecia sempre ter alguma ideia específica para cada momento da história deles.
— De verdade? Tem certeza?
— Nunca tive tanta certeza em toda a minha vida.
sorriu.
— Eu também não.

2017

— Você tem certeza de que não vamos nos atrasar?
revirou os olhos pela terceira vez naquele dia.
, pelo amor de Deus, eu que vou demorar horas para me arrumar e você quem está preocupado desse jeito? Vai dar tempo, relaxa. Nossos pais chegam daqui a pouco.
— Minha mãe vai com vocês para o salão?
— Vai. Acho que minha mãe acabou conseguindo convencê-la de aderir ao pacote promocional por três penteados e maquiagens.
— Se isso não convenceu minha mãe, com certeza convenceu meu pai. E ele sempre a convence.
A mulher gargalhou, sendo obrigada a concordar.
— Mas vamos lá, antes que você tenha um chilique.
— Eu sou orador da turma, eu posso ter um chilique — ele reclamou.
— Desde que não seja no palco, acho que pode. Aproveita para surtar agora.
— Agradeço pelo apoio.
fez uma careta.
— Se eu falo para você não surtar, você reclama; se eu digo para surtar, você reclama também. O que você espera de mim?
bufou, frustrado.
— Eu não sei nem o que eu espero de mim. Eu estou nervoso para cacete.
Ela concordou, passando um braço ao redor do tronco dele e apoiando a cabeça em seu pescoço.
— Eu sei, amor. Mas seu discurso está perfeito e você ensaiou tanto que é capaz de até eu já ter decorado. Você vai se sair perfeitamente bem, eu tenho certeza.
— Faz o discurso para mim?
se afastou, dando-lhe um tapa leve.
— Para de graça. Pega suas coisas e vamos subir.
Os dois levaram as caixas e sacolas para o topo da casa da árvore, sendo seguidos por Rudolph, que só parou de latir e correr desesperadamente em círculos ao redor da estrutura da base quando também foi colocado para cima.
— Não acredito que eu finalmente vou ver essa bendita cápsula do tempo.
— Cápsula de memórias — ela corrigiu. — No fundo, é só uma caixa. Mas não importa, parece mais interessante assim.
puxou uma cordinha discreta no chão, abrindo um compartimento sob o piso de madeira. Puxou a caixa preta e se sentou sobre o tapete felpudo cor de rosa; o recipiente no colo.
— Você está pronto? Talvez possam ser imagens fortes demais para você — ela zombou.
concordou vagarosamente.
— Acho que eu aguento.
Ela puxou a tampa, sorrindo ternamente de forma automática ao vislumbrar partes de suas melhores memórias ali guardadas. O namorado se sentou por perto, mas se assegurando de não invadir o seu espaço. Por mais que estivesse curioso, estava tentando se manter minimamente à parte da situação, esperando respeitosamente que ela decidisse o que e como lhe mostrar.
pegou uma pequena foto polaroid e entregou para ele. Nela, havia uma versão sua com cinco anos, usando maria chiquinhas e um macacão colorido, com o rosto completamente sujo de chocolate.
— Essa foi no meu aniversário — contou. — Eu pedi um bolo com muito chocolate e minha mãe levou o pedido completamente a sério. Estava tão gostoso que eu decidi literalmente lamber até o prato. O resultado é esse daí e um surto de energia que quase fez meus pais se arrependerem de me ter.
— Você deve ter destruído tudo.
— Ah, eu quebrei os galhos de pelo menos umas três plantas. Depois fiquei chorando quando percebi que tinha feito mal para as coitadas.
— É, essa imagem eu com certeza consigo visualizar.
A mulher riu. Não precisava dizer o que nenhum deles estava pensando: ela seria facilmente capaz de fazer algo desse jeito ainda nos dias atuais, especialmente se estivesse mais sensível que o normal nos dias de TPM.
— Essa é a medalha do meu primeiro campeonato de xadrez — ela prosseguiu, puxando um cordão vermelho amarrado a uma pequena placa dourada. — Até hoje ninguém sabe como eu ganhei. Mas eu meio que tive uma ajudinha pelo caminho. Duas pessoas tiveram uma intoxicação alimentar com a comida da lanchonete em frente ao lugar em que a competição estava acontecendo. Eram exatamente dois dos meus adversários, então eu meio que ganhei duas partidas por W.O.
