Capítulo Único
Novembro de 2014
“Hoy la luz del sol alumbra oscuridad…”
- Vem pra mamãe, Helena. - estendia os braços enquanto nossa filha, que iria completar um ano em poucas semanas, se apoiava na estante da sala. - São só alguns passinhos, minha filha. - ela parecia suplicar, e eu sorria fraco ao ver a cena. - Você está filmando isso, ? - seu olhar virou para mim e eu me certifiquei de mostrar o celular em minha mão. - Ótimo, eu tenho certeza de que o momento é agora. - ela parecia confiante. Os olhos azuis de Helena encaravam os castanhos de com curiosidade, um misto de medo e excitação era explícito no olhar da criança.
- Vamos, filha. Vá até a mamãe, não precisa ter medo. - falei e Helena, em relutância, soltou as mãozinhas da madeira do móvel, e ficou de pé sem o apoio. - Isso! Muito bem. - me ajoelhei, ficando ao lado de minha esposa.
Helena virou seu pequeno corpo com dificuldade, porém ficou completamente de frente para nós.
- Isso, Lena. - a incentivou. - Vem! - o pequeno anjinho de cabelos loiros tomou toda sua coragem e finalmente deu o primeiro passo.
Junho de 2020
Pausei a gravação na TV e pude ouvir o barulho do carro parar em frente à nossa casa, sendo seguido de uma buzina.
- Papai, cheguei. - Lena gritou ao abrir a porta e entrar em casa feito um furacão. - O que é isso na televisão? - a garota perguntou curiosa, se aproximando de mim no sofá. - Essa sou eu? - apontou para a tela e eu assenti. - E essa é a mamãe! - disse feliz. - Como eu estou pequenininha aqui, papai. - sorriu, achando engraçado.
- Estava mesmo. - assenti. - Mas agora você está um monstrinho enorme e fedido. - fiz cócegas em sua barriga. - Vai tomar banho, vamos à casa de sua avó.
- Estou indo! - ela sorria enquanto fazia seu caminho até o banheiro.
Na TV, o vídeo estava pausado no exato momento no qual Helena deu seu primeiro passo. tinha os braços esticados e um lindo sorriso no rosto, aquele pelo qual me apaixonei aos 15 anos. Seus cabelos estavam soltos em volumosas ondas que caiam perfeitamente sobre seus ombros.
Fevereiro de 2001
“Cuando te miraba, me mirabas…”
Eu podia sentir que os corredores me engoliriam a qualquer momento. Era um misto de ansiedade e medo, talvez alguma crise desconhecida por mim, mas eu tinha certeza de que alguma coisa estava acontecendo com meu cérebro e meu corpo naquele momento.
Eram centenas de pessoas desconhecidas ao meu redor, e nenhuma delas parecia me enxergar, algo comum quando você se muda para uma nova escola, principalmente uma na qual você é apenas um bolsista, não um garoto rico como todos os outros ali.
Caminhava em passos lentos até o pátio onde encontraria minha tia Úrsula, que lecionava língua espanhola naquela escola e me daria as melhores informações sobre o local. Assim que cheguei no ponto de encontro, que era ao lado de um bebedouro, pude ver que alguns meninos me olhavam de lado, como se estivessem curiosos com minha presença.
Um deles, que tinha cabelos escuros como a noite, se levantou e andou até minha direção.
- Ei, ‘muleque’. - seu tom de voz era repulsivo. - Você é novo aqui, né? - eu apenas meneei em concordância, tentando não demonstrar o medo que estava sentindo. - Qual é o seu nome, loirinho? - ele riu e eu me mantive calado, encarando as poucas sardas que ele tinha em sua bochecha. - Você é mudo, garoto?
- D-D-. - balbuciei meu nome para o garoto, que deu um tapa forte em meu ombro, algo como um cumprimento, porém com uma segunda intenção: a de me machucar.
- Algum problema aqui, senhor Tavarez? - a voz de minha tia soou e eu pude ver a postura do menino em minha frente mudar de repente. Ele voltou seu olhar para a mulher, e eu fiz o mesmo. Porém, ao lado dela estava uma garota que possuía uma prancheta em mãos. Seus cabelos eram castanhos e medianos, seus olhos eram como duas amêndoas e seu sorriso era lindo. Ela tinha uma franja, que estava caindo em seu olho e algumas vezes ela mexia a cabeça para poupar o trabalho de tirar os fios com as mãos, em um dos movimentos percebi que ela usava a franja para esconder algumas espinhas que estavam em sua testa. Sorri para a menina e ela desviou o olhar. - Eu perguntei se há algum problema. - a voz firme de tia Úrsula fez o menino estremecer, o que causou uma pequena risada vinda da menina de cabelos castanhos.
- Não, senhorita Úrsula. Eu estava apenas me apresentando para o aqui, talvez eu pudesse lhe mostrar o colégio. - ele segurou em meu ombro e eu logo fiz questão de retirar sua mão.
- Não se preocupe com isso, Ernesto. - minha tia falou. - Designei para isso. - apontou para a garota, que agora - para mim - tinha um nome. O menino concordou rapidamente e fez questão de se retirar da cena. - Agora que ele foi embora. - a mais velha sorriu. - Seja bem-vindo, . - beijou o topo da minha cabeça. - Essa é e ela apresentará tudo para você. É uma de nossas melhores alunas e é da sua classe. - a garota estendeu uma das mãos, segurando sua prancheta com a outra e eu fiz o mesmo, unindo minha mão à dela. Nossos olhares se encontraram e um sorriso se formou em nossos lábios. - Isso significa que já tem uma amiga.
Junho de 2020
- Então você e a mamãe se conheceram no colégio? - Lena, que sentava na cadeirinha, no banco de trás perguntou.
- Sim, tínhamos 15 anos. - eu sorri, olhando rapidamente pelo retrovisor interno, observando minha filha.
- E quantos anos vocês têm agora, papai? - ela mordeu o lábio inferior, fazendo uma cara de culpada por perguntar minha idade.
- 34. - ela abriu a boca em um perfeito “O” e eu ri. - Estamos juntos à 18 anos, já que começamos a namorar com 16. - observava a estrada que nos levava à cidade vizinha, onde visitariamos a avó de Helena. Havia um grande campo do lado direito, onde vacas pastavam e alguns cavalos corriam, fazendo a diversão da pequena Lena.
- Como vocês começaram a namorar, papai? - ela perguntou, com o tom de voz animado.
- Você quer mesmo saber? - retruquei e ela murmurou em concordância. - Ok.
