Capítulo Único
saiu apressado do bloco dos alojamentos, estava atrasado e isso era algo que detestava. Apesar da pressa, procurava admirar o céu, em meio à selva de pedra e concreto que era aquele quartel, o céu parecia a única coisa sem o toque humano, que tornava tudo mecânico e industrial. O céu apenas parecia intocado, afinal, estava repleto de naves, satélites, estações e ônibus espaciais. O trânsito que antes era praticamente restrito as estradas, agora dominava o espaço. Muitos exoplanetas foram colonizados e a cada dia, mais exploradores eram enviados a novos e distantes sistemas planetários.
Em seu trabalho, foram poucas as vezes que havia deixado o sistema solar. E em todas às vezes uma das coisas de que mais sentia falta era do céu tão azul avistado da Terra. Em contrapartida, quando estava na Terra sentia falta da quietude de alguns exoplanetas. A Terra estava superlotada com pessoas vivendo amontoadas em prédios habitacionais de trinta andares que mais pareciam favelas verticais. A poluição sonora e visual eram parte do dia a dia. Mas mesmo se a Terra não fosse essa favela vertical, provavelmente ainda teria que dividir seu cubículo com mais cinco soldados. Apenas um dos fatores da “feliz” vida de alguém da infantaria móvel.
Após alguns minutos de caminhada, chegou ao enorme prédio de laboratórios que fazia parte do Departamento de Ciência e Tecnologia. No horário de almoço ia sempre até lá esperar a namorada. Esforçava-se para almoçar com ela na cidade algumas vezes da semana, pois precisava aproveitar o tempo que podiam ficar juntos. Quando estava fora do planeta, ficavam semanas sem se ver, e quando estava na Terra, apesar de não ter batalhas para lutar e nem colônias para ajudar a conquistar, ele tinha que enfrentar 14 horas diárias de treinamento.
- Desculpe o atraso. – disse caminhando apressada na direção do namorado.
- Sem problemas. Acabei de chegar. – a beijou.
- Eu odeio esses banhos coletivos. – afirmou ao notar que os cabelos dele estavam molhados. – Saber que todas essas mulheres estão te vendo nu todos os dias não é nem um pouco agradável.
- Eu sou um deus grego esculpido. Não pode privar as mulheres disso. – apontou para si e levou um tapa no braço.
- Eu realmente quero que um satélite te esmague. – resmungou cruzando os braços. – Só um aviso. – ela se virou apontando o dedo para ele. – Eu não esqueço nenhuma das besteiras que você fala.
- Isso quer dizer que eu vou pagar por isso depois? – perguntou abaixando o dedo dela e a puxando para perto.
- Sim, você vai. – ameaçou erguendo uma sobrancelha fazendo o namorado rir e então passaram a caminhar lado a lado.
- Eu ficaria muito puto se você tivesse que tomar banho na frente daqueles cientistas tarados. – quebrou o silêncio após alguns segundos de reflexão. – Mesmo quando você está com aquela pesada roupa de proteção, o Boyle te olha como se você fosse um pedaço de carne.
- Você não precisa se preocupar com isso. Banhos coletivos são apenas para ralé da infantaria móvel. – brincou dando um tapinha no rosto dele.
- Ralé? – questionou indignado. – Eu salvei seu traseiro mais vezes do que posso contar.
- Não salvou não. Eu que salvei o seu do NT3.
- Que porra é essa? – ele ergueu a sobrancelha esquerda.
- Exatamente. – bateu no peito dele e então se aproximou sussurrando: – Isso é um vírus terrivelmente mortal que eu descobri o soro antes que você soubesse da existência dele. De nada. – ela piscou e ele gargalhou.
- Obrigado por salvar minha vida. – falou forçando uma voz emotiva. – E obrigada por ser a melhor namorada, maior gênio da ciência e a pessoa mais soberba do sistema solar.
- De nada. – riu e abraçou a cintura dele. – Tem folga essa semana?
- Amanhã.
- A minha é no sábado. Eu vou ter que persuadir o Stockes a trocar comigo. – roeu a unha pensativa.
- Persuadir? – questionou franzindo a testa.
- Persuadir, chantagear. Como quiser chamar. – ela rolou os olhos.
- Como vai chantageá-lo? – parou de andar e encarou a namorada.
- Eu sou ótima em descobrir segredos. E em usá-los quando necessário. – deu de ombros abrindo um largo sorriso.
- Você é muito malvada. Eu namoro um projeto de gênio do mal. – ele sussurrou fingindo estar assustado. – Então, qual o segredo do Stockes? – perguntou quando voltaram a andar.
