Fanfic Finalizada: 20/05/2018

Capítulo único

As unhas compridas de Gisele deslizaram pelo meu tórax, arranhando minha pele com certa suavidade. A sensação de seu corpo nu em contato com o meu era agradável.
— Por que não dorme aqui dessa vez? — Gisele perguntou. Abaixei o olhar para encará-la. Os olhos esverdeados me fitavam com uma esperança mal disfarçada. Pela primeira vez, cogitei a possibilidade de aceitar sua proposta. Estávamos nos relacionando há alguns bons meses. Não era um namoro propriamente dito, mas estávamos juntos. Não a cobrava fidelidade, porém sabia que ela me era fiel. Eu gostava dela. Era impossível não gostar, na verdade. Mesmo assim, mesmo minha mente sugestionando para que eu aceitasse, passasse a noite com aquela mulher, como todos os casais fazem, meu coração gritou que não.
Não, pois mesmo não sendo, parecia errado. Parecia errado dormir com ela. Parecia errado fazer amor com ela. Parecia errado me envolver com ela.

E isso parecia mais errado ainda nessa época do ano.

— Hoje não, Gisele. — respondi, me desvencilhando de seu abraço. A mulher me encarou sem esconder a frustração, e se enrolou no lençol, para esconder sua nudez.
— Vai ser sempre assim, ? — questionou enraivecida. — Quando irá esquecer aquela morta? — a encarei furioso, e levantei da cama sem cerimônias. Quem Gisele pensava que era para falar dessa forma dela? Procurei pelas minhas roupas espalhadas pelo chão do quarto, e as vesti rapidamente. Abotoei com descaso a camisa social, calcei os sapatos, e peguei a carteira e chaves do carro em cima do criado mudo. — ... — ignorei seu chamado, e caminhei até a porta. — , espere, por favor. — abri a porta, não me importando com as súplicas da mulher. Contudo, fui impedido de sair quando ela segurou meu braço. Respirei fundo, e a encarei a contragosto. — Me desculpe, eu não quis falar dessa forma. Só estou cansada, . Já se passaram dez anos! Você tem que seguir em frente. Ela está morta, mas você não. Estamos juntos há meses e você nunca me beijou! Acha que ela iria querer que vivesse assim? Tenho certeza que não.
— Você não sabe nada sobre ela. — respondi, e fui embora, deixando-a para trás com raiva e frustração estampadas em seu rosto.
Já fazia duas horas que eu estava parado em frente ao cemitério. Eram duas horas da manhã. Daqui a alguns dias todos estariam comemorando o Natal. Um sorriso melancólico brotou em meus lábios ao lembrar o que essa data carregava. Para todos, era um dia de festa e comemoração. Um dia já havia sido assim para mim também. Mas desde o dia que ela se foi, há dez anos, em uma véspera de Natal, essa data não me traz nada além de saudade e dor.
Meu celular começou a vibrar em meu bolso, pela quinta vez nesse meio tempo. Não precisei olhar para saber que era Gisele.
Gisele era bonita. Linda, na verdade. Era alta, tinha um corpo cheio de curvas. Os cabelos loiros contrastavam perfeitamente com os olhos verdes. Ela era a típica femme fatalle, que qualquer homem deseja ter ao seu lado. Além da beleza, era inteligente e muito bem sucedida no ramo da Engenharia. E eu me sentia bem ao seu lado.

Mesmo assim, todas as vezes que me pegava distraído, as coisas que apareciam em minha mente não tinham nada a ver com Gisele.

As madeixas loiras eram substituídas por longuíssimos cabelos negros como a noite. Os olhos verdes se transformavam em duas órbitas brilhantes e desiguais. Uma parecia o globo terrestre. Uma mistura de azul e verde, com leves pigmentos brancos. A outra, possuía um tom âmbar e azul escuro. Era fascinante.
Ainda me lembrava do gosto dos lábios dela, do cheiro de seus cabelos. Ao fechar os olhos, ainda me lembro das vezes que fizemos amor. Ainda posso desenhar as curvas de seu corpo. Ainda sorrio quando me lembro de sua risada esganiçada e contagiante, e seu sorriso sapeca.
Me recordo inclusive, de todas as nossas brigas. Não eram poucas, para ser sincero. Aquela mulher era uma mula de tão teimosa. Era impulsiva, e sempre do contra. Éramos muito parecidos, e sempre batíamos de frente. Mas nunca conseguíamos ficar muito tempo afastados. Ela era minha vida.

Eu a venerava, a amava com todo meu ser. Ela era luz, e a transformei na única coisa capaz de iluminar meu mundo. Quando a luz se foi, me vi em uma completa escuridão.

Fechei os olhos, e apoiei a cabeça no encosto do carro. O rádio estava sintonizado em uma frequência qualquer, e músicas dos mais variados tipos tocavam baixinho. Canções sufocadas pelos vidros fechados do carro. Canções perdidas na madrugada.

All my friends tell me I should move on

(Todos os meus amigos me dizem pra seguir em frente)

I’m lying in the ocean

(Estou deitada no oceano)

Singing your song

(Cantando sua música)

Ah, that’s how you sang it

(Ah, foi assim que você cantou)

Loving you forever can’t be wrong

(Amar você para sempre não pode ser errado)

Even though you’re not here

(Mesmo sem você aqui)

Won’t move on

(Não vou seguir em frente)

Ah, that’s how we play it

(Ah, é assim que nós a tocamos)


Ri sem humor ao ouvir a nova música que havia começado a tocar. A letra tão familiar para mim, me enchia de lembranças e amargura. Assim como cantado, havia perdido as contas de quantas vezes meus amigos haviam me dito para esquecê-la.

"Você precisa seguir em frente, ."

"Ela morreu, mas você está vivo." Vivo! Vivo era a última coisa que eu estava.

"Você precisa deixá-la ir. Não a prenda mais." Sim, eu devia deixá-la seguir seu caminho, onde quer que estivesse. Mas doía. Doía, pois teria que admitir que ela havia ido. Que realmente havia me deixado, para sempre. Doía como um inferno saber que nunca mais ouviria sua voz rouca e tão característica gritando por mim pela casa. Era doloroso saber que nunca mais poderia escutar Aerosmith, sem me lembrar dela, pois esta era sua banda favorita.
Era o inferno não poder ouvir Snow, do Red Hot Chili Peppers, sendo tocada em algum lugar, porque a única coisa que queria fazer era jogar o maldito aparelho de som na parede, e gritar aos quatro ventos que “Não! Ninguém deve ouvir esta música". Ninguém deveria ouvir, pois era a música que ela mais amava, e ninguém mais tinha o direito de ouvi-la. Se ela não podia, ninguém mais deveria também.
Me matava olhar para seu closet repleto de roupas, para a coleção de canecas de super- heróis e a biblioteca que ela tanto amava, e ter de gritar com todos que não iria doar suas coisas. Não iria apagá-la da minha vida como se não tivesse sido nada. Foda-se que seria melhor para mim! Meu melhor havia ido embora e nada poderia amenizar isso.

And there’s no remedy for memory

(E não há remédio para as lembranças)

Your face is like a melody

(Seu rosto é como uma melodia)

It won’t leave my head

(Não sairá da minha cabeça)

Your soul is haunting me and telling me

(Sua alma está me assombrando e me dizendo)

That everything is fine

(Que tudo está bem)

But I wish I was dead

(Mas eu queria estar morta)


A música adentrava meus ouvidos, me trazendo lembranças que queria esquecer, mas que minha mente e coração nunca seriam capazes de apagar.