Junho de 2002
“Tanto nos amamos, nos buscamos, nos deseamos…”
A casa de estava vazia. Apenas a empregada nos fazia companhia, já que preparava nosso almoço naquela tarde. estava sentada próxima à mesa de centro, no chão, enquanto eu estava sentado no sofá, onde deveria estar pesquisando sobre o trabalho de história em um dos muitos livros que estavam apoiados ao meu lado. Porém, eu estava me entretendo muito mais observando o carpete vermelho que forrava o chão da sala de estar.
Os cabelos de , que cresceram bastante desde que nos conhecemos, dessa vez não possuía mais o mesmo corte, não havia mais franja e ele estava dividido em algumas camadas que o deixavam com lindos movimentos ondulares. Eu nutria um sentimento por Olivia desde que a conheci, eu sabia que aquele sorriso tinha mexido comigo de alguma forma, e realmente mexeu. Voltei meu olhar para o carpete, para não me perder em mais uma vez.
- . - sua voz era como um sussurro. - Está tudo bem? - ela se levantou do chão e sentou-se ao meu lado no sofá. - Você costuma adorar os trabalhos de história, por que está tão avoado? - perguntou. - Sabe que sou sua melhor amiga e pode me dizer. - suspirei ao ouvir as duas palavras que menos desejava ouvir.
- Você não entenderia, . - meus olhos, que tinham algumas lágrimas se formando, encararam os seus. Uma das mãos da garota, que estava livre sobre o sofá, procurou a minha e as uniu num toque intimista. Olhei para nossas mãos e depois para garota. Seu sorriso não era de pena ou compaixão. Era apenas o seu sorriso feliz de sempre.
- Eu entendo mais do que gostaria de entender, . - mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça em negação.
E depois daquele ato, tudo fora um clarão, quando percebi os lábios de estavam grudados nos meus. Fechei meus olhos, imergindo no toque suave e no doce gosto de pêssego de seu brilho labial. Nossas mãos ainda estavam unidas e eu sentia o suor se acumulando entre elas, aquilo era novo tão novo para mim, quanto era para ela.
Eu nunca soube ao certo se já tinha beijado alguém antes. Mas, naquele momento, eu soube que aquele era seu primeiro beijo. E era o meu também.
Junho de 2020
- Isso é muito romântico. - Helena colocou as duas mãozinhas sobre o peito e suspirou, me arrancando um sorriso. - Você e a mamãe foram o primeiro beijo. - ela suspirou de novo. - Parece até história daqueles filmes que a gente assiste na televisão, papai. - comentou e eu gargalhei.
- Parece mesmo. - estacionei o carro em frente à casa de tijolos e desci para conseguir tirar Lena de sua cadeirinha. - Chegamos, bobinha. - desprendi o cinto e peguei a garota no colo, logo a colocando no chão. - Vai lá e toca a campainha, vovó está te esperando. - falei e a garota concordou, correndo até a porta e apertando o botão sonoro incontáveis vezes. Eu pegava as mochilas e bolsas dentro do carro, enquanto a mulher não atendia à porta. Fechei o porta malas e caminhei até Helena, esperando a porta abrir ao seu lado.
Logo que a maçaneta girou, dona Ivana apareceu com seus rotineiros bobs no cabelo.
- Vovó. - Helena pulou em direção a mulher, que a abraçou fortemente.
- Você está cada vez mais parecida com seu pai. - ela disse e Lena sorriu. - Agora vai lá nos fundos que Guilherme e seus outros primos já estão aí. - no mesmo instante vi Helena correr entre as pernas da mais velha e sair de minha visão assim que passou pela porta de vidro que dava para o jardim. - E você, . - abriu os braços. - Como está? - me aproximei, abraçando-a.
- Bem. Na medida do possível. - sorri sem mostrar os dentes.
- Que carinha é essa? - ela perguntou.
- Helena veio o caminho todo querendo saber minha história com . - sorri fraco.
- Engraçado, antes de vocês chegaram eu estava vendo umas fotos. Vem, entra. - ela abriu um pouco mais a porta, fazendo com que eu pudesse ver que, mesmo depois de tantos anos e tanta insistência, ela não havia tirado o velho carpete vermelho da sala de estar. Caminhei até o sofá, onde a mulher se sentava, e me sentei ao seu lado. - Veja essa aqui. - ela me entregou uma fotografia. Na imagem, estava sentada numa cadeira de salão de beleza, enquanto alguém preparava seus fios. Ela sorria alegremente enquanto conversava com Marcília, sua irmã. - Isso foi no dia do casamento de vocês.
- Dá para acreditar que já vão fazer 15 anos?
Junho de 2006
“Fuimos uno, aún celebro el veintitrés…”
Minha mão suava e eu quase não conseguia me manter em pé. Meus amigos, que me acompanhavam no altar, tentavam me lançar palavras de calmaria para que eu não começasse a chorar antes do momento. Aquele, certamente, era o dia mais feliz de minha vida. Eu e estávamos prestes a selar nossa união através do matrimônio. Decidimos juntos que queríamos casar antes de terminarmos nossos respectivos cursos na faculdade, para assim que concluíssemos, já pudéssemos começar a criar uma família. Namorávamos à quatro anos, e sim, tínhamos escolhido o dia do nosso primeiro beijo, para ser o dia de nosso casamento; 23 de Junho.
Quando a porta da igreja se abriu e todos os convidados se levantaram, eu soube que começaria a chorar feito uma criança, e foi dito e feito. Ver de branco, segurando um buquê e sendo guiada por seu pai até minha direção, fez com que todo meu emocional fosse abalado.
Não foi naquele momento que eu soube, mas foi aquele momento que me deu a certeza de que sim, eu estava com a pessoa certa.
se aproximou do altar e subiu as escadas com a ajuda de seu pai. Beijei sua mão e nos viramos para o padre, que começaria à cerimônia.
Dadas as palavras, era a hora de dizer os votos e fez questão de começar com os dela.
- . - ela tinha um papelzinho em mãos. - Desde o primeiro momento que te vi, cinco anos atrás, eu sabia que você seria o amor da minha vida. - seu sorriso surgiu. - Lembro do seu olhar curioso e do seu sorriso sincero, e com um pouco de medo do Ernesto Tavarez. - ela falou e nós dois rimos. - Mas sabemos que aquele momento foi único o suficiente para fazer com que esqueçamos que certas pessoas estavam na cena. - concordei e ela continuou. - Eu nunca fui boa em abrir meu coração, mas você me ensinou a fazer isso e de pouquinho em pouquinho, eu consegui enxergar o verdadeiro romântico incompreendível que és. - sorriu fraco. - , passamos por tanto; por ganhos, perdas, vidas e mortes. Passamos por brigas e momentos de amor, mas principalmente, passamos por tudo isso juntos. - havia uma lágrima no canto do meu olho. - E, sim, . Você pode achar que as vezes eu não te entendo. Mas, eu te entendo mais do que gostaria de entender. - ele sorriu e eu também, me lembrando. - Por isso, eu sei o quanto você quer chorar igual um neném, mas está se segurando para não sair feio nas fotos. - uma risadinha saiu de seus lábios. - Por isso, eu também sei que você nunca estaria aqui nesse altar se não me amasse com todo seu coração, assim como eu te amo. - suspirou. - E com essas poucas, porém sinceras palavras, eu te agradeço por me deixar ser seu último primeiro beijo.