- Você é uma velha fofoqueira. – acusou o empurrando de leve.
- Você que fica investigando a vida alheia. Está me contaminando.
- Eu sou uma cientista. Investigação faz parte de mim. – ele abraçou a cintura dela puxando a para um beijo.
- ? – um oficial chegou os interrompendo e prestou continência. – Me desculpem a interrupção. Aqui. – entregou um envelope para . – Você precisa se apresentar no QG em duas horas. – o oficial prestou continência e se afastou.
- O que é? – questionou curiosa.
- Não tenho a mínima ideia. – afirmou enquanto abria o envelope. leu o conteúdo e ficou estático observando o papel. Não sabia como reagir.
- O que foi, ? – perguntou preocupada.
- Eu fui aceito no programa. – ele respondeu ainda encarando o papel.
- Que programa? – ele a encarou e então ela entendeu. – Exploração espacial.
- Eu vou ter minha própria nave e vou conhecer sistemas onde nenhum homem esteve. É a quinta vez que eu tento. Já tinha perdido as esperanças de conseguir entrar. – falou rápido quase embolando as palavras.
- Eu sei. – ela suspirou. Estava surpresa e desapontada, mas ao mesmo tempo tentava ficar feliz por ele.
- Eu não posso ficar. – se apressou em dizer segurando os braços dela e encarando seus olhos onde podia ver o desapontamento. – Eu... Eu sinto muito, mas eu preciso isso ir. Eu sempre quis isso.
- Eu sei. – repetiu. Não sabia direito como reagir.
- ...
- Eu não vou te pedir pra ficar. – afirmou tocando o rosto dele. – Eu não vou interferir nisso. É uma decisão unicamente sua. – ele então beijou a palma da mão dela. - Quando tem que embarcar?
- Domingo. Eu tenho que me apresentar nos planetas centrais daqui a 45 dias.
- Ok, então nós temos quatro dias para nos despedirmos. Aproveitar antes que acabe. – ela falou sem encará-lo tentando segurar as lágrimas. – Pelo menos vamos passar o natal juntos.
- Não significa que a gente precise terminar. – contornou o rosto dela com o polegar sentindo um aperto no peito.
- Você vai ficar anos fora. Não são meses, são anos. Uma missão atrás da outra. É melhor terminar agora... do que fazer isso daqui alguns meses quando estivermos frustrados. – limpou rapidamente uma teimosa lágrima que rolou até sua bochecha.
- , eu não estava esperando por isso. Como eu disse, eu já tinha perdido as esperanças. Achei que passaria o resto da vida na infantaria.
- Você não vai passar o resto da vida na infantaria. – segurou o rosto dele entre as mãos. – Você vai explorar novos mundos, pesquisar novas vidas e civilizações... Audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve. – ela repetiu as palavras da há muito tempo finada série Star Trek. – sorriu e a abraçou. – Você devia ir. Ligar para sua família e avisar os seus amigos.
- E o nosso almoço? – questionou após beijar o topo da cabeça dela.
- Almoçamos amanhã. Você tem muita coisa pra resolver e eu também. Estou fazendo testes para uma nova vacina. – no momento ela queria sumir dali. Não queria desabar na frente dele.
- ... Eu te amo. – ele apertou o abraço.
- Eu também te amo. Vai ser difícil ficar longe de você. Tanto tempo sem te ver. – ela suspirou. – Mas eu estou feliz. Feliz por você estar realizando seu sonho. – separou o abraço e a beijou.
***
Quatro anos depois...
Missão de exploração dos seis planetas que orbitam a estrela Kaly
Dia 187
entrou na nave e assim que a porta se fechou, retirou seu traje protetor e colocou de volta no suporte.
- Boa noite, Grace.
- Boa noite, comandante. – a voz feminina da inteligência artificial que controlava a nave respondeu. – Como foi o 33º dia no 6º planeta?
- Exatamente como ontem. As leituras continuam as mesmas. O ambiente é estável. Sem radiação, sem instabilidade tectônica ou formas de vida hostis. Trouxe mais algumas formas de vida para que você possa analisar. – informou caminhando na direção do laboratório. – Vou registrar os dados que coletei no diário de bordo e acredito que ainda hoje receberemos ordens para voltar aos planetas centrais.
