Capítulo Único
Parece que tudo aconteceu ontem.
A maneira com que nos apaixonamos foi quase ofensiva para aqueles ao nosso redor; a menina riquinha, dona das melhores notas da escola, e o problemático que morava com sua mãe. Seu pai havia fugido quando ele ainda era bebê, despreparado para as responsabilidades que uma criança trazia. Mas quem está preparado para isso aos 16 anos de idade?
A partir do momento em que conheci Jack e aprendi a história de sua mãe, admirei-os. Especialmente ela. Ela saiu da casa de seus pais logo após o namorado fugir. Começou um pequeno negócio de marmitas e agora era dona da maior franquia de restaurantes do estado de Nova York. E estava prestes a abrir seu primeiro restaurante no exterior, em Londres.
Jack e eu nos entendíamos. Eu jamais poderia comparar nossos problemas, mas minha vida nunca foi tão perfeita quanto todos pensavam. Meus pais tinham um casamento terrível, alimentado apenas por aparências e não por amor. Eu tinha pressão vindo de todos os lugares para ter sucesso, e ele também, mas de um jeito diferente.
Nossa química era como fogo, entrando em combustão no momento em que colidíamos. Eu o amava com tudo de mim, e havia algo que nunca consegui entender que me dizia que aquilo não era apenas mais uma paixonite adolescente.
E então ele decidiu começar uma banda com seus amigos. Lembro-me que amava ouvi-lo cantar e tocar violão, então dei todo o apoio possível quando ele me contou sua decisão. Mas conforme eles conseguiam shows, conforme começaram a fazer sua própria música, começaram a chamar atenção. Até que uma gravadora de outra cidade ofereceu a eles um contrato de gravação.
Ele estava mais que animado e vê-lo sorrir me fazia sorrir também. Mesmo sabendo que nosso relacionamento iria precisar de muito mais dedicação com uma distância de horas entre nós - morávamos em Washington -, eu estava disposta a tentar.
Eu tinha 18 anos de idade. É claro que estava disposta a tentar. Ele era tudo que eu queria.
E teria tentado o meu melhor para fazer tudo funcionar, se ele não tivesse terminado comigo na noite anterior à sua viagem para a primeira tour pelo país.
Até hoje, não sei o que aconteceu. Não sei se ele estava com medo da dificuldade de um relacionamento à distância, ou se simplesmente não queria ser um rockstar em ascensão namorando.
E até hoje, ainda desejo que ao menos pudéssemos ter tentado.
Capítulo I
Era uma quarta-feira chuvosa e eu estava relutando em sair da cama. Odiava a chuva, e odiava Nova York na chuva ainda mais.
Não entendia o que acontecia com as pessoas em dias chuvosos; parecia que todos perdiam a noção, e de repente, a cidade se tornava um caos. O metrô era um caos, o trânsito era um caos.
Eu trabalhava em uma revista de moda como editora de redação, algo considerado como um triunfo aos 27 anos de idade. Tinha montes de trabalho para fazer antes que a próxima edição saísse, na próxima semana.
Liguei a TV da sala para fazer barulho enquanto me arrumava, e, por algum motivo, estava passando E!News às sete horas e pouco da manhã. Dei risada de alguns comentários que ouvi enquanto me vestia, e, no momento que passava pela sala para ir à cozinha, uma imagem na TV me fez paralisar.
Era ele. Ali, praticamente na minha frente.
Eu odiava o fato d'ele ser famoso. Odiava o fato de que, nos últimos nove anos, tinha que evitar rádio, TV, e a maioria das premiações que tanto gostava de assistir.
A carreira de sua banda era sólida, especialmente após todo esse tempo no dia-a-dia das pessoas. Eles estavam em todos os lugares. E eu tinha que enfrentar as lembranças que seu rosto trazia a cada lugar que ia, mesmo tentando ao máximo que isso não acontecesse.
Perdi-me em pensamentos e, quando voltei a mim, o que quer que estivessem falando dele já havia passado. Respirei fundo, balançando a cabeça para tentar espantar o que insistia em me assombrar.
Quando cheguei ao trabalho, quase duas horas depois - o trânsito estava realmente tão ruim quanto imaginava -, fui recebida por um abraço de urso de minha melhor amiga e supervisora de fotografia, .
- Bom dia, ! - ela sorriu, bagunçando meu cabelo não muito delicadamente. Sarna.
- Bom dia, Grey. Como foi sua noite? - indaguei, afastando sua mão e dando uma risada.
- Não sei por que você insiste em me chamar de "Grey". Me sinto como aquele cara do filme pornô-que-não-chamam-de-pornô. Como é o nome daquilo mesmo? - uma das grandes características de , que apesar de ser conveniente em alguns momentos, podia ser irritante, era que ela falava pra caramba. Mesmo.
- 50 Tons de Cinza. E nem vem falar mal porque você saiu do cinema com taquicardia, tá? - Ergui as sobrancelhas, assistindo-a bufar. - E você ainda não respondeu a minha pergunta.
- Minha noite foi maravilhosa, dormi de babar - exclamou e em seguida fechou o sorriso, dando um suspiro profundo.
- O que foi?
- Julgo que você tenha assistido o canal E! enquanto se arrumava essa manhã?
Acompanhei-a no profundo suspiro, murmurando; - Você realmente me conhece, né? Te odeio.
sorriu tristemente, apertando meu ombro.
- Vai ficar tudo bem. Mas acho melhor você se preparar.
- Me preparar pra quê?! - Franzi a testa, sentindo-me perdida. Como assim? O que ela queria dizer com isso?
- Só... Se prepare. Ok? Te amo. Meio-dia passo aqui pra gente ir almoçar. - Ela soprou um beijo e virou as costas, sumindo rapidinho corredor adentro.
Era só o que me faltava. Além de todo o trabalho que tinha pela frente, minha melhor amiga ainda me fez o favor de colocar uma pulga atrás de minha orelha.
Eram quatro horas da tarde e eu havia concluído praticamente tudo que precisava fazer. Apesar de ter me distraído com o que disse, o dia tinha corrido normalmente e faltavam só mais duas horas para eu estar fora do escritório e em um banho quente.
Ou pelo menos tudo tinha sido normal até aquele momento. Até aquele som.
Até que meu mundo inteiro parecia ter começado a desabar ao meu redor.
Prendi a respiração, e enquanto parecia que eu estava presa em câmera lenta, meus pensamentos se moviam em uma velocidade inacreditável. Eu sabia que tinha que tomar uma atitude, decidir o que fazer, mas quaisquer ideias que eu tinha pareciam idiotas demais.
Ficar e tentar agir normalmente ou fugir como uma menininha assustada?
Fugir como uma menininha assustada. Definitivamente.
Meu estômago estava em um nó e minhas pernas pareciam gelatina quando finalmente juntei coragem suficiente para levantar da cadeira. Por que eu tinha escolhido usar um dos saltos mais altos que tenho? Em uma segunda?! Jamais fazia isso. Jamais.
Segundas eram aquele dia para ser preguiçosa sem sentir culpa alguma por isso. E exatamente quando eu precisava de minhas lindas e confortáveis sapatilhas, tinha que lidar com um salto de 10 centímetros.
Sortuda, sortuda, sortuda.
As vozes estavam ficando cada vez mais altas, então juntei minha bolsa e enfiei meu celular dentro dela de qualquer jeito, sem ao menos me dar ao trabalho de desligar o computador e fugir mais dignamente. Eu tinha que dar o fora dali o mais rápido possível. Não havia tempo para detalhes.
Corri - ou ao menos tentei - pelo corredor que levava às escadas. Parecia que eu havia acabado de começar a descer os degraus quando ouvi minha assistente exclamar:
- Onde diabos ela foi?
Não consegui me segurar e dei uma risada, enquanto lutava para chegar ao térreo sem quebrar uma perna. Sentia um pouquinho de adrenalina por estar em fuga, mas sabia que assim que chegasse a um local seguro, quaisquer sentimentos que estavam sendo reprimidos por ela achariam seu lugarzinho na superfície. E sabia que estaria ferrada quando isso acontecesse.
O toque escandaloso de meu celular ecoou de dentro de minha bolsa, me assustando e quase fazendo um grito extremamente menina-fugindo-do-assassino escapar de meus lábios. Catei meu celular e o silenciei, vendo na tela que quem estava ligando era minha assistente.
Droga. Tudo o que podia esperar era que ninguém houvesse ouvido o eco de meu toque. Senão haveria pessoas me procurando - e o culpado por minha fuga, obviamente, não era a pessoa que eu mais queria ver no mundo.
A vida podia ser uma vaca às vezes. Exatamente quando você pensa que ela chegou a um lugar legal, onde você se sente satisfeita com tudo e todos que fazem parte dela, tudo vira de cabeça para baixo e te deixa tonta e sem ar.
Mas sua imprevisibilidade era também uma das razões pelas quais eu a valorizava tanto.
Cheguei ao meu carro, estacionado em frente ao prédio, e enfiei as mãos no buraco negro que ousava chamar de bolsa em busca de minhas chaves. Caramba, que porcaria! Cadê elas?