Junho de 2020
Um sorriso fraco surgiu em meus lábios, que saudade que eu estava sentindo daquele dia.
- Aqueles votos foram os mais bonitos que já presenciei. - dona Ivana falou. - E olha que sou uma mulher idosa e já fui em vários casamentos. - riu fraco, e eu fiz o mesmo. - Também não digo isso porque é minha filha. - suspirou.
- A senhora tem a visto? - meu olhar, que fitava a foto, por um momento se perdeu em um ponto cego da sala. Lágrimas começaram a rolar por meu rosto.
- Sempre que possível. - dona Ivana colocou a mão sobre minhas costas.
Agosto de 2019
“Insegura estoy sin ti, voy pagando por mi error…”
Chovia intensamente e tudo estava escuro. O hotel de beira de estrada no qual estávamos logo ficaria sem luz e precisávamos fazer algo.
e eu tínhamos viajado para um congresso de Farmacêuticos, já que aquela era sua profissão, e deixamos Helena com dona Ivana para que ela não precisasse passar por diversas palestras e lugares não tão divertidos para crianças.
Devido à grande tempestade, não conseguimos entrar em contato com Ivana, o que nos deixou ainda mais preocupados. Não que ela cuidasse mal de Helena, pelo contrário. Mas nós éramos pais muito preocupados e ligavamos de hora em hora.
Entramos no quarto e aguardamos a chuva estiar para pegarmos a estrada. O ideal era que passássemos a noite ali e depois voltássemos para casa de Ivana, e então buscar Helena. Porém, eu precisava chegar em casa ainda naquela noite já que teria uma reunião importante no dia seguinte. Não estávamos longe da cidade, e eu pensei por um momento em ir sozinho e no dia seguinte, após a reunião voltar para buscar . Mas ela insistiu para ir comigo.
- Não vou te deixar pegar a estrada sozinho nessa chuva, amor. - sua calmaria era algo que sempre me deixava bem, não importa em qual momento fosse. - Quatro olhos enxergam melhor que dois. Eu vou com você e assim estaremos mais seguros. - eu estava em pé em sua frente. Ela se levantou do colchão e veio em minha direção, me abraçando fortemente. - Confie em mim.
- Nunca deixei de confiar. - encostei nossas testas e ela sorriu. - Eu te amo.
- Eu te amo. - ela repetiu e envolveu os braços em meu pescoço, unindo mais uma vez nossos lábios. E a cada beijo eu tinha mais certeza de que era a pessoa certa para mim, e isso acontecia a cada beijo durante todos esses anos. - Vou arrumar nossas coisas, ok? - olhou para mim e eu concordei. - Vai fazer nosso check-out. - piscou com apenas um dos olhos e eu sorri, concordando mais uma vez.
Caminhei em direção à recepção e falei com o simpático rapaz que estava ali. Ele agilizou o processo, já que sairíamos naquele exato momento, para aproveitar a chuva que havia parado. Eu o entreguei a chave do quarto e agradeci pela hospedagem. Assim que voltei, já havia colocado as malas no bagageiro do carro, e já estava no banco do carona me esperando. Sorri ao olhar para minha esposa, que estava concentrada num livro de fantasia que comprou na última semana.
- Eu não acredito que você nunca tinha lido Harry Potter antes. - falei, fingindo indignação logo que entrei no carro.
- Sou contra assistir os filmes antes de ler o livros. - ela falou, fechando o último livro da saga, que era o que lia.
- Você está toda atrasada, meu amor. - brinquei e ela me deu língua. - Mantenha essa língua em sua boca ou te conto o final do livro. - ela rapidamente levou os dedos as orelhas, tampando seus ouvidos como uma criança mimada. Eu ri da cena e coloquei a chave na ignição. - Mande uma mensagem para sua mãe e avise que já estamos indo, apenas para ela não ficar preocupada. - a mulher concordou e rapidamente pegou o celular em sua bolsa. Ainda estava sem sinal, porém na metade do caminho alguma rede seria encontrada e a mensagem chegaria normalmente para dona Ivana.
Dei partida no carro, seguindo em direção à estrada que pegariamos. Como era de se esperar, tudo estava escuro e o asfalto era iluminado apenas pelos faróis dos poucos carros que passavam. decidiu ligar o som e colocar para tocar, em baixo volume, o álbum de seu cantor preferido: Sebastián Yatra. Enquanto as músicas tocavam, ela as dublava, porém mantinha os olhos focados na estrada.
- Algo está errado. - ela disse, semicerrando os olhos para poder enxergar em uma distância maior. Foi quando uma buzina forte soou e um caminhão completamente apagado e sem direção apareceu em alta velocidade. - joga pra direita. - e assim que ela falou, eu fiz. Porém, o caminhão se aproximava ainda mais e parecia escorregar na pista. - Não vai dar. - ela falou. - Eu te amo. - me encarou, com os olhos repletos de lágrimas. E essa foi a última coisa que ouvi sair de seus lábios antes do caminhão se chocar contra nosso carro, o fazendo capotar diversas vezes.
Junho de 2020
- Hora de dormir, princesinha. - entrei no quarto onde Helena estava e ela se ajeitou na cama, abraçando seu ursinho preferido.
- Tia Marcília me disse que amanhã você e mamãe fazem 14 anos de casados. - ela disse, marota e eu concordei.
- E 18 de namoro. - falei e ela arregalou os olhos, impressionada.
- E a mamãe não vai voltar de viagem para comemorar tudo isso de tempo com você, papai? - seu olhar ingênuo e profundo me encarou. A cor azul podia ter vindo de mim, mas aquela maneira de olhar era a mesma de .
- Chegou a hora de você saber uma coisa, filha.
Agosto de 2019
“Y es que al verte el mundo se me sale de las manos…”
Acordei com uma dor de cabeça horrível e uma luz forte em meu rosto. Pisquei repetidamente, tentando conectar todos os acontecimentos da última noite. Carro, chuva, caminhão, acidente… .
Meus olhos se arregalaram e só então percebi que estava em um hospital. Uma enfermeira, que percebeu minha agitação, entrou com pressa no quarto.
- Onde ela está? - foi a única coisa que perguntei.
- Vou chamar um médico. - a mulher disse, com um semblante preocupado, o que me deixou ainda mais ansioso e nervoso.