— Acho justo — comentou. — É o prêmio que você recebe por não ter cedido à tentação de um lanche gorduroso no meio do dia.
concordou.
— Vamos ignorar o fato de que eu saí da competição direto para tomar um milk-shake extra grande com cobertura adicional.
— Meros detalhes — ele adicionou.
A mulher continuou vasculhando a caixa, encontrando um Funko pop de Ellie e Carl. Um sorriso bobo surgiu automaticamente em seu rosto, enquanto ela entregava as miniaturas a ele.
— Esse eu não preciso nem explicar, né?
— Nada nunca vai gritar tanto quanto Up - Altas Aventuras.
— Agora começam as nossas coisas — ela anunciou.
arrastou as pernas pelo chão, aproximando-se um pouco mais, também de forma física, daquela que era a história deles.
retirou alguns dos bilhetes que eles trocaram durante as aulas no Ensino Médio - e tinham sido mandados para a direção por isso -, o cartaz que ela havia feito para torcer por ele durante a última temporada interescolar de Lacrosse, os ingressos do cinema da primeira vez em que foram ver um filme sendo mais do que só amigos, o corsage do baile, a coroa de rainha do mesmo dia e o post-it em que ele a havia pedido em namoro.
— A nossa foto na final desse campeonato ainda é o plano de fundo do meu computador em casa — ele comentou. — Você está com o rosto todo pintado e com o cartaz.
— E você estava suado e fedido, mas eu estava tão feliz que não consegui me impedir de pular em você assim que o jogo acabou.
— Você me ama tanto.
revirou os olhos.
— Nem é tanto assim — reclamou, recebendo um olhar de espanto ofendido em resposta.
— Se não é tanto assim, acho que não preciso participar da sua caixa.
— Para de ser besta. E não me irrita, que eu já estou nervosa o suficiente com a formatura.
— Ah, você está nervosa agora?! Que ironia!
, cala a boca e mostra o que você trouxe logo.
Ele acabou dando o braço a torcer e tirou as coisas de sua sacola.
— Eu imprimi nossas admissões em Stanford — contou, entregando-lhe a folha sulfite com a impressão das palavras que ela havia decorado de trás para frente assim que o êxtase do momento a permitiu realmente lê-las. — Trouxe o cardápio daquele restaurante chinês que você ama e sempre pede nos dias de prova e uma foto nossa na nossa última viagem.
olhou a foto com mais atenção.
— Precisava pegar logo essa? Você tinha acabado de me dar um susto. Eu estou horrível!
— Foi espontânea — ele explicou. — E eu gosto muito dela exatamente por ter conseguido capturar um momento tão natural nosso.
— Ok, acho que, se formos pensar por esse lado, eu também gosto mais dela agora.
— É uma foto incrível — pontuou. — E eu também trouxe isso. É a cópia do meu primeiro artigo publicado. Não é exatamente uma memória nossa, mas me lembra de que você sempre foi quem mais me apoiou em cada passo do caminho e nada disso seria possível sem você.
A mulher deu um sorriso bobo, esticando-se para beijá-lo na bochecha.
— Você seria capaz de conquistar o mundo mesmo sem que eu estivesse lá.
— Mas é muito mais divertido com você aqui.
fez um carinho rápido com o polegar na mão dele, conforme ele ajeitava as suas próprias coisas na caixa que agora compartilhavam - assim como faziam com tantas outras coisas da vida depois dos anos juntos.
Ela se adiantou, acrescentando à ‘cápsula de memórias’ o pequeno dinossauro de pelúcia que havia ganhado de uma das crianças do grupo de voluntariado em que trabalhara ao longo da graduação, o manuscrito de sua tese de conclusão de curso, uma foto com na entrada principal do campus e o pequeno certificado de garantia do berloque com a casa cheia de balões de seu filme favorito que ele havia se virado para arranjar no seu aniversário dois anos atrás.
— Vocês ainda estão aí em cima? — ouviu a mãe gritando lá debaixo.
— Sim, senhora.
— Hora de ir — a mais velha anunciou. — Vamos formar vocês.



