08. I really want you

Finalizada em: 30/12/2021

Capítulo Único

— Não sei como dizer isso a vocês... — a cabeça baixa indicava que algo estava errado, a expressão de pesar não cabia naquele rosto. — Reduziram a frota pela metade, a chefia deu preferência aos que aguentam dirigir por mais tempo e não sobrou lugar para os motoristas mais antigos. Fui demitido. Me desculpem.

A vida de Seonghwa virara de cabeça para baixo nos últimos três meses. Sem o salário do pai, as contas começaram a não fechar, as dívidas aumentaram, mais de uma vez foi necessário pedir dinheiro emprestado a amigos para arcar com os custos da família. Os avós ajudavam como podiam, ainda que com pouco, enviando comida. A mãe de Seonghwa fingia que acreditava que uma enorme tigela de kimchi que alimentaria facilmente cinco pessoas era sobra do jantar de dois idosos que viviam sozinhos e a sogra fingia que não estava remanejando dinheiro dos tratamentos médicos para manter o filho e o neto de barriga cheia enquanto a situação não melhorava.
A necessidade de ajudar com as despesas da casa tornara-se urgente a ponto de exaurir o ar dos pulmões de Seonghwa. Sua mãe não conseguia arcar com tudo sozinha, trabalhava dia e noite em qualquer coisa que desse algum dinheiro a troco de noites sem dormir, queda de cabelo, crises de enxaqueca e da óbvia deterioração de sua saúde mental. Seu pai afundava na culpa, passando a sair cada vez menos de casa até mesmo para buscar outro emprego, apagando dia após dia, como uma vela cujo pavio se aproximava do fim. Vinte anos dedicados à mesma empresa foram jogados no ralo na primeira oportunidade e, de repente, parecia que nenhuma autoviação estava disposta a contratar um motorista com tanta experiência mas que, pela idade, não podia fazer turnos excessivamente extensos. Todos os dias, quando saía de casa para ir à escola, Hwa questionava-se até quando o pai suportaria antes de desmoronar. A tristeza que abatia seus pais o torturava, doía em seu corpo como ser perfurado repetidas vezes por agulhas compridas e certeiras. Sentia-se impotente, fraco, um mero expectador da desgraça que injuriava a família Park. Toda vez que encarava o espelho, um outro Seonghwa, que ainda vivia na realidade feliz que um dia pertencera a si, ria dele, esfregando em sua cara o quanto era ridículo, patético e totalmente dependente do papai e da mamãe para limpar a própria bunda. Desde então, não aparou mais a franja de fios negros que cobria-lhe a testa, deixando que crescesse até que formasse uma cortina que escondesse-lhe os olhos abatidos, de modo a evitar a repreensão daquele que viva no âmago do seu coração pesado e o julgava diariamente.
Estava em ano de vestibular, tinha acabado de alcançar a maioridade e zero perspectivas para um futuro mais distante do que o dia de receber a miséria do pagamento pelos serviços de garçom no restaurante do final da rua. Os donos eram boas pessoas, conheciam os Park e sabiam das dificuldades que estavam enfrentando, por isso mesmo sempre fitavam Seonghwa com uma incômoda face de pena. Pena esta, contudo, que não era o suficiente para fazê-los aumentar a remuneração dada pelas noites trabalhadas servindo mesas e aturando clientes bêbados, apenas acrescentava mais peso às costas já cansadas do filho dos Park. Estude durante o dia, trabalhe durante a noite, estude mais um pouco durante a madrugada, durma míseras três ou quatro horas e pronto, você terá um futuro recompensador. Ou morrerá antes dos cinquenta anos com um ataque cardíaco causado pelos inúmeros maços de cigarro consumidos durante esse período. Ainda bem que Seonghwa nunca gostara de fumar, senão infartaria antes dos vinte.
Após uma noite excessivamente longa de trabalho, tudo que o rapaz de cabelos pretos queria era tirar o avental e sumir dali o mais rápido possível. Todas as cadeiras haviam sido recolhidas, as mesas estavam limpas, o chão da cozinha brilhava como novo, tudo indicava que era chegada a tão esperada hora de trancar a porta e sumir, afundar na sua cama e ignorar, pelo menos naquele dia, que tinha tarefas da escola para terminar.
— Seonghwa, querido, venha aqui, por favor. — a proprietária o chamou no salão, obrigando-o a deixar de lado os planos de ir embora para ficar parado ao lado da velha senhora enquanto ela conversava com um homem de meia-idade. — Esse é Kyungchul, quase um filho para mim. Ele tem um bar muito bonito em Seoul, do jeito que vocês, jovens, gostam.
— Não precisa de tanto, tia. — disse o homem, ajeitando a manga da camisa de botões. — É um prazer conhecê-lo, Seonghwa. — estendeu a mão para que o garoto a apertasse, sustentando um sorriso simpático ligeiramente forçado. — Apesar de estar com saudades da comida da tia, hoje venho a trabalho. Ela me disse que você é um bom garçom e, bem, estou precisando dos serviços de rapazes como você.
— O que são “rapazes como eu”? — apesar da cara de criança, Seonghwa era qualquer coisa, menos idiota.
— Jovens, bonitos e que gostam de dinheiro. — respondeu com tranquilidade.
— Mas que mer-
— Nosso Seonghwa é um menino muito esforçado, você vai gostar do trabalho dele, sem dúvidas. Não é, querido? — a idosa interrompeu-o em sua indignação, o empurrando para aproximar-se do convidado. — E está precisando de um dinheirinho extra.

━━━━━━━ ● ━━━━━━━

O barulho mal o deixava ouvir os próprios pensamentos, o que, de certa forma, era bom. Tudo era escuro, exceto pelos feixes de luz que cortavam o ambiente de uma ponta a outra. Não sabia como cabia tanta gente num espaço fechado. Antes de pegar a próxima bandeja, Seonghwa se olhou na parede espelhada ao lado do bar; a jaqueta de couro cabia bem nele, podia facilmente se misturar à multidão, conforme pedira o contratante. O lápis de olho estava começando a borrar na pálpebra inferior, talvez por ter segurado o choro de desgosto tantas vezes nas duas horas que estava ali dentro. Precisava do dinheiro, mas não se sentia confortável. O serviço era simples, só precisava passar no meio daquele formigueiro humano carregando bandejas de bebidas coloridas e brilhantes sem derrubar, oferecendo para os frequentadores do local com um sorriso no rosto, sem se incomodar com as cantadas e com ser xingado volta e meia sem ter feito nada para merecer. Bem simples. Se lembrou da Sra. Lee dizendo que aquilo era um bar... uma ova. Crimson Skies era uma boate underground, abarrotada de gente dançando, se agarrando e bebendo até trocar as pernas. Seonghwa caminhava entre as pessoas com certa dificuldade, não conseguia escutá-las quando o chamavam e se recusava a gritar para ser ouvido. Não deveria estar reclamando, sabia disso, porque uma noite de trabalho na Crimson pagava quase o mesmo que um terço do salário no restaurante dos Lee e se tinha algo que fazia falta naquele momento era dinheiro. Dinheiro vivo, cash, diretamente na sua mão, além das passagens de ida e volta entre Jinju e Seoul.