Os segundos seguinte mais se pareceram horas, já que o médico demorou para chegar - em meu consentimento.
Logo que o homem de cabelos crespos e jaleco contrastante à sua pele, sentou-se ao lado de meu leito para uma conversa.
- O que aconteceu, doutor? - perguntei, apreensivo.
- Você e sua esposa sofreram um acidente em uma rodovia. O carro capotou algumas vezes e você está bem. Quebrou apenas algumas costelas e a perna. - ele comentou.
- Eu não me importo comigo. - falei, em tom um tanto agressivo. - Como ela está? - o médico olhou para o chão e suspirou.
- Ela está em coma. Sua esposa teve um dano grande e entrou em coma. - ele falou e as lágrimas começaram a cair por meu rosto. Naquele momento era como se uma faca estivesse atravessando meu peito. estava numa cama, presa em seu próprio corpo, sem poder fazer nada para reverter. Eu sentia dor, e não era física. A dor de saber que o amor de sua vida está sofrendo é pior que qualquer osso quebrado, isso eu poderia afirmar.
- E tem previsão de quanto tempo ficará assim? - perguntei e o médico meneou a cabeça em negação, fazendo com que mais lágrimas rolassem por meu rosto.
- Eu sinto muito.
Junho de 2020
(Coloque a música para tocar)
A sala de espera era tão fria quanto o quarto e eu podia sentir minhas mãos tremerem. Helena brincava com algumas das crianças que acompanhavam seus pais. Eu havia contado à ela sobre a condição de . Porém, ao contrário de mim, Helena sempre fora forte para lidar com perdas, já que passou por muitas delas durante a vida: seu peixinho, seu cachorro, sua tia avó Úrsula - sim, a que me apresentou à . - e seu gato: Bóris, que foi envenenado pelo vizinho. De fato a garota era forte, ou pelo menos estava tentando ser.
O mesmo médico que me deu a notícia do coma de , foi quem veio nos recepcionar. Estávamos eu, Helena e Ivana. O homem tinha um olhar calmo, porém preocupado. Eu sabia que algo de errado acontecia.
- Senhor . - ele falou para mim. - Senhora . - suspirou. - Sei que vieram para uma visita recorrente à , mas precisamos falar sobre algo um pouco mais sério. - ele se sentou à nossa frente, ali mesmo na sala de espera. - teve diversas paradas cardíacas das quais conseguimos salvá-la…
- Mas? - perguntei, já com os olhos repletos de lágrimas.
- Não sabemos se ela vai aguentar mais. - ele foi direto. - Por isso estamos sugerindo a desligada dos aparelhos. Isso será o melhor para ela. - e mais uma vez aquela faca atravessou meu peito. Ivana, que estava ao meu lado, chorava inconformada. Mas, de alguma forma, eu sabia que ela não tinha as mesmas esperanças que eu. A mulher era médica e sabia como as coisas funcionavam, eu era apenas um Advogado com altas esperanças de que sua mulher acordaria de um coma.
- Podemos vê-la? - perguntei e o médico afirmou. Me virei para minha filha, a chamando. - Helena. - alertei e ela olhou em minha direção. - Vem, vamos ver a mamãe.
- Ela acordou, papai? - a garota correu em minha direção, se jogando em meus braços.
- Não, meu amor. - beijei sua testa. - Nós vamos dar tchau para ela. - a menina balançou a cabeça e deixou uma singela lágrima escapar de seus grandes olhos azuis.
Subimos de elevador até o quinto andar, onde ela estava internada. Assim que chegamos em frente ao quarto no qual fomos guiados pela enfermeira, abrimos a porta e então, depois de todos aqueles meses, eu pude ver .
Me aproximei de seu leito e sentei em uma poltrona que estava ao seu lado.
- Ei, meu amor. - falei em tom baixo. - Desculpe-me não ter te visitado antes. Mas, eu não queria poder te ver dessa maneira. - segurei sua mão, que ainda estava quente. - , eu tinha esperanças de que você um dia começaria a se mexer, a piscar ou alguma coisa do tipo. Mas, parece que nem todas as coisas são como nos filmes que vemos na TV. - sorri fraco, ao olhar para Lena que estava no colo da avó, em outra poltrona. - Então, eu vou precisar te deixar ir, meu amor. - respirei fundo. - Mas antes eu tenho que te falar algumas coisas que você precisa saber. - sequei a lágrima que caia em minha bochecha. - Começando pelo final de Harry Potter. - ri fraco. - O Voldemort morreu e a guerra bruxa acabou. - sorri. - Você conseguiu fazer com que eu começasse a ouvir reggaeton repetidamente no som de casa. - acariciei sua mão. - Juro que Helena as vezes quer me matar por isso. - sussurrei. - Falando nela; ela está aqui e está crescida. Ela faz sete anos logo. - Helena sussurrou um “oi, mamãe” ao fundo, que me trouxe arrepios. - E por falar em aniversários. - me aproximei ainda mais, trazendo sua mão para perto de minha boca, a beijando. - Feliz 14 anos de casamento e 18 de namoro. - uma mão encostou em meu ombro, e então assim que eu me virei o médico estava com os papéis para o desligamento em mãos, bastaria assinar. Os entregou para mim e se afastou, dando o tempo necessário para despedida, e pedindo para que Ivana tirasse Helena da sala, já que poderia ser traumático para a menina ver a mãe morrer. - Eu sei que você faria o mesmo para que eu não sofresse, . - levei a caneta até a parte marcada do papel e assinei, sendo aquela a assinatura mais dolorosa de todas que já fiz.
Uma equipe de enfermeiros entrou para acompanhar o médico. Eu me levantei da poltrona, como solicitado pelo médico. E foi naquele momento que começaram a desentubar bem em minha frente. E assim que tiraram o tubo de sua garganta, um suspiro saiu de seus lábios, me trazendo um pouco mais de esperança. Mas, eu sabia que aquilo era normal.
Então, uma das enfermeiras olhou para mim, solicitando a autorização para enfim desligar os aparelhos.
- Pode fazer. - engoli seco e a mulher apenas apertou um botão, fazendo com que tudo que estava deixando viva, fosse desligado. Uma lágrima escorreu por meu rosto, e logo a equipe saiu para me dar um pouco mais de tempo com . - Espero que agora você descanse em paz, meu amor. Eu já sinto sua falta. E como diria seu cantor favorito: - encostei minha testa em sua mão, desabando em meu choro. - es un infierno, quererte y no tenerte…
“Hoy la luz del sol alumbra oscuridad…”
- Vem pra mamãe, Helena. - estendia os braços enquanto nossa filha, que iria completar um ano em poucas semanas, se apoiava na estante da sala. - São só alguns passinhos, minha filha. - ela parecia suplicar, e eu sorria fraco ao ver a cena. - Você está filmando isso, ? - seu olhar virou para mim e eu me certifiquei de mostrar o celular em minha mão. - Ótimo, eu tenho certeza de que o momento é agora. - ela parecia confiante. Os olhos azuis de Helena encaravam os castanhos de com curiosidade, um misto de medo e excitação era explícito no olhar da criança.