- Sim, capitão. Coloque as formas de vida nos compartimentos para que eu possa começar agora mesmo.
saiu do laboratório e foi até a ponte de comando, a partir daí seguiu a rotina solitária que repetia todos os dias que passava naquela nave: fez os registros no diário de bordo, se alimentou, leu um pouco e foi dormir. Foi acordado apenas três horas depois.
- O que foi, Grace? Algum problema na nave? – indagou já pulando da cama.
- Não, apenas precisava avisá-lo que chegaram ordens da Central. Já podemos voltar aos planetas centrais.
- Ok. Pode traçar a rota. – ordenou sentando na cama – Precisa de mim para mais alguma coisa?
- Não, senhor. Pode voltar a dormir.
***
A viagem duraria dois meses, e durante os dias que passavam, repetia sua rotina solitária. Evitava pensar no que tinha deixado para trás na Terra, afinal ele estava realizando um sonho de infância. Desde os seis anos sonhava em se tornar um grande explorador, mas agora que tinha conseguido estava um pouco desapontado. O trabalho não era tão heroico quanto pensava e se resumia a horas sozinho na nave tendo como única companhia uma inteligência artificial.
No 11º dia dormia em seu alojamento quando de repente foi acordado por um estrondo. Pulou da cama assustado e no escuro. Rapidamente correu em direção a sala de máquinas.
- Grace! Grace? O que está acontecendo. – a falta de resposta estava o assustando mais ainda.
Assim que chegou à porta da sala de máquinas, viu que havia fogo e estava se alastrando rápido. Por segurança, nesse tipo de situação a sala era automaticamente trancada e os extintores acionados, mas por alguma falha a sala estava trancada, mas os extintores não estavam funcionando.
- Grace, abre a porra da porta! – gritava socando a porta, pois sua senha não estava funcionando. Após muitos socos e várias tentativas a porta se abriu. Ele entrou e logo alcançou os controles acionando manualmente os extintores.
Quando estava saindo da sala ouviu um barulho vindo de uma das maquinarias e então uma explosão. A explosão de um dos estabilizadores arremessou contra uma parede e alguns estilhaços perfuraram sua barriga. Após minutos desacordado, despertou e se arrastou até a enfermaria. Com muito esforço ele conseguiu alcançar os remédios e injetou analgésicos em seu braço. Sua mente estava confusa e a dor praticamente insuportável. Ele não conseguiria retirar os estilhaços sozinho sem piorar a situação.
- Capitão. – ele suspirou aliviado ao ouvir a voz de Grace.
- Grace. – chamou com dificuldade. – O que aconteceu? Por que sumiu?
- Nós fomos atingidos. Eu não sei o que nos atingiu. Só sei que acabou com a energia do núcleo. - engoliu em seco. Estavam muito longe de qualquer planeta habitado.
- Estamos encalhados? – murmurou fechando os olhos.
- Sim, senhor.
- Eu estou ferido. Consegue me operar? – perguntou olhando sua barriga sangrando. Não estava conseguindo conter o sangramento.
- Não, senhor. Todos os equipamentos estão desligados.
- Todos? O que quer dizer com todos? – a preocupação cresceu. Estavam encalhados e a única coisa que não poderia falhar agora era o suporte de vida.
- Isso inclui o suporte de vida, senhor. – ficou tonto. O suporte de vida era essencial para sua sobrevivência. É ele que mantém o ar respirável, fornece gravidade, pressão e calor. – Quanto tempo de oxigênio eu tenho?
- Cinco horas.
- O traje tem oxigênio suficiente para eu alcançar o próximo planeta? – ele fechou os olhos novamente. Esforçava-se tentando arranjar soluções para a situação.
- Ele foi danificado com a explosão.
- O que pode fazer? – perguntou em um sussurro sentindo um nó se formar em sua garganta.
- A única coisa que posso fazer são leituras.
- Ótimo. – resmungou sarcástico. – Pode mandar um sinal de socorro?
- Senhor, ninguém vai captar esse sinal.
- Estou te perguntando se pode fazer. – sua respiração estava rápida e ele se esforçava em manter a calma.
- Sim, eu posso. Mas é inútil. Estamos longe de qualquer planeta habitado e tenho que lembrá-lo que nesse quadrante não há trânsito de naves.
- Eu não pedi leituras. Eu só quero que mande a merda do sinal. – esbravejou arremessando aparelhos na parede metálica. - Você trabalha com lógica, mas eu sou humano e minha raça conhece algo chamado esperança. Então, é uma ordem. Mande esse sinal agora!
- Sim, senhor.
***
encostou-se à parede e escorregou sentando no chão com as pernas esticadas e o braço esquerdo apoiado em uma bancada.