" — Sabe o que mais amo em você? — perguntei à mulher enroscada em meus braços. Estávamos na praia. Era uma noite quente e havia insistido para ir vermos o mar. Ela amava o mar.
— Meus seios? — respondeu com outra pergunta. Revirei os olhos ao ouvi-la e ela riu, como se já tivesse previsto minha reação.
— Hum... — murmurei, beijando a pele de seu pescoço. Seu perfume floral adentrou minhas narinas, me excitando como era habitual. A reação que ela causava em meu corpo era única. Nunca fui um santo, pelo contrário. Era o que podemos chamar de o típico cafajeste. E é ridículo falar, mas como em um clichê literário, havia mudado isso em mim.
Depois dela passar por minha cama, não consegui ter nenhuma outra. Nossos beijos, nossos toques, a forma que tínhamos de fazer amor... Era tudo único. Eu precisava daquela mulher em minha vida. Para sempre.
— Amo tudo em você, já lhe disse. — sussurrei em seu ouvido, enquanto observava o céu estrelado. — Amo seu cabelo longo, que parece uma cascata. Amo seu corpo, que me enlouquece mais a cada dia. Amo seu jeito torto, debochado, e teimoso de ser. Amo sua força, o modo como encara a vida. Amo suas sardas. — a apertei mais ainda em meus braços. — Amo essa marca de nascença em suas costas, mesmo que você a odeie com todas as forças. — mesmo de costas, eu sabia que ela estava torcendo o nariz para isso. odiava a mancha vermelha em suas costas, que parecia um mapa desconhecido. — Amo sua generosidade. Seu jeito bonito de se importar com os outros. Mas o que mais amo em você, são seus olhos.
se virou em minha direção, se sentando de frente para mim. Prendi a respiração ao encará-la. Aquela mulher era tão linda que chegava a doer.
— Meus olhos? — ela questionou. Uma pequena ruguinha6 se formou em sua testa. — Por quê? Eles são tão estranhos.
— Estranhos? Como pode dizer isso? — perguntei. Meu tom de voz estava mais alto do que era necessário. — Seus olhos são a coisa mais linda que já vi em minha vida.
me olhou emocionada. Eu a entendia. Ter heterocromia não era algo fácil. Ela já havia me contado quantas vezes havia sido humilhada por conta da cor diferente que seus olhos possuíam. Além de serem de cores diferentes um do outro, o tom de cada um carregava uma peculiaridade incrível.
— Você é a coisa mais linda que já vi na vida. — falei alisando sua bochecha. — E teus olhos carregam dois universos brilhantes. Universos dos quais eu mataria para fazer parte. — não tive tempo de agir, pois no instante seguinte, se jogou em cima de mim, me beijando avidamente.
— Eu te amo, . Até o fim do mundo. — disse, junto aos meus lábios. Sorri e a abracei.
— Anche se il mondo finisse, ti amerò. — falei em italiano. (Mesmo se o mundo acabar, eu amarei você)."


Everytime I close my eyes

(Toda vez que fecho os meus olhos)

It’s like a dark paradise

(É como um paraíso sombrio)

No one compares to you

(Ninguém se compara a você)

I’m scared that you

(Tenho medo de você)

Won’t be waiting on the other side

(Não estar me esperando do outro lado)


E meu mundo acabou. No dia que morreu, meu mundo acabou. E mesmo dez anos depois, ainda a amo com todas as minhas forças.
Eu tentei, juro que tentei. Depois dos primeiros anos, segui o conselho de meus amigos, e tentei viver novamente. Voltei para minha empresa, visitei meus pais e meus irmãos, saí com amigos, me envolvi com outras mulheres. Mas nunca foi sério. Algumas duravam meses, outras não passavam de meros encontros.
Dormi com muitas, mas nunca as beijei. Não conseguia. Beijos sempre foram importantes para mim, até mais que sexo. A intimidade em beijo era maior do que uma transa. E a única pessoa que eu queria beijar já estava morta.

All my friends ask me

(Meus amigos me perguntam)

Why I stay strong

(O porquê de eu permanecer forte)

Tell ‘em when you find true

(Os digo que quando o amor é verdadeiro)

Love it lives on

(Ele sobrevive)

Ah, that’s why I stay here

(Ah, é por isso que estou aqui)


A música continuava tocando, e quase não fui capaz de ouvir o som do celular apitando. Busquei-o no bolso novamente, e deslizei o dedo sobre a tela. Na barra de notificações havia algumas ligações, e uma mensagem de Gisele. Decidi ler mensagem, e responder depois.

And there’s no remedy for memory

(E não há remédio para as lembranças)

Your face is like a melody

( Seu rosto é como uma melodia)

It won’t leave my head

( Não sairá da minha cabeça)

Your soul is haunting me and telling me

(Sua alma está me assombrando e me dizendo)

That everything is fine

(Que tudo está bem)

But I wish I was dead

( Mas eu queria estar morta)


Respirei fundo, abri o Whatsapp e li com atenção o que Gisele havia me mandado.

" , sei que falei o que não devia, e que está chateado. Sei também que agora deve estar em frente ao cemitério, sem saber o que fazer. Você já ouviu muito isso ao longo desses anos, mas irei repetir: você tem que seguir em frente. Ela não voltará mais. Sei que a amava, e ela também te amava. E é por isso que tenho certeza que não era isso que ela iria querer. Já me falaram muito de sua falecida esposa. Ela era uma mulher que amava viver, não é? A vida era sua paixão. Se o visse agora, acha que ela estaria feliz?
Viva, . Viva por você, viva por ela!
A culpa não foi sua, e você sabe disso.
Irei lhe esperar, pois o amo. Sim, amo você. Não era assim que queria te dizer, mas creio que já deve ter percebido.
Irei lhe esperar. Mas por favor, não demore tanto."

A mensagem de Gisele me atingiu como um soco no estômago.
não voltaria mais. Gisele tinha razão. Minha esposa jamais iria querer me ver dessa forma. Eu tinha uma mulher que me amava ao meu lado. Não a amava, mas tinha carinho por ela. Deveria me permitir, ao menos uma vez, tentar ser feliz novamente.
Decidido, desliguei o rádio, findando aquela música angustiante. Tranquei o veículo, e caminhei apressadamente até o portão do cemitério. Mesmo estando trancado, eu tinha a chave. Depois de uma década, indo quase todos os dias ali nos primeiros anos, consegui uma cópia.
Um arrepio gélido percorreu minha espinha, e tive a sensação incomoda de estar sendo observado. Olhei ao redor, mas não havia ninguém na rua mal iluminada. Nada, nem um movimento.
Abri o portão e caminhei por entre os túmulos apressadamente. A noite estava escura, e o vento cortante batia em meu corpo. Senti meu coração se apertar ao parar em frente ao túmulo bem cuidado de minha esposa.
Abaixei-me, retirando as folhas secas de cima do mármore. Troquei o buque ressecado de Amor Perfeito, que havia levado há alguns dias, por um novo que havia trazido comigo. O de hoje eram Astromélias. Ambas as flores expressavam tudo o que havia entre nós. Vínculo forte e eterno. Recordações e amor duradouro.

Mordi os lábios, sentindo uma lágrima isolada descer por meu rosto ao ver o nome da minha menina estampado ali.

" Elizabeth Harrison Montanari. Amada esposa, amiga e filha.

04/02/1886 — 24/12/2006

Que a luz que te ilumina

Seja tão grande quanto

A saudade que sentimos

De você. "


Sentei-me no chão, ao lado da lápide, e tomei fôlego para começar a falar.
— Oi, meu amor. — falei para o nada. — Faz tempo que eu não converso com você, não é? — ri sem humor. — Me desculpe, . Nunca consegui conversar contigo. Construí esse túmulo para ter um lugar para vir, para deixar flores, para te homenagear. Mas todas as vezes que venho aqui, não consigo esquecer que está vazio. Vazio! — passei a mão pelos cabelos, sentindo meus olhos lacrimejarem.
— Nem mesmo seu corpo! Nem mesmo seu corpo voltou para mim. — esbravejei. — Você gostava tanto das águas do mar, e por ironia do destino, foram elas que te levaram de mim. — lágrimas começaram a escorrer por meu rosto, e não me dei ao trabalho de limpá-las. — Me perdoe. Era para eu estar naquele helicóptero. Se não tivéssemos trocado de lugar. Se eu não tivesse insistido para você ir mais tarde, de helicóptero, ainda te teria comigo.
A essa altura, eu já chorava como uma criança. Era desoladora a minha situação: sentando em plena madrugada ao lado de um túmulo vazio, e chorando como um bebê.
, não tem noção do que senti quando as horas começaram a passar, e nada de você chegar. Era véspera de Natal, e estávamos todos reunidos na casa de praia para a Ceia. Todos, menos você. Eu estava uma pilha de nervos, mas todos tentavam me tranquilizar, dizendo que logo você chegaria. — sorri irônico, relembrando os momentos. — Mas não foi isso que aconteceu. Matteo estava tão nervoso quanto eu. Na verdade, desde que eu havia chegado, ele estava estranho. Quando minha mãe ligou a televisão, estava passando um chamado de emergência. Um helicóptero havia explodido, e caído no mar. As vítimas ainda não haviam sido encontradas. Aí eu vi o Logo, o Logo dos Montanari exibido na tela. Era o helicóptero que você estava.