- Vamos, filha. Vá até a mamãe, não precisa ter medo. - falei e Helena, em relutância, soltou as mãozinhas da madeira do móvel, e ficou de pé sem o apoio. - Isso! Muito bem. - me ajoelhei, ficando ao lado de minha esposa.
Helena virou seu pequeno corpo com dificuldade, porém ficou completamente de frente para nós.
- Isso, Lena. - a incentivou. - Vem! - o pequeno anjinho de cabelos loiros tomou toda sua coragem e finalmente deu o primeiro passo.
Junho de 2020
Pausei a gravação na TV e pude ouvir o barulho do carro parar em frente à nossa casa, sendo seguido de uma buzina.
- Papai, cheguei. - Lena gritou ao abrir a porta e entrar em casa feito um furacão. - O que é isso na televisão? - a garota perguntou curiosa, se aproximando de mim no sofá. - Essa sou eu? - apontou para a tela e eu assenti. - E essa é a mamãe! - disse feliz. - Como eu estou pequenininha aqui, papai. - sorriu, achando engraçado.
- Estava mesmo. - assenti. - Mas agora você está um monstrinho enorme e fedido. - fiz cócegas em sua barriga. - Vai tomar banho, vamos à casa de sua avó.
- Estou indo! - ela sorria enquanto fazia seu caminho até o banheiro.
Na TV, o vídeo estava pausado no exato momento no qual Helena deu seu primeiro passo. tinha os braços esticados e um lindo sorriso no rosto, aquele pelo qual me apaixonei aos 15 anos. Seus cabelos estavam soltos em volumosas ondas que caiam perfeitamente sobre seus ombros.
Fevereiro de 2001
“Cuando te miraba, me mirabas…”
Eu podia sentir que os corredores me engoliriam a qualquer momento. Era um misto de ansiedade e medo, talvez alguma crise desconhecida por mim, mas eu tinha certeza de que alguma coisa estava acontecendo com meu cérebro e meu corpo naquele momento.
Eram centenas de pessoas desconhecidas ao meu redor, e nenhuma delas parecia me enxergar, algo comum quando você se muda para uma nova escola, principalmente uma na qual você é apenas um bolsista, não um garoto rico como todos os outros ali.
Caminhava em passos lentos até o pátio onde encontraria minha tia Úrsula, que lecionava língua espanhola naquela escola e me daria as melhores informações sobre o local. Assim que cheguei no ponto de encontro, que era ao lado de um bebedouro, pude ver que alguns meninos me olhavam de lado, como se estivessem curiosos com minha presença.
Um deles, que tinha cabelos escuros como a noite, se levantou e andou até minha direção.
- Ei, ‘muleque’. - seu tom de voz era repulsivo. - Você é novo aqui, né? - eu apenas meneei em concordância, tentando não demonstrar o medo que estava sentindo. - Qual é o seu nome, loirinho? - ele riu e eu me mantive calado, encarando as poucas sardas que ele tinha em sua bochecha. - Você é mudo, garoto?
- D-D-. - balbuciei meu nome para o garoto, que deu um tapa forte em meu ombro, algo como um cumprimento, porém com uma segunda intenção: a de me machucar.
- Algum problema aqui, senhor Tavarez? - a voz de minha tia soou e eu pude ver a postura do menino em minha frente mudar de repente. Ele voltou seu olhar para a mulher, e eu fiz o mesmo. Porém, ao lado dela estava uma garota que possuía uma prancheta em mãos. Seus cabelos eram castanhos e medianos, seus olhos eram como duas amêndoas e seu sorriso era lindo. Ela tinha uma franja, que estava caindo em seu olho e algumas vezes ela mexia a cabeça para poupar o trabalho de tirar os fios com as mãos, em um dos movimentos percebi que ela usava a franja para esconder algumas espinhas que estavam em sua testa. Sorri para a menina e ela desviou o olhar. - Eu perguntei se há algum problema. - a voz firme de tia Úrsula fez o menino estremecer, o que causou uma pequena risada vinda da menina de cabelos castanhos.
- Não, senhorita Úrsula. Eu estava apenas me apresentando para o aqui, talvez eu pudesse lhe mostrar o colégio. - ele segurou em meu ombro e eu logo fiz questão de retirar sua mão.
- Não se preocupe com isso, Ernesto. - minha tia falou. - Designei para isso. - apontou para a garota, que agora - para mim - tinha um nome. O menino concordou rapidamente e fez questão de se retirar da cena. - Agora que ele foi embora. - a mais velha sorriu. - Seja bem-vindo, . - beijou o topo da minha cabeça. - Essa é e ela apresentará tudo para você. É uma de nossas melhores alunas e é da sua classe. - a garota estendeu uma das mãos, segurando sua prancheta com a outra e eu fiz o mesmo, unindo minha mão à dela. Nossos olhares se encontraram e um sorriso se formou em nossos lábios. - Isso significa que já tem uma amiga.
Junho de 2020
- Então você e a mamãe se conheceram no colégio? - Lena, que sentava na cadeirinha, no banco de trás perguntou.
- Sim, tínhamos 15 anos. - eu sorri, olhando rapidamente pelo retrovisor interno, observando minha filha.
- E quantos anos vocês têm agora, papai? - ela mordeu o lábio inferior, fazendo uma cara de culpada por perguntar minha idade.
- 34. - ela abriu a boca em um perfeito “O” e eu ri. - Estamos juntos à 18 anos, já que começamos a namorar com 16. - observava a estrada que nos levava à cidade vizinha, onde visitariamos a avó de Helena. Havia um grande campo do lado direito, onde vacas pastavam e alguns cavalos corriam, fazendo a diversão da pequena Lena.
- Como vocês começaram a namorar, papai? - ela perguntou, com o tom de voz animado.
- Você quer mesmo saber? - retruquei e ela murmurou em concordância. - Ok.
Junho de 2002
“Tanto nos amamos, nos buscamos, nos deseamos…”
A casa de estava vazia. Apenas a empregada nos fazia companhia, já que preparava nosso almoço naquela tarde. estava sentada próxima à mesa de centro, no chão, enquanto eu estava sentado no sofá, onde deveria estar pesquisando sobre o trabalho de história em um dos muitos livros que estavam apoiados ao meu lado. Porém, eu estava me entretendo muito mais observando o carpete vermelho que forrava o chão da sala de estar.