💛💛💛



Nunca em sua vida o advento da maquiagem à prova d’água havia sido tão absurdamente útil e necessário.
Se não fosse aquela invenção incrível, ela provavelmente estaria fazendo cosplay de guaxinim no meio da celebração. A mãe e a sogra não estariam em situações diferentes.
— Caros pais, familiares, professores, coordenadores, funcionários da universidade e queridos colegas — começou. — Estamos reunidos aqui hoje para comemorar a conclusão dos cinco anos mais surreais de nossas vidas.
“E foi louco. Foi excitante, instigante, desesperador, dramático, mas acima de tudo foi incrível. E isso só foi possível porque estávamos todos juntos ao longo de toda essa caminhada, mesmo quando ela parecia querer se tornar conturbada demais.
Fizemos mais provas e trabalhos do que eu poderia contar - e não estou realmente tão curioso assim para me arriscar a tentar -, passamos por alguns surtos no caminho, mas nada se compara com todos os momentos felizes que compartilhamos.
Rimos, brincamos, bebemos, aprendemos, nos ajudamos e nos divertimos e, no meio tempo entre tudo isso, parece que, de alguma forma, ainda conseguimos amadurecer. Bom, talvez isso dependa um pouco de ponto de vista.O senhor Osment provavelmente vai discordar.
Mas acho que o que eu realmente quero dizer é que nada disso seria possível se não fôssemos exatamente nós, exatamente desse jeito, exatamente nesse lugar.
Cada pessoa tem seu lugar no mundo e eu não poderia ser mais grato por ter o meu aqui em meio a vocês.”
Uma pequena exclamação soou entre os colegas.
— E, parafraseando a minha grande amiga, que sequer sabe que eu existo, Michelle Obama, ‘quando os tempos ficarem difíceis e o medo tomar conta, lembrem-se das pessoas que abriram o caminho para você — disse isso olhando diretamente para e, depois, para os seus próprios pais. — E pensem naquelas que estão contando com você para abrir o caminho para elas.
“Eu não faço ideia de quais serão os meus passos daqui para frente, mas espero poder devolver ao mundo tudo o que eu aprendi e todo o bem que sei que podemos fazer. E, além disso, espero que, da forma mais clichê do universo, esse não seja um adeus, mas apenas um até logo. E que nos esbarremos por aí ao longo da vida. De preferência, com um bom copo de cerveja. Muito obrigado!”
Os alunos se colocaram de pé, aplaudindo e assobiando avidamente enquanto descia do palco. secou as lágrimas do rosto com pequenas batidinhas, tentando a todo custo manter a maquiagem no lugar em que deveria ficar.
O grito de guerra da universidade foi bradado por vários adultos, sendo entoado para além do corpo estudantil, atingindo também docentes e todos os outros funcionários que eram a base daquela instituição e o motivo pelo qual ela funcionava.
correu de volta para o seu lugar, ao lado de , dando-lhe um selinho rápido ao ouvir suas palavras de parabenização acompanhadas da necessidade inadiável de esfregar em sua cara como ela havia dito que ele se sairia bem e que tudo daria certo.
Na contagem regressiva de três a zero, os capelos vermelhos foram arremessados para o alto em meio a gritos e abraços vindos de todos os lados.
Mais um ciclo se encerrava, apenas para que outro começasse. E eles não poderiam estar mais ansiosos para o que o futuro guardava para eles.

2019

se assustou ao perceber que já passavam das dez da noite. Aquela não era a primeira vez em que isso acontecia na semana.
Era cada vez mais frequente se pegar trancada em seu escritório até tarde, normalizando a situação e sequer percebendo a aproximação da noite pelo simples fato de que todos ao seu redor pareciam estar fazendo exatamente o mesmo em suas respectivas salas.
— Ai, merda — xingou baixinho, lembrando-se de repente que havia jurado para que chegaria mais cedo, a tempo de pedirem comida e jantarem juntos, especialmente porque ainda não haviam conseguido fazê-los desde que ele havia voltado de viagem três dias atrás.
A mulher desligou o computador e guardou as coisas mais importantes na bolsa, cruzando o corredor rapidamente enquanto as pequenas gotas de chuva caíam lá fora em um tempo quase tão entristecido quanto ela se sentia por dentro.
Dirigiu até seu apartamento sem se incomodar em ligar o rádio ou controlar a temperatura interna do veículo. A única coisa que ainda era capaz de tomar o suficiente de sua atenção era mesmo o trânsito - e apenas por um instinto de sobrevivência natural e primitivo.
Seguiu a rota de sempre por costume, questionando-se se deveria prosseguir por um caminho mais curto para chegar o mais rápido possível e se desculpar ou encontrar um longo trajeto que pudesse ao menos adiar a discussão e a mágoa que ela já desenhava em seu futuro próximo, vindo em sua direção em uma aproximação inevitável, como se estivesse tragicomicamente amarrada em um trilho de trem prestes a presenciar um grande desastre.
Tal como uma locomotiva, o mundo não havia parado para eles. As cobranças da vida adulta pareciam tê-los atropelado e e muitas vezes se perguntavam se ainda deveriam usar a conjunção ‘e’ entre seus nomes.
Rodar a chave na porta foi o último e decisivo passo para que seu coração se despedaçasse ainda mais.
estava bem ali, sentado no sofá em seus pijamas, vendo a reprise de algum jogo qualquer.
— Boa noite — ele disse sem se dar ao trabalho de desviar os olhos da tela.