Era tão atrativo que parecia mentira.
Do alto da cabine de DJ, olhos atentos acompanhavam a movimentação do rapaz esguio por entre os corpos aglomerados. O trabalho estava quase no fim, a festa seguia animada com gente dançando sem parar. Logo terminaria seu horário e estaria livre para curtir a vibe pelo resto da noite, se perderia na multidão embalado pela própria batida. Se perder para encontrar o garoto de jaqueta de couro que prendeu sua atenção desde que as luzes da boate iluminaram o rosto de feições involuntariamente convidativas. Ele parecia sério, quiçá meio distante, ao mesmo tempo que o fazia questionar a possibilidade da presença de um anjo entre meros mortais. Uma vez ou outra, o viu mover a cabeça no ritmo da música enquanto circulava com a bandeja na mão; foi fazendo testes, percorrendo diferentes estilos e ritmos até encontrar um padrão que agradasse o foco de seu interesse. Faria aquela boate vibrar em BPMs dedicadas única e exclusivamente a ele ou não se chamava Kim Hongjoong.
Seonghwa estava tão aéreo, perdido nos próprios pensamentos, que mal notou que estava menos acuado naquele ambiente. Ainda se incomodava com o serviço, ainda se sentia exposto como um manequim desfilando por entre homens e mulheres que o olhavam de cima a baixo, ainda queria sair correndo dali a cada dez minutos, mas estava grato pela música ter melhorado consideravelmente. Pelo menos isso o mantinha distraído, podia cantarolar e transportar-se para uma outra dimensão em que não tinha de virar a noite acordado servindo bebidas para ajudar a pagar as contas, onde não tinha sido oferecido como mão de obra sem seu consentimento, onde podia ser um cara normal curtindo o fim da adolescência e o início da vida adulta da forma que achasse melhor, sem se ver obrigado a trabalhar como um burro de cargas para ter comida na mesa, para não ver seus pais sofrerem. Maldito senso de responsabilidade que o impedia de desistir de tudo. Seus dedos doíam dentro do coturno, estava em pé há mais tempo do que o habitual, o cansaço que o acompanhava diariamente estava evoluindo para exaustão rapidamente. Parou por alguns instantes próximo à área do staff, uma portinha que separava a escada para a cabine do DJ da parte interna que imaginava ser a área administrativa da Crimson Skies. Daria tudo por um crachá de staff que o permitisse, ao menos, encostar ali por alguns minutos e descansar os pés. Sabia que os seguranças próximos não permitiriam, pois era nada além de um extra, um garoto que foi chamado para estar ali por ser bonito. Apoiou a bandeja em um dos degraus da escada para aliviar os braços enquanto fingia abaixar para amarrar os sapatos, a melhor forma que encontrara para descansar minimamente as pernas sem parecer que o estava fazendo. Percebia que estava sendo observado, provavelmente os demais funcionários tinham ordem para vigiá-lo, o caipira com jaqueta de couro não podia se comportar mal ou jamais seria chamado para trabalhar na Crimson novamente. Cada copo de drink que carregava na bandeja custava quase o que receberia pela noite, fora avisado antes mesmo de começar; a quantidade de pessoas endinheiradas ali trazia certo asco a Seonghwa, metidas em um lugar apertado de paredes pichadas e coberta por cartazes, ambientando uma realidade que não era a delas. O subúrbio parecia atrativo para os que estavam sentados em tronos de ouro e prata, contanto que os problemas dos suburbanos não chegassem até eles. Pois Park Seonghwa era um suburbano do interior, ciente do oceano de injustiças sociais que o separava daquelas pessoas que o analisavam da cabeça aos pés, que direcionavam olhares furtivos e maliciosos para seu corpo, que o viam como um pedaço de carne que facilmente faria qualquer coisa pelo preço certo, e se recusava a abaixar a cabeça para eles. A remuneração pelo trabalho na Crimson era boa, porém tudo que custava sua paz era caro demais.
— Se importa se eu pegar um? — uma voz atrás de si falou, fazendo com que Hwa rapidamente se levantasse. — Pode anotar na minha conta, pago depois.
Um homem baixo, de touca tão azul quanto os fios de cabelo que escapavam pela testa, o fitava com um sorriso amigável no rosto, apoiado no corrimão descendo da cabine do DJ. O moreno apenas concordou com a cabeça, deixando-o à vontade para escolher o que quisesse; aparentemente aquele cara trabalhava ali ou os seguranças já estariam em cima dele para afastá-lo da área restrita.
— Valeu! — ergueu o copo num brinde solitário à gentileza, ou à falta dela.
Seonghwa seguiu-o com o olhar, curioso pela visível pouca idade do outro, atentando-se para o fato de a porta destinada aos staffs ter se aberto para a passagem dele, expondo um longo corredor. Outro homem vinha na direção oposta ao de cabelo azul e, para surpresa de Hwa, acariciou despudoradamente a bunda do mais baixo quando se cruzaram naquela passagem estreita. Ele virou-se para acompanhar o caminhar daquele que o tocara, dando de encontro ao olhar surpreso e fixado do garoto com a bandeja de bebidas, abrindo um sorriso malicioso ao pegá-lo observando a intimidade dos dois homens.
Talvez fosse pela luz baixa, talvez fossem os olhos que já pesavam de sono, mas Seonghwa podia jurar que o cara da touca azul tinha piscado para ele antes de sumir no corredor.
Hongjoong não pôde conter a satisfação que tomou conta de si com a expressão estupefata que tomou o rosto daquele menino que mais parecia um anjo. Esperava que o susto não o tornasse resistente às investidas que direcionaria a ele tão logo quanto chegasse à pista de dança. Mesmo que o affair com Hyunbae tivesse chegado ao fim há algum tempo, isso não impedia que o produtor fosse figura repetida no álbum de Hongjoong e toda oportunidade de demonstrar que estava livre para dar uma carona ao jovem DJ era muito bem-vinda; todavia, naquela noite em particular o interesse do azulado estava totalmente voltado ao rapaz esguio que circulava pela boate equilibrando bebidas. Aos dezoito anos, Hongjoong se recusava a privar-se de qualquer uma de suas vontades, sejam elas quais fossem, para atender às expectativas alheias, por isso, não via motivos para esconder de qualquer um naquele ambiente que demonstraria interesse por quem quisesse. O crachá que o caracterizava como membro da equipe da Crimson Skies não estava pendurado no seu pescoço de graça, precisou mexer as peças certas para chegar até ali e, gostassem ou não, isso o dava certa liberdade para ser quem era.