- Você me traiu, Grace. – murmurou após minutos de silêncio. – Eu te escolhi. Troquei ela por você e agora você me feriu e vai me matar.
- Não é minha culpa. Nós fomos atingidos.
- Eu troquei a e a minha família por você e agora eu vou morrer sozinho. – afirmou ignorando a fala de Grace. Os minutos passavam e a queda da temperatura já incomodava. – Eu estou desconectado do mundo. Eu sinto falta da Terra, do sol. Até sinto falta dos painéis luminosos que me cegavam, do barulho constante das feiras e britadeiras. Sinto falta do meu lar e de todas as pessoas que eu deixei lá. E eu troquei tudo por causa dessa maldita nave. – esbravejou e sentiu os olhos arderem. Nesse momento não chorava por tristeza ou dor, chorava por ódio de si mesmo.
- Senhor, seus ataques não vão gerar nenhum tipo de reação emocional em mim. O único resultado será a sua frustração.
- Acredite, esse seria o último item na minha longa lista de razões para ficar frustrado.
- Se o senhor amava tanto a sua família, deveria ter ficado com ela.
- Sim, eu deveria. Mas eu fui estúpido, cego por sonhos infantis. - ele abaixou a cabeça e limpou as lágrimas na manga da camisa. – Eu fiquei sabendo da morte dos meus avós por um relatório oficial. Tem ideia do que é isso? Uma porcaria de relatório que falava sobre minha missão. Em uma nota no fim avisaram que eles haviam morrido dois meses antes. Eu nem pude ir ao funeral. Grace, eu não vejo meus pais há dois anos e a última vez que eu vi a foi há três. – pensar na ex namorada era doloroso. Ela dominava seus pensamentos e lembranças.
- Por que não os visitou?
- Você devia saber porquê. Tenho estado em muitas missões, e eles só me dão duas semanas de folga. Não tenho tempo de ir até lá. – estava ofegante, se esforçando para conter o sangramento.
- Você devia ter arrumado tempo.
- É tão fácil para você falar. – suspirou e ficou em silêncio por alguns minutos. – Eu sinto tanta falta da . Sonho com ela quase toda noite. – confessou. – Sonho que encontro ela na superfície de cada planeta que eu visito.
- Planetas desse sistema?
- Planetas de todos os sistemas que visitamos.
- Isso é impossível.
- São só sonhos. – murmurou e apertou os olhos, estava ficando tonto e não sabia se era por causa da perda de sangue ou a quantidade cada vez menor de oxigênio. – É engraçado como eu costumava gostar da ideia de ir a planetas onde homem nenhum foi, mas acabei descobrindo que isso é muito solitário. E agora eu vou sangrar até a morte nessa maldita nave.
- Não senhor. Você vai sufocar até a morte e uma segunda opção é morte por congelamento.
- Ótimo. Você só está aqui para tornar as minhas últimas horas ainda mais miseráveis.
- Só estou aqui para ajudá-lo senhor.
- Você está sendo imprestável nesse quesito. – novamente fechou os olhos. Sua cabeça doía e conversar com Grace só estava piorando as coisas. Então, por alguns segundos ele sonhou. Sonhou que estava na superfície de Zarboe, um planeta distante que orbita uma estrela anã vermelha. Viu caminhando em sua direção e se alegrou. Quando ela finalmente o alcançou, eles tiraram seus capacetes e se beijaram. E então a realidade o atingiu. Percebeu que era apenas um devaneio, pois não poderia respirar naquele planeta. A maldita lógica havia o arrancado daqueles segundos de ilusão. Ao encarar novamente o rosto de a ouviu chamando seu nome, mas seus lábios não se mexiam.
- Capitão ! ! – Grace chamou repetidas vezes até abrir os olhos com dificuldade. – Por um segundo achei que estivesse morto senhor.
- Vou estar em pouco tempo e você nem me deixa morrer em paz. – sussurrou batendo as dentes. A temperatura descia cada vez mais rápido.
- O que quer dizer com isso?
- Eu estava sonhando. Um sonho bom. E sabe, quando se é despertado de um sonho como esse, é doloroso. Especialmente na situação em que me encontro. – suspirou. – Eu queria poder ver o rosto da mais uma vez. – confessou fechando os olhos reconstituindo em sua mente o rosto dela. – Ouvir a risada dela e ela se gabando sobre as descobertas cientifica que fez. Ela é uma cientista brilhante e seu ego é grande o suficiente para se gabar sobre isso – ele sorriu involuntariamente. – Ela é espontânea e faz o que quer. Ela poderia roubar um banco se quisesse e seria bem sucedida nisso. Ela é um projeto de pequeno gênio do mal. Tão engraçada, esperta e linda. Eu ainda a amo, mesmo depois de tanto tempo.