Sem conseguir falar, enfiei a cabeça entre os joelhos, e chorei todas as minhas dores. Era como se tivesse voltado àquele dia e estivesse revivendo tudo de novo.

— Matteo surtou, quebrou tudo. E eu... Bom eu morri junto com você. — declarei com a voz falhada. — Eles te procuraram por meses, mas só o corpo do piloto foi encontrado. Por algum tempo, nutri a esperança de que estava viva em algum lugar, esperando que te encontrassem.
Mas o tempo passou, e a esperança morreu. Sabe, . Encontrei uma pessoa. Não a amo, mas ela me ama. E acho que ela está certa. Está na hora de me despedir de você. Irei seguir em frente, meu bem. Por mim, e por você. Eu te amo, Elizabeth. Nada nesse mundo, nem ninguém irá se comparar a você. Onde quer que estiver, meu anjo, saiba que nunca alguém nessa Terra irá amar outro alguém como eu te amo. Sempre serei seu. Como seu nome mesmo diz, você foi minha "graça de Deus", .

Levantei do chão, e encarei a lápide. Doía, mas era necessário.

— Adeus, .
Saí do cemitério sem olhar para trás. Se o fizesse, não duvido que voltaria correndo e me atiraria no túmulo dela. Aquilo era o certo a se fazer. Era isso o que repetia sem parar em minha mente. Mas por que parecia tão errado? Parecia errado tocar outra mulher. Eu sentia nojo de beijar outra boca. Me sentia asqueroso por dormir com outras mulheres.
Não havia sentimentos. Era apenas sexo. E na maioria das vezes, não conseguia me satisfazer e depois, pedia perdão a . Porque tudo era ela; tudo sempre seria sobre ela.

Eu precisava de um milagre.

Ao caminhar até o carro, tive a mesma sensação de estar sendo observado. Estava louco, só pode. Entrei no veículo, e dei partida.
As ruas estavam calmas, devido a hora. Por isso, não me importei com a velocidade do carro. Dirigir me distraía. Naquela parte da cidade, as curvas eram sinuosas e fechadas.
Franzi o cenho ao ver uma grande carreta vir em minha direção, na contra mão. Buzinei algumas vezes, tentando alertar o motorista, mas para minha confusão, ele apenas piscou os faróis duas vezes. Eu estava em alta velocidade, e só tive tempo de virar o volante com rapidez, e desviar por um triz da carreta. Mal tive tempo de respirar, pois no meio da pista, estava parado um homem. Pisei no freio com rapidez, porém o carro continuou na mesma velocidade. Continuei pisando apressadamente no pedal, mas não adiantava. O homem continuou parado no meio da estrada. Sem saber o que fazer, joguei o carro na direção contrária.

O impacto veio rápido demais. Eu havia saído da curva.

Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Não sei dizer quantas vezes o carro capotou. No instante que ele parou, a escuridão tomou conta de mim.




— Detetive, houve um acidente de carro na Westbourne Grove hoje às 03:10 da manhã. — James falou em seu típico jeito afobado.
— E eu com isso? — perguntei desinteressada, enquanto vasculhava alguns papéis. — Sabe que sou da área de homicídio.
— Sim. É por isso que estou aqui. — bufou. Levantei meu olhar dos papéis para ele, e ergui as sobrancelhas, esperando que continuasse. Mas James era tão infernalmente lerdo, que não entendeu.
— Nomes das vítimas. — pedi sem paciência. Meu dia mal havia começado, e eu já estava querendo que acabasse. Mal havia conseguido dormir. Acordei no meio da madrugada com uma droga de sensação ruim em meu peito. Parecia que alguém estava sentado em cima de meu tórax. Uma sensação totalmente angustiante. Depois, não consegui pregar os olhos. Mais uma vez havia tido aqueles malditos pesadelos, ou sonhos, não sei.
— Ah, sim! Sim, claro. — disse novamente afobado. Então abriu uma pasta e tirou de lá alguns papéis. — A única vítima é Montanari. O carro saiu pela tangente, e capotou várias vezes.
— Ele sobreviveu? — questionei, enquanto analisava os laudos da perícia. Por conta da noite mal dormida, havia chegado atrasada no departamento. Por isso, a polícia já havia ido até o local do crime.
— Sim. Apesar da gravidade do acidente, ele está fora de perigo.
— Está consciente? — analisei as fotos da estrada, e uma ruga formou-se em minha testa. — Estranho... — murmurei.
— Não sei dizer. — James deu de ombro. Controlei a vontade de revirar os olhos, e tomei um gole de café. Fiz uma careta, ao constatar que o líquido estava tão gelado quanto as calotas polares. Que ótima forma de começar o dia!
— Por que acham que não é só um acidente? — cobrei, mesmo com o relatório em mãos.
— Primeiro, porque ele é um Montanari. — concordei em silêncio com sua afirmação. Os Montanari são uma família Italiana que possuíam empresas pelo mundo todo. — é o presidente da Sede que fica aqui em Londres. É um homem muito poderoso, e que deve ter inimigos.
— É provável. — balbuciei, examinando os papéis.
— Segundo, os freios do carro foram cortados. — semicerrei os olhos em sua direção. Definitivamente não havia sido um acidente.
— E tem algo mais...
— O que?
— Há dez anos, a esposa do morreu em uma explosão de Helicóptero. De acordo com reportagens da época, era para o senhor Montanari estar a bordo, e não a mulher.
— O que causou a explosão? — perguntei. A essa altura, já havia largado os papéis, e denotava total atenção a James.
— Arquivaram como uma falha no sistema do veículo. Mas as conclusões foram muito rápidas. — James falou desconfiado. Encostei as costas na cadeira, acompanhando o raciocínio do homem.
— Acha que foi um atentado... — concluí pensativa.
— Tenho minhas dúvidas. E depois desse "acidente" com o senhor Montanari, tudo parece fazer mais sentido. — falou, fazendo aspas com as mãos.
— Ao contrário. — falei levantando da cadeira. Arrumei os papéis espalhados, e coloquei a Gigi em minha cintura. — Tudo faz menos sentido.
Hum, Gigi é minha arma. Sei que é estranho, mas eu tenho uma mania terrível de dar nome a todas as coisas. Se não faço isso, quase tenho ataques.
A única terapeuta que arrisquei me consultar, me disse que isso era uma reação do meu cérebro depois do que havia acontecido. Trazer familiaridade as coisas ao meu redor.

Doideira absoluta.

— Aonde vai? — encarei James, e fiz sinal para que me seguisse. Peguei as chaves do carro, meus óculos, e caminhei até o elevador.
James era meu parceiro. Era um bom detetive, mas tão pé no saco que tinha que me controlar para não descarregar a Gigi na cara dele. Além de ser lerdo como uma porta na maioria das vezes, ainda ficava dando em cima de mim na cara dura. E mesmo falando que eu não queria nada, vivia insistindo.
Não, James não era feio. Era bem bonito, na verdade. Contudo, não me envolvo com pessoas conhecidas. Nunca!
Não que eu quisesse fugir, ou algo do tipo. Não tenho nem mais idade para isso. Quer dizer, acho que não tenho.
Deus, nem minha idade eu sei! Como posso ter um homem em minha vida, se não sei quem sou?
— Iremos até o local do acidente. Preciso analisar de perto. Depois, irei visitar Montanari. — entrei no elevador, segurei a porta e encarei James, que havia ficado do outro lado. — Consiga para mim tudo referente ao acidente da esposa do Montanari, e quero as imagens das câmeras da avenida onde sofreu o acidente.
Tudo indicava que Montanari havia sofrido um atentado. As marcas de pneus na pista, mais o laudo da perícia, e as imagens das câmeras, indicavam que ele havia desviado de um caminhão na contramão, e de uma pessoa parada no meio da pista.
Ainda, depois do carro capotar, outras câmeras flagraram o homem que havia sido responsável pelo capotamento entrar no caminhão. O mesmo que teve que desviar.
Agora, estávamos eu e James caminhando juntamente com a enfermeira, em direção ao quarto do senhor Montanari.
Minha barriga roncou, fazendo um barulho desconfortável. James me olhou de um jeito engraçado, e abriu a boca para falar algo. Mas desistiu ao ver a cara feia que eu estava fazendo.
Paramos em frente à uma porta, e a enfermeira fez um sinal com a mão para que esperássemos.
— Como você acha que ele vai reagir ao saber sobre a esposa? — James sussurrou.
— O que acha? — perguntei e rolei os olhos. — Jogar confetes no ar eu tenho certeza que ele não vai fazer.
— Azeda. — James murmurou.
— Obrigada. — respondi de forma irônica. A enfermeira saiu do quarto, e deu espaço para que passássemos.
Além do acidentado, haviam mais três pessoas no quarto. Duas mulheres e um homem. Uma já era uma senhora, e deveria ter uns cinquenta anos ou mais. A outra parecia estar na faixa dos trinta, e era extremamente linda.
O homem em pé ao lado da janela, era alto e trajava um terno que julguei ser elegante. Ele me encarava com extremo interesse e parecia procurar algo em mim que eu desconhecia.
Ignorei-o e focalizei meu olhar em quem interessava. Em Montanari.
Ao encará-lo, uma coisa extremamente estranha aconteceu. Minhas pernas ficaram bambas, e tive que me esforçar para não desabar que nem borracha sobre o carpete. O ar faltou em meus pulmões, e meu coração batia tão descompassado que por um momento achei que estava tendo um ataque de pânico. Montanari era um dos homens mais bonitos que já havia visto na vida. Alto, musculoso, olhos penetrantes, rosto marcante.