Seonghwa tentou apagar o que viu, saiu de perto do local e focou totalmente no trabalho que deveria realizar. Mais próximo do bar, mais distante da cena que rodava sua cabeça insistentemente. Era um insetinho no meio de um mar de pessoas maiores que ele, insignificante, ignorante, como se nunca tivesse visto o mundo lá fora, sem saber como reagir, como se cada homem ou mulher que passava ao seu lado estivesse julgando-o por não se portar com naturalidade. Na realidade, Seonghwa sentia-se nu. Revirado. A pele em que habitava o expulsava, sobrepujava suas barreiras e expunha seu cerne.
— Como pretendia botar a bebida na minha conta se não te disse meu nome? — o homem de fios azuis o esperava sentado numa banqueta do bar. Como ele chegou tão rápido ali? Talvez fosse Seonghwa quem se perdeu pelo caminho.
— Não me atentei a isso, peço desculpas. — respondeu sem levantar o olhar. Arrumando a bandeja estava, arrumando a bandeja continuou.
— Kim Hongjoong. Sou um dos DJs daqui. — esticou a mão para que o garçom a apertasse.
A mão estendida no ar ali permaneceu. Hwa não expressou reação alguma à introdução do outro, olhou-o de cima a baixo buscando algum sinal de que não era necessário corresponder à apresentação. Vencido pela boa educação que recebera, cobriu a mão pequena com a sua, apertando-a sem vontade.
— Não vai me dizer seu nome? — Hongjoong perguntou, sem deixar que o toque fosse interrompido.
— Seonghwa. — respondeu a ligeiro contra gosto.
— Só Seonghwa?
— É.
— Tudo bem. — riu baixo, achando interessante como ele parecia um gatinho arisco. — Espero que esteja gostando da Crimson Skies, não é todo dia que temos gente nova por aqui.
A vontade do moreno era dizer que, no que dependesse dele, jamais voltaria a pisar na boate, não se sentia bem, preferia se danar limpando mesas no restaurante da sra. Lee pelo resto do ano.
— É trabalho, não tenho do que reclamar. — equilibrou a bandeja na mão direita e pediu licença ao azulado, esbarrando levemente em um casal que se beijava na beira da pista de dança.
— Bom te conhecer! — com as mãos ao redor da boca, o DJ se despediu, se fazendo ouvir pelas pessoas mais próximas e por um certo garoto de Jinju, que seguiu em frente, mordendo o lábio inferior.
Hongjoong levantou-se pouco depois para cumprir a promessa que fizera a si mesmo de aproveitar a festa enquanto podia, não sem antes trocar meia dúzia de palavras com um conhecido que assistiu toda a cena.
Àquela altura da noite, quem estava de pé com considerável grau de sobriedade podia ser considerado imune aos efeitos do álcool ou um escolhido de Deus, como Seonghwa pôde constatar ao ser impossibilitado de passar repetidas vezes por corpos inconscientes jogados nos cantos da boate. Isso reduzia a velocidade com que a bandeja que carregava era esvaziada? De maneira alguma. Quanto mais bêbados, mais eles bebiam e mais difícil ia se tornando o trabalho de registrar o consumo. Carregar a bandeja, servir de apoio para quem não conseguia se manter sobre as duas pernas e ainda conseguir direcionar o leitor de QR code ao pin preso às roupas dos tontos que não paravam de entornar os líquidos coloridos na sua jaqueta era uma tarefa hercúlea. Em muitos momentos quis deixar para lá, o preço de um drink daqueles não faria diferença no bolso do dono da Crimson; foi parado pelo medo de ser descoberto dando prejuízo e descontado do dinheiro que estava lutando tanto para receber. Penteou a franja para cobrir mais os olhos e, assim, afastar-se mentalmente dali. Feixes de luz clara cortavam a aura carmesim do lugar, destacando um certo ponto azul que sempre estava no campo de visão de Seonghwa; fosse dançando, fosse conversando com alguém, ele sumia quando o feixe trocava de foco e reaparecia em outro local num curto intervalo. Queria perdê-lo de vista, brigava com os olhos que insistiam em focar na maldita touca azul que deixava seu estômago agitado.
Hongjoong acompanhava Seonghwa de longe, esperando a deixa certa para aproximar-se novamente. Os olhares se cruzavam volta e meia em um cortejo contido e quase não intencional. Tinha de ir devagar, a possibilidade de o gatinho arisco arranhá-lo era grande demais para agir sem pensar. A música embalava os dois corpos separados por vários metros, cada um no seu espaço e Seonghwa tão imerso no próprio mundo que se deixava levar pela batida, ondulando a cabeça conforme a melodia. Canhões de fumaça lançaram a neblina do gelo seco nos quatro cantos da boate. Para os frequentadores, era um momento de frenesi, vozes se ergueram em gritos animados; para Hongjoong, era um sinal e a brecha que tanto aguardara. Entraram no último terço da noite na boate, as nuvens desciam e traziam o paraíso aos que viviam em pecado na Crimson Skies.
O moreno parou para admirar a névoa branca descer do teto, afrouxando as amarras que o prendiam em si mesmo. Não devia haver culpa por achar bonito o efeito das luzes cruzando a fumaça. Não devia haver culpa em, por uma única vez, não querer se afastar e ir para o outro lado da pista quando um certo DJ se aproximou. Abraçou a já companheira bandeja, agora vazia, contra o peito em busca de certa segurança, para controlar o frio que subia-lhe a espinha quando prestava atenção na forma como ele sorria para si. Parecia uma criança que ganhava um brinquedo novo.
— Nos encontramos de novo, Seonghwa. — as mãos nos bolsos traziam um quê de despreocupação que fazia o garçom indagar se ele não tinha um mínimo de embaraço. — Gostou?
— É bonito. — vislumbrou o céu em terra, parecia que a luz da Lua cortava as nuvens naquele ambiente totalmente fechado, abaixo da cidade, escondido e cerceado por paredes de concreto pesado.
— Não é a única coisa bonita por aqui. — ergueu as sobrancelhas e encarou o profundo das orbes escuras de Seonghwa, contendo um sorriso nos lábios que teimava em sair. — Não vou atrapalhar seu trabalho, apesar do estrago já estar feito, não é mesmo? — indicou as pessoas visivelmente alteradas ao redor deles.
— Eles não cansam. — deu de ombros. — Eu, por outro lado...