Em puro desespero, despejei todo o conteúdo da dita cuja sobre a calçada, na esperança de tornar o processo ao menos um pouco mais rápido. As pessoas passavam por mim e me encaravam como se eu tivesse acabado de roubar aquela bolsa e procurasse por algo de valor. E ali estava: Cinco batons diferentes, mini escova e pasta de dente, minha carteira, meu celular, uma pinça de sobrancelha, dois óculos escuros e alguns grampos de cabelo. E um absorvente. E nada de chaves. Ai, meu senhor. Onde elas estavam?!
Um flash passou por minha mente, como uma cena daqueles filmes no momento em que a pessoa se dá conta de que está muito, muito ferrada. A imagem que apareceu para mim foi de minhas chaves, lindas e belas, sobre a escrivaninha, ao lado da impressora. Eu havia saído tão rápido que nem tinha percebido que elas estavam ali.
E agora eu não tinha uma maneira rápida de fugir dali. Olhei ao meu redor, considerando minhas opções. Eu poderia voltar, utilizando as escadas novamente, arriscando ser avistada por alguém; ou, eu podia juntar todas as minhas tralhas e sair correndo, e voltar mais tarde dizendo que fui tomar um café. Ótima ideia. Tomar um café.
Eu precisava muito de cafeína.
Mas, como os anjinhos adoram tirar uma com a minha cara, assim que joguei tudo de volta pra dentro da bolsa e me levantei, ajeitando meus trajes, a pessoa que eu menos queria ver atravessou as portas do saguão e seu olhar foi imediatamente de encontro ao meu.
Capítulo II
Ai, Senhor.
Virei o rosto drasticamente, começando a andar o mais rápido que conseguia com meus pés já extremamente doloridos.
- ! - a voz masculina ecoou pela rua, chamando a atenção de algumas pessoas que passavam. Ignorei-a, continuando a andar no mesmo ritmo. - ! Por favor, espere! - a voz chamou novamente, mas eu estava determinada demais a continuar.
Foi quando uma mão agarrou meu braço e me forçou a parar.
- Achei que tinha deixado claro que não queria conversa quando continuei a andar - anunciei, virando-me vagarosamente e me desvencilhando de seu toque.
Ele abriu um sorriso torto, tirando seus óculos escuros e revelando aqueles olhos indecifráveis que sempre tinham a capacidade de me fazer sentir como se eu fosse uma boba. Como se eu não conhecesse a pessoa que estava por trás deles, e nem nunca iria conhecer.
Mas hoje, sob esse céu nublado, eles pareciam mais penetrantes do que nunca. Como se fossem me despir e mostras todos os pecados e as mágoas e as culpas.
Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos que tentavam tomar minha mente. Concentrei-me no concreto da calçada, no passo acelerado dos pedestres, no cheiro de salsicha que vinha da barraquinha de cachorro-quente da esquina, que me fazia sentir fome. Concentrei-me em qualquer coisa que não fosse seu rosto, ou suas roupas, ou suas mãos. E acho que isso não passou despercebido.
- Por que você se recusa a olhar para mim, ? - ele indagou suavemente, colocando seu dedo indicador sob meu queixo e me forçando a olhar para cima.
Ali estava. A cor castanho-escuro era tão bela, apesar de eu preferi-los quando estavam sob a luz. Tornava-se então de um castanho claro, cor de mel.
- Não sabia que ainda precisava explicar. - Sorri amargamente. - Pode parar de me tocar?
Jack afastou sua mão como se houvesse levado um choque. Pude ver algo como mágoa passar por seus olhos, mas um segundo depois o castanho tornou-se novamente indecifrável. Foi quase como um triunfo ver que o que eu havia dito o fez ficar magoado, nem que fosse um pouquinho só. Era injusto que por todos esses anos eu o visse sorrindo em eventos e revistas, enquanto sentia a mágoa do que havia acontecido me corroendo por dentro.
Nunca consegui "seguir em frente". De alguma forma, aquele amor que não havia durado tanto tempo assim se enraizou em mim, como se fosse algo essencial para minha sobrevivência. E de alguma forma, também, eu consegui sobreviver sem ele por uma década.
Nossa, como estou velha.
Jack retirou-me de meus devaneios aproximando-se de mim. O calor de seu corpo me despertou completamente, o cheiro de seu perfume invadindo meus sentidos e me fazendo sentir acordada como nunca. Meu corpo inteiro estava tenso, esperando o contato, querendo que aquela distância se acabasse, para que eu pudesse me lembrar do que conhecia tão bem. Mas não foi isso que aconteceu. Não que Jack não quisesse; sua boca estava levemente entreaberta, seu hálito quente acariciando minha bochecha de tão próximos que estávamos. Sua respiração era fora de ritmo, eu podia perceber, e seus olhos estavam mais escuros.
- Eu preciso conversar com você - ele declarou, após segundos que pareceram eternos.
- Acho que você chegou uma década atrasado para conversarmos - provoquei, mantendo meu olhar tão firme quanto possível.
Mais uma vez aquele olhar magoado surgiu, e quase comecei um placar mental. Mas, por algum motivo, essa oportunidade de fazê-lo sentir culpa quase me fez senti-la.
Ele sorriu fracamente, um gesto que deveria demonstrar felicidade, passando longe desse sentimento.
- Pensa que não sei? - disse, e presenciei sua figura que estava acostumada a ver andando por aí orgulhosamente mudar completamente. A pessoa que aparecia nas revistas como um galã estava agora à minha frente, com os ombros levemente caídos, como se o peso do mundo estivesse sendo sustentado por eles. - Eu sinto muito, e sei que de nada adianta falar isso. - Pausou, e nessa pausa eu quase soltei uma risada sarcástica. - E sei que não tenho direito de vir aqui do nada e simplesmente pedir que você ache tempo para mim. Mas eu preciso, preciso realmente falar com você. Por favor.
Suas mãos fecharam-se em um punho e voltaram ao normal. Percebi que ele estava se segurando ao máximo para evitar me tocar.
Suspirei, abraçando meu corpo e tentando fazer com que minha mente parasse por um minuto. Queria tomar a decisão sensata, reunir as palavras exatas para que ele sumisse da minha vida de uma vez por todas e eu pudesse realmente sair desse relacionamento em que estava presa há tanto tempo.
Mas tudo que minhas cordas vocais queriam falar era que sim. Que eu desesperadamente queria conversar novamente com ele, como nos velhos tempos; falar sobre música, dar risada da roupa daquela senhora da nossa rua que não tinha o mínimo senso fashion. Queria tudo que havia perdido. Queria beijá-lo novamente, e abraçá-lo, e chorar no seu ombro dizendo que sentia sua falta mais do que tudo, todos os dias.
Fechei os olhos e balancei minha cabeça, espantando todas essas vontades, e pensando em uma estratégia.
- Não sei, Jack - murmurei, dando de ombros. - Quem sabe outro dia.
Virei as costas e continuei em direção ao café do outro lado da rua, sentindo seu olhar queimando em minhas costas.
Se ele queria mesmo que eu desperdiçasse meu precioso tempo com ele, teria que fazer mais do que falar.
Capítulo III
Por algum motivo desconhecido - ou que eu simplesmente estava tentando ignorar e não queria admitir -, eu não conseguia desgrudar de meu celular.
Normalmente, eu o mantinha jogado dentro da bolsa, ou em qualquer lugar aleatório, - sem falar nas inúmeras vezes que o esqueci em casa e quase fui assassinada por meus colegas - porque, apesar de ser uma ferramenta para entrar em contato com pessoas, eu preferia utilizar o e-mail diretamente de meu computador. E, após meu dia de trabalho, fazia algo combinado previamente com minhas amigas ou recebia ligações apenas delas. Qualquer assunto relacionado a trabalho após as 18h00min era completamente ignorado pela minha pessoa.
Eu sei que todos pensam que sou uma workaholic, mas não é bem por aí. O meu tempo e espaço pessoal são meus e só meus.
Só que, desde aquele fatídico dia em que meu ex apareceu em meu trabalho e virou tudo de cabeça pra baixo, meu celular não saía de meu bolso, ou de meu alcance imediato. Pra falar a verdade, eu nem sabia se ele tinha meu número, mas sabe como são os famosos. Aposto que ele conseguia o que quisesse com um estalar de dedos.
Uma das características que mais gostava em mim mesma era que conseguia sentir se uma pessoa estava contando uma mentira, e eu sempre estava certa. Eu desconfiava que minha querida assistente houvesse passado meu contato, apesar de assisti-la negar milhares de vezes ao longo da semana que se passou.
Uma semana inteira. O filho da mãe chega aqui depois de uma década dizendo que precisa conversar e depois uma semana se passa sem qualquer tentativa de contato. Não sei se ele era um trouxa por fazer isso comigo ou se eu era trouxa por permitir que ele tivesse esse efeito sobre mim, sobre minha vida.
Ao mesmo tempo que ansiava pelo toque do telefone ou por qualquer sinal da existência daquele ser, eu me odiava por estar tão ansiosa. Não sei se foi o fato de nunca termos tido um fim verdadeiro, por assim dizer, que me fez ficar assim, ou se eu simplesmente era uma baita duma idiota.
É difícil dirigir direito quando sua mente está tão ocupada, e por isso levei muitas buzinadas no caminho para casa, após mais um longo dia de trabalho. Uma semana e um dia.
A chuva estava ficando pior a cada minuto que passava, raios colorindo o céu coberto de nuvens de branco. Dei graças a Deus quando estacionei o carro na garagem e subi pelo elevador até o 11º andar.