— Tem pizza no microondas. É de pepperoni, daquele lugar que você gosta.
respirou profundamente, expirando um suspiro cansado.
— Certo, obrigada.
O homem assentiu, puxando o controle remoto e desligando a televisão. Calçou os chinelos com alguma resignação e seguiu em direção ao quarto.
chamou, fazendo-o parar apenas por um segundo. O semblante tão murcho que chegava a doer. — Eu sinto muito.
Ele aquiesceu.
— É, eu também.



💛💛💛



deixou os fones de ouvido enrolados sobre o aparador, exatamente como sempre fazia depois de suas corridas matinais aos fins de semana. Era basicamente o único jeito de ele não perder o dispositivo pela casa e só achá-lo depois de já ter cedido à derrota e comprado outro.
estava deitada no sofá, respondendo as mensagens do Whatsapp que havia ignorado deliberadamente durante a semana e se desculpando pela demora, justificada sempre pela correria do serviço e da vida.
— Sabe com quem eu encontrei perto do centro?
Ela bloqueou o celular, encarando-o, quando soltou um murmúrio interrogativo.
— Freddie — ele respondeu, rindo. — O cara está com uma barba tão enorme que eu demorei para reconhecê-lo.
— Eu não consigo nem imaginar essa cena — ela admitiu. — A imagem que eu tenho ainda é a do Freddie com a cara pelada e lisa feito bunda de nenê.
meneou a cabeça em concordância, soltando o ar pelo nariz de forma cômica.
— E foi sobre nenê mesmo que ele falou — continuou. — Aparentemente ele está namorando há um ano e meio e ela está grávida. Ele está desesperado, mas radiante.
fez uma careta.
— Meu Deus, essa história está ficando cada vez mais louca.
— Pois é. Bom, ele nos convidou para o chá de bebê. Disse que me passa o endereço pelo messenger, mas que faz questão de que compareçamos. Vai ser amanhã.
A mulher sentiu o incômodo na barriga se revirando como uma lombriga praticando os rodopios para seu solo de ginástica artística. A perspectiva de algo tão próximo e tão repentino chegava perto o suficiente de lhe causar ânsia; logo ela que sequer se lembrava da última vez em que sentira náuseas. Correria e falta de planejamento tinham se tornado as duas coisas que ela mais abominava.
— É só um chá de bebê — disse como se tivesse lido cada um de seus pensamentos traduzidos na linguagem corporal. — Não precisa surtar.
— Nós nem sabemos o que levar.
— Fraldas — ele respondeu. — Primeiro porque é impossível não ser útil, segundo porque eu já aproveitei a situação e perguntei e foi esse o pedido dele.
inspirou profundamente.
— Certo, uma preocupação a menos. Com certeza tem pacotes de qualidade naquela farmácia aqui perto. Será que temos roupas para o evento?
— Não vai ser nada formal; é só uma reunião no quintal da casa dos pais dela. Quer apostar quanto que o próprio Freddie vai aparecer com uma bermuda e uma camisa do Liverpool?
Ela riu.
— Até hoje me surpreende que ele não tenha aparecido assim na nossa formatura.
— Foi mesmo um choque para todo mundo — concordou. — Ele disse que ainda não acredita que vai ter um filho antes de nós dois.
— Bom, é o que se espera de quem não quer ter filhos, né? Que não os tenha.
— Ainda somos novos e…
, não. Eu não quero ser mãe e você sabe muito bem disso.
— Eu só estou dizendo que você pode mudar de ideia. Não é sempre você quem diz que as pessoas têm esse direito?
teve de se segurar para não bufar. Ela adorava bebês e essa sempre seria uma das justificativas na argumentação dele. O ponto era que ela não se via com competência, paciência, tempo ou vontade de fornecer cuidado ilimitado a um pequeno ser que dependesse dela por completo. Às vezes mal tinha tempo de cuidar de si mesma em meio ao trabalho, quem dirá de uma criança.
E não havia sido uma decisão difícil no fim das contas. Ela não estava abrindo mão de um sonho por outro e fora pensando na inevitabilidade inconciliável dessas duas realidades que ela percebeu que não desejava a maternidade. Queria ser tia, madrinha, amiga, babar nos filhos dos outros, porém não mãe.
Sua mãe havia ficado um pouco decepcionada, é verdade, mas também havia sido a primeira pessoa a dizer exatamente o que ela já sabia, mas precisava ouvir de outra pessoa: não existia culpa ou problema em sua decisão. Aquilo não fazia dela menos mulher e nem menos certa, justa ou amorosa como ser humano. No fim das contas, era mesmo a escolha mais acertada para a sua perspectiva.
, contudo, não havia se juntado ao clube daqueles que a entendiam. Ele não queria ouvir; não queria aceitar. Sempre que o assunto aparecia - muitas vezes trazido por ele por meio de comentários fingidamente inocentes e indiretas como havia acabado de acontecer - ele dava um jeito de inventar uma justificativa para se convencer de que aquele não era um ultimato. Eram novos demais, instáveis demais. Ainda tinham muito tempo pela frente. Os trabalhos iam mudar, as perspectivas seriam outras e os desejos também. Ela mudaria de ideia.
— As pessoas têm o direito de mudar de opinião, , assim como têm o direito de não mudar. E eu sinto muito, mas eu não vejo essa decisão em particular sendo alterada no futuro. Não é um desejo meu. Não me vejo como mãe e não quero ser uma. Essa é a realidade.
— Essa é a realidade agora — ele fez questão de enfatizar.
— Eu não posso te dar essa esperança quando sei que ela não vai se concretizar. Não é justo com nenhum de nós permitir que você se iluda dessa maneira.
— Vou tomar banho — disse, colocando fim àquela conversa como sempre fazia para evitar conflitos.
Mas , suspirando no sofá, sabia, mesmo que a contragosto, que estavam apenas segurando uma bomba que, impossível de ser desarmada, explodiria a qualquer momento.


