Finalizada em: 04/05/2021

Capítulo Único

A parte mais difícil era entrar no carro. Fazia uma semana desde que escondeu a mala embaixo do banco do passageiro. Aquela era a última oportunidade. Todos os dias anteriores também foram. Mas, dessa vez, seria diferente. Não tinha o jantar com os Hudson, nem a festa do filho do Mike. Não estragaria a vida de ninguém que não fosse a própria e a de . Ela se recuperaria, com certeza. Tudo o que precisava fazer, era entrar na droga do carro.
Respirou fundo e puxou a maçaneta.
Você está só indo ali, Bill.
Sentou-se no banco. Girar a chave era o ponto final.
Estavam falidos, era isso. Falidos como os amantes que juraram ser. A culpa era da rotina, certamente. Seu trabalho exigia muito de si, mal tinha tempo de ver . Mensagens ocasionais, apenas para manter a casa funcionando. Tirar o lixo, levar o cachorro ao veterinário, comprar mais leite.
Era o momento de tirar o carro da vaga.
Cansaço.
Pegar o celular. Discar o número dela.
Melhor esperar mais um pouco...
Não, agora era para valer!

Sua constante ausência — ou melhor, sua presença invisível — soterrara sob quilos e quilos de mágoas engolidas a seco em cinco anos de um casamento que respirava por aparelhos.
A estrada estava mais escura do que o normal. Iria chover. Não dava mais para manter essa tortura silenciosa.
De novo. Pegar o celular. Discar o número dela.
Parecia uma eternidade até que ela atendesse.
Caixa postal.
O trânsito estava complicado.
De novo. Nova tentativa.
No quinto toque: “, eu não sei como te-”.
Faróis altos, buzina ensurdecedora. Coração acelerado. Merda.
“Bill? Bill? Você está aí? Que barulho foi esse? Bill?”
“Um caminhão entrou na minha frente.”
Faltava ar.
. Me escuta. Eu não vou voltar para casa.”
Quantas vezes ensaiou o que iria dizer a ela? Toda vez que encarava a si mesmo no espelho, via-se balbuciando os mesmos pedidos de desculpas.
Não me leve a mal. Queria ficar com você para sempre.
Segunda chance. Terceira chance. Quarta chance. Inúmeras tentativas de salvar o que não tinha mais volta. Não tinha coração que aguentasse ser lacerado tantas vezes repetidamente. Mas aguentou. Bravamente. Ao custo do sorriso fácil, do brilho nos olhos, dos abraços acolhedores, da risada farta. As lágrimas chegaram como hóspedes de poucos dias e tornaram-se moradoras fixas. As crises, o desespero.
, precisamos conversar.
A conversa nunca existiu. Todas as vezes foi covarde demais para dizer adeus. Para formalizar o fim de um relacionamento que se esvaiu há muito tempo. Então ela se aproximava, retirava o pesado paletó e a gravata que sufocava. O bolo na garganta continuava lá, impedindo as palavras saírem. Então ela servia o vinho, reduzia as luzes e deixava vislumbres da antiga e feliz virem à tona. A partida era adiada por mais um pouco, enquanto a recordação dos toques quentes e da sincronia do encontro de seus corpos enevoava a aflição. Assim, três anos tornaram-se cinco. As viagens a trabalho passaram a ser frequentes.
Mande-me para qualquer lugar, menos para casa.
Sozinha, abandonada, desamparada, negligenciada. Toda vez que olhava em seus olhos, lembrava-se da merda em que permitiu que a vida dela se tornasse.
“Estou indo para um hotel.”
No quarto desconhecido encontraria frações de paz para organizar os pensamentos. Longe de qualquer familiaridade. Cercado por lençóis neutros, sendo tratado apenas pelo sobrenome. Nada de Bill. Sr. Skarsgård. Sr. “Abandonei-minha-esposa-porque-não-tive-coragem-para-pedir-o-divórcio”. Repulsivo. Pediria a alguém para buscar suas coisas. Não queria a casa. Não queria os móveis. Não queria nada que o fizesse lembrar. Apenas as roupas e os poucos pertences. Ligaria para Amelia e pediria que ela fosse dar suporte à filha. precisaria de colo, de apoio, do carinho que não foi capaz de oferecer.
Alguns dias recluso para traçar um plano e seguiria em frente. Voltaria para a Suécia. Recomeçaria. Sumiria.
Não me leve a mal.
“Bill?”
A tensão faz a memória falhar. Qual a última coisa da qual se lembra?
Faróis altos, buzina ensurdecedora. Coração acelerado. Merda.
O corpo sendo lançado à frente. O choque. Dor. Tanta dor, que não doía mais. Tudo ao seu redor era úmido. Boiando nas lágrimas que arrancara cruelmente de . Pegajoso, quente... Sangue.
Era insuportável respirar.
“Bill?”
A luz que emoldurava o rosto dela enfraqueceu.
Por que ela estava no painel do carro?
O celular. Pegue o celular.
Por que não consegue mover o braço?
“Bill?”
Pare de me chamar ou vou perder a coragem.
. Me escuta. Eu não vou voltar para casa.
E tudo escureceu.



FIM!



Nota da autora: Sem nota.

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