— Está perto de acabar, relaxa. Mas ainda podem acontecer umas paradas interessantes. Se diverte um pouco, aproveita que fiz essa sequência para você. — Hongjoong tocou o ombro direito do maior, afagando levemente antes de menear a cabeça e se misturar ao mar de corpos novamente.
Só então Hwa se deu conta de que, há algum tempo, grande parte das músicas que tocavam eram do seu agrado, de alguma forma. No começo do serviço estava dez vezes mais entediante. Se seu cérebro tivesse fios, eles estariam totalmente embolados e dando curto uns nos outros naquele momento.
Mental breakdown.
Error: Estamos sendo cortejados.
O filho dos Park não tinha saído de Jinju para cair na lábia de um estranho de cabelo azul. Seu foco devia ser única e exclusivamente o trabalho, principalmente considerando que recebera olhares incômodos de todo o tipo de gente desde que começou a circular pela boate. Um dos prazeres descartáveis oferecidos pela Crimson Skies. Lembrou-se das palavras que o homem que chamava a sra. Lee de “tia”, Kyungchul, usou para descrever o tipo de pessoa que procurava: “jovens, bonitos e que gostam de dinheiro”. Hongjoong provavelmente era um deles e o enxergava como um igual. Bem, infelizmente, para decepção do DJ, Seonghwa não estava interessado, ao contrário do que o coração acelerado e a garganta seca indicavam. Corações nunca foram confiáveis. Ajeitou as roupas, batendo a poeira que não existia nelas, pigarreou e seguiu de volta ao bar. A bandeja estava vazia e não tinha aguentado até ali o perrengue em que se metera para amolecer quando faltava pouco para se livrar daquela loucura. Se não fosse pelos pais, jamais teria aceitado a proposta.
— Garoto, dê mais um round e, quando voltar, suba para os camarotes. — o responsável pelo bar o abordou tal logo chegou para buscar mais bebidas.
— Tem camarote aqui? — questionou surpreso, olhando ao redor. Se os frequentadores da pista já eram filhinhos de papai endinheirados, não esperaria encontrar nos camarotes ninguém abaixo do prefeito de Seoul.
— Claro que tem, o serviço é à parte. — respondeu como se tivesse ouvido um enorme absurdo. Para o garoto do interior que nunca pôs os pés em uma casa noturna, nada era óbvio. A experiência que estava tendo na boate era assustadora na maior parte do tempo e o fizera questionar ainda mais a organização da sociedade dos que tinham pedigree.
— Mas por que eu?
— Pediram por você. Só vá.
Dar uma volta completa pela pista de dança pareceu demorar muito mais do que o normal, suas mãos começavam a suar, a dor nos pés apertados nos coturnos aumentou consideravelmente, até os braços estavam a ponto de recusarem-se a responder propriamente. Estava cansado como um burro de carga. O que queriam com ele nos camarotes? Deveriam querer vê-lo pelas costas. Ao retornar à área do bar, seu superior acrescentou mais alguns copos à bandeja, indicou uma porta praticamente imperceptível poucos metros à frente de onde estavam e pediu que Seonghwa seguisse escadas acima. Os degraus eram apertados em um corredor estreito que se bifurcava ao fim da subida. A aura carmesim característica da Crimson Skies deu lugar a uma confortável iluminação azul. Enquanto do lado de fora o carmim vinha do chão, no constrito da passagem estreita o azul vinha do alto. Stairway to Heaven? Que paraíso era esse onde sentia como se estivesse sendo vendido, negociado, escolhido como numa vitrine? Pela enésima vez desde que embarcara no ônibus em Jinju com destino a Seoul, Seonghwa respirou fundo, enchendo os pulmões de ar e as células de coragem, obrigando-se a ignorar sirenes berrando dentro de sua cabeça. Só vá.
No topo da escada havia uma pequena mesa de vidro à direita; sobre ela, um espelho limpo à perfeição onde o moreno pôde, finalmente, observar seu semblante cansado. As feições bem marcadas carregavam o peso da abstinência de sono, a pouca maquiagem que aplicara para parecer mais “descolado” estava borrada, a jaqueta de couro tinha todo tipo de respingo seco graças à incapacidade dos “clientes” de manter os dedos fechados ao redor dos copos de bebida. Estava um caco.
O corredor detrás de si era extenso, com muitas portas; todas fechadas. Seguiu como quem pisa em ovos, esperando que alguma delas se abrisse para que soubesse onde ir. O som ensurdecedor que tomava conta da pista não chegava até ali, o caminho era perfeitamente silencioso, nem mesmo seus passos no carpete escuro faziam barulho. Decidiu bater de porta em porta; já que era para servir bebidas, as ofereceria em todos os locais possíveis. Na primeira não obteve resposta, bateu três vezes, girou a maçaneta e ela não cedeu; estava trancada. Assim que parou em frente à seguinte, antes mesmo de erguer a mão para bater, ouviu seu nome ser chamado do outro lado da madeira.
— Entre, Seonghwa.
Apesar de abafado, a pronúncia do seu nome não deixava dúvidas que era a ele a quem o dono da voz se referia. Girou a maçaneta vagarosamente, esticando-se para espiar pela fresta que se abria.
Índigo. Pelo menos um ou dois tons mais escuro que o azul do corredor, dentro do camarote tudo era índigo, fracamente iluminado, uma leve penumbra na qual era possível ver pouco além dos contornos de um sofá e uma pessoa sentada nele, de costas para a porta. A música do andar de baixo preenchia o ambiente num volume agradável; a sequência que Hongjoong disse ter feito para ele. O mesmo Hongjoong que estava parado na sua frente, retirando a bandeja de suas mãos e fechando a porta atrás de si. Diferentemente das outras vezes em que se esbarraram, ele não sustentava um sorriso, mantinha-se sério, quieto, sustentando o olhar firmemente na direção de Seonghwa.
— Não vai precisar da bandeja aqui, relaxa. — apoiou-a em uma pequena mesa de canto, voltando para empurrar Hwa, que seguia estático no mesmo lugar, em direção ao sofá de couro e o fez sentar. — O espaço é todo seu, te chamei aqui para que você descanse e ninguém precisa saber disso. Seu serviço agora é comigo.
Então, no momento em que um dos refletores da pista de dança lançou luz sobre o enorme vidro que dava aos ocupantes do camarote visão de toda a boate, Seonghwa viu que ele estava mudado. A calça capri dera lugar a calças de couro; uma blusa de gola alta adornada por cordões de prata onde antes havia uma t-shirt de gola V; piercings em ambas as orelhas. As roupas pretas faziam o contraste perfeito para os fios azuis ligeiramente úmidos, libertos da touca que os prendia. Ótimo, Hongjoong era um riquinho como os demais, brincando de se compadecer das dores do vira-lata todo amarrotado na sua frente enquanto estava metido num disfarce de ferrado que precisava trabalhar para ter o que comer. O desgosto era nítido no rosto do moreno.