Estava mexendo na bolsa à procura de minhas chaves, e quando as encontrei e estava prestes a abrir a porta, me deparei com um pequeno bilhete preso à ela por um pedaço de durex.
Mal acreditei nas palavras quando as li.
Restaurante da Elisa, Quinta Avenida Oito horas. Estará lá?
Elisa. O nome da mãe de Jack, da mulher que me acolhera e me tratara como sua filha por todo nosso namoro, me fez sorrir um pouco. Eu sentia muita falta dela.
Mas como diabos ele tinha conseguido meu endereço? E como tinha conseguido acesso ao prédio sem ser convidado?
A resposta me ocorreu quase tão rapidamente quanto as perguntas. , minha assistente. Ela tinha a chave da porta principal pois vivia trazendo rascunhos para que eu revisasse e aprovasse. Todos os porteiros a conheciam. É claro que ela tinha ajudado o maldito garoto.
Por um segundo, considerei ficar com raiva dela. Mas a curiosidade chegou mais rápido. Por que Jack me levaria para jantar justamente no restaurante de sua mãe? Ele sabia que sua presença ali muito provavelmente causaria um alvoroço.
Balancei a cabeça, finalmente virando a chave e adentrando meu apartamento. Larguei a bolsa e o que mais tinha na mão sobre o aparador próximo à porta, quase derrubando o vaso que havia ali. Passei reto para o banheiro, louca por um banho quente após um dia tão cheio.
O que eu deveria fazer?, pensei, sentada em um dos bancos ao redor da ilha da cozinha, vestindo meu roupão mais fofinho e com meus cabelos enrolados em uma toalha. O relógio tiquetaqueava mais alto do que nunca, praticamente tirando uma com a minha cara.
Você tem uma decisão a fazer. Tic-tac. Ir ou não ir? Tic-tac. Ele merece uma chance assim tão fácil após tanto tempo?
19h46. 19h47. Os minutos se passavam, e mesmo que eu decidisse ir ao restaurante, já estava super atrasada.
Uma batida frenética na porta me acordou de meus devaneios, e dei uma rápida espiada pelo olho mágico antes de deixar a pessoa entrar. Era . E parecia próxima a um ataque cardíaco.
- VOCÊ SABE QUE HORAS SÃO?! - ela praticamente berrou, seus olhos arregalados, me sacudindo pelos braços.
- Sete e cinquenta? - respondi, hesitante, com medo que minha melhor amiga fosse realmente me atacar.
- Exatamente! - ela me soltou, andando até o meio da sala e passando a mão livre, trêmula, pelos cabelos. - Você tem apenas dez minutos para se arrumar!
- O-o quê?! - indaguei, minha voz saindo alta e histérica demais. - Como você sabe disso?
- Fui eu quem trouxe o bilhete de Jack aqui, sua idiota.
Ah. Foi mal, .
- Como você pôde fazer isso? Sabe como me sinto com relação a ele! - eu não sabia se ficava P da vida ou feliz por ela ter feito isso e estar ali.
- Exato! Foi por causa do que você sente por ele que resolvi te ajudar.
- , você tem que entender. Eu não posso simplesmente aceitar um convite pra um jantar depois de tudo!
- Por que não? - sorriu fracamente, voltando para perto de mim. - Ele ligou para mim há mais ou menos duas semanas, falando que estaria aqui e pedindo um favor. Arranjei uma entrevista, para ele te encontrar no escritório.
- Sua vaca! - foi tudo que consegui dizer, querendo dar um soco nela. Ou um abraço.
- Ele parece realmente querer acertar as coisas. Só estava com vergonha demais para vir até você.
- Não me engane, . Por favor. - Senti meus olhos ficarem marejados com o medo de passar por tudo aquilo novamente. Ser abandonada por quem ama não é exatamente fácil.
- Estou falando sério, . Vai dar tudo certo dessa vez.
Minha melhor amiga me deu um abraço forte e praticamente me arrastou para o quarto. Escolheu o que eu iria vestir - um vestido preto de mangas compridas e costas nuas, todo bordado em miçangas e pedrarias. Era de uma estilista brasileira, e eu o amava. Juntou-o a alguns acessórios dourados, um scarpin preto e um sobretudo pink, quase avermelhado.
Foi a escolha de roupa mais rápida que ela jamais havia feito. Geralmente levávamos pelo menos uma hora para fazer isso.
Minha maquiagem ficou com um leve esfumado preto, delineador e muito rímel, unidos a um batom pink; meus cabelos estavam soltos, ainda meio molhados.
fez a proeza de me arrumar em 15 minutos como se eu estivesse prestes a fazer um ensaio para a revista. Fiquei muito orgulhosa pela amiga e profissional que tinha em mãos.
- Eu não acredito que vou fazer isso - minha voz estava trêmula e falha, e eu estava tremendo inteira, apesar do aquecimento central. - Meu Deus, . Eu não consigo.
- Ah, consegue sim - esbravejou, catando minha mão e me arrastando porta afora. - Eu não passei os últimos 15 minutos me matando para você ficar maravilhosa dentro de casa. Não, não, o mundo deve vê-la assim. Especialmente o Jack. - Após esse comentário, ela deu uma risadinha maliciosa, e ganhou um tapa no braço. Se eu não estivesse tão nervosa, até teria rido também.
Chegamos à rua e abriu seu guarda-chuva, e seguimos até onde seu carro estava estacionado.
O relógio no visor marcava 8:15, e o trânsito não ajudava em nada com aquele tal de nervosismo. Eu não consegui parar de falar por todo o caminho, e sentia que estava prestes a me estapear. Mas, assim que minha melhor amiga, por algum milagre, conseguiu parar bem em frente ao restaurante, me calei.
Todas as palavras fugiram, como se o dicionário houvesse sido apagado da minha mente.
- Então? Agora que chegamos, você não vai falar nada? - questionou, erguendo as sobrancelhas. - Vamos, . Vai dar tudo certo. E não posso ficar parada aqui. - Ela apertou minha mão delicadamente, provavelmente com medo que eu surtasse.
- Ok - murmurei, abrindo a porta e soltando um suspiro pesado antes de sair.
- Boa sorte!
Pisei na calçada com pernas ainda trêmulas. Assim que atravessei a porta de entrada, alguém puxou meu braço e começou a me guiar por uma porta, para o parecia ser a direção da cozinha. Agradeci a Deus por essa cena não estar acontecendo em frente a todas as pessoas no restaurante.
- O que você está fazendo? - perguntei, meio indignada, meio curiosa, quando finalmente vi quem estava me segurando.
Era ele. E estava usando um smoking preto que o deixava maravilhoso. Quase me senti como se estivéssemos prestes a chegar a algum festival. E desejei que isso fosse verdade, que eu pudesse de alguma forma fazer parte de sua vida. Estar presente.
- Você já vai ver - ele falou, me dando uma olhada e lançando uma piscadela.
- Jack, se você não me contar agora mes... - não consegui terminar a frase pois ele parou. E eu fui com tudo ao seu encontro, bem pra dentro de seus braços. - Ai! Você realmente não está nem aí, né? Primeiro me arrasta pra cá sem nem me dar um "Oi", e agora quase me mata - reclamei, tentando me desvencilhar.
- Você não quase-morreu, . - Jack riu, procurando por meus olhos. - E está linda. - Declarou, junto a um suspiro pesado. Seus olhos estavam mais castanhos do que nunca, penetrantes, mas ainda assim, seu olhar me aquecia.
- Obrigada. - murmurei, sentindo minhas bochechas esquentarem um pouco. - Você também.
Um segundo de silêncio constrangedor se seguiu, até que Jack fez seu comentário: - Eu sei. - alegou, dando um sorriso de lado convencido. Eu sabia que ele estava brincando, e acabei dando uma risada.
- Continua o mesmo palhaço - falei, me dando conta de que seus braços ainda estavam ao redor de minha cintura. Fiquei consciente de seu calor. E apavorada pelo quão confortável eu estava ali, bem ali.
Desvencilhei-me, enfim, limpando a garganta para disfarçar a vergonha que retornava.
- Aonde estava me levando, mesmo?
- Para a cozinha. - Jack estendeu a mão, convidando-me a pegá-la. E eu o fiz, sentindo meu coração acelerar quando seus dedos se entrelaçaram aos meus.
Socorro.
Andamos mais alguns passos e chegamos à cozinha, abarrotada de pessoas indo e vindo apesar do amplo espaço. Garçons com bandejas cheias de bebidas ou de pratos cheirosos. Chefs e sous-chefs correndo para lá e para cá, temperando pratos, virando steaks nas grelhas. A fome resultante de horas sem refeição me abateu.
Olhei ao redor, esperançosa de encontrar o rosto familiar de minha (ex?)sogra. Fiquei desapontada ao perceber que ela não estava por ali.
Jack não deixou de perceber que eu estava procurando por alguém, e se deu conta de quem era sem eu dizer.
- Ela não está aqui - ele falou, apertando minha mão levemente. - Está em Londres, acertando alguns detalhes do restaurante novo.
Antes que eu pudesse responder alguma coisa, um dos chefs, um homem de meia-idade com cabelos levemente grisalhos veio até nós e deu um abraço exagerado em Jack, quebrando nosso contato. Minha mão pareceu estranhamente fria sem o seu toque.