💛💛💛



Alguém tinha conseguido exibir a paciência e a coordenação motora para empilhar vários pacotes de fralda em uma pirâmide bem sustentada. Independentemente de quem fosse, merecia seus mais sinceros parabéns chocados de quem nem sabia que aquilo era realmente possível, especialmente quando o conteúdo dentro do saco era tão mole.
Freddie havia apresentado Kourtney - a namorada feliz e inchada, exibindo uma barriga redonda coberta pelo tecido florido solto do vestido de verão. As famílias dos dois pareciam não poder estar mais felizes enquanto preparavam pequenas dinâmicas e atividades, pedindo que os convidados deixassem pequenas mensagens para os mais novos papais e para o seu futuro bebê, além de pintarem de forma customizada pequenas blusas de tamanho tão pequeno que suspeitava que ficariam justas mesmo nas bonecas que ela adorava quando era mais nova.
— Vamos fazer a revelação — a mãe de Freddie passou anunciando e chamando todos de volta para o quintal.
Quando todos estavam ali reunidos, Kourtney, com a mão sempre repousando carinhosamente sobre a barriga protuberante, sorriu ternamente e decidiu falar algumas palavras:
— Eu gostaria de agradecer do fundo do meu coração pela presença de todos vocês, queridos familiares e amigos, por fazerem parte desse momento tão especial conosco. É uma honra poder compartilhar um pouco da nossa alegria com cada um.
— E também agradecemos pelas fraldas e outros presentes — Freddie acrescentou. — O bolso do papai agradece.
— Enfim, hora de descobrir o sexo biológico do nosso bebê, lembrando que cabe apenas a ele decidir o que realmente é no futuro. Bom, vocês entenderam.
— Verde é menino, amarelo é menina — o pai explicou. — Só para vocês saberem.
Freddie e Kourtney se adiantaram para o bolo decorado com várias interrogações e pequenos brinquedos de fondant e colocaram a espátula nele, cortando juntos o primeiro pedaço.
Quando colocaram a fatia no prato, a mulher fez uma careta.
— Mas que porra… — ele praguejou.
Ela deu uma risadinha nervosa.
— Desculpa, gente. Acho que o pessoal da confeitaria se esqueceu do pedido do corante e mandaram um bolo de baunilha convencional.
— Isso é mais amarelo que verde, não? Vai ver eles pouparam serviço para a gente só assumir que era uma menina — ele tentou justificar.
— Não, amor. Acho que foi um erro deles mesmo.
— Ou de vocês que pensaram que estaria no bolo — a mãe dela falou, apontando para trás quando canhões de fumaça liberaram uma névoa esverdeada que fez os convidados berrarem e aplaudirem enquanto os dois se abraçavam.
olhou para , vendo-o fungar de leve.
— Está tudo bem com você?
— Está — respondeu rapidamente. — Vou dar os parabéns ao Freddie.
E ela foi capaz de escutar a dor pinçante em cada uma de suas palavras.