— Se você quiser, tem um banheiro e toalhas aqui, pode tomar banho antes de ir embora. — apontou para um dos cantos do camarote.
— É o quê? — perguntou incrédulo. Se recusava a acreditar no que ouvia. Como tinha sido idiota em pensar, por um instante sequer, que alguém naquele lugar não seria escroto? Cortejo o cacete. Que tipo de pessoa Hongjoong achava que ele era?
— Fica à vontade, somos só nós dois. Não precisa ter vergonha. — de pé atrás do sofá, repetiu o gesto que fizera na pista e afagou o ombro de Seonghwa, dessa vez estendendo o toque para mais próximo do pescoço do moreno. — Quer alguma coisa para comer?
— Não quero nada, Hongjoong. Muito menos vindo de você. Vou voltar para o trabalho. — levantou-se de supetão, pisando firme até a porta.
— O que houve, Hwa? — estranhou o comportamento do rapaz e foi atrás dele.
— Hwa é o caralho! — segurou firmemente a maçaneta e girou-a repetidas vezes até constatar que a porta estava trancada. — Me dá a chave! — estendeu a mão. — Abre essa merda de porta agora! Se acha que eu sou um qualquer, está muito enganado.
— Do que você está falando, cara?
— Abre a porta. — pontuou cada palavra. — Eu não vou ficar nem mais um segundo aqui. Está pensando que eu sou o quê? Não é porque te olhei uma vez ou duas que estou à venda.
— Te dou a chave, tudo bem. — retirou o objeto do bolso. — Só me diz primeiro o que está acontecendo, por favor.
Seonghwa cogitou dar um soco no nariz do DJ e sair correndo. Considerando que era uns cinco centímetros maior que ele, a probabilidade de sucesso era relativamente alta, mas logo mudou de ideia. Não, não fugiria sem antes colocar aquele bosta no devido lugar. Era uma questão de honra. Hora de respirar fundo de novo.
— Você não me conhece, nunca me viu na vida, só esbarrou comigo duas vezes e pronto. — disse com toda a calma que ainda conseguia reunir, porém sem soltar a bendita maçaneta — O que te leva a crer que me trazer para um camarote praticamente sem meu conhecimento, porque me disseram que era trabalho, te dá o direito de se aproveitar de mim? Não é porque você tem grana e eu estou aqui ralando a noite toda que...
— Espera. De onde você tirou que eu tenho grana, Hwa?
— Não me chama de Hwa. — rosnou.
— Desculpa. Mas, sério, que papo é esse? Estou terminando o Ensino Médio. — os olhos de Seonghwa esbugalharam ao ouvir que eles tinham praticamente a mesma idade. — A Crimson é meu ganha-pão também, todo meu dinheiro vem daqui e não é muito. Cobrei um favor que estavam me devendo só para conseguir essa chave — depositou-a na mão do moreno —, para te dar um momento de tranquilidade porque vi que você estava exausto e não tinha motivo para continuar rodando aquela pista por mais de uma hora se tem outros garçons para cobrir seu lugar.
— E o que você ganha com isso?
— Nada! Realmente eu não sei sua história, não faço ideia de onde você tenha vindo ou qual seja seu sobrenome, Seonghwa. — frisou o nome do outro. — Tudo que eu sei é que desde o começo da noite não tirei os olhos de você e foi recíproco. Botei essa festa inteira para dançar as músicas que percebi que você gostava; que se dane se são as melhores ou não. Cacete, você parece um anjo de tão bonito! Só queria arrancar um sorriso seu. Baixa a guarda, cara. Estou arrumado para ir embora, se você preferir posso te deixar sozinho aqui. Ninguém virá te incomodar.
Fechem as saídas, temos uma emergência. O garoto de Jinju recebeu cada uma das palavras de Hongjoong como um beliscão dolorido. Estava tão assustado desde que pusera os pés na Crimson Skies que jamais cogitaria que alguém ali pudesse demonstrar qualquer humanidade para consigo.
— Não precisa. Obrigado pela consideração e tal, mas não posso aceitar esse tipo de coisa. Peço perdão pelo mal-entendido. Me deixe ir embora, OK?
— A chave está na sua mão, Seonghwa. Pode ir quando quiser.
O brilho dos olhos negros do DJ se apagou tão drasticamente quanto a queda de energia em um bairro inteiro. O mais completo breu. Merda, tinha estragado tudo.
— É... Vou indo sim. É tudo muito novo para mim.
— Fica tranquilo. — Hongjoong esboçou um sorriso ladino visivelmente desconfortável. — De qualquer forma, foi bom te conhecer. Espero que nos esbarremos outras vezes por aí.
Antes de encaixar a chave na fechadura, olhou por cima do ombro, acompanhando Hongjoong se jogar no sofá onde estava sentado minutos antes.
Merda.
Tinha decepcionado a única pessoa que o tratou com consideração por medo e um orgulho ridículo.
Seonghwa fechou os olhos e reconsiderou seus próximos passos. A capital era assustadora para quem havia crescido no interior. Ali, sentia-se infinitamente pequeno na imensidão das luzes. Pequeno também dentro de si mesmo. Havia um mundo inteiro ao qual precisava dar vazão mais cedo ou mais tarde. Caso contrário, sufocaria. O medo é um sentimento paralisador. Ele tira seu foco e te impede de fazer qualquer coisa diferente de encarar o vazio, seja ele um abismo, uma porta ou a si mesmo. Há quanto tempo vinha se escondendo?
— Hongjoong?
— Hm?
— Obrigado. — sorriu para o vazio.
— Você merece ser feliz, Seonghwa. Nunca deixe que te convençam do contrário.
Encaixou a chave, destrancou a porta, abriu-a e no instante seguinte tornou a trancá-la. Rápido e preciso, pois do outro lado havia apenas o corredor vazio, iluminado pela penumbra azulada que o lembrava do céu.
— Ele saiu. — disse firme, batendo a porta.
— Quem? — o DJ sobressaltou-se, sentando no sofá, surpreso pelo garçom ainda estar ali.
— O medo. O expulsei daqui. Lá fora é outra história, mas pelo menos aqui dentro quero me sentir leve. — caminhou na direção do outro, se sentando ao seu lado.
— Não estou entendendo.
— Nem eu, Hongjoong. Simplesmente decidi que preciso fazer alguma coisa por mim mesmo. — deu de ombros e mexeu no cabelo, dessa vez buscando afastar a franja dos olhos — Muito prazer, sou Park Seonghwa. — estendeu a mão para que Hongjoong o cumprimentasse.
O DJ segurou sua mão, porém ao invés de apertá-la, entrelaçou seus dedos aos do moreno. O olhar fixo no fundo das orbes negras desajeitava o garoto do interior, Hwa sentia-se desnudo.