- Monsieur Jack! Há quanto tempo você não dá as caras por aqui! - o chef disse, sua voz banhada por um sotaque francês, enquanto trocavam um abraço. Assim que se separaram seu olhar pousou em mim. - E quem é esta bela moça?
- . - apresentei-me, sorrindo. - Muito prazer...
- Chef Pierre. Muito prazer. - Ele pegou minha mão rapidamente, sorrindo. - Sua refeição está pronta, Monsieur Jack. Espero que aproveitem, eu mesmo a fiz.
Por coincidência, nesse momento um dos garçons entregou uma sacola com alguns potes dentro a Jack. Ele se retirou tão rapidamente quanto apareceu.
Peraí. Nós íamos comer em outro lugar?
Eu estava muito, muito curiosa, mordendo o interior da minha bochecha, louca para estar sozinha com Jack novamente e poder perguntar o que ele tinha planejado.
Nos despedimos do Chef e ele me guiou pela saída dos fundos, onde um Range Rover preto estava estacionado.
- Aonde você vai me levar? - perguntei, enfim, assim que entramos no carro.
Jack sorriu, colocando o cinto e dando a partida no carro. - Você vai descobrir logo, logo - ele disse, com toda a graça de quem está tentando ser misterioso.
- Como assim? Sabe, eu poderia ligar para a polícia agora mesmo e dizer que estou sendo sequestrada. - Bufei, cruzando os braços e olhando diretamente para a frente.
Percebi pela visão periférica que Jack retirou do bolso seu celular, oferecendo-o a mim. - Aqui, pode usar meu telefone - falou, dando uma risada quando lancei um belo tapa em seu braço. - Desde quando você é tão forte assim?
- Você ficou longe por um bom tempo, Jack. Muita coisa em mim mudou. - Fiz de tudo para minha declaração soar casual, mas tenho certeza que acabei deixando transparecer um pouco da mágoa que havia guardado em mim.
Um silêncio se instalou após o que falei, as palavras pairando no ar. Puni-me internamente por ter dito aquilo; ele não tinha direito de saber o quanto o fato de ter ido embora me afetou.
Mas, após longos minutos desse silêncio, algo inesperado me fez ficar ainda mais nervosa. Jack pegou minha mão na sua, fazendo carinho nas costas da minha com seu dedão. Aquele simples toque parecia ter feito meu coração derreter.
- Eu nunca, nem por um segundo, me esqueci de você - ele confessou, mantendo seu olhar na estrada enquanto eu o observava.
"Por todo esse tempo, os caras da banda me falaram para entrar em contato com você, mas eu... Eu simplesmente achava que não merecia uma segunda chance. E ainda não tenho certeza se mereço. Mas só consigo pensar que sinto falta demais da sua presença para não tentar.”
Senti meus olhos se encherem de lágrimas com sua declaração repentina, um nó se formando em minha garganta.
- Para o carro. - Minha voz soou afogada, mas ainda assim muito séria.
- Por quê? Você está bem? - Jack me olhou rapidamente, sua voz mostrando preocupação.
Não consegui responder sua pergunta, e ele não precisou de uma resposta pra fazer o que pedi. Logo estávamos parados no acostamento de uma estrada qualquer - finalmente percebi que ele estava me levando para outro lugar, fora de Nova York. E minha atenção até teria sido fixada nesse fato, se não fossem seus olhos castanhos se prendendo nos meus.
- O que foi, ? O que você tem? - Jack mexeu no meu cabelo, seus dedos deixando um rastro de arrepios por meu pescoço.
- Nada. Eu só... Só queria que você olhasse para mim. - Dei uma risada envergonhada, tentando desviar o olhar, mas ele me impediu, segurando meu queixo delicadamente.
- Você acha que poderíamos tentar novamente?
- Ah, Jack... - Suspirei, me aproximando ainda mais dele, nossos narizes encostando. - Eu não estou aqui?
O menino dos olhos castanhos, que eu amava há tanto tempo, acabou com a distância entre nós, encostando seus lábios nos meus, levemente, como se com medo de que eu não quisesse aquilo, querendo me dar a oportunidade de sair.
Mas eu não saí. E aquele beijo tão aguardado por tanto tempo tinha gosto doce, nos fazendo sorrir e dar risada no meio de tudo. Era a bagunça mais feliz de toda a minha vida.
- Sabe, Jack - comecei, respirando fundo, quando enfim nos separamos.
- O quê?
- Esse cheiro de comida tá me matando desde que chegamos àquela maldita cozinha. Você tem noção de que eu estou com o estômago à base de café desde o almoço, né?
- Tenho sim. - Ele riu, ficando de joelhos no banco de motorista e se esticando pra pegar a sacola do banco de trás. - Aqui. Vou matar sua fome. Afinal, que tipo de sequestrador seria eu sem te alimentar?
Ele abriu os potes, o aroma da comida ficando ainda mais forte. - Então, spaghetti bolognese ou risoto ao funghi?
- Spaghetti. - Peguei o pote, juntamente com um dos garfos que estavam dentro da sacola também.
- Viu? - ele ergueu uma sobrancelha, comendo uma garfada de seu risoto.
Olhei para ele, mastigando meu spaghetti e esperando por um esclarecimento.
- Algumas coisas nunca mudam.
Durante nossa refeição super chique, Jack abriu o porta-luvas e tirou dali duas taças e uma garrafa de vinho que, para minha surpresa, estava gelada. Bebemos e comemos até estarmos com os estômagos cheios e a garrafa estar pela metade.
- Então esse era o seu plano? Jantar no carro no acostamento de uma rodovia? - perguntei, juntando os potes e fechando-os na sacola.
- Não exatamente. Mas tinha alguém que ia morrer se soubesse que teria que esperar mais 20 minutos para comer.
- 20 minutos? Pra onde você está me levando?
- Você ainda quer ir lá?
- Claro que sim.
Sem falar nada, Jack deu a partida no carro novamente e voltou a dirigir. Sem dizer nada. Ele realmente queria me matar de curiosidade.
Capítulo IV
Exatos 20 minutos depois, estacionamos próximo em um gramado enorme, com um caminho de árvores traçado por luzinhas de natal se estendendo à nossa frente, revelando ao fundo somente um pedacinho de uma casa de dois andares. Não estava chovendo ali, e não parecia ter chovido nem um pouco.
Eu sabia onde estávamos mesmo antes de sair do carro. E pelo olhar de Jack ao me ajudar a sair do carro, ele sabia que eu sabia. E tinha um sorriso quase convencido brilhando em seu rosto.
- Eu não acredito nisso - murmurei no exato momento em que um suspiro escapou.
- Vem, eu quero te mostrar uma coisa. - Ele pegou minha mão e começou a me guiar pelo caminho de luzes, até que contornamos a casa e o que ele tinha realmente planejado para nossa noite.
O Rose Garden estava ali, bem à minha frente, também todo decorado com luzinhas. E, em meio a todos os arbustos, em frente à fonte, estava uma enorme toalha branca estendida no chão, com uma cesta de vime e uma garrafa térmica ao lado.
- Você sabia que eu ia querer jantar antes - afirmei, pasma pela vista que estava à minha frente. Eu havia sonhado com aquele lugar por muito tempo, mas, desde que vim morar em Nova York, nunca tive coragem de ir ali. Era onde eu e Jack havíamos falado que iríamos no casar. Eu tinha uma foto desse exato jardim em uma moldura em meu quarto, na casa de meus pais.
- E por isso deixei aqui uma cesta com a sobremesa. E café.
- Porque você sabe que eu não vivo sem café.
- Exato. Virei-me, ficando assim de frente para o cara que eu amava mais que meu coração jamais pudera suportar. De frente para o cara que me fez sofrer por tanto tempo e, com apenas alguns gestos, conseguiu amenizar a dor da mágoa. Não era justo, o efeito que ele tinha sobre mim, mas, honestamente? Eu não estava nem aí.
- Eu amo você, - ele disse, fazendo carinho em minha bochecha e ao mesmo tempo pegando algo em seu bolso; era uma caixinha de veludo preto. - E quando você estiver pronta e certa disso, eu quero te dar isso.
A caixinha foi aberta, revelando um anel de noivado, com uma pedra não muito grande, mas linda do mesmo jeito.
- Eu sei que é simples, mas é só a de noivado. Espere até ver a que eu tenho para o casamento mesmo.
Eu estava sem palavras. Mas consegui formar uma frase.
- Desde quando você tem isso?
- Comprei com o primeiro grande cachê que tivemos após o contrato.
- Mas isso foi... Isso foi quase um mês antes de você ir embora.
- Exatamente. Não consegui fazer o pedido. Eu sabia das suas ambições, de como você queria construir a carreira que tem hoje. E sabia que, se nos casássemos, você iria querer vir comigo em tours.
- Jack...
- Eu não tinha o direito de acabar com o seu sonho enquanto realizava o meu. Então fui embora, deixei que você construísse a vida que sempre quis. E agora acho que talvez tenha um espaço nela para mim.
- Sempre teve. - sorri, meus olhos novamente marejados. - Eu amo você, Jack. E quero sim, passar o resto da minha vida com você. Mas vou te fazer sofrer um pouquinho antes.
Jack deu uma risada alta, balançando a cabeça.