- Onde ela está agora?
- Na Terra. Sempre falou que não queria abandonar nosso planeta. Ela provavelmente casou com algum burocrata idiota. – resmungou machucado por essa possibilidade.
- Provavelmente.
- Você deveria fazer eu me sentir melhor.
- Eu não fui programada para contar mentiras, senhor.
- Claro que não. É programada para lidar com lógica, cálculos e regras. Sabe o que é mais triste? – questionou sentindo lágrimas descerem por sua bochecha.
- Você morrer congelado ou sufocado no meio do espaço? – deu uma risada sarcástica ao ouvir Grace.
- Não vai ter ninguém para chorar minha morte, ou se importar. Vão achar que eu estou em seguidas missões. – abaixou a cabeça e se deu conta que havia perdido completamente as forças para estancar o sangramento em sua barriga. – Eu escolhi viver sozinho e agora vou morrer assim.
- Você vai morrer fazendo algo que ama. No espaço. O lugar onde o senhor disse sempre ter sonhado em estar, desde criança. Para alguns essa é uma morte poética.
- Não é. Sou só um idiota em um túmulo metálico.– murmurou amargo.
- Eu sinto muito, senhor.
- Não, você não sente. – esbravejou já com dificuldades de respirar. – Você é só uma maldita máquina. – sentiu os olhos pesarem. Não havia mais esperança. Tinha poucos minutos de oxigênio e seu destino estava selado. Sufocado, congelado e sozinho em uma nave de exploração.
***
Um destino terrível. O sufocamento, a hipotermia, com a voz de Grace ecoando em seus ouvidos e antes da escuridão, avistar apenas a parede metálica daquela enfermaria. Sozinho e esquecido na imensidão do espaço. Esses pensamentos dominavam a mente de enquanto o frio e a dor o atingiam. Então, antes de apagar, ele fechou os olhos sem conseguir pensar em ou em estrelas, pois uma única frase martelava em sua mente “Eu não estou pronto”.
***
Uma luz forte, sombras e vozes desconexas confundiram . Se ele estava morto, pelo jeito tinha ido parar no limbo ou qualquer outro lugar de confusão e espera eterna. Quando finalmente as sombras tomaram forma, se assustou com o homem calvo o encarando.
- Você acordou! Finalmente.
- Onde eu estou? – não reconhecia aquele lugar. Era uma enfermaria mais sofisticada que a de sua nave. Tentou se mover, mas sentiu pontadas em seu abdômen.
- Fique calmo. Está na Perseus. – O homem afirmou e começou a examinar . – Uma nave comercial de médio porte. Sabe seu nome?
- .
- Nós captamos o seu pedido de socorro, . Te encontramos quase morto, gravemente ferido, com hipotermia e quase sem oxigênio. É um milagre ter sobrevivido. Eu te operei e você vai ficar bem logo.
- Obrigado. – respondeu ainda confuso.
- Já comunicamos os planetas centrais sobre a sua situação e eles vão mandar alguém para rebocar a sua nave. Agora descanse.
- Ok. Muito obrigado. – o médico sorriu e se afastou. fechou os olhos e sorriu aliviado. Ouviu passos e ao abrir os olhos, emudeceu diante da pessoa a sua frente.
- Bem vindo de volta. – estava na sua frente, falando com ele e com um largo sorriso. Ele não conseguia entender. Talvez ainda estivesse confuso devido à hipotermia e tudo mais. – Eu não sou uma miragem. – ela falou sorrindo e acariciou o rosto dele. - Eu estou morto? – questionou surpreso.
- Não. Não acho que no céu as pessoas quebrem os braços, nem nada do tipo. – ele então notou que ela estava com o braço esquerdo imobilizado. – Seria uma pena ter que passar a eternidade desse jeito.
- O que aconteceu? - ficou agitado com a preocupação e com dificuldades, se ajeitou na cama.
- Eu estava trabalhando em Sebek...
- Sério? – ele a interrompeu. – Achei que não queria deixar a Terra.