— Por que me olha assim? — perguntou em tom baixo.
— Arisco e suave, amargo e doce, forte e sutil, sim e não. Completamente imprevisível. Quem é você?
— Não sei... — suspirou.
Embora o delicado toque de Hongjoong fosse além do que estava preparado naquele momento, Seonghwa sentia-se bem. De frente para a pista de dança, observou as luzes cruzarem o vidro e tocarem sua pele como o DJ fazia, colorindo-os em tons de carmim, branco e azul. Estava seguro ali. Naquele sofá, ninguém o repreenderia ou entortaria a cara para si.
A única coisa que talvez precisasse esconder naquela sala era seu sotaque.
— Você viu o que aconteceu mais cedo no corredor. — afirmou.
— Vi. — sem virar-se para o azulado, Hwa seguia atento à brincadeira dos flashes luminosos e à pulsação da música que adentrava o recinto mais baixa e agradavelmente do que sabia estar no andar de baixo.
— E gostou.
Não era uma pergunta. Hongjoong, de alguma forma, lera o fundo de sua alma naqueles poucos segundos em que se encararam antes que a porta de acesso dos staffs voltasse a se fechar e viu a faísca que havia despertado.
Não tinha porquê responder se era óbvio o que diria.
— Eu te quero, Seonghwa. Desde que coloquei meus olhos em você, sabia que precisava te ter para mim nem que fosse por alguns segundos.
— Eh...
— Você parece um anjo de tão bonito. Puta merda.
Sem jeito, o filho dos Park esboçou um sorriso tímido voltado ao chão.
— E se eu tivesse ido embora?
— Então eu seguiria com a memória dos olhares que trocamos.
Devagarinho, Hongjoong levou a mão à face enrubescida – talvez por efeito das luzes, talvez por uma culpa que adoraria carregar – e tocou Seonghwa com o cuidado de quem encosta em uma pintura de milhões de dólares, virando o rosto do moreno para si. Com a mesma prudência aproximou seus corpos, reduzindo a já curta distância a míseros centímetros, tão próximo que o perfume dele o envolvia.
— Não fuja, gatinho.
Tomar os lábios de Seonghwa foi como descer uma montanha-russa no primeiro assento, a adrenalina percorria suas veias. De início, um toque curto entre as bocas que tanto se buscaram, pouco depois, o encontro das línguas afoitas e curiosas pelo calor que trocavam. Seonghwa tremia, as mãos de Hongjoong passeavam pelo tronco esguio e sentiam o chacoalhar que o acometia. Hwa tomou coragem para abrir os olhos segundos antes do beijo ser partido, dando de encontro com o DJ totalmente entorpecido e deleitado com a pequena intimidade que compartilhavam.
Tudo era azul como os fios de cabelo úmidos que colaram-se à testa de Hongjoong. Branco, como os dentes que ele mostrava em um sorriso tranquilo e confiante. Vermelho, como os lábios que o chamavam de volta.
Talvez, apenas talvez, algo além do nervosismo o estivesse fazendo tremer.
Desejo.
— Seonghwa. — chamou-o em voz baixa, esperando que o ressoar do coração martelando em seu peito permitisse que o outro o escutasse.
— Obrigado. — o garçom o interrompeu.
— Pelo quê?
Seonghwa inclinou-se sobre o corpo de Hongjoong quase como se em câmera lenta, com os nós dos dedos da mão direita esbranquiçados por prender-se ao gola da camisa do DJ enquanto deitava-se sobre ele no sofá.
Algumas perguntas não precisam de respostas desde que as ações falem por si mesmas. Palavras são desnecessárias quando os olhos se conectam e o mundo parece se resumir às peles que se roçam num abraço desajeitado e apressado.
Um beijo se transformou em dois, três, quatro, e o ar começou a faltar. Apesar do ar-condicionado, o camarote estava abafado como um forno. Essa foi a constatação à qual Hongjoong chegou para justificar despir o tronco de Seonghwa, jogando a jaqueta de couro e a camisa para um canto qualquer. Por mais fraca que fosse a iluminação, a silhueta do homem à sua frente era perfeitamente clara e, por Deus, valia cada minuto que dedicou a tentar conquistá-lo. Passou um dos braços pela cintura fina e tomou impulso para virá-lo da melhor maneira que pôde sem afastar seus corpos; não podia correr o risco do moreno se arrepender ou mudar de ideia e deixá-lo ali com a boca salivando de desejo e uma incômoda ereção entre as pernas, principalmente porque era nítido que o mesmo ocorria com ele. Muito, muito nítido sob o jeans. “Obrigado, Deus.”, pensou. Não sabia quanto tempo duraria, mas jurou aos céus aproveitar cada instante.
Seonghwa tateou a barra da blusa de gola alta do DJ, deslizando a mão direita para dentro desta, procurando por algo que o provasse não se tratar de mais um de seus sonhos recorrentes, nos quais havia uma pessoa cujo rosto não podia ver em posição muito similar à qual Hongjoong se encontrava, sentado em seu colo, com o peso apertando-lhe o baixo ventre. Reconhecia as sensações que invadiam seu corpo e sua mente, mesmo que nunca as tivesse provado além das ilusões de seu subconsciente. Nunca tinha imaginado que o tal alguém que as proporcionaria seria ele. Tatear a pele quente de Hongjoong por baixo da blusa trazia-o para a realidade; a face que o encarava na parca luz era masculina e sustentava uma expressão deliciosamente convidativa. Hwa não sentia vergonha do tronco desnudo, embora sempre fosse reservado quanto à exposição; não naquele momento. Sorriu quando Hongjoong inclinou-se para beijá-lo novamente, fechou os olhos e permitiu que seu senso se desligasse enquanto estivesse fechado naquele camarote. Espalmou a mão esquerda na nuca do menor, colando ainda mais suas bocas e ali permaneceu. A destra explorava a barriga e as costas do DJ, enquanto os dedos da esquerda enroscavam-se em fios azuis quase na mesma intensidade que as línguas o faziam. Não pensou na condição que acometia sua família, nem no que seus pais pensariam, tampouco se estava fazendo a coisa certa. Hongjoong movia os quadris lentamente contra o volume em sua calça, espalhando descargas elétricas ritmadas por todo seu corpo e isso era tudo o que interessava.
Batidas curtas na porta os trouxeram de volta ao mundo real, separando as bocas afoitas e obrigando-os a voltar a respirar. Hongjoong olhou de um lado para o outro, esticou o pescoço para visualizar a pista de dança e proferiu:
— Precisamos ir.
— Ah... — Hwa sequer teve tempo de controlar o tom decepcionado que carregou sua voz.