- Como eu disse antes. Certas coisas nunca mudam.
A maneira com que nos apaixonamos foi quase ofensiva para aqueles ao nosso redor; a menina riquinha, dona das melhores notas da escola, e o problemático que morava com sua mãe. Seu pai havia fugido quando ele ainda era bebê, despreparado para as responsabilidades que uma criança trazia. Mas quem está preparado para isso aos 16 anos de idade?
A partir do momento em que conheci Jack e aprendi a história de sua mãe, admirei-os. Especialmente ela. Ela saiu da casa de seus pais logo após o namorado fugir. Começou um pequeno negócio de marmitas e agora era dona da maior franquia de restaurantes do estado de Nova York. E estava prestes a abrir seu primeiro restaurante no exterior, em Londres.
Jack e eu nos entendíamos. Eu jamais poderia comparar nossos problemas, mas minha vida nunca foi tão perfeita quanto todos pensavam. Meus pais tinham um casamento terrível, alimentado apenas por aparências e não por amor. Eu tinha pressão vindo de todos os lugares para ter sucesso, e ele também, mas de um jeito diferente.
Nossa química era como fogo, entrando em combustão no momento em que colidíamos. Eu o amava com tudo de mim, e havia algo que nunca consegui entender que me dizia que aquilo não era apenas mais uma paixonite adolescente.
E então ele decidiu começar uma banda com seus amigos. Lembro-me que amava ouvi-lo cantar e tocar violão, então dei todo o apoio possível quando ele me contou sua decisão. Mas conforme eles conseguiam shows, conforme começaram a fazer sua própria música, começaram a chamar atenção. Até que uma gravadora de outra cidade ofereceu a eles um contrato de gravação.
Ele estava mais que animado e vê-lo sorrir me fazia sorrir também. Mesmo sabendo que nosso relacionamento iria precisar de muito mais dedicação com uma distância de horas entre nós - morávamos em Washington -, eu estava disposta a tentar.
Eu tinha 18 anos de idade. É claro que estava disposta a tentar. Ele era tudo que eu queria.
E teria tentado o meu melhor para fazer tudo funcionar, se ele não tivesse terminado comigo na noite anterior à sua viagem para a primeira tour pelo país.
Até hoje, não sei o que aconteceu. Não sei se ele estava com medo da dificuldade de um relacionamento à distância, ou se simplesmente não queria ser um rockstar em ascensão namorando.
E até hoje, ainda desejo que ao menos pudéssemos ter tentado.
Era uma quarta-feira chuvosa e eu estava relutando em sair da cama. Odiava a chuva, e odiava Nova York na chuva ainda mais.
Não entendia o que acontecia com as pessoas em dias chuvosos; parecia que todos perdiam a noção, e de repente, a cidade se tornava um caos. O metrô era um caos, o trânsito era um caos.
Eu trabalhava em uma revista de moda como editora de redação, algo considerado como um triunfo aos 27 anos de idade. Tinha montes de trabalho para fazer antes que a próxima edição saísse, na próxima semana.
Liguei a TV da sala para fazer barulho enquanto me arrumava, e, por algum motivo, estava passando E!News às sete horas e pouco da manhã. Dei risada de alguns comentários que ouvi enquanto me vestia, e, no momento que passava pela sala para ir à cozinha, uma imagem na TV me fez paralisar.
Era ele. Ali, praticamente na minha frente.
Eu odiava o fato d'ele ser famoso. Odiava o fato de que, nos últimos nove anos, tinha que evitar rádio, TV, e a maioria das premiações que tanto gostava de assistir.
A carreira de sua banda era sólida, especialmente após todo esse tempo no dia-a-dia das pessoas. Eles estavam em todos os lugares. E eu tinha que enfrentar as lembranças que seu rosto trazia a cada lugar que ia, mesmo tentando ao máximo que isso não acontecesse.
Perdi-me em pensamentos e, quando voltei a mim, o que quer que estivessem falando dele já havia passado. Respirei fundo, balançando a cabeça para tentar espantar o que insistia em me assombrar.
Quando cheguei ao trabalho, quase duas horas depois - o trânsito estava realmente tão ruim quanto imaginava -, fui recebida por um abraço de urso de minha melhor amiga e supervisora de fotografia, .
- Bom dia, ! - ela sorriu, bagunçando meu cabelo não muito delicadamente. Sarna.
- Bom dia, Grey. Como foi sua noite? - indaguei, afastando sua mão e dando uma risada.
- Não sei por que você insiste em me chamar de "Grey". Me sinto como aquele cara do filme pornô-que-não-chamam-de-pornô. Como é o nome daquilo mesmo? - uma das grandes características de , que apesar de ser conveniente em alguns momentos, podia ser irritante, era que ela falava pra caramba. Mesmo.
- 50 Tons de Cinza. E nem vem falar mal porque você saiu do cinema com taquicardia, tá? - Ergui as sobrancelhas, assistindo-a bufar. - E você ainda não respondeu a minha pergunta.
- Minha noite foi maravilhosa, dormi de babar - exclamou e em seguida fechou o sorriso, dando um suspiro profundo.
- O que foi?
- Julgo que você tenha assistido o canal E! enquanto se arrumava essa manhã?
Acompanhei-a no profundo suspiro, murmurando; - Você realmente me conhece, né? Te odeio.
sorriu tristemente, apertando meu ombro.
- Vai ficar tudo bem. Mas acho melhor você se preparar.
- Me preparar pra quê?! - Franzi a testa, sentindo-me perdida. Como assim? O que ela queria dizer com isso?
- Só... Se prepare. Ok? Te amo. Meio-dia passo aqui pra gente ir almoçar. - Ela soprou um beijo e virou as costas, sumindo rapidinho corredor adentro.
Era só o que me faltava. Além de todo o trabalho que tinha pela frente, minha melhor amiga ainda me fez o favor de colocar uma pulga atrás de minha orelha.
Eram quatro horas da tarde e eu havia concluído praticamente tudo que precisava fazer. Apesar de ter me distraído com o que disse, o dia tinha corrido normalmente e faltavam só mais duas horas para eu estar fora do escritório e em um banho quente.
Ou pelo menos tudo tinha sido normal até aquele momento. Até aquele som.
Até que meu mundo inteiro parecia ter começado a desabar ao meu redor.
Prendi a respiração, e enquanto parecia que eu estava presa em câmera lenta, meus pensamentos se moviam em uma velocidade inacreditável. Eu sabia que tinha que tomar uma atitude, decidir o que fazer, mas quaisquer ideias que eu tinha pareciam idiotas demais.
Ficar e tentar agir normalmente ou fugir como uma menininha assustada?
Fugir como uma menininha assustada. Definitivamente.
Meu estômago estava em um nó e minhas pernas pareciam gelatina quando finalmente juntei coragem suficiente para levantar da cadeira. Por que eu tinha escolhido usar um dos saltos mais altos que tenho? Em uma segunda?! Jamais fazia isso. Jamais.
Segundas eram aquele dia para ser preguiçosa sem sentir culpa alguma por isso. E exatamente quando eu precisava de minhas lindas e confortáveis sapatilhas, tinha que lidar com um salto de 10 centímetros.
Sortuda, sortuda, sortuda.
As vozes estavam ficando cada vez mais altas, então juntei minha bolsa e enfiei meu celular dentro dela de qualquer jeito, sem ao menos me dar ao trabalho de desligar o computador e fugir mais dignamente. Eu tinha que dar o fora dali o mais rápido possível. Não havia tempo para detalhes.
Corri - ou ao menos tentei - pelo corredor que levava às escadas. Parecia que eu havia acabado de começar a descer os degraus quando ouvi minha assistente exclamar:
- Onde diabos ela foi?
Não consegui me segurar e dei uma risada, enquanto lutava para chegar ao térreo sem quebrar uma perna. Sentia um pouquinho de adrenalina por estar em fuga, mas sabia que assim que chegasse a um local seguro, quaisquer sentimentos que estavam sendo reprimidos por ela achariam seu lugarzinho na superfície. E sabia que estaria ferrada quando isso acontecesse.
O toque escandaloso de meu celular ecoou de dentro de minha bolsa, me assustando e quase fazendo um grito extremamente menina-fugindo-do-assassino escapar de meus lábios. Catei meu celular e o silenciei, vendo na tela que quem estava ligando era minha assistente.
Droga. Tudo o que podia esperar era que ninguém houvesse ouvido o eco de meu toque. Senão haveria pessoas me procurando - e o culpado por minha fuga, obviamente, não era a pessoa que eu mais queria ver no mundo.
A vida podia ser uma vaca às vezes. Exatamente quando você pensa que ela chegou a um lugar legal, onde você se sente satisfeita com tudo e todos que fazem parte dela, tudo vira de cabeça para baixo e te deixa tonta e sem ar.
Mas sua imprevisibilidade era também uma das razões pelas quais eu a valorizava tanto.
Cheguei ao meu carro, estacionado em frente ao prédio, e enfiei as mãos no buraco negro que ousava chamar de bolsa em busca de minhas chaves. Caramba, que porcaria! Cadê elas?