- Depois que você partiu eu não tinha muitos motivos para ficar. – ele tentou alcançar a mão dela, mas ela se afastou um pouco da cama e começou a gesticular. – Bom, eu estava trabalhando lá há algum tempo. Você sabe que todo planeta terra formado tem suas doenças. E eu estava tentando achar a cura para todas elas. Tudo estava bem, até que um terremoto destruiu várias cidades, e como já deve ter percebido, eu estava em uma delas. – ela falava rápido animada e ansiosa para contar tudo a ele. Tinham anos de conversas para colocar em dia.
- Mas está bem?
- Sim, só um braço quebrado. Uma lesão pequena, perto do estrago que o terremoto fez. – ela novamente se aproximou da cama. – Depois disso eu decidi voltar para Terra e peguei carona nessa nave. E 32 horas atrás eles captaram o sinal vindo da sua nave. Consegue imaginar o quão surpresa eu fiquei quando vi eles te carregando para essa enfermaria?
- É, eu posso imaginar. – ele sorria admirado com a situação.
- Foi assustador. Te ver daquele jeito, quase morto. Por algum tempo pensei que nunca mais ia ver esses olhos lindos. – ela então sentou na beirada da cama.
- Só os olhos são lindos? – deu um sorriso galanteador.
- Não. Você é todo lindo. – eles riram.
- Cada partezinha?
- Cada partezinha.
- ... Eu sei que talvez seja tarde demais, mas... – ia falando, mas foi interrompido pelo médico da nave que entrou na enfermaria silenciosamente.
- Ele precisa descansar.
- Sim, claro. “Você precisa descansar!”. – ela ordenou imitando a voz do médico. O médico a encarou com um olhar de repreensão e ficou esperando na porta. – Já ia me esquecendo. Não precisa se preocupar com a nave, ela vai ser rebocada e assim que se recuperar pode voltar ao trabalho.
- Não me importo com a nave e nem quero voltar ao trabalho.
- O que pretende fazer?
- Voltar para casa com você. – ela sorriu encarando os olhos dele. – Eu tenho tanta coisa para te falar. – segurou a mão de que repousava próximo a sua.
- Vai ter oportunidades para me falar tudo. Mas agora tem que descansar. – ela apertou a mão dele e acariciou com o polegar.
- Vai estar aqui quando eu acordar?
- Sim. Eu não vou a lugar algum. – então se aproximou e o beijou. – Agora descanse. Temos uma longa viagem para casa e muita coisa para conversar. – se afastou sorrindo.
O improvável aconteceu. Contra a lógica e as probabilidades, ele havia sido resgatado. Havia encontrado e ia para Terra com ela. Talvez os humanos não sejam tão “espertos” e precisos como as máquinas, mas ao contrário delas, eles têm sentimentos como esperança e a vontade que podem mudar o curso dos fatos, fugindo de coisas como o destino e lógica.
Em seu trabalho, foram poucas as vezes que havia deixado o sistema solar. E em todas às vezes uma das coisas de que mais sentia falta era do céu tão azul avistado da Terra. Em contrapartida, quando estava na Terra sentia falta da quietude de alguns exoplanetas. A Terra estava superlotada com pessoas vivendo amontoadas em prédios habitacionais de trinta andares que mais pareciam favelas verticais. A poluição sonora e visual eram parte do dia a dia. Mas mesmo se a Terra não fosse essa favela vertical, provavelmente ainda teria que dividir seu cubículo com mais cinco soldados. Apenas um dos fatores da “feliz” vida de alguém da infantaria móvel.
Após alguns minutos de caminhada, chegou ao enorme prédio de laboratórios que fazia parte do Departamento de Ciência e Tecnologia. No horário de almoço ia sempre até lá esperar a namorada. Esforçava-se para almoçar com ela na cidade algumas vezes da semana, pois precisava aproveitar o tempo que podiam ficar juntos. Quando estava fora do planeta, ficavam semanas sem se ver, e quando estava na Terra, apesar de não ter batalhas para lutar e nem colônias para ajudar a conquistar, ele tinha que enfrentar 14 horas diárias de treinamento.
- Desculpe o atraso. – disse caminhando apressada na direção do namorado.
- Sem problemas. Acabei de chegar. – a beijou.
- Eu odeio esses banhos coletivos. – afirmou ao notar que os cabelos dele estavam molhados. – Saber que todas essas mulheres estão te vendo nu todos os dias não é nem um pouco agradável.
- Eu sou um deus grego esculpido. Não pode privar as mulheres disso. – apontou para si e levou um tapa no braço.
- Eu realmente quero que um satélite te esmague. – resmungou cruzando os braços. – Só um aviso. – ela se virou apontando o dedo para ele. – Eu não esqueço nenhuma das besteiras que você fala.