Ele me encarava com a mesma compenetração. Seu semblante denunciava surpresa, curiosidade, admiração. Parecia que mais nada existia naquela sala, além de nós dois.

Que estranho! Aqueles olhos... franzi a sobrancelha totalmente confusa. Não era possível. Ou era? Eu conhecia aqueles olhos! Mas não fazia sentido.
Um pigarreio alto chamou minha atenção, cortando aquele momento estranho. Eu não sabia se agradecia a James, ou o socava até a morte.
— Humm... — murmurei, ainda meio atrapalhada. — Senhor Montanari, sou a Detetive Mitchell, este é meu parceiro James Sullivan. — apontei para o homem ao meu lado. — Queremos ter uma conversa com o senhor.
— Conversa sobre o quê? — a mais velha das mulheres perguntou aflita. — Sobre o acidente?
— Também. — disse simplesmente. Voltei meu olhar para o homem na cama, caindo de novo na imensidão prateada de seus olhos. — Podemos conversar a sós.
Ele concordou, e lançou um olhar significativo para os demais. Estes saíram desconfiados.
— Senhor Montanari, viemos lhe falar que o acidente que sofreu foi um atentado. — comecei. Sua atenção estava toda em mim, e isso estava me deixando tonta.

Malditos hormônios.

— Eu imaginava. — ele disse, e suspirou pesadamente. Então, nos contou em detalhes o que havia acontecido. Estávamos certos.
— Já havíamos deduzido isso. — falei pensativa. — Quero que seja sincero comigo: o senhor possui algum inimigo? — perguntei séria. Ele pareceu ponderar por algum tempo, e balançou a cabeça em negação.
— Que eu saiba não. — disse um tanto frustrado.
— Pense bem, senhor. Qualquer um pode ser suspeito. — aconselhou James.
— Nunca tive desavenças sérias com ninguém. Não entendo porque querem me matar agora. — falou exasperado.
— Senhor, tem algo que precisa saber. — em sincronia, eu e James nos olhamos. Desconfiado, estreitou os olhos em nossa direção.
— O que?
— Esta não foi a primeira vez que atentaram contra sua vida. — comecei cautelosa.
— Não? — ele me perguntou, visivelmente confuso.
Balancei a cabeça em negação e disse com seriedade.
— Atentaram contra sua vida no dia 24/12/2006. Há dez anos.




- Tem certeza que está bem, meu filho? — minha mãe perguntou pela décima vez. A encarei carinhosamente. Minha mãe era uma mulher linda, e nem mesmo a idade mudava isso. Era também uma mãe coruja, e eu podia ver que ela estava prestes a surtar.
Quando acordei, naquele quarto de Hospital, Dona Vitória quase me causou outra fratura na costela.

Eu me lembrava bem do que havia acontecido, e não era burro. Alguém havia tentado me matar!

— Estou sentindo algumas dores, mas o pior já passou. — falei, acariciando seu ombro.
— O que estava fazendo na rua em plena madrugada, ? — Matteo perguntou. Ele estava encostado na janela, e me olhava com o cenho franzido. Matteo era meu melhor amigo desde sempre. Era como um irmão mais novo.

Respirei fundo, e me preparei para o sermão.

— Fui visitar . — falei já prevendo o que viria a seguir. Gisele, que também estava no quarto, me olhou com tristeza no olhar. Eu precisava ficar a sós com ela para poder dizer a minha decisão. Tentaria ser feliz. Talvez não desse certo com ela, mas mesmo assim, iria continuar tentando.
— Eu não acredito, . — minha mãe exclamou. Além de zangada, eu podia ver que estava frustrada. Frustrada pois não havia nada a fazer para me ajudar. — Meu filho, pela milésima vez: Você tem que seguir em frente. — encarei Gisele, e sorri de forma terna para ela.
— Eu sei, madre*. Já estou providenciando isso. — Gisele me olhou curiosa, e eu estava prestes a pedir que meu irmão e minha mãe saíssem, para conversar com ela a sós. Porém, uma batida na porta interrompeu meus planos. Minha mãe murmurou um "Pode entrar", e a figura de uma das enfermeiras se fez presente.
— Com licença, senhores. — pediu, de forma séria e profissional. — Dois senhores da polícia querem falar com o Senhor Montanari.
Minha mãe e Gisele me olharam espantadas, e Matteo fechou a cara na hora. Eu apenas dei de ombros. Se a polícia estava aqui, era porque eu estava certo.
— Mandem entrar. — disse simplesmente.
Ela saiu, e instantes depois um homem e uma mulher entraram na sala.
E então meu coração parou. Em um nano de segundo, ar faltou em meus pulmões ao encará-la.

Meu Deus, o que era aquilo?

Eu podia jurar que estava vendo um anjo. Eu havia morrido, cara? Ou estava delirando?
Meu coração errou uma batida quando ela me encarou. Arrepios irromperam por toda minha pele. Era dolorido e gostoso ao mesmo tempo.
Os olhos azuis se fixaram nos meus, e no mesmo instante, vi a expressão de surpresa carregar seu olhar. Nossos olhares estavam fixos um no outro, e eu gostaria muito de saber o porquê meu estômago estava pulando igual uma cabra cega desgovernada.
Ela era alta. Vestia roupas totalmente pretas e botas de cano alto. Tinha uma postura séria e rosto rígido. Os cabelos — pelo o que pude perceber — eram negros, e estavam presos em um longo rabo de cavalo. Os olhos eram azuis, e a boca — meu Deus, que boca! — era cheia e carnuda.
Uma vontade avassaladora de beijá-la e sentir o gosto daqueles lábios tomou conta de mim, para no segundo seguinte eu paralisar horrorizado.
Eu queria beijá-la? Como? Desde que a morreu, não tive a menor vontade de beijar ninguém, e não o fiz. Agora, ao por os olhos naquela mulher, senti meu corpo tão aceso que a única vontade que tinha era de tirar aquelas roupas escuras, e beijá-la na boca e no corpo inteiro.

Meu Deus... será?

Será ela a minha chance de ser feliz novamente?
De repente, uma sensação nostálgica se apossou de mim, como um djavu. Ela era estranhamente familiar para mim. Muito familiar, na verdade. Seus traços, seus cabelos... era como se eu já a tivesse visto antes.

.

Ela era idêntica à .

Sim. Meu Deus! Ela era idêntica à minha . Um pouco mais velha e madura, com certeza. havia morrido com vinte anos, e essa mulher parecia ter quase minha idade. Mesmo assim, elas eram extremamente parecidas.
A não ser por... seus olhos. No lugar dos peculiares olhos de , haviam genéricos olhos azuis.
Então um pigarro tomou nossa atenção. A morena desviou o olhar rapidamente, parecendo confusa. "Então somos dois", pensei.
— Humm... — murmurou — Senhor Montanari, sou a Detetive Mitchell, este é meu parceiro James Sullivan. — apontou para o homem que eu nem sequer havia prestado atenção. — Queremos ter uma conversa com o senhor.

O som da sua voz também era familiar para mim. Eu já tinha ouvido aquele tom deliciosamente rouco antes. Só não sabia onde.