💛💛💛



As coisas não pareciam interessadas em melhorar. Se a intenção da vida realmente era se comportar como uma montanha-russa, a deles tinha atingido uma descida contínua que parecia atingir um novo fundo do poço a cada segundo. E sequer trazia a adrenalina e o gostoso frio na barriga da queda. Provavelmente a queda dos parques só era excitante e instigante porque nela havia a certeza de um limite. A esperança de que não seria para sempre. A esperança que parecia ser levada todos os dias aos poucos pelo vento que entrava pela janela de manhã.
E naquela, em específico, estava comendo torradas com manteiga enquanto lia as notícias do dia pelo celular. estava no quarto, falando ao celular com alguém que ela não sabia quem era e nem sobre o que falava. Tudo o que ela sabia era que aquela provavelmente era a primeira vez em que ele parecia demonstrar alguma emoção além da mais completa inércia. Ela ainda não sabia se sua reação àquilo era alívio ou temor.
Mais alguns minutos se passaram até que ela percebesse o silêncio se assentando em seu lugar de costume. Os goles que deu no seu café na sequência foram agraciados pelo mais puro nervosismo.
Os passos se aproximando pelo corredor a fizeram se arrumar na cadeira, sentindo todos os seus poros se acenderem da pior forma possível. Em algum canto de sua mente, uma contagem regressiva foi iniciada.
finalmente apareceu na cozinha, sério e pálido. Seu peito subia e descia em uma respiração afobada.
— O que aconteceu?
Ele não respondeu. Apenas continuou inspirando de forma entrecortada, deixando-a ainda mais nervosa.
— Pelo amor de Deus, fala o que houve. Alguém morreu? Sofreu um acidente? Eu nem sei o que pensar, você vai me matar de preocupação.
— Eu consegui a promoção que vinha tentando há meses.
sentiu seu queixo cair ao mesmo tempo em que colocou a xícara na mesa e se levantou rapidamente, abraçando-o com força.
— Meu Deus, isso é incrível! Eu sabia que você ia conseguir. Parabéns de verdade! Isso é maravilhoso!
— É, acho que sim.
— Como assim você acha que sim? É exatamente o que você sempre quis.
— A vaga está disponível, mas em Liverpool. E isso é…
— A mais de dez horas de avião daqui — ela murmurou.
— É — ele concordou, engolindo em seco. — Eu pedi um tempo para pensar.
— E o que eles disseram? — Ela sentia o medo latejando nos próprios tímpanos.
— Que eu poderia tirar o dia para pensar em uma resposta, mas deveria saber que negar uma proposta dessas, especialmente depois de tanta busca e insistência, não vai fazer bem para a imagem de alguém que busca crescer na empresa.
Não era uma suposição exagerada ou mentirosa. Na verdade, era quase uma ameaça: um aviso real e claro. O mercado de trabalho era cada vez mais brutal, especialmente em meio a uma crise crescente que parecia interessada em acumular desempregados. E não estava exatamente preocupado com os iniciantes, tão fáceis de serem cortados sem grande peso na consciência.
— Eles têm razão.
— Eu sei que têm — disse com a voz tão alta quanto tinha coragem de enunciar. E era mesmo muito pouca.
— Bem, Liverpool é uma cidade legal. Não deve ser difícil para você se adaptar — disse, sabendo que a insinuação de sua frase falava aquilo que ela não queria ter que verbalizar.
— É. Acho que você ia gostar. Principalmente de todas aquelas coisas dos Beatles.
O silêncio os cobriu com um peso asfixiante. A aceleração da gravidade parecia simplesmente ter dobrado da forma mais sádica possível, desdenhando de sua dor e apostando até onde ela poderia ir. Até quando poderia dobrar o galho até que ele se quebrasse de vez e não pudesse mais ser consertado.