— Desculpa, gatinho. — acariciou a bochecha de Seonghwa. — Podemos continuar em outra ocasião. — desceu do colo do rapaz, arrumou a camisa amassada e ajudou-o a sentar-se corretamente.
— Pensei que tivesse pegado o camarote para você, tomei um susto.
— É, peguei. Só não informei ao dono da boate. — riu baixo. — É um favor que cobrei a um parceiro aqui de dentro, mas nada oficial. Temos de sair antes que a equipe de limpeza suba para limpar os camarotes que estão vazios. Ou deveriam estar. — piscou.
— Tudo bem, eu entendo. — se levantou buscando pela camisa e pela jaqueta ora perdidas.
— Hwa. — chamou com certa cautela, receoso de como o garçom fosse reagir ao apelido.
— Hm? — resmungou enquanto vestia as roupas.
— Foi foda. Sério, mesmo que não tenhamos tido muito tempo, foi bom demais. Espero que tenha sido para você também.
— Foi sim, acho que precisava disso. — riu sem graça.
Se perdeu em pensamentos que finalmente podiam voltar a ocupar seus neurônios além da excitação, enchendo a cabeça de preocupações que sabia não poder evitar por muito mais. Um flash de luz branca atingiu seus olhos, trazendo-o de volta ao espaço que dividia com um Hongjoong que estava perigosamente próximo.
— Me dá mais um beijo antes de irmos? — o azulado perguntou, já passando o braço pela cintura do rapaz, trazendo-o para perto.
O que viveu nos minutos anteriores poderia facilmente ter sido apenas mais uma ilusão criada por sua mente exausta da rotina penosa que vivia. Por meses, vinha ignorando as vontades que sentia, varrendo para baixo do tapete pensamentos que julgava impróprios, esforçando-se para ser o que esperavam que fosse e não mais um fardo para a já tão sofrida família Park. Talvez quando cruzasse a porta a magia acabasse, como a Cinderela ao badalar da meia-noite, e voltasse a ser o gato-borralheiro de Jinju.
Juntou sua boca à do DJ com pressa. Mais que isso, com necessidade. A sua meia-noite chegaria, os sinos a anunciavam, e não fazia ideia de quando poderia se dar ao luxo de viver fora da armadura que cobria sua persona novamente. Guardaria o sabor do beijo de Hongjoong como quem guarda o maior dos segredos, para servir de companhia às chaves dos cofres mentais que o rapaz de cabelo azul invadiu com suas carícias.
— Você sai primeiro, eu vou logo depois, OK? — disse ao partir o beijo.
— Certo.
Antes que Seonghwa pudesse se adiantar em direção à saída, foi novamente puxado para o abraço do menor, que depositou um beijo na curva de seu pescoço. Sentiu as mãos pequenas dele escorregarem para a cintura, descendo até os quadris e acomodando-se no desenho redondo da bunda de um jeito inocentemente mal-intencionado, caso fosse possível que essa combinação existisse além das criações de Hongjoong.
— Meu número. — ele disse, deixando algo no bolso traseiro da calça preta de Seonghwa. — Me manda uma mensagem, liga, o que for melhor para você. Quero te ver de novo, Hwa. Nem que seja na semana que vem aqui na Crimson.
Segurando o rosto pequeno de feições bem-feitas de Hongjoong, Seonghwa depositou um último selar nos lábios ainda avermelhados antes de proferir a decisão de tomara desde que pisou na boate, deixando o DJ boquiaberto:
— Não volto aqui nunca mais, Hongjoong. Esse não é o meu lugar, não é o meu mundo.
— Nem por mim?
— Nem por você, por mais que tenha gostado do que tivemos. — foi se afastando vagarosamente do menor, sem que ele percebesse de forma brusca que seus corpos esfriavam com a distância. — Eu não pertenço a isso. — indicou o ambiente que o cercava. — Sou um garoto do interior que está aqui por um golpe de má-sorte. O dinheiro não paga as horas de aflição que vivi. Isso é o inferno.
— Então como vou te ver de novo? — o azulado perguntou apreensivo.
— Eu te ligo. Se quiser conhecer Jinju, é só falar. — estava parado com a mão na maçaneta novamente, na mesma posição de defesa que assumira antes de se permitir ceder ao desejo que pulsava em suas veias.
— Seonghwa! — chamou pelo outro, ainda pasmo pela repentina mudança de atitude do moreno. Devia saber que de Park Seonghwa se esperava o inesperado depois de terem brincado de gato e rato a noite toda, porém não contava que suas expectativas fossem quebradas de tal maneira. — Não foge, cara.
— Não estou fugindo. Não de você, talvez de mim mesmo. Cada minuto nessa multidão, servindo de brinquedinho para gente rica, me dá asco. Gostaria que tivéssemos nos conhecido em outro lugar. Você e sua música pertencem à vida noturna, eu não. — suspirou ao girar a maçaneta e abrir a porta — Você trouxe um pouco de luz a um Seonghwa que vivia no escuro, não tenho como te agradecer. Vou indo na frente, ainda preciso pegar minha mochila e o ônibus para minha cidade sai cedo. Assim que puder, entro em contato contigo, isso não precisa ser uma despedida.
— Tudo bem, obrigado por ser honesto. Você é mesmo um gatinho arisco. — riu, por mais que não houvesse humor em sua voz.
— Eu quem agradeço, Hongjoong. Por tudo. Nos vemos em breve.
Ao fechar a porta, Seonghwa se viu tremendo dos pés à cabeça e toda resposta que recebia de seu corpo o fazia querer correr e fugir dali o mais rápido possível. Sozinho no corredor azul, azul como os cabelos de Hongjoong, com o cheiro dele preso às suas roupas, com as memórias e as sensações dos toques grudados em sua pele, Hwa sabia que tinha de sair dali depressa, antes que tudo isso fosse maculado pela frustração de passar a noite naquela pocilga de luxo. Todo o pavor de ainda estar no subsolo, sob o teto da Crimson Skies o atingiu em cheio. Que se danasse a bandeja esquecida no camarote, que fosse à merda a prestação de contas do fechamento do caixa do bar, que tudo aquilo fosse para o inferno. Desceu as escadas quase a galope, deixando o pin e o leitor de QR code que carregava consigo nas mãos do gerente do bar de qualquer jeito antes de rumar para o vestiário e arrancar a mochila do armário com agilidade. Rezou para que os dados bancários que dera antes de começar a noite servissem de algo e que recebesse pelo serviço prestado a tanto custo, mesmo que estivesse deixando o local antes de ser oficialmente dispensado. Não deixou de apertar o passo e apressar-se até que saísse dali. Somente quando alcançou o ponto de ônibus mais próximo se permitiu respirar. Não tinha mais volta, nem à Crimson Skies nem aos braços de Hongjoong, não por hora.