Minha mãe falou algo, mas minha mente estava tão confusa, que nem me dei ao trabalho de respondê-la, apenas pedi que saíssem, quando a detetive pediu para conversar a sós.
. Queria falar esse nome em voz alta e me deliciar com a sensação de pronunciá-lo.
Achei que o seu parceiro sairia também, e quase bufei em decepção quando percebi que aquilo não aconteceria.
Como eu imaginava, o meu acidente não havia sido apenas obra do destino. Eles insistiam, mas eu não conseguia pensar em ninguém que me quisesse morto. Tudo bem que eu não era a pessoa mais agradável do mundo, muito menos depois que se foi de minha vida, contudo também não era um carrasco.
Estava pensativo, quando algo que eles falaram chamou minha atenção.
— Senhor, tem algo que precisa saber. — eles se olharam em sincronia, e pareciam medir as palavras. Desconfiado, estreitei meus olhos.
— O que?
— Esta não foi a primeira vez que atentaram contra sua vida. — disse
— Não? — perguntei confuso. Então ela disse algo que fez meu mundo parar, literalmente.
— Atentaram contra sua vida no dia 24/12/2006. Há dez anos.
As palavras rondavam em minha cabeça. Dez anos atrás. O dia do acidente de . Era para ser eu no maldito helicóptero. No entanto, precisava ir mais cedo para lá, para resolver uns problemas da casa, por isso fui de carro. Seria quem iria resolvê-los e mais tarde eu iria no helicóptero. Mas não quis sobrecarregá-la, então fui na frente.

Eu estava em choque, não conseguia pronunciar uma só palavra.

— Quando nos deparamos com seu acidente, resolvemos analisar o caso da sua esposa. Percebemos que ele foi encerrado muito rápido, por isso revisamos tudo. — o tal James disse. Eu estava tão atordoado que nem ao menos os encarava.
— Sinto muito, Senhor Montanari. A explosão que matou sua esposa foi premeditada. E alguém dentro da polícia foi pago para burlar as investigações. — anunciou.
Uma raiva desmedida tomou conta de mim, e o sentimento de culpa que me atormentava há anos só se fortaleceu. A mataram, a tiraram de mim.
Não sei dizer quantos minutos o silêncio prevaleceu no quarto. Estava tentando digerir tudo, e eles respeitavam meu momento.
— Quero que peguem o desgraçado que matou minha esposa. — exigi entredentes. Não pude deixar de reparar em como a postura séria de a favorecia. Um segundo depois, tive vontade de me socar. Não deveria estar reparando nisso.
— Não se preocupe, senhor. Tem nossa palavra que descobriremos quem está por trás desses atentados. Custe o que custar. — ela garantiu. Um sentimento de gratidão se apoderou de meu corpo. Queira pegá-la no colo, e apertá-la em meus braços. Deus, estou ficando louco. — Precisamos que nos conte exatamente o que aconteceu no dia da morte de sua esposa. Cada detalhe é importante, mesmo que pareça bobagem. Quero o nome das pessoas mais próximas de vocês. — balancei a cabeça em acordo, e comecei a relatar tudo. Falei sobre a troca, que fiquei sabendo do acidente pela televisão. Citei por cima o nome os nossos amigos. tinha muitos amigos, incluindo Matteo. Confesso que a relação deles me enciumava um bocado, mas por vezes me xingava, e dizia que Matteo era como seu irmão também.
— É isso. — suspirei, ao terminar de contar tudo. Senti uma dor nas costelas quebradas, e não pude conter uma careta. Isso não passou despercebido.
— Já tomamos muito o tempo do senhor. O deixaremos descansar, agora. — quis gritar para que ela ficasse. Mas como eu iria explicar que precisava dela comigo? Como iria explicar que precisava ficar por perto, nem que fosse para admirá-la o tempo inteiro? — Mandarei dois policiais para fazerem sua segurança. Qualquer coisa, entraremos em contato.
Então ela saiu. Saiu e me deixou para trás, totalmente extasiado.
Contive uma exclamação assustada quando percebi a gravidade da situação.

Eu nunca havia ficado daquela forma... exceto uma vez... quando conheci .


... Havia se passado duas semanas. Duas malditas semanas em que eu havia sido invadido por um turbilhão de sentimentos há muito perdidos dentro de mim.
Eu pensava nela a todo o momento. A detetive havia tomado totalmente minha mente. Não totalmente, pois uma parte dela ainda era de . Mas o incrível era que eu não me sentia culpado. Pelo contrário, parecia certo demais.
Bufei em frustração ao ver outra ligação perdida de Gisele. Naquele mesmo dia, conversei com ela. Não podia enganá-la. Estava disposto a tentar, mas desde o momento que vi a detetive, as chances de um relacionamento entre mim e Gisele minaram totalmente.
Ela não havia se conformado, e me ligava várias vezes ao dia. No começo, entendi. Porém com o passar dos dias, foi ficando extremamente chato.
Também não havia recebido mais notícias sobre a investigação. Por isso, estava agora a caminho do Departamento de Polícia. Por isso, e porque queria ver . Precisava vê-la, precisava trazê-la para minha vida.
Eram 18:00 e eu havia acabado de sair da empresa. Vindo em um carro mais afastado, estavam os policiais que faziam minha guarda. Também havia contratado alguns seguranças. Tanto para mim, quanto para minha família.
Estacionei em frente ao prédio da polícia, e saí do carro. Ao adentrar o local, meu corpo já começava a formigar. A expectativa de vê-la nova mente era luxuriosa.
— Posso ajudá-lo? — a recepcionista perguntou. Seus olhos desceram por todo meu corpo, e pareciam me devorar por inteiro. Segurei a vontade de chamar-lhe a atenção.
— Gostaria de falar com Mitchell, por favor. Diga que é Montanari. — pedi educadamente. Ela deu um sorriso cheio de segundas intenções e discou alguns números. Logo em seguida, pediu que eu aguardasse um pouco.




O dia estava um inferno! Um maldito inferno! Havia tido novamente aquele maldito pesadelo, e passei a noite inteira acordada.
Esfreguei meus olhos, e apoiei a cabeça na cadeira, fechando minhas pálpebras logo em seguida.

Eram sempre sonhos parecidos. Sempre com o mesmo homem.

"Os braços fortes do homem apertaram a minha cintura, e me espremeram contra seu corpo forte. Em meu ouvido, ele sussurrava coisas que eu não podia compreender, mas pareciam ser boas, pois eu sempre sorria.
Então ele me pegava pela mão, e dançava comigo pela cozinha. Dançávamos uma música lenta, e vez ou outra nos beijávamos. Eu o amava, podia sentir isso."
Ouvi o telefone tocar, e abri os olhos imediatamente. Tirei-o do gancho e o levei até o ouvido.
Mitchell. — falei, assim que atendi. A voz de Sheila soou do outro, avisando que tinha alguém a minha espera. Meu coração errou uma batida ao ouvir seu nome. .
Desde o dia do hospital eu não o via. E seria mentira da minha a parte se dissesse que não havia pensado nele.
Desci rapidamente até o térreo, e precisei respirar fundo ao vê-lo parado de costas para mim, olhando algo que eu não sabia o que era. Deus, ele era tão másculo. E dentro daquele terno, só conseguia ficar mais bonito.

Como se pudesse sentir o meu olhar, ele se virou.