— Eu não posso largar meu emprego, minha família…— ela finalmente disse, com a voz baixa.
— Eu sei — ele concordou quase em um sussurro. — Não posso te pedir isso. Não seria justo.
engoliu em seco, sentindo a própria saliva correr garganta abaixo como uma lixa de parede. Não sabia por quanto mais tempo conseguiria respirar ali sem ter força para sequer erguer o olhar na direção dele.
— Acho que a essa altura do campeonato, deveríamos estar criando e expandindo nosso conceito de família e não quebrando o pouco que temos — falou em um fio de voz.
Ela sentiu as lágrimas brotarem pelo que já estava esperando, mas havia se recusado até aquele momento a acreditar que precisaria ouvir.
— Isso não é só sobre Liverpool — comentou com a voz embargada.
— Não — ele concordou, não muito melhor.
— E o que a gente faz agora?
Eles já sabiam bem a resposta para aquilo. Era como se só agora percebessem que estavam insistindo em uma dança conjunta quando a música já havia parado de tocar há muito tempo.
Em alguma esquina ou cruzamento do caminho, pareciam ter se tornado pessoas diferentes. Tinham crescido, no fim das contas. E precisariam crescer ainda mais; dessa vez soltando as mãos e seguindo por rumos opostos e distantes por vários milhares de quilômetros que se tornariam físicos para além daquela distância que tinham criado entre seus sonhos e expectativas de futuro recentemente.
E o simples reconhecimento daquilo doía como o inferno.
Eram sete anos. Sete anos de felicidade, risadas, compreensão, cumplicidade e, acima de tudo, amor. Sete anos que se tornaram passado quando perceberam que não eram mais o futuro um do outro.
se orgulhava imensamente de ter aprendido tantas coisas ao longo da vida. Contabilidade, administração, economia, xadrez, francês, espanhol e mandarim. Mas ninguém a havia ensinado o que fazer quando uma pessoa boa a machucava. Nem quando ela sabia que a havia machucado também.
Quando finalmente pareceu se forçar para fora do transe de autopiedade e se aproximou dela para um abraço apertado, desabaram nos braços um do outro, encharcando os ombros das camisas. Ele tremeu em um soluço, quando se afastou dela apenas o suficiente para repousar um longo e doloroso beijo em sua testa.
— Me perdoa.
— Não tem do que se desculpar — ela optou pela via madura, mesmo que cada segundo que o ponteiro do relógio mostrasse passando parecesse destruí-la ainda mais do que o anterior. — Eu vivi os melhores anos da minha vida do seu lado. Você foi e é um homem incrível. Obrigada por compartilhar esse pedacinho da sua vida comigo.
Ele fungou, sentindo o coração pesando como várias toneladas, atrapalhando sua respiração.
— Eu te amo. Muito.
— Eu também te amo.
Eles ficaram ali por mais um tempo, esperando que o acervo de lágrimas represadas se esgotasse.
retornou a ligação, aceitando a proposta de emprego, e seguiu para o quarto que eles dividiam para arrumar as malas. Iria para Liverpool já ao fim da semana, mas decidira passar os dias restantes na casa dos pais, não havendo sentido em prolongar toda aquela angústia.
não teve coragem de segui-lo até o quarto e vê-lo retirando as coisas dela de seus armários e de sua vida. Sentada no sofá com um nó na garganta, ela apenas esperou.
Antes de ir embora, ele a beijou com a paixão e a súplica dolorosa de quem sabia que estava fazendo aquilo pela última vez. E se foi, levando dela o ar, o rumo e qualquer perspectiva de alegria.