Em puro desespero, despejei todo o conteúdo da dita cuja sobre a calçada, na esperança de tornar o processo ao menos um pouco mais rápido. As pessoas passavam por mim e me encaravam como se eu tivesse acabado de roubar aquela bolsa e procurasse por algo de valor. E ali estava: Cinco batons diferentes, mini escova e pasta de dente, minha carteira, meu celular, uma pinça de sobrancelha, dois óculos escuros e alguns grampos de cabelo. E um absorvente. E nada de chaves. Ai, meu senhor. Onde elas estavam?!
Um flash passou por minha mente, como uma cena daqueles filmes no momento em que a pessoa se dá conta de que está muito, muito ferrada. A imagem que apareceu para mim foi de minhas chaves, lindas e belas, sobre a escrivaninha, ao lado da impressora. Eu havia saído tão rápido que nem tinha percebido que elas estavam ali.
E agora eu não tinha uma maneira rápida de fugir dali. Olhei ao meu redor, considerando minhas opções. Eu poderia voltar, utilizando as escadas novamente, arriscando ser avistada por alguém; ou, eu podia juntar todas as minhas tralhas e sair correndo, e voltar mais tarde dizendo que fui tomar um café. Ótima ideia. Tomar um café.
Eu precisava muito de cafeína.
Mas, como os anjinhos adoram tirar uma com a minha cara, assim que joguei tudo de volta pra dentro da bolsa e me levantei, ajeitando meus trajes, a pessoa que eu menos queria ver atravessou as portas do saguão e seu olhar foi imediatamente de encontro ao meu.
Ai, Senhor.
Virei o rosto drasticamente, começando a andar o mais rápido que conseguia com meus pés já extremamente doloridos.
- ! - a voz masculina ecoou pela rua, chamando a atenção de algumas pessoas que passavam. Ignorei-a, continuando a andar no mesmo ritmo. - ! Por favor, espere! - a voz chamou novamente, mas eu estava determinada demais a continuar.
Foi quando uma mão agarrou meu braço e me forçou a parar.
- Achei que tinha deixado claro que não queria conversa quando continuei a andar - anunciei, virando-me vagarosamente e me desvencilhando de seu toque.
Ele abriu um sorriso torto, tirando seus óculos escuros e revelando aqueles olhos indecifráveis que sempre tinham a capacidade de me fazer sentir como se eu fosse uma boba. Como se eu não conhecesse a pessoa que estava por trás deles, e nem nunca iria conhecer.
Mas hoje, sob esse céu nublado, eles pareciam mais penetrantes do que nunca. Como se fossem me despir e mostras todos os pecados e as mágoas e as culpas.
Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos que tentavam tomar minha mente. Concentrei-me no concreto da calçada, no passo acelerado dos pedestres, no cheiro de salsicha que vinha da barraquinha de cachorro-quente da esquina, que me fazia sentir fome. Concentrei-me em qualquer coisa que não fosse seu rosto, ou suas roupas, ou suas mãos. E acho que isso não passou despercebido.
- Por que você se recusa a olhar para mim, ? - ele indagou suavemente, colocando seu dedo indicador sob meu queixo e me forçando a olhar para cima.
Ali estava. A cor castanho-escuro era tão bela, apesar de eu preferi-los quando estavam sob a luz. Tornava-se então de um castanho claro, cor de mel.
- Não sabia que ainda precisava explicar. - Sorri amargamente. - Pode parar de me tocar?
Jack afastou sua mão como se houvesse levado um choque. Pude ver algo como mágoa passar por seus olhos, mas um segundo depois o castanho tornou-se novamente indecifrável. Foi quase como um triunfo ver que o que eu havia dito o fez ficar magoado, nem que fosse um pouquinho só. Era injusto que por todos esses anos eu o visse sorrindo em eventos e revistas, enquanto sentia a mágoa do que havia acontecido me corroendo por dentro.
Nunca consegui "seguir em frente". De alguma forma, aquele amor que não havia durado tanto tempo assim se enraizou em mim, como se fosse algo essencial para minha sobrevivência. E de alguma forma, também, eu consegui sobreviver sem ele por uma década.
Nossa, como estou velha.
Jack retirou-me de meus devaneios aproximando-se de mim. O calor de seu corpo me despertou completamente, o cheiro de seu perfume invadindo meus sentidos e me fazendo sentir acordada como nunca. Meu corpo inteiro estava tenso, esperando o contato, querendo que aquela distância se acabasse, para que eu pudesse me lembrar do que conhecia tão bem. Mas não foi isso que aconteceu. Não que Jack não quisesse; sua boca estava levemente entreaberta, seu hálito quente acariciando minha bochecha de tão próximos que estávamos. Sua respiração era fora de ritmo, eu podia perceber, e seus olhos estavam mais escuros.
- Eu preciso conversar com você - ele declarou, após segundos que pareceram eternos.
- Acho que você chegou uma década atrasado para conversarmos - provoquei, mantendo meu olhar tão firme quanto possível.
Mais uma vez aquele olhar magoado surgiu, e quase comecei um placar mental. Mas, por algum motivo, essa oportunidade de fazê-lo sentir culpa quase me fez senti-la.
Ele sorriu fracamente, um gesto que deveria demonstrar felicidade, passando longe desse sentimento.
- Pensa que não sei? - disse, e presenciei sua figura que estava acostumada a ver andando por aí orgulhosamente mudar completamente. A pessoa que aparecia nas revistas como um galã estava agora à minha frente, com os ombros levemente caídos, como se o peso do mundo estivesse sendo sustentado por eles. - Eu sinto muito, e sei que de nada adianta falar isso. - Pausou, e nessa pausa eu quase soltei uma risada sarcástica. - E sei que não tenho direito de vir aqui do nada e simplesmente pedir que você ache tempo para mim. Mas eu preciso, preciso realmente falar com você. Por favor.
Suas mãos fecharam-se em um punho e voltaram ao normal. Percebi que ele estava se segurando ao máximo para evitar me tocar.
Suspirei, abraçando meu corpo e tentando fazer com que minha mente parasse por um minuto. Queria tomar a decisão sensata, reunir as palavras exatas para que ele sumisse da minha vida de uma vez por todas e eu pudesse realmente sair desse relacionamento em que estava presa há tanto tempo.
Mas tudo que minhas cordas vocais queriam falar era que sim. Que eu desesperadamente queria conversar novamente com ele, como nos velhos tempos; falar sobre música, dar risada da roupa daquela senhora da nossa rua que não tinha o mínimo senso fashion. Queria tudo que havia perdido. Queria beijá-lo novamente, e abraçá-lo, e chorar no seu ombro dizendo que sentia sua falta mais do que tudo, todos os dias.
Fechei os olhos e balancei minha cabeça, espantando todas essas vontades, e pensando em uma estratégia.
- Não sei, Jack - murmurei, dando de ombros. - Quem sabe outro dia.
Virei as costas e continuei em direção ao café do outro lado da rua, sentindo seu olhar queimando em minhas costas.
Se ele queria mesmo que eu desperdiçasse meu precioso tempo com ele, teria que fazer mais do que falar.
Por algum motivo desconhecido - ou que eu simplesmente estava tentando ignorar e não queria admitir -, eu não conseguia desgrudar de meu celular.
Normalmente, eu o mantinha jogado dentro da bolsa, ou em qualquer lugar aleatório, - sem falar nas inúmeras vezes que o esqueci em casa e quase fui assassinada por meus colegas - porque, apesar de ser uma ferramenta para entrar em contato com pessoas, eu preferia utilizar o e-mail diretamente de meu computador. E, após meu dia de trabalho, fazia algo combinado previamente com minhas amigas ou recebia ligações apenas delas. Qualquer assunto relacionado a trabalho após as 18h00min era completamente ignorado pela minha pessoa.
Eu sei que todos pensam que sou uma workaholic, mas não é bem por aí. O meu tempo e espaço pessoal são meus e só meus.
Só que, desde aquele fatídico dia em que meu ex apareceu em meu trabalho e virou tudo de cabeça pra baixo, meu celular não saía de meu bolso, ou de meu alcance imediato. Pra falar a verdade, eu nem sabia se ele tinha meu número, mas sabe como são os famosos. Aposto que ele conseguia o que quisesse com um estalar de dedos.
Uma das características que mais gostava em mim mesma era que conseguia sentir se uma pessoa estava contando uma mentira, e eu sempre estava certa. Eu desconfiava que minha querida assistente houvesse passado meu contato, apesar de assisti-la negar milhares de vezes ao longo da semana que se passou.
Uma semana inteira. O filho da mãe chega aqui depois de uma década dizendo que precisa conversar e depois uma semana se passa sem qualquer tentativa de contato. Não sei se ele era um trouxa por fazer isso comigo ou se eu era trouxa por permitir que ele tivesse esse efeito sobre mim, sobre minha vida.
Ao mesmo tempo que ansiava pelo toque do telefone ou por qualquer sinal da existência daquele ser, eu me odiava por estar tão ansiosa. Não sei se foi o fato de nunca termos tido um fim verdadeiro, por assim dizer, que me fez ficar assim, ou se eu simplesmente era uma baita duma idiota.
É difícil dirigir direito quando sua mente está tão ocupada, e por isso levei muitas buzinadas no caminho para casa, após mais um longo dia de trabalho. Uma semana e um dia.
A chuva estava ficando pior a cada minuto que passava, raios colorindo o céu coberto de nuvens de branco. Dei graças a Deus quando estacionei o carro na garagem e subi pelo elevador até o 11º andar.