Ai, minha nossa senhora! Se um olhar fosse capaz de derreter alguém, tenho certeza que nesse momento eu estaria parecendo uma borra de vela.
Me obriguei a raciocinar e agir como uma profissional. Onde já se viu? Eu não era uma garotinha, mas que inferno!
Por isso, me aproximei com determinação.
— Senhor, Montanari. Não esperava por sua presença. — disse séria, e estiquei minha mão em sua direção. Me arrependi no instante seguinte, poia diferente do que era costume, ele não a apertou. Pelo contrário, a pegou com delicadeza, e depositou um beijo ali. Senti meu corpo arrepiar completamente, e puxei minha mão de volta, tentando não parecer tão afetada.
— Vim saber se há novidades sobre as investigações. — respirei fundo, tentando esconder minha frustração.
— Ainda nada. — vi seu semblante fechar, e balançar a cabeça em concordância. — Estamos fazendo o nosso melhor. — e estávamos mesmo. Enquanto eu analisava tudo sobre o atentado recente, James buscava informações sobre o que ocorreu há dez anos.
— Acredito que sim. — disse sincero.
— Bom, creio que é isso. — falei, pois queria voltar correndo para minha mesa, e ficar o mais longe possível dele. Era engraçado, pois ao mesmo tempo que queria me afastar, o deseja desesperadamente por perto. — Precisa de algo mais? — perguntei por educação.
— Na verdade, preciso sim. — falou, enquanto me olhava de uma forma estranha.
— E o que seria? — questionei desconfiada.
— Preciso que saia comigo. — respondeu. Um sorriso ladino dançava em seu rosto. Provavelmente por conta da cara de espanto que eu havia feito.
— O que disse?
— Disse que quero sair com você. — espantei-me de novo, e ele riu. Oras, que coisa!
— Por que? — cobrei, mas depois me arrependi. Isso não é pergunta que se faça. Para meu desespero, — ou não — se aproximou, e acariciou de leve minha bochecha. Um gesto atrevido, mas que não pude negar que havia gostado.
— Porque desde que pus meus olhos em você, naquele hospital, não consegui tirá-la da minha cabeça. — Uau. Era a única coisa que passava por minha cabeça.
— Nossa... — balbuciei meu abobalhada, sem o encarar. — Você é bem direto.
— Definitivamente. — falou, e abriu um largo sorriso. Sorriso esse estremeceu minhas pernas. Jesus, o que está acontecendo comigo? É só um homem. — E então, quer sair comigo?
— Sim. — respondi sem pensar. Logo em seguida, me arrependi. Pela minha cara, pareceu ter visto isso, pois antes que eu abrisse a boca, se apressou em dizer.
— Ótimo. Quando termina seu expediente? — perguntou sorrindo.
— As 18:30. — ele olhou no relógio.
— Só faltam alguns minutos, eu irei te esperar.
— O que? — exclamei. — Quer sair hoje? Mas eu não estou vestida para nada. — rapidamente, desci meu olhos para minhas roupas. Eu estava usando uma calça jeans simples, jaqueta e blusas pretas, e uma bota acima do joelho da mesma cor. Minha maquiagem era a mais simples possível, e meu cabelos estavam presos em um coque mais bagunçado que minha vida.
Definitivamente, não!
— Você está linda, . Perfeita. — a intensidade de seu olhar me deixava desconcertada. Respirei fundo e me obriguei a ter controle. Onde já se viu isso?
— Está bem. Vou pegar minhas coisas, me espere aqui. — ele concordou silenciosamente. Me virei e saí dali sem encará-lo. Mesmo assim, podia sentir seu olhar penetrante me acompanhar.
Deus me ajude!
Dez minutos depois, estávamos andando em direção ao seu carro. Um modelo mais caro que tudo o que tenho na vida
— Para onde vamos? — perguntei. abriu a porta para mim. Entrei, e observei ele dar a volta no carro.
— Você gosta de restaurantes? — perguntou.
— Depende. — disse sincera.
— Depende do que? — perguntou com curiosidade.
— Sou uma mulher simples. Não gosto de restaurantes chiques. Prefiro um lanche, com batatas e milk shake à comidas requintadas. — falei. Com certeza uma careta era ostentava em meu rosto. ficou em silêncio por alguns minutos, e depois explodiu em uma gargalhada.

Não pude evitar que um sorriso se abrisse em meu rosto ao ouvir o som de sua risada.

— Já entendi, detetive. — falou sorridente. — Sem restaurante chique.
E ele fez como prometido. me levou para uma lanchonete confortável. Eu estava tão contente com minha comida, que nem era capaz de disfarçar. Era engraçado vê-lo tentar comer. Parecia um menino tentando mexer em um brinquedo novo.
— Senhor Montanari, que vergonha. — disse pirracenta. Mergulhei a batata no milk shake, como nos filmes americanos, e me deliciei com o gostinho agridoce. — Não consegue nem segurar um sanduíche direito. Tsc tsc tsc — resmunguei, balançando a cabeça de um lado para o outro. — Que vergonha.
me olhou de uma forma engraçada, e revirou os olhos. Era estranho demais estar ali, sentada em uma lanchonete qualquer, comendo fast food com um dos maiores magnatas do mundo. Mais estranho ainda era vê-lo tão descontraído. havia tirado o paletó, e a gravata. E para minha agonia, havia aperto alguns botões da camisa social, o que deixou uma parte generosa de seu peitoral descoberto.
— Não me olhe assim. Fazem anos que não como esse tipo de comida. — respondeu me olhando.
— O que causou esse celibato em relação à comidas gordurosas e nada saudáveis? — minha pergunta havia sido totalmente inocente. Por esse motivo, não entendi o porquê sua expressão antes suave e tranquila, se tornou pesarosa. respirou fundo antes de me responder.
— Era o tipo se comida favorito de minha esposa. — o encarei sem jeito, e mordi o lábio. Seu olhar acompanhou meu movimento, e pude sentir meu corpo se arrepiar completamente.
— Sua esposa, entendo. — balbuciei. — Esse é um assunto proibido para você? — perguntei cutucando as batatas. dei de ombros, e suspirou.
— Não diria proibido, apenas é desconfortável para se falar em um primeiro encontro.
— Entendo. Cada um tem seus segredos e demônios. — murmurei pensativa.
— Inclusive você? — perguntou desconfiado. — de forma automática, meus pensamentos vagaram para tudo o que eu havia passado.
— Principalmente eu.




— Você gosta de música? — perguntei à , assim que saímos da lanchonete. Segurei a risada ao vê-la andar com dificuldade, enquanto ostentava uma careta de sofrimento. — Sabia que não devia comer tanto.
— Eu sei, mas eu nunca resisto a essas comidas maravilhosas. — falou, parando de frente para mim. Soltei uma gargalhada ao ouvi-la. Só Deus sabe há quanto tempo eu não me divertia dessa maneira.
Não pude controlar mais a vontade de tocá-la. Lentamente, subi minha mão por seu rosto, e coloquei uma mecha solitária que caía sobre seus olhos, e coloquei atrás de sua orelha. Os olhos de focalizaram em minha mão, e pude perceber a expectativa em que ela me olhava. Também pude perceber sua frustração quando abaixei minha mão, a trazendo de encontro ao meu corpo. Eu queria beijá-la. E Deus sabe como eu queria. — E sim, eu gosto de música? Por quê?
— Está tendo um festival de música aqui perto. Quer ir? — observei ela consultar o relógio, e morder os lábios de forma pensativa. Merda. Se ela soubesse as besteiras que se passavam por minha mente toda vez que ela fazia isso.
— Está bem. Mas não posso demorar.
Dei um sorriso de orelha a orelha e a puxei pela mão, entrelaçando nossos dedos. Não pude deixar de reparar na forma como nossas mãos se encaixavam. Parecia tão certo, Jesus! Fomos andando mesmo, e durante o percurso, conversarmos amenidades. Tenho certeza que a estava observando como um bobo, mas não conseguia evitar.
Quando chegamos ao festival, havia uma grande quantidade de pessoas. Uma música calma tocava, e embalava as pessoas em uma dança suave. Puxei para meus braços, e inevitavelmente sorri de sua expressão surpresa.
Levei uma de minhas mãos até sua cintura, e segurei sua mão com a outra, e comecei a me balançar ao som da música, trazendo comigo. A canção era lenta, por isso nossos corpos estavam grudados. Sem inibições, aspirei seu perfume, sentindo todo o meu corpo se ascender apenas com seu aroma. Deus, meu! Faz tanto tempo que não me sinto assim.
Sinceramente, não consigo expressar o que estou sentindo está noite. Sei que isso não é normal. Todo esse reconhecimento. Parece que já nos conhecíamos. Seu corpo, sua voz, seu jeito... é tudo tão familiar, que só torna as coisas mais confusas.
Apertei o corpo da mulher contra o meu, tentando saciar a necessidade estrondosa que sentia por ela. respirou perto da pele de meu pescoço, e seu hálito quente me arrepiou por completo. Sem resistir mais, ergui meu rosto na altura dos seus, e observei seu olhar de confusão. Mas ela pareceu entender minhas intenções, quando acariciei sua bochecha, e segurei seu rosto.
Eu queria tanto beijá-la que doía. Era algo além de carnal — apesar de eu estar completamente excitado — era como se minha alma precisasse daquilo para se acalmar.

Porém, o olhar no rosto dela mudou. De esperançoso e desejoso, se tornou desconfiado.

, tudo bem? — perguntei preocupado.