- Isso quer dizer que eu vou pagar por isso depois? – perguntou abaixando o dedo dela e a puxando para perto.
- Sim, você vai. – ameaçou erguendo uma sobrancelha fazendo o namorado rir e então passaram a caminhar lado a lado.
- Eu ficaria muito puto se você tivesse que tomar banho na frente daqueles cientistas tarados. – quebrou o silêncio após alguns segundos de reflexão. – Mesmo quando você está com aquela pesada roupa de proteção, o Boyle te olha como se você fosse um pedaço de carne.
- Você não precisa se preocupar com isso. Banhos coletivos são apenas para ralé da infantaria móvel. – brincou dando um tapinha no rosto dele.
- Ralé? – questionou indignado. – Eu salvei seu traseiro mais vezes do que posso contar.
- Não salvou não. Eu que salvei o seu do NT3.
- Que porra é essa? – ele ergueu a sobrancelha esquerda.
- Exatamente. – bateu no peito dele e então se aproximou sussurrando: – Isso é um vírus terrivelmente mortal que eu descobri o soro antes que você soubesse da existência dele. De nada. – ela piscou e ele gargalhou.
- Obrigado por salvar minha vida. – falou forçando uma voz emotiva. – E obrigada por ser a melhor namorada, maior gênio da ciência e a pessoa mais soberba do sistema solar.
- De nada. – riu e abraçou a cintura dele. – Tem folga essa semana?
- Amanhã.
- A minha é no sábado. Eu vou ter que persuadir o Stockes a trocar comigo. – roeu a unha pensativa.
- Persuadir? – questionou franzindo a testa.
- Persuadir, chantagear. Como quiser chamar. – ela rolou os olhos.
- Como vai chantageá-lo? – parou de andar e encarou a namorada.
- Eu sou ótima em descobrir segredos. E em usá-los quando necessário. – deu de ombros abrindo um largo sorriso.
- Você é muito malvada. Eu namoro um projeto de gênio do mal. – ele sussurrou fingindo estar assustado. – Então, qual o segredo do Stockes? – perguntou quando voltaram a andar.
- Você é uma velha fofoqueira. – acusou o empurrando de leve.
- Você que fica investigando a vida alheia. Está me contaminando.
- Eu sou uma cientista. Investigação faz parte de mim. – ele abraçou a cintura dela puxando a para um beijo.
- ? – um oficial chegou os interrompendo e prestou continência. – Me desculpem a interrupção. Aqui. – entregou um envelope para . – Você precisa se apresentar no QG em duas horas. – o oficial prestou continência e se afastou.
- O que é? – questionou curiosa.
- Não tenho a mínima ideia. – afirmou enquanto abria o envelope. leu o conteúdo e ficou estático observando o papel. Não sabia como reagir.
- O que foi, ? – perguntou preocupada.
- Eu fui aceito no programa. – ele respondeu ainda encarando o papel.
- Que programa? – ele a encarou e então ela entendeu. – Exploração espacial.
- Eu vou ter minha própria nave e vou conhecer sistemas onde nenhum homem esteve. É a quinta vez que eu tento. Já tinha perdido as esperanças de conseguir entrar. – falou rápido quase embolando as palavras.
- Eu sei. – ela suspirou. Estava surpresa e desapontada, mas ao mesmo tempo tentava ficar feliz por ele.
- Eu não posso ficar. – se apressou em dizer segurando os braços dela e encarando seus olhos onde podia ver o desapontamento. – Eu... Eu sinto muito, mas eu preciso isso ir. Eu sempre quis isso.
- Eu sei. – repetiu. Não sabia direito como reagir.
- ...
- Eu não vou te pedir pra ficar. – afirmou tocando o rosto dele. – Eu não vou interferir nisso. É uma decisão unicamente sua. – ele então beijou a palma da mão dela. - Quando tem que embarcar?
- Domingo. Eu tenho que me apresentar nos planetas centrais daqui a 45 dias.
- Ok, então nós temos quatro dias para nos despedirmos. Aproveitar antes que acabe. – ela falou sem encará-lo tentando segurar as lágrimas. – Pelo menos vamos passar o natal juntos.
- Não significa que a gente precise terminar. – contornou o rosto dela com o polegar sentindo um aperto no peito.
- Você vai ficar anos fora. Não são meses, são anos. Uma missão atrás da outra. É melhor terminar agora... do que fazer isso daqui alguns meses quando estivermos frustrados. – limpou rapidamente uma teimosa lágrima que rolou até sua bochecha.