Estava mexendo na bolsa à procura de minhas chaves, e quando as encontrei e estava prestes a abrir a porta, me deparei com um pequeno bilhete preso à ela por um pedaço de durex.
Mal acreditei nas palavras quando as li.
Restaurante da Elisa, Quinta Avenida Oito horas. Estará lá?
Elisa. O nome da mãe de Jack, da mulher que me acolhera e me tratara como sua filha por todo nosso namoro, me fez sorrir um pouco. Eu sentia muita falta dela.
Mas como diabos ele tinha conseguido meu endereço? E como tinha conseguido acesso ao prédio sem ser convidado?
A resposta me ocorreu quase tão rapidamente quanto as perguntas. , minha assistente. Ela tinha a chave da porta principal pois vivia trazendo rascunhos para que eu revisasse e aprovasse. Todos os porteiros a conheciam. É claro que ela tinha ajudado o maldito garoto.
Por um segundo, considerei ficar com raiva dela. Mas a curiosidade chegou mais rápido. Por que Jack me levaria para jantar justamente no restaurante de sua mãe? Ele sabia que sua presença ali muito provavelmente causaria um alvoroço.
Balancei a cabeça, finalmente virando a chave e adentrando meu apartamento. Larguei a bolsa e o que mais tinha na mão sobre o aparador próximo à porta, quase derrubando o vaso que havia ali. Passei reto para o banheiro, louca por um banho quente após um dia tão cheio.
O que eu deveria fazer?, pensei, sentada em um dos bancos ao redor da ilha da cozinha, vestindo meu roupão mais fofinho e com meus cabelos enrolados em uma toalha. O relógio tiquetaqueava mais alto do que nunca, praticamente tirando uma com a minha cara.
Você tem uma decisão a fazer. Tic-tac. Ir ou não ir? Tic-tac. Ele merece uma chance assim tão fácil após tanto tempo?
19h46. 19h47. Os minutos se passavam, e mesmo que eu decidisse ir ao restaurante, já estava super atrasada.
Uma batida frenética na porta me acordou de meus devaneios, e dei uma rápida espiada pelo olho mágico antes de deixar a pessoa entrar. Era . E parecia próxima a um ataque cardíaco.
- VOCÊ SABE QUE HORAS SÃO?! - ela praticamente berrou, seus olhos arregalados, me sacudindo pelos braços.
- Sete e cinquenta? - respondi, hesitante, com medo que minha melhor amiga fosse realmente me atacar.
- Exatamente! - ela me soltou, andando até o meio da sala e passando a mão livre, trêmula, pelos cabelos. - Você tem apenas dez minutos para se arrumar!
- O-o quê?! - indaguei, minha voz saindo alta e histérica demais. - Como você sabe disso?
- Fui eu quem trouxe o bilhete de Jack aqui, sua idiota.
Ah. Foi mal, .
- Como você pôde fazer isso? Sabe como me sinto com relação a ele! - eu não sabia se ficava P da vida ou feliz por ela ter feito isso e estar ali.
- Exato! Foi por causa do que você sente por ele que resolvi te ajudar.
- , você tem que entender. Eu não posso simplesmente aceitar um convite pra um jantar depois de tudo!
- Por que não? - sorriu fracamente, voltando para perto de mim. - Ele ligou para mim há mais ou menos duas semanas, falando que estaria aqui e pedindo um favor. Arranjei uma entrevista, para ele te encontrar no escritório.
- Sua vaca! - foi tudo que consegui dizer, querendo dar um soco nela. Ou um abraço.
- Ele parece realmente querer acertar as coisas. Só estava com vergonha demais para vir até você.
- Não me engane, . Por favor. - Senti meus olhos ficarem marejados com o medo de passar por tudo aquilo novamente. Ser abandonada por quem ama não é exatamente fácil.
- Estou falando sério, . Vai dar tudo certo dessa vez.
Minha melhor amiga me deu um abraço forte e praticamente me arrastou para o quarto. Escolheu o que eu iria vestir - um vestido preto de mangas compridas e costas nuas, todo bordado em miçangas e pedrarias. Era de uma estilista brasileira, e eu o amava. Juntou-o a alguns acessórios dourados, um scarpin preto e um sobretudo pink, quase avermelhado.
Foi a escolha de roupa mais rápida que ela jamais havia feito. Geralmente levávamos pelo menos uma hora para fazer isso.
Minha maquiagem ficou com um leve esfumado preto, delineador e muito rímel, unidos a um batom pink; meus cabelos estavam soltos, ainda meio molhados.
fez a proeza de me arrumar em 15 minutos como se eu estivesse prestes a fazer um ensaio para a revista. Fiquei muito orgulhosa pela amiga e profissional que tinha em mãos.
- Eu não acredito que vou fazer isso - minha voz estava trêmula e falha, e eu estava tremendo inteira, apesar do aquecimento central. - Meu Deus, . Eu não consigo.
- Ah, consegue sim - esbravejou, catando minha mão e me arrastando porta afora. - Eu não passei os últimos 15 minutos me matando para você ficar maravilhosa dentro de casa. Não, não, o mundo deve vê-la assim. Especialmente o Jack. - Após esse comentário, ela deu uma risadinha maliciosa, e ganhou um tapa no braço. Se eu não estivesse tão nervosa, até teria rido também.
Chegamos à rua e abriu seu guarda-chuva, e seguimos até onde seu carro estava estacionado.
O relógio no visor marcava 8:15, e o trânsito não ajudava em nada com aquele tal de nervosismo. Eu não consegui parar de falar por todo o caminho, e sentia que estava prestes a me estapear. Mas, assim que minha melhor amiga, por algum milagre, conseguiu parar bem em frente ao restaurante, me calei.
Todas as palavras fugiram, como se o dicionário houvesse sido apagado da minha mente.
- Então? Agora que chegamos, você não vai falar nada? - questionou, erguendo as sobrancelhas. - Vamos, . Vai dar tudo certo. E não posso ficar parada aqui. - Ela apertou minha mão delicadamente, provavelmente com medo que eu surtasse.
- Ok - murmurei, abrindo a porta e soltando um suspiro pesado antes de sair.
- Boa sorte!
Pisei na calçada com pernas ainda trêmulas. Assim que atravessei a porta de entrada, alguém puxou meu braço e começou a me guiar por uma porta, para o parecia ser a direção da cozinha. Agradeci a Deus por essa cena não estar acontecendo em frente a todas as pessoas no restaurante.
- O que você está fazendo? - perguntei, meio indignada, meio curiosa, quando finalmente vi quem estava me segurando.
Era ele. E estava usando um smoking preto que o deixava maravilhoso. Quase me senti como se estivéssemos prestes a chegar a algum festival. E desejei que isso fosse verdade, que eu pudesse de alguma forma fazer parte de sua vida. Estar presente.
- Você já vai ver - ele falou, me dando uma olhada e lançando uma piscadela.
- Jack, se você não me contar agora mes... - não consegui terminar a frase pois ele parou. E eu fui com tudo ao seu encontro, bem pra dentro de seus braços. - Ai! Você realmente não está nem aí, né? Primeiro me arrasta pra cá sem nem me dar um "Oi", e agora quase me mata - reclamei, tentando me desvencilhar.
- Você não quase-morreu, . - Jack riu, procurando por meus olhos. - E está linda. - Declarou, junto a um suspiro pesado. Seus olhos estavam mais castanhos do que nunca, penetrantes, mas ainda assim, seu olhar me aquecia.
- Obrigada. - murmurei, sentindo minhas bochechas esquentarem um pouco. - Você também.
Um segundo de silêncio constrangedor se seguiu, até que Jack fez seu comentário: - Eu sei. - alegou, dando um sorriso de lado convencido. Eu sabia que ele estava brincando, e acabei dando uma risada.
- Continua o mesmo palhaço - falei, me dando conta de que seus braços ainda estavam ao redor de minha cintura. Fiquei consciente de seu calor. E apavorada pelo quão confortável eu estava ali, bem ali.
Desvencilhei-me, enfim, limpando a garganta para disfarçar a vergonha que retornava.
- Aonde estava me levando, mesmo?
- Para a cozinha. - Jack estendeu a mão, convidando-me a pegá-la. E eu o fiz, sentindo meu coração acelerar quando seus dedos se entrelaçaram aos meus.
Socorro.
Andamos mais alguns passos e chegamos à cozinha, abarrotada de pessoas indo e vindo apesar do amplo espaço. Garçons com bandejas cheias de bebidas ou de pratos cheirosos. Chefs e sous-chefs correndo para lá e para cá, temperando pratos, virando steaks nas grelhas. A fome resultante de horas sem refeição me abateu.
Olhei ao redor, esperançosa de encontrar o rosto familiar de minha (ex?)sogra. Fiquei desapontada ao perceber que ela não estava por ali.
Jack não deixou de perceber que eu estava procurando por alguém, e se deu conta de quem era sem eu dizer.
- Ela não está aqui - ele falou, apertando minha mão levemente. - Está em Londres, acertando alguns detalhes do restaurante novo.
Antes que eu pudesse responder alguma coisa, um dos chefs, um homem de meia-idade com cabelos levemente grisalhos veio até nós e deu um abraço exagerado em Jack, quebrando nosso contato. Minha mão pareceu estranhamente fria sem o seu toque.