O rosto dele estava tão próximo do meu, que podia sentir seu hálito batendo contra minha pele. De repente, algo me chamou a atenção. Um homem com uma toca ninja, mirava uma arma em nossa direção. Mais precisamente em direção a .
, tudo bem?
Mal ouvi a pergunta. O homem percebeu que havia sido visto, e eu sabia o que ele faria. Com todas as minhas forças, pulei sobre , nos derrubando no chão.
A música não parou, as pessoas não se alvoroçaram. me olhava confuso, e me fazia perguntas. Contudo meu cérebro não respondia. O homem me olhou pela última vez, e correu. Eu não podia deixá-lo escapar.
Olhei para trás, e vi que a bala havia acertado apenas uma barraca, sem causar maiores estragos. Tirei meu celular do bolso, e entreguei para .
— Ligue para a polícia e peça reforços. Não saia daqui. — sem esperar por uma resposta, saí em disparada atrás do atirador. A rua estava lotada, e o transito cheio. Tinha que desviar dos carros, e de pedestres.
Correr nunca foi meu esporte favorito, devo ressaltar. Durante a fase de treinamento para ser aprovada na Scotland Yard, eu definitivamente era péssima nisso. Sempre perdia o fôlego rápido demais, e tinha a clara sensação de que iria cair dura no chão.
Sem parar de correr, tracei um plano em minha cabeça. Nisso eu era boa, graças a Deus. Olhei para um dos vários becos que havia ali, e entrei em um deles, dessa vez correndo com mais velocidade ainda. Meu sangue queimava em minhas veias, e minhas pernas bambeavam, porém parar estava fora de questão. Definitivamente!
Sorri quando vi o final do beco, e aumentei a corrida, me preparando para o impacto. Se meus cálculos estivessem certos, aquele filho da puta estaria no chão em...
Cinco... quatro... três... dois...

Senti o baque barulhento contra meu corpo, e no segundo seguinte eu estava no chão, com alguém embaixo de mim.

Uma rápida olhada ao redor me mostrou que a arma que ele usava antes estava jogada a uma boa distancia. Minha distração, no entanto não foi uma boa ideia, pois no segundo seguinte, senti uma dor angustiante em meu ombro. Soltei um grito de dor, e ao olhar para o local, vi uma faca pequena cravada na minha carne.
Fui jogada no chão e vi o homem se levantar e correr em direção à arma. Em um pico de adrenalina, peguei a arma que sempre deixava em minha bota, e fiquei de pé, ignorando a dor que estava sentindo. Quer dizer, tentando porque aquilo doía como o cão.
Saquei a arma em sua direção, e o estranho fez o mesmo.
— Larga a arma. — falei sem paciência.
— Isso não vai acontecer. — respondeu de forma debochada. — É incrível como você se parece com ela.
— Ela? — perguntei confusa. — Ela quem?
. A esposa morta do . — franzi o cenho, e apertei a arma mais forte em minha mão. — Eu sabia que ele a procuraria. Ele nunca superou a morte dela. — ele pareceu pensar por alguns instantes, e suspirou — Nem eu.
— Quem é você, droga? — questionei exasperada. A dor no ombro estava ficando mais incomoda, mas não era isso que estava me preocupando. Minha cabeça havia começado a doer. Uma dor agoniante, que estava me deixando tonta.
— Eu sempre a amei, Detetive. Sempre! — agora o homem parecia transtornado. — Sempre a adorei, fazia tudo o que ela pedia. Eu a daria o mundo. Mas ela não queria. Ela não me queria. Ela preferia o idiota do .
Pisquei os olhos duas vezes seguidas, tentando focar minha visão. Eu estava começando a ver desfocado, e a dor em minha cabeça só aumentava.
— Eu não queria matá-la. Era para o idiota do morrer. Mas ele resolveu trocar de lugar com ela. ELE A MATOU! ELE. — gritou. Ouvi um barulho de sirenes, e logo depois vários "clicks" de armas. O reforço havia chegado, graças aos céus.
— Matteo? — escutei a voz incrédula de perguntar. Franzi os olhos na direção do som. encarava o homem com incrédulidade.
— Oi, amigão. — disse, e deu uma risada para lá de maléfica. Observei com dificuldade ele tirar a máscara. Um grunhido de ódio foi ouvido, e tinha certeza que vinha de . Se eu não me engano, o atirador era o homem que estava em seu quarto de hospital no dia em que fui visitá-lo com James.
— COMO VOCÊ PÔDE?
— A culpa foi sua!
— Minha? Você a matou!
— Eu a amava. Você a roubou de mim...
Eu não conseguia acompanhar mais nada. Minha cabeça doía tanto que parecia que iria estourar. Meu ombro também incomodava. Só consegui acompanhar os policiais desarmando Matteo, e o algemando.
, você está bem? — ouvi James perguntar. Balancei a cabeça negando, e caí em seus braços.

A última coisa de que me lembro foi de ver correr em minha direção e gritar meu nome.

Pisquei meus olhos, reprimindo um gemido de dor ao ver a claridade do quarto. Observei as paredes brancas, e a agulha enfiada em meu braço. Ia fechar os olhos novamente, quando uma enxurrada de memórias há muito esquecidas tomaram conta de minha mente. De olhos arregalados, senti o pânico e a emoção tomarem conta de mim.
— Meu Deus... — murmurei. Sem perceber, senti as lágrimas quentes escorrerem por meu rosto. Ouvi a porta do quarto se abrir, e um médico entrar no quarto. O contei o que havia acontecido, e ele me disse que a dor de cabeça foi por conta das minhas memórias estarem voltando. O médico explicou porquê isso havia acontecido, mas eu não entendi. Estava perdida, emocionada, tão grata a Deus.
— Tem um homem lá fora louco para vê-la. — disse sorridente.
— Ele se apresentou como Montanari. — meu coração bateu mais forte quando seu nome foi mencionado. Pedi ao doutor para que não falasse nada a , e ele concordou, saindo do quarto e me deixando sozinha.
Olhei ao redor, e vi minhas lentes em cima de uma mesinha. Peguei- as rapidamente, e mal tive tempo de colocá-las, pois entrou desembestado no quarto, e correu em minha direção, me puxando para um abraço.
Afundei meu rosto na curva de seu pescoço, sentindo o cheio há muito esquecido por mim.
Deus, como eu o amava. Sempre o amei. Sua presença era tudo o que eu precisava para viver.

E agora eu o tinha.

— Você me assustou. — disse me olhando, assim que me soltou.
— Foi apenas um susto. — falei, secando as lágrimas que insistiam em cair. Confuso, me segurou pelos braços.
— Qual o problema, ? Sente dor? — questionou preocupado. Neguei, e respirei fundo. Eu precisava me acalmar. De repente, me dei conta de algo que há anos não fazia mais sentido para mim, mas que agora significava muito.
— Amanhã é Ceia de Natal. — balbuciei, minha voz saindo mais perdida do que queria demonstrar. concordou, e afagou meus braços.
— Sim... — respondeu pensativo. Ele parecia querer me falar alguma coisa, pois me olhava de um jeito sugestivo demais.
— O que quer me dizer? — cobrei. O observei passar a mão pelos cabelos, e suspirar fundo.
— Sei que é doido, e cedo demais. Muito cedo, e isso me assusta também. Mas há muito que Natal não significa algo bom para mim, mas desde que conheci você, algo em mim mudou. Não sei dizer o que é... Deus, isso é estranho. — uma pausa, e uma lufada de ar depois. — Eu queria saber se quer passar o Natal comigo e com minha família. Sabe, você não precisa aceitar se não quiser. Deve ter família também, amigos. Pessoas muito mais próximas do que eu e... — o dedo que coloquei em seus lábios o calou. Sorri de forma calorosa e concordei.
— Eu aceito, e fico contente pelo convite. — falei afastando minha mão de sua boca, ele abriu a boca para falar algo, mas foi interrompido por James, que entrou no quarto com uma expressão de preocupação.
Eles ficaram comigo por alguns minutos, até a enfermeira aparecer e expulsar os dois, alegando que eu precisava descansar mais um pouco.
Antes de dormir, porém, fiz uma oração a Deus. Depois de anos, ele havia me trazido de volta a vida, quando eu já não tinha mais esperança.