- , eu não estava esperando por isso. Como eu disse, eu já tinha perdido as esperanças. Achei que passaria o resto da vida na infantaria.
- Você não vai passar o resto da vida na infantaria. – segurou o rosto dele entre as mãos. – Você vai explorar novos mundos, pesquisar novas vidas e civilizações... Audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve. – ela repetiu as palavras da há muito tempo finada série Star Trek. – sorriu e a abraçou. – Você devia ir. Ligar para sua família e avisar os seus amigos.
- E o nosso almoço? – questionou após beijar o topo da cabeça dela.
- Almoçamos amanhã. Você tem muita coisa pra resolver e eu também. Estou fazendo testes para uma nova vacina. – no momento ela queria sumir dali. Não queria desabar na frente dele.
- ... Eu te amo. – ele apertou o abraço.
- Eu também te amo. Vai ser difícil ficar longe de você. Tanto tempo sem te ver. – ela suspirou. – Mas eu estou feliz. Feliz por você estar realizando seu sonho. – separou o abraço e a beijou.
Quatro anos depois...
Missão de exploração dos seis planetas que orbitam a estrela Kaly
Dia 187
entrou na nave e assim que a porta se fechou, retirou seu traje protetor e colocou de volta no suporte.
- Boa noite, Grace.
- Boa noite, comandante. – a voz feminina da inteligência artificial que controlava a nave respondeu. – Como foi o 33º dia no 6º planeta?
- Exatamente como ontem. As leituras continuam as mesmas. O ambiente é estável. Sem radiação, sem instabilidade tectônica ou formas de vida hostis. Trouxe mais algumas formas de vida para que você possa analisar. – informou caminhando na direção do laboratório. – Vou registrar os dados que coletei no diário de bordo e acredito que ainda hoje receberemos ordens para voltar aos planetas centrais.
- Sim, capitão. Coloque as formas de vida nos compartimentos para que eu possa começar agora mesmo.
saiu do laboratório e foi até a ponte de comando, a partir daí seguiu a rotina solitária que repetia todos os dias que passava naquela nave: fez os registros no diário de bordo, se alimentou, leu um pouco e foi dormir. Foi acordado apenas três horas depois.
- O que foi, Grace? Algum problema na nave? – indagou já pulando da cama.
- Não, apenas precisava avisá-lo que chegaram ordens da Central. Já podemos voltar aos planetas centrais.
- Ok. Pode traçar a rota. – ordenou sentando na cama – Precisa de mim para mais alguma coisa?
- Não, senhor. Pode voltar a dormir.
A viagem duraria dois meses, e durante os dias que passavam, repetia sua rotina solitária. Evitava pensar no que tinha deixado para trás na Terra, afinal ele estava realizando um sonho de infância. Desde os seis anos sonhava em se tornar um grande explorador, mas agora que tinha conseguido estava um pouco desapontado. O trabalho não era tão heroico quanto pensava e se resumia a horas sozinho na nave tendo como única companhia uma inteligência artificial.
No 11º dia dormia em seu alojamento quando de repente foi acordado por um estrondo. Pulou da cama assustado e no escuro. Rapidamente correu em direção a sala de máquinas.
- Grace! Grace? O que está acontecendo. – a falta de resposta estava o assustando mais ainda.
Assim que chegou à porta da sala de máquinas, viu que havia fogo e estava se alastrando rápido. Por segurança, nesse tipo de situação a sala era automaticamente trancada e os extintores acionados, mas por alguma falha a sala estava trancada, mas os extintores não estavam funcionando.
- Grace, abre a porra da porta! – gritava socando a porta, pois sua senha não estava funcionando. Após muitos socos e várias tentativas a porta se abriu. Ele entrou e logo alcançou os controles acionando manualmente os extintores.
Quando estava saindo da sala ouviu um barulho vindo de uma das maquinarias e então uma explosão. A explosão de um dos estabilizadores arremessou contra uma parede e alguns estilhaços perfuraram sua barriga. Após minutos desacordado, despertou e se arrastou até a enfermaria. Com muito esforço ele conseguiu alcançar os remédios e injetou analgésicos em seu braço. Sua mente estava confusa e a dor praticamente insuportável. Ele não conseguiria retirar os estilhaços sozinho sem piorar a situação.
- Capitão. – ele suspirou aliviado ao ouvir a voz de Grace.
- Grace. – chamou com dificuldade. – O que aconteceu? Por que sumiu?
- Nós fomos atingidos. Eu não sei o