Entrou no ônibus que o levaria à rodoviária com o coração palpitando e apertado. Se afastar da boate significava também se afastar dele, o que era o melhor a fazer no momento. Caso tivesse se prolongado, talvez sua mãe recebesse uma ligação com uma desculpa esfarrapada qualquer que justificasse permanecer na capital por mais algumas horas e acabasse por acordar na cama de Hongjoong, seja lá onde ele morasse. Tinha certeza que as carícias que trocaram eram mais que suficientes para justificar a si próprio que precisava de mais daquela droga chamada desejo que ele injetava em suas veias quando se beijavam. Ser escravo das paixões era uma coisa que fora orientado a nunca ser, por isso tinha de partir. Que trocassem mensagens por um tempo até que encontrasse uma forma de dizer aos seus pais que precisava desviar parte do pouco dinheiro que tinham para comprar passagens para voltar a Seoul, ou que o DJ se deslocasse até o interior do país e só precisasse contar à família Park que teriam uma boca a mais para alimentar por um final de semana. Um amigo de Seonghwa que viera da capital para visitá-lo. Nem amigo, nem alguém com quem devesse se envolver por muitas questões que não se via pronto para encarar enquanto tudo que dava conta de fazer era sobreviver a um dia após o outro, tendo de conviver com o Seonghwa do espelho que julgava-o cheio de mágoas. Hongjoong trazia à superfície tudo que o filho dos Park fazia esforço para domar e manter sob controle, para se encaixar em padrões que o machucavam, para não ser mais um motivo de preocupação e problemas para sua família tão fragilizada. A noite rendera o dinheiro e um respiro aliviado ao alter ego do espelho, que nunca tinha visto a superfície da vida real, sempre preso nos contos de fadas que Hwa insistia em criar para alimentá-lo com afagos imaginários.
No curtíssimo espaço entre descer do ônibus verde e embarcar no veículo que o levaria de volta à pequena Jinju, Seonghwa tateou o bolso da calça em busca da prova que o tempo que passou no camarote não foram delírios de um cérebro frustrado e cansado. Lá estava, não um cartão de visitas bonito como imaginava, mas um recorte numa folha simples de papel ofício com “Kim Hongjoong, DJ” escrito em fonte Comic Sans, seguido por um número de telefone. Não pôde – e nem quis – evitar o riso que o acometeu. Realmente eram ainda adolescentes que teimam em se intitular adultos quando nem davam conta de pagar por um cartão de visitas profissional. Por precaução, não levara seu celular já gasto na viagem com receio de perdê-lo, por isso somente poderia salvar o número do rapaz quando chegasse em casa e assim o faria. Avisaria que chegou bem, agradeceria pela gentileza e aguardaria o desenrolar dos dias.
O ônibus com destino a Jinju mal encostara na baia de embarque e a fila se formou, deixando o exausto Park Seonghwa por último, sem forças para lutar por um lugar mais à frente que o fizesse embarcar mais rapidamente. O Sol nascia no horizonte, ainda distante, e trazia consigo pesadas nuvens de chuva, arrastadas por um vento insistentemente forte. Mesmo que tentasse manter a franja sobre os olhos ou o cabelo com um resto de dignidade que o diferenciasse de uma calopsita, depois de passar a noite em claro o rapaz não se importava com mais nada. Que ficasse descabelado, só queria sentar e cochilar até chegar em casa. Estava quase na sua vez, graças aos céus. Jogou a mochila para frente para conferir se tudo que tinha levado realmente estava ali, enfiou o bilhete da passagem de ônibus no bolso de qualquer jeito e aguardou. Provavelmente estava com cara — e talvez cheiro — de quem passou a madrugada na farra. Saíra tão apressado da Crimson que sequer trocara a roupa suja de bebida pelas mais confortáveis com as quais tinha chegado à cidade. Se a maquiagem de seus olhos estava borrada antes de subir para o segundo andar, o que dizer da condição dela depois do “evento” Kim Hongjoong? Estava um caco. Não era de se espantar que tivessem deixado-o por último na fila. Pelo vidro escuro da porta do ônibus pôde ver seu reflexo borrado, o Seonghwa do espelho. Não sabia dizer se ele parecia bem ou se tinha a mesma expressão entre blasé e medo que comumente estampava seus olhos pretos porque a distância não permitia que visse os detalhes, contudo surpreendeu-se ao se ver tocando o pescoço no mesmo lugar em que Hongjoong deixara o último beijo e afagando o local com carinho. Às vezes o Seonghwa do espelho impunha suas vontades sobre a versão materializada em momentos de descuido. Concentrou-se para que não fizesse isso novamente, principalmente na frente dos pais. Oh, merda. Deveria estar estampado na sua testa o que acontecera. Talvez o cheiro de bebida não fosse o motivo pelo qual todos se afastaram, mas sim o de Hongjoong. O cheiro de um homem misturado ao de outro, prova concreta de que ambos estavam afundados em perdição mundana.
Pare, Seonghwa. Quanta besteira. Nem a ventania que o cercava era capaz de calar a boca dos seus mecanismos de autossabotagem? Esforçou-se para se permitir atrelar à imagem do DJ as coisas boas que ele o tinha proporcionado e, assim, o visse com afeição, não como uma ameaça. Sem saber, Hongjoong tinha desfeito amarras que Seonghwa julgava serem nós cegos. Era um caminho sem volta.
— Ei, garoto! Vai ficar parado aí? Vou fechar a porta. — o motorista ralhou.
— Desculpa, moço. — sacudiu a cabeça para voltar ao mundo real. Puxou a passagem do bolso apressadamente e entregou-a ao homem. — Aqui, me desculpe.
— Entra logo. Esses jovens...
Rapidamente o ônibus deixou a rodoviária, mal dando tempo para que Seonghwa acomodasse a mochila no bagageiro e se sentasse. As rodas apressadas levantaram poeira e entregaram à ventania um pedaço de papel ligeiramente amassado que tinha ficado pelo chão, caído pelo descuido de um certo gatinho arisco de Jinju.
“Kim Hongjoong, DJ”




FIM.



Nota da autora: Oi, que bom que você chegou até aqui! Essa foi uma das histórias que mais gostei de escrever, talvez por sempre ter escrito BL, talvez por amar tanto esses dois da forma como eles nasceram que quero guardá-los num potinho. Recomendo a leitura subsequente de MV: A Million Pieces, pois se trata de um spin-off. Espero que tenha gostado. Não fique triste com o fim repentino, vamos vê-los mais vezes. Te espero para surtos nos comentários.
Sempre sua,
Nimuë.



Nota da beta: Olha, depois a autora é ameaçada e não sabe porquê. Não se acaba uma fic assim! Como pode?
Bom, o Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


comments powered by Disqus