A vida realmente é traiçoeira. Eu nunca imaginei que acompanharia meu melhor amigo sendo preso, e nem que me sentiria bem por isso. Mas eu também nunca imaginei que ele fosse capaz de tentar me matar, e pior: ter matado no caminho. E tudo por quê? Dor de cotovelo, e ganância. Ganância, pois comigo fora do caminho, ele provalvemente assumiria a liderança do meu Império. Isso porquê ele era meu braço direito em tudo. Braço direito que tentou me matar. Que vida!
Respirei fundo, olhando mais uma vez para o relógio. Já eram dez horas da noite, e nada de chegar. Minha casa estava consideravelmente cheia, com parentes e amigos. Ainda era estranho para mim comemorar o Natal, mas ninguém podia dizer que eu não estava tentando. Sorri ao lembrar a causa para minha resiliência. Causa essa que estava meia hora atrasada. Eu havia insistido para buscá-la, mas insistiu de volta que não era preciso. Ela estava se mostrando bastante teimosa.
Nem preciso dizer que minha mãe quase surtou de alegria quando soube que eu iria trazer uma mulher para cear conosco. Dona Amélia ficou eufórica.
Desistindo de esperar, disquei o número de , e liguei para ela. Dois toques depois, e ela atendeu.
— Alô. — a voz dela soou do outro lado do aparelho.
— Onde você está? — perguntei.
— Aqui em cima. — franzi a testa, sem entender o que ela havia dito.
— Como assim?
— Estou na sua casa, no segundo andar.
— Como assim você está em minha casa? — questionei confuso. Eu não estava entendendo nada.
— É o que ouviu. Venha até o segundo andar, no final do corredor. — disse, e desligou. Encarei o celular por um tempo, totalmente abismado. Olhei ao redor, mas todos pareciam alheios a qualquer coisa.

Por isso, subi rapidamente as escadas. Aquela parte da casa estava silenciosa e todas as portas fechadas. Exceto uma... o quarto de . Nosso antigo quarto.

Caminhei trêmulo até lá, e empurrei o que faltava da porta. Lá dentro estava escuro, exceto pela luz da Lua que iluminava o recinto e a mulher encostada na janela. Apertei o interruptor e acendi todas as luzes, mas nem isso fez me fitar. Não pude deixar de prestar atenção em como ela estava vestida. Um vestido vermelho sangue adornava seu corpo, e suas costas estavam cobertas por um chale. Ela usava salto, e um penteado elegante.
, o que faz aqui? Por que entrou neste quarto? Por que não me disse que havia chegado? — perguntei sem entender.
— Quero te contar minha história. — começou relutante. Resolvi não dizer nada, e apenas ouvi-la. — Há dez anos eu acordei assustada. Meu corpo inteiro doía, e minha cabeça parecia que ia explodir. Eu estava com medo, e não sabia onde estava. Havia areia e água. Eu sentia os grãos incomodando minha pele, e a água molhando meu corpo. Eu comecei a chorar, sem entender absolutamente nada. Fiquei assim por dias, ou horas, naquele momento não conseguia diferenciar. Fraca, eu não conseguia manter meus olhos abertos. Antes de desmaiar, eu senti braços me levantando, e então apaguei.

Eu estava quieto, apenas escutando. Nada fazia muito sentido para mim. Escutei fungar, e fiquei em alerta.

— Quando eu acordei, já haviam se passado dias. Meus ferimentos estavam melhores, mas... havia um buraco em minha mente. Eu não lembrava meu nome, minha idade, nada sobre mim e minha vida. Fui acolhida por um casal de pescadores, que me ajudaram durante dois anos. Depois, vim para a cidade, e por um tempo procurei por algo que pudesse me levar até minha família. — sua voz estava um tanto embargada, e mesmo sem vê-la, supus que estava chorando. — Mas eu não consegui. Então, decidi seguir minha. Fiz documentos novos, entrei para a Scotland Yard, aluguei um apartamento, comecei do zero. Mesmo tendo recomeçado, eu não tinha nada. Nem meu nome eu sabia! — exclamou. Eu apenas a observava; ouvia suas palavras, mas elas não fazia muito sentido para mim.
— Ah, eu também comprei lentes de contato. Meus olhos eram chamativos demais. — lentes de contato? Minha mente entrou em combustão. Eu não queria imaginar... não queria fantasiar coisas, mas foi impossível.
... o que você... — nem consegui terminar meu raciocínio.
— Vivi só durante anos, presa na minha própria solidão. A falta de memória não levou só minha antiga vida, mas a minha nova também. Eu sobrevivi, mas do que adiantou? — perguntou amargurada. — Ai você apareceu... e ontem... — ela respirou fundo, e continuou. —Ontem eu acordei no hospital e... meu Deus, . Eu me lembrei. Me lembrei de tudo. Lembrei meu nome, de quem eu era. — agora ela chorava, e quase não conseguia falar.
— E quem você é, Detetive? — perguntei, dando dois passos em sua direção. Ela não me respondeu com palavras. Apenas deslizou o xale por seus braços, e deixou suas costas totalmente de fora. Meu coração errou uma batida com o que vi.

Uma mancha. Uma mancha igual a que tinha. Uma mancha vermelha, em formato de mapa, bem no meio das costas.

— C-... v-você. O que está acontecendo? — passei a mão nos cabelos, totalmente exasperado. Já podia sentir as lágrimas se formando nos cantos dos meus olhos. Me aproximei dela, e segurei em seus braços. Ela tremia, e eu tenho certeza de que também estava. Virei-a de frente para mim, e cambaleei para trás.

Aqueles olhos...

Minhas pernas tremiam tanto, que minha única alternativa foi cair de joelhos no chão. Então eu chorei.
Chorei por todos os anos que passei sem ela.
Chorei por todas as noites que passei chorando, pedindo a Deus que me levasse também.
Chorei por todas as vezes que cochilei no cemitério do lado do túmulo dela.
Chorei pelas vezes que dormi bêbado porque não podia suportar a dor de não tê-la comigo.
Chorei por tantas vezes que vi meus sonhos de ter filhos e uma grande família caírem por terra, pois se não fosse com ela, não seria com nenhuma outra.
E chorei por Deus ser tão bom. Mesmo eu tendo duvidado de sua existência, e o ter culpado de tudo, ele havia me devolvido minha vida. Havia devolvido meu anjo. Havia devolvido .
Percebi ela se ajoelhar a meu lado. A abracei sem cerimônias. Ela também chorava. Tê-la em meus braços depois de tanto tempo era como um Oásis no meio do deserto.
Segurei seu rosto com as duas mãos, e encarei aqueles olhos lindos.
— Sabe o que mais amo em você? — perguntei, totalmente encantando. sorriu lindamente e concordou.
— Meus olhos. — sussurrou.
— Eu nunca te esqueci, meu amor. Nunca! Quando eu soube que você havia morrido, eu morri junto. E em todos esses anos, a cada dia eu perdia o que restava de mim. Eu te amo tanto que não cabe dentro do meu peito. — falei emocionado. me encarava com olhos marejados. Apoiei nossas testas, e fitei seus lindos olhos. — Todos os meus amigos me disseram para seguir em frente, mas amar você para sempre não parecia errado. — deslizei meus dedos por sua bochecha, e a acariciei levemente. — Seu rosto era como uma melodia que não saía de minha cabeça. Não há ninguém na terra que tenha amado tanto como eu te amei.
— Eu sonhei com você todos os dias. Nunca vi seu rosto, mas amava você. Amo você, . Você é o amor da minha vida. Nosso amor vai muito além deste plano, é algo espiritual. Nosso encontro foi um encontro de almas. — seu sorriso era tão lindo que me fazia sorrir junto.
— Quando te vi naquele hospital, foi como se meu coração parasse por um momento e depois acertasse o ritmo certo. Uma parte de mim que achei que não existia mais saltou para a vida em nano segundo. Me perdi e depois me encontrei. Achei que Deus havia me dado outra chance de ser feliz, com outra mulher, mas não... Era você. Tudo sempre foi você. — seus lábios estavam entreabertos, e meu corpo ardia de desejo. — Finalmente, meu amor. — disse, antes de abocanhar seus lábios, com tanta saudade em mim que mal cabia em meu peito.
Depois de tantos anos, me senti tremer com o desejo acumulado. O amor habitava em mim, e agora corria por minhas veias revivendo cada pedaço morto dentro de mim. A puxei pela cintura, e não pude conter o gemido que saltou de minha garganta. Aquilo era o real prazer. Prazer que eu não sentia há mais de dez anos.
— Perfeita como eu me lembrava. — mordi seu lábio inferior, e o puxei de leve, para depois me entregar de novo a sua boca. Uma mão estava em seu cabelo, a grudando o máximo possível ao meu corpo.
— Amo você, . — sussurrou contra meus lábios.


Ela voltou pra mim. — esse foi o primeiro pensamento que rondou por minha cabeça. O segundo foi. — Obrigado meu Deus. Eis aqui o meu milagre.






Fim



Nota da autora: Sem nota.




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