💛💛💛



— Tem certeza de que quer fazer isso?
ergueu o olhar para a mãe, respirando fundo antes de dar um sorriso tranquilizador.
— Tenho — a filha respondeu. — Eu estou pronta.
A mais velha assentiu, abraçando a filha com carinho e beijando a lateral de sua cabeça, no instinto protetor materno de quem tomaria toda a dor dela se pudesse apenas para que ela não sofresse.
Mas aquele era um passo que só cabia a . E, no fundo, ela sabia que precisava dele para desenhar com um graveto na areia de sua história uma linha de chegada, apenas para saber que havia completado a corrida. O que viria depois seria uma prova nova. E ela estava pronta para começá-la, mesmo que a passos lentos.
Com a mochila nas costas, ela escalou as escadas da casa da árvore, sentindo a nostalgia da infância a abraçando e lembrando-a de que tudo sempre ficaria bem, mesmo que a chuva interrompesse a brincadeira devido à goteira no telhado.
sentou-se ali no meio, de pernas cruzadas, apenas olhando ao seu redor e absorvendo a realidade por um tempo. O choro que subiu pela garganta não se parecia mais com o de um luto por algo e não alguém que tinha morrido. Era apenas uma expressão de cansaço. De saudades. Das últimas lágrimas que ela tinha para colocar para fora depois de tanto se perguntar o que mais poderia ter feito depois de ter dado tudo o que tinha.
Por mais clichê que fosse, agora ela sabia que algumas coisas na vida apenas não eram para ser. Algumas coisas eram lindas, intensas e maravilhosas enquanto duravam, mas tinham seu prazo de validade mais curto do que gostaríamos. E era assim que ela queria se lembrar dos últimos anos de sua vida.
Respirando fundo, ela puxou a cordinha no chão, puxando a cápsula de memórias para si. Aquela que havia deixado de ser dela e se tornado deles; eles que não existiam mais, mas sempre existiriam em um canto de sua história.
E havia passado dias pensando no que fazer. Havia cogitado jogar tudo fora, colocar fogo, embalar tudo e enviar para Liverpool mesmo que sequer soubesse o seu novo endereço. Mas ela não queria se livrar de nada daquilo, assim como não poderia e não tinha a intenção de apagar um pedaço tão importante de sua história. Um pedaço em que havia sido tão dolorosamente feliz.
Ao abrir a cápsula, encontrou todas as lembranças que construíram juntos: os recortes do baile, a aprovação, os bilhetes, os artigos, as fotos… Novas lágrimas brotaram em seus olhos, mas não havia mais tristeza ali.
repousou a caixa de volta no chão e abriu a mochila. Ali, despejou as últimas coisas que havia juntado: o moletom de Stanford que ele havia esquecido em seu apartamento, a foto deles ao alugar o primeiro apartamento com o próprio salário, as cartinhas que ele lhe escrevera enquanto viajava ignorando o fato de que já se falavam por Whatsapp, o anel de compromisso. Com o toque dos dedos aos lábios e depois às lembranças, ela se despediu.
Fora imensamente feliz ao lado de . E, agora, com a caixa novamente fechada e colocada em seu lugar, ela sabia que haveria felicidade depois dele também. Não era o fim, mas uma parada na estrada para abastecer o carro e reiniciar a viagem.
E aquela viagem contava com um pôr do Sol maravilhoso no horizonte, sinalizando pelo calor em suas bochechas que o futuro seria tão lindo quanto o passado.
— Obrigada por tudo — ela murmurou, sorrindo e secando os olhos, olhando para o alto como se estivesse fazendo-o em direção a Liverpool. — Espero que você seja feliz.
E ela nunca havia sido tão sincera em toda a sua vida.


****************************************



"Acha que pode me dar mais um beijo? Encontrarei um fim nos seus lábios e irei embora.
Talvez, também mais um café, mais um almoço, mais um jantar. Eu ficarei cheia e feliz, e podemos ir embora.
Mas, entre as refeições, talvez possamos nos deitar mais uma vez. Mais um momento prolongado em que o tempo é indefinidamente suspenso enquanto eu descanso a cabeça em seu peito.
Minha esperança é a de que esses “mais uns” cheguem a uma vida inteira e nunca à parte em que te deixo partir. Mas não é real, é? Não existem “mais uns”.
Eu te conheci quando tudo era novo e emocionante, e as possibilidades do mundo pareciam infinitas. E ainda são, pra mim e pra você. Mas não pra nós.
Em algum lugar entre aquela época e o agora, ou o aqui e o lá, não acho que nos distanciamos, nós crescemos.
Quando algo se quebra, se os pedaços forem grandes o bastante, é possível consertar. Infelizmente, algumas coisas não se quebram, se estilhaçam. Mas, se deixarmos a luz entrar, o vidro estilhaçado brilha.
E nesses momentos, quando o sol bater nos cacos que fomos, só vou me lembrar do quanto foi lindo. Do quanto sempre será lindo.
Porque éramos nós. E nós éramos mágicos. Pra sempre!”
— Alguém Especial (2019), Netflix.



FIM



Nota da autora: Confesso que, mesmo sendo simples, essa história me deixou meio abalada escrevendo haha. É complicado aceitar o fim das coisas, especialmente quando não há ninguém a culpar.
MAS espero que vocês tenham gostado! Essa música é muito especial para mim e foi um prazer escrevê-la.
O link do grupinho do facebook tá aí embaixo, se tiverem interesse <3
Até mais!

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Outras Fanfics:
Propunere (Atores - Sebastian Stan - Em Andamento)


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