- Monsieur Jack! Há quanto tempo você não dá as caras por aqui! - o chef disse, sua voz banhada por um sotaque francês, enquanto trocavam um abraço. Assim que se separaram seu olhar pousou em mim. - E quem é esta bela moça?
- . - apresentei-me, sorrindo. - Muito prazer...
- Chef Pierre. Muito prazer. - Ele pegou minha mão rapidamente, sorrindo. - Sua refeição está pronta, Monsieur Jack. Espero que aproveitem, eu mesmo a fiz.
Por coincidência, nesse momento um dos garçons entregou uma sacola com alguns potes dentro a Jack. Ele se retirou tão rapidamente quanto apareceu.
Peraí. Nós íamos comer em outro lugar?
Eu estava muito, muito curiosa, mordendo o interior da minha bochecha, louca para estar sozinha com Jack novamente e poder perguntar o que ele tinha planejado.
Nos despedimos do Chef e ele me guiou pela saída dos fundos, onde um Range Rover preto estava estacionado.
- Aonde você vai me levar? - perguntei, enfim, assim que entramos no carro.
Jack sorriu, colocando o cinto e dando a partida no carro. - Você vai descobrir logo, logo - ele disse, com toda a graça de quem está tentando ser misterioso.
- Como assim? Sabe, eu poderia ligar para a polícia agora mesmo e dizer que estou sendo sequestrada. - Bufei, cruzando os braços e olhando diretamente para a frente.
Percebi pela visão periférica que Jack retirou do bolso seu celular, oferecendo-o a mim. - Aqui, pode usar meu telefone - falou, dando uma risada quando lancei um belo tapa em seu braço. - Desde quando você é tão forte assim?
- Você ficou longe por um bom tempo, Jack. Muita coisa em mim mudou. - Fiz de tudo para minha declaração soar casual, mas tenho certeza que acabei deixando transparecer um pouco da mágoa que havia guardado em mim.
Um silêncio se instalou após o que falei, as palavras pairando no ar. Puni-me internamente por ter dito aquilo; ele não tinha direito de saber o quanto o fato de ter ido embora me afetou.
Mas, após longos minutos desse silêncio, algo inesperado me fez ficar ainda mais nervosa. Jack pegou minha mão na sua, fazendo carinho nas costas da minha com seu dedão. Aquele simples toque parecia ter feito meu coração derreter.
- Eu nunca, nem por um segundo, me esqueci de você - ele confessou, mantendo seu olhar na estrada enquanto eu o observava.
"Por todo esse tempo, os caras da banda me falaram para entrar em contato com você, mas eu... Eu simplesmente achava que não merecia uma segunda chance. E ainda não tenho certeza se mereço. Mas só consigo pensar que sinto falta demais da sua presença para não tentar.”
Senti meus olhos se encherem de lágrimas com sua declaração repentina, um nó se formando em minha garganta.
- Para o carro. - Minha voz soou afogada, mas ainda assim muito séria.
- Por quê? Você está bem? - Jack me olhou rapidamente, sua voz mostrando preocupação.
Não consegui responder sua pergunta, e ele não precisou de uma resposta pra fazer o que pedi. Logo estávamos parados no acostamento de uma estrada qualquer - finalmente percebi que ele estava me levando para outro lugar, fora de Nova York. E minha atenção até teria sido fixada nesse fato, se não fossem seus olhos castanhos se prendendo nos meus.
- O que foi, ? O que você tem? - Jack mexeu no meu cabelo, seus dedos deixando um rastro de arrepios por meu pescoço.
- Nada. Eu só... Só queria que você olhasse para mim. - Dei uma risada envergonhada, tentando desviar o olhar, mas ele me impediu, segurando meu queixo delicadamente.
- Você acha que poderíamos tentar novamente?
- Ah, Jack... - Suspirei, me aproximando ainda mais dele, nossos narizes encostando. - Eu não estou aqui?
O menino dos olhos castanhos, que eu amava há tanto tempo, acabou com a distância entre nós, encostando seus lábios nos meus, levemente, como se com medo de que eu não quisesse aquilo, querendo me dar a oportunidade de sair.
Mas eu não saí. E aquele beijo tão aguardado por tanto tempo tinha gosto doce, nos fazendo sorrir e dar risada no meio de tudo. Era a bagunça mais feliz de toda a minha vida.
- Sabe, Jack - comecei, respirando fundo, quando enfim nos separamos.
- O quê?
- Esse cheiro de comida tá me matando desde que chegamos àquela maldita cozinha. Você tem noção de que eu estou com o estômago à base de café desde o almoço, né?
- Tenho sim. - Ele riu, ficando de joelhos no banco de motorista e se esticando pra pegar a sacola do banco de trás. - Aqui. Vou matar sua fome. Afinal, que tipo de sequestrador seria eu sem te alimentar?
Ele abriu os potes, o aroma da comida ficando ainda mais forte. - Então, spaghetti bolognese ou risoto ao funghi?
- Spaghetti. - Peguei o pote, juntamente com um dos garfos que estavam dentro da sacola também.
- Viu? - ele ergueu uma sobrancelha, comendo uma garfada de seu risoto.
Olhei para ele, mastigando meu spaghetti e esperando por um esclarecimento.
- Algumas coisas nunca mudam.
Durante nossa refeição super chique, Jack abriu o porta-luvas e tirou dali duas taças e uma garrafa de vinho que, para minha surpresa, estava gelada. Bebemos e comemos até estarmos com os estômagos cheios e a garrafa estar pela metade.
- Então esse era o seu plano? Jantar no carro no acostamento de uma rodovia? - perguntei, juntando os potes e fechando-os na sacola.
- Não exatamente. Mas tinha alguém que ia morrer se soubesse que teria que esperar mais 20 minutos para comer.
- 20 minutos? Pra onde você está me levando?
- Você ainda quer ir lá?
- Claro que sim.
Sem falar nada, Jack deu a partida no carro novamente e voltou a dirigir. Sem dizer nada. Ele realmente queria me matar de curiosidade.
Exatos 20 minutos depois, estacionamos próximo em um gramado enorme, com um caminho de árvores traçado por luzinhas de natal se estendendo à nossa frente, revelando ao fundo somente um pedacinho de uma casa de dois andares. Não estava chovendo ali, e não parecia ter chovido nem um pouco.
Eu sabia onde estávamos mesmo antes de sair do carro. E pelo olhar de Jack ao me ajudar a sair do carro, ele sabia que eu sabia. E tinha um sorriso quase convencido brilhando em seu rosto.
- Eu não acredito nisso - murmurei no exato momento em que um suspiro escapou.
- Vem, eu quero te mostrar uma coisa. - Ele pegou minha mão e começou a me guiar pelo caminho de luzes, até que contornamos a casa e o que ele tinha realmente planejado para nossa noite.
O Rose Garden estava ali, bem à minha frente, também todo decorado com luzinhas. E, em meio a todos os arbustos, em frente à fonte, estava uma enorme toalha branca estendida no chão, com uma cesta de vime e uma garrafa térmica ao lado.
- Você sabia que eu ia querer jantar antes - afirmei, pasma pela vista que estava à minha frente. Eu havia sonhado com aquele lugar por muito tempo, mas, desde que vim morar em Nova York, nunca tive coragem de ir ali. Era onde eu e Jack havíamos falado que iríamos no casar. Eu tinha uma foto desse exato jardim em uma moldura em meu quarto, na casa de meus pais.
- E por isso deixei aqui uma cesta com a sobremesa. E café.
- Porque você sabe que eu não vivo sem café.
- Exato. Virei-me, ficando assim de frente para o cara que eu amava mais que meu coração jamais pudera suportar. De frente para o cara que me fez sofrer por tanto tempo e, com apenas alguns gestos, conseguiu amenizar a dor da mágoa. Não era justo, o efeito que ele tinha sobre mim, mas, honestamente? Eu não estava nem aí.
- Eu amo você, - ele disse, fazendo carinho em minha bochecha e ao mesmo tempo pegando algo em seu bolso; era uma caixinha de veludo preto. - E quando você estiver pronta e certa disso, eu quero te dar isso.
A caixinha foi aberta, revelando um anel de noivado, com uma pedra não muito grande, mas linda do mesmo jeito.
- Eu sei que é simples, mas é só a de noivado. Espere até ver a que eu tenho para o casamento mesmo.
Eu estava sem palavras. Mas consegui formar uma frase.
- Desde quando você tem isso?
- Comprei com o primeiro grande cachê que tivemos após o contrato.
- Mas isso foi... Isso foi quase um mês antes de você ir embora.
- Exatamente. Não consegui fazer o pedido. Eu sabia das suas ambições, de como você queria construir a carreira que tem hoje. E sabia que, se nos casássemos, você iria querer vir comigo em tours.
- Jack...
- Eu não tinha o direito de acabar com o seu sonho enquanto realizava o meu. Então fui embora, deixei que você construísse a vida que sempre quis. E agora acho que talvez tenha um espaço nela para mim.
- Sempre teve. - sorri, meus olhos novamente marejados. - Eu amo você, Jack. E quero sim, passar o resto da minha vida com você. Mas vou te fazer sofrer um pouquinho antes.
Jack deu uma risada alta, balançando a cabeça.
- Como eu disse antes. Certas coisas nunca mudam.
FIM
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