Os cabelos de , que cresceram bastante desde que nos conhecemos, dessa vez não possuía mais o mesmo corte, não havia mais franja e ele estava dividido em algumas camadas que o deixavam com lindos movimentos ondulares. Eu nutria um sentimento por Olivia desde que a conheci, eu sabia que aquele sorriso tinha mexido comigo de alguma forma, e realmente mexeu. Voltei meu olhar para o carpete, para não me perder em mais uma vez.
- . - sua voz era como um sussurro. - Está tudo bem? - ela se levantou do chão e sentou-se ao meu lado no sofá. - Você costuma adorar os trabalhos de história, por que está tão avoado? - perguntou. - Sabe que sou sua melhor amiga e pode me dizer. - suspirei ao ouvir as duas palavras que menos desejava ouvir.
- Você não entenderia, . - meus olhos, que tinham algumas lágrimas se formando, encararam os seus. Uma das mãos da garota, que estava livre sobre o sofá, procurou a minha e as uniu num toque intimista. Olhei para nossas mãos e depois para garota. Seu sorriso não era de pena ou compaixão. Era apenas o seu sorriso feliz de sempre.
- Eu entendo mais do que gostaria de entender, . - mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça em negação.
E depois daquele ato, tudo fora um clarão, quando percebi os lábios de estavam grudados nos meus. Fechei meus olhos, imergindo no toque suave e no doce gosto de pêssego de seu brilho labial. Nossas mãos ainda estavam unidas e eu sentia o suor se acumulando entre elas, aquilo era novo tão novo para mim, quanto era para ela.
Eu nunca soube ao certo se já tinha beijado alguém antes. Mas, naquele momento, eu soube que aquele era seu primeiro beijo. E era o meu também.
Junho de 2020
- Isso é muito romântico. - Helena colocou as duas mãozinhas sobre o peito e suspirou, me arrancando um sorriso. - Você e a mamãe foram o primeiro beijo. - ela suspirou de novo. - Parece até história daqueles filmes que a gente assiste na televisão, papai. - comentou e eu gargalhei.
- Parece mesmo. - estacionei o carro em frente à casa de tijolos e desci para conseguir tirar Lena de sua cadeirinha. - Chegamos, bobinha. - desprendi o cinto e peguei a garota no colo, logo a colocando no chão. - Vai lá e toca a campainha, vovó está te esperando. - falei e a garota concordou, correndo até a porta e apertando o botão sonoro incontáveis vezes. Eu pegava as mochilas e bolsas dentro do carro, enquanto a mulher não atendia à porta. Fechei o porta malas e caminhei até Helena, esperando a porta abrir ao seu lado.
Logo que a maçaneta girou, dona Ivana apareceu com seus rotineiros bobs no cabelo.
- Vovó. - Helena pulou em direção a mulher, que a abraçou fortemente.
- Você está cada vez mais parecida com seu pai. - ela disse e Lena sorriu. - Agora vai lá nos fundos que Guilherme e seus outros primos já estão aí. - no mesmo instante vi Helena correr entre as pernas da mais velha e sair de minha visão assim que passou pela porta de vidro que dava para o jardim. - E você, . - abriu os braços. - Como está? - me aproximei, abraçando-a.
- Bem. Na medida do possível. - sorri sem mostrar os dentes.
- Que carinha é essa? - ela perguntou.
- Helena veio o caminho todo querendo saber minha história com . - sorri fraco.
- Engraçado, antes de vocês chegaram eu estava vendo umas fotos. Vem, entra. - ela abriu um pouco mais a porta, fazendo com que eu pudesse ver que, mesmo depois de tantos anos e tanta insistência, ela não havia tirado o velho carpete vermelho da sala de estar. Caminhei até o sofá, onde a mulher se sentava, e me sentei ao seu lado. - Veja essa aqui. - ela me entregou uma fotografia. Na imagem, estava sentada numa cadeira de salão de beleza, enquanto alguém preparava seus fios. Ela sorria alegremente enquanto conversava com Marcília, sua irmã. - Isso foi no dia do casamento de vocês.
- Dá para acreditar que já vão fazer 15 anos?
Junho de 2006
“Fuimos uno, aún celebro el veintitrés…”
Minha mão suava e eu quase não conseguia me manter em pé. Meus amigos, que me acompanhavam no altar, tentavam me lançar palavras de calmaria para que eu não começasse a chorar antes do momento. Aquele, certamente, era o dia mais feliz de minha vida. Eu e estávamos prestes a selar nossa união através do matrimônio. Decidimos juntos que queríamos casar antes de terminarmos nossos respectivos cursos na faculdade, para assim que concluíssemos, já pudéssemos começar a criar uma família. Namorávamos à quatro anos, e sim, tínhamos escolhido o dia do nosso primeiro beijo, para ser o dia de nosso casamento; 23 de Junho.
Quando a porta da igreja se abriu e todos os convidados se levantaram, eu soube que começaria a chorar feito uma criança, e foi dito e feito. Ver de branco, segurando um buquê e sendo guiada por seu pai até minha direção, fez com que todo meu emocional fosse abalado.
Não foi naquele momento que eu soube, mas foi aquele momento que me deu a certeza de que sim, eu estava com a pessoa certa.
se aproximou do altar e subiu as escadas com a ajuda de seu pai. Beijei sua mão e nos viramos para o padre, que começaria à cerimônia.
Dadas as palavras, era a hora de dizer os votos e fez questão de começar com os dela.
- . - ela tinha um papelzinho em mãos. - Desde o primeiro momento que te vi, cinco anos atrás, eu sabia que você seria o amor da minha vida. - seu sorriso surgiu. - Lembro do seu olhar curioso e do seu sorriso sincero, e com um pouco de medo do Ernesto Tavarez. - ela falou e nós dois rimos. - Mas sabemos que aquele momento foi único o suficiente para fazer com que esqueçamos que certas pessoas estavam na cena. - concordei e ela continuou. - Eu nunca fui boa em abrir meu coração, mas você me ensinou a fazer isso e de pouquinho em pouquinho, eu consegui enxergar o verdadeiro romântico incompreendível que és. - sorriu fraco. - , passamos por tanto; por ganhos, perdas, vidas e mortes. Passamos por brigas e momentos de amor, mas principalmente, passamos por tudo isso juntos. - havia uma lágrima no canto do meu olho. - E, sim, . Você pode achar que as vezes eu não te entendo. Mas, eu te entendo mais do que gostaria de entender. - ele sorriu e eu também, me lembrando. - Por isso, eu sei o quanto você quer chorar igual um neném, mas está se segurando para não sair feio nas fotos. - uma risadinha saiu de seus lábios. - Por isso, eu também sei que você nunca estaria aqui nesse altar se não me amasse com todo seu coração, assim como eu te amo. - suspirou. - E com essas poucas, porém sinceras palavras, eu te agradeço por me deixar ser seu último primeiro beijo.
Junho de 2020
Um sorriso fraco surgiu em meus lábios, que saudade que eu estava sentindo daquele dia.
- Aqueles votos foram os mais bonitos que já presenciei. - dona Ivana falou. - E olha que sou uma mulher idosa e já fui em vários casamentos. - riu fraco, e eu fiz o mesmo. - Também não digo isso porque é minha filha. - suspirou.
- A senhora tem a visto? - meu olhar, que fitava a foto, por um momento se perdeu em um ponto cego da sala. Lágrimas começaram a rolar por meu rosto.
- Sempre que possível. - dona Ivana colocou a mão sobre minhas costas.
Agosto de 2019
“Insegura estoy sin ti, voy pagando por mi error…”
Chovia intensamente e tudo estava escuro. O hotel de beira de estrada no qual estávamos logo ficaria sem luz e precisávamos fazer algo.
e eu tínhamos viajado para um congresso de Farmacêuticos, já que aquela era sua profissão, e deixamos Helena com dona Ivana para que ela não precisasse passar por diversas palestras e lugares não tão divertidos para crianças.
Devido à grande tempestade, não conseguimos entrar em contato com Ivana, o que nos deixou ainda mais preocupados. Não que ela cuidasse mal de Helena, pelo contrário. Mas nós éramos pais muito preocupados e ligavamos de hora em hora.
Entramos no quarto e aguardamos a chuva estiar para pegarmos a estrada. O ideal era que passássemos a noite ali e depois voltássemos para casa de Ivana, e então buscar Helena. Porém, eu precisava chegar em casa ainda naquela noite já que teria uma reunião importante no dia seguinte. Não estávamos longe da cidade, e eu pensei por um momento em ir sozinho e no dia seguinte, após a reunião voltar para buscar . Mas ela insistiu para ir comigo.
- Não vou te deixar pegar a estrada sozinho nessa chuva, amor. - sua calmaria era algo que sempre me deixava bem, não importa em qual momento fosse. - Quatro olhos enxergam melhor que dois. Eu vou com você e assim estaremos mais seguros. - eu estava em pé em sua frente. Ela se levantou do colchão e veio em minha direção, me abraçando fortemente. - Confie em mim.
- Nunca deixei de confiar. - encostei nossas testas e ela sorriu. - Eu te amo.
- Eu te amo. - ela repetiu e envolveu os braços em meu pescoço, unindo mais uma vez nossos lábios. E a cada beijo eu tinha mais certeza de que era a pessoa certa para mim, e isso acontecia a cada beijo durante todos esses anos. - Vou arrumar nossas coisas, ok? - olhou para mim e eu concordei. - Vai fazer nosso check-out. - piscou com apenas um dos olhos e eu sorri, concordando mais uma vez.
Caminhei em direção à recepção e falei com o simpático rapaz que estava ali. Ele agilizou o processo, já que sairíamos naquele exato momento, para aproveitar a chuva que havia parado. Eu o entreguei a chave do quarto e agradeci pela hospedagem. Assim que voltei, já havia colocado as malas no bagageiro do carro, e já estava no banco do carona me esperando. Sorri ao olhar para minha esposa, que estava concentrada num livro de fantasia que comprou na última semana.
- Eu não acredito que você nunca tinha lido Harry Potter antes. - falei, fingindo indignação logo que entrei no carro.
- Sou contra assistir os filmes antes de ler o livros. - ela falou, fechando o último livro da saga, que era o que lia.
- Você está toda atrasada, meu amor. - brinquei e ela me deu língua. - Mantenha essa língua em sua boca ou te conto o final do livro. - ela rapidamente levou os dedos as orelhas, tampando seus ouvidos como uma criança mimada. Eu ri da cena e coloquei a chave na ignição. - Mande uma mensagem para sua mãe e avise que já estamos indo, apenas para ela não ficar preocupada. - a mulher concordou e rapidamente pegou o celular em sua bolsa. Ainda estava sem sinal, porém na metade do caminho alguma rede seria encontrada e a mensagem chegaria normalmente para dona Ivana.
Dei partida no carro, seguindo em direção à estrada que pegariamos. Como era de se esperar, tudo estava escuro e o asfalto era iluminado apenas pelos faróis dos poucos carros que passavam. decidiu ligar o som e colocar para tocar, em baixo volume, o álbum de seu cantor preferido: Sebastián Yatra. Enquanto as músicas tocavam, ela as dublava, porém mantinha os olhos focados na estrada.
- Algo está errado. - ela disse, semicerrando os olhos para poder enxergar em uma distância maior. Foi quando uma buzina forte soou e um caminhão completamente apagado e sem direção apareceu em alta velocidade. - joga pra direita. - e assim que ela falou, eu fiz. Porém, o caminhão se aproximava ainda mais e parecia escorregar na pista. - Não vai dar. - ela falou. - Eu te amo. - me encarou, com os olhos repletos de lágrimas. E essa foi a última coisa que ouvi sair de seus lábios antes do caminhão se chocar contra nosso carro, o fazendo capotar diversas vezes.
Junho de 2020
- Hora de dormir, princesinha. - entrei no quarto onde Helena estava e ela se ajeitou na cama, abraçando seu ursinho preferido.
- Tia Marcília me disse que amanhã você e mamãe fazem 14 anos de casados. - ela disse, marota e eu concordei.
- E 18 de namoro. - falei e ela arregalou os olhos, impressionada.
- E a mamãe não vai voltar de viagem para comemorar tudo isso de tempo com você, papai? - seu olhar ingênuo e profundo me encarou. A cor azul podia ter vindo de mim, mas aquela maneira de olhar era a mesma de .
- Chegou a hora de você saber uma coisa, filha.
Agosto de 2019
“Y es que al verte el mundo se me sale de las manos…”
Acordei com uma dor de cabeça horrível e uma luz forte em meu rosto. Pisquei repetidamente, tentando conectar todos os acontecimentos da última noite. Carro, chuva, caminhão, acidente… .
Meus olhos se arregalaram e só então percebi que estava em um hospital. Uma enfermeira, que percebeu minha agitação, entrou com pressa no quarto.
- Onde ela está? - foi a única coisa que perguntei.
- Vou chamar um médico. - a mulher disse, com um semblante preocupado, o que me deixou ainda mais ansioso e nervoso.
Os segundos seguinte mais se pareceram horas, já que o médico demorou para chegar - em meu consentimento.
Logo que o homem de cabelos crespos e jaleco contrastante à sua pele, sentou-se ao lado de meu leito para uma conversa.
- O que aconteceu, doutor? - perguntei, apreensivo.
- Você e sua esposa sofreram um acidente em uma rodovia. O carro capotou algumas vezes e você está bem. Quebrou apenas algumas costelas e a perna. - ele comentou.
- Eu não me importo comigo. - falei, em tom um tanto agressivo. - Como ela está? - o médico olhou para o chão e suspirou.
- Ela está em coma. Sua esposa teve um dano grande e entrou em coma. - ele falou e as lágrimas começaram a cair por meu rosto. Naquele momento era como se uma faca estivesse atravessando meu peito. estava numa cama, presa em seu próprio corpo, sem poder fazer nada para reverter. Eu sentia dor, e não era física. A dor de saber que o amor de sua vida está sofrendo é pior que qualquer osso quebrado, isso eu poderia afirmar.
- E tem previsão de quanto tempo ficará assim? - perguntei e o médico meneou a cabeça em negação, fazendo com que mais lágrimas rolassem por meu rosto.
- Eu sinto muito.
Junho de 2020
(Coloque a música para tocar)
A sala de espera era tão fria quanto o quarto e eu podia sentir minhas mãos tremerem. Helena brincava com algumas das crianças que acompanhavam seus pais. Eu havia contado à ela sobre a condição de . Porém, ao contrário de mim, Helena sempre fora forte para lidar com perdas, já que passou por muitas delas durante a vida: seu peixinho, seu cachorro, sua tia avó Úrsula - sim, a que me apresentou à . - e seu gato: Bóris, que foi envenenado pelo vizinho. De fato a garota era forte, ou pelo menos estava tentando ser.
O mesmo médico que me deu a notícia do coma de , foi quem veio nos recepcionar. Estávamos eu, Helena e Ivana. O homem tinha um olhar calmo, porém preocupado. Eu sabia que algo de errado acontecia.
- Senhor . - ele falou para mim. - Senhora . - suspirou. - Sei que vieram para uma visita recorrente à , mas precisamos falar sobre algo um pouco mais sério. - ele se sentou à nossa frente, ali mesmo na sala de espera. - teve diversas paradas cardíacas das quais conseguimos salvá-la…
- Mas? - perguntei, já com os olhos repletos de lágrimas.
- Não sabemos se ela vai aguentar mais. - ele foi direto. - Por isso estamos sugerindo a desligada dos aparelhos. Isso será o melhor para ela. - e mais uma vez aquela faca atravessou meu peito. Ivana, que estava ao meu lado, chorava inconformada. Mas, de alguma forma, eu sabia que ela não tinha as mesmas esperanças que eu. A mulher era médica e sabia como as coisas funcionavam, eu era apenas um Advogado com altas esperanças de que sua mulher acordaria de um coma.
- Podemos vê-la? - perguntei e o médico afirmou. Me virei para minha filha, a chamando. - Helena. - alertei e ela olhou em minha direção. - Vem, vamos ver a mamãe.
- Ela acordou, papai? - a garota correu em minha direção, se jogando em meus braços.
- Não, meu amor. - beijei sua testa. - Nós vamos dar tchau para ela. - a menina balançou a cabeça e deixou uma singela lágrima escapar de seus grandes olhos azuis.
Subimos de elevador até o quinto andar, onde ela estava internada. Assim que chegamos em frente ao quarto no qual fomos guiados pela enfermeira, abrimos a porta e então, depois de todos aqueles meses, eu pude ver .
Me aproximei de seu leito e sentei em uma poltrona que estava ao seu lado.
- Ei, meu amor. - falei em tom baixo. - Desculpe-me não ter te visitado antes. Mas, eu não queria poder te ver dessa maneira. - segurei sua mão, que ainda estava quente. - , eu tinha esperanças de que você um dia começaria a se mexer, a piscar ou alguma coisa do tipo. Mas, parece que nem todas as coisas são como nos filmes que vemos na TV. - sorri fraco, ao olhar para Lena que estava no colo da avó, em outra poltrona. - Então, eu vou precisar te deixar ir, meu amor. - respirei fundo. - Mas antes eu tenho que te falar algumas coisas que você precisa saber. - sequei a lágrima que caia em minha bochecha. - Começando pelo final de Harry Potter. - ri fraco. - O Voldemort morreu e a guerra bruxa acabou. - sorri. - Você conseguiu fazer com que eu começasse a ouvir reggaeton repetidamente no som de casa. - acariciei sua mão. - Juro que Helena as vezes quer me matar por isso. - sussurrei. - Falando nela; ela está aqui e está crescida. Ela faz sete anos logo. - Helena sussurrou um “oi, mamãe” ao fundo, que me trouxe arrepios. - E por falar em aniversários. - me aproximei ainda mais, trazendo sua mão para perto de minha boca, a beijando. - Feliz 14 anos de casamento e 18 de namoro. - uma mão encostou em meu ombro, e então assim que eu me virei o médico estava com os papéis para o desligamento em mãos, bastaria assinar. Os entregou para mim e se afastou, dando o tempo necessário para despedida, e pedindo para que Ivana tirasse Helena da sala, já que poderia ser traumático para a menina ver a mãe morrer. - Eu sei que você faria o mesmo para que eu não sofresse, . - levei a caneta até a parte marcada do papel e assinei, sendo aquela a assinatura mais dolorosa de todas que já fiz.
Uma equipe de enfermeiros entrou para acompanhar o médico. Eu me levantei da poltrona, como solicitado pelo médico. E foi naquele momento que começaram a desentubar bem em minha frente. E assim que tiraram o tubo de sua garganta, um suspiro saiu de seus lábios, me trazendo um pouco mais de esperança. Mas, eu sabia que aquilo era normal.
Então, uma das enfermeiras olhou para mim, solicitando a autorização para enfim desligar os aparelhos.
- Pode fazer. - engoli seco e a mulher apenas apertou um botão, fazendo com que tudo que estava deixando viva, fosse desligado. Uma lágrima escorreu por meu rosto, e logo a equipe saiu para me dar um pouco mais de tempo com . - Espero que agora você descanse em paz, meu amor. Eu já sinto sua falta. E como diria seu cantor favorito: - encostei minha testa em sua mão, desabando em meu choro. - es un infierno, quererte y no tenerte…
Fim.
Nota da autora: Escrever essa fic foi mais fácil do que achei que seria. Essa história é baseada em meus avós e em registros deles.
Obrigada por me mostrarem que o amor é imortal!
Outras Fanfics:
Longfics (em andamento): The Last Song I'll Write For You
Vuelvas a Mi
You Wish You Knew
Shortfics:
Summer '09
Nota da beta: Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Obrigada por me mostrarem que o amor é imortal!
Outras Fanfics:
Longfics (em andamento):
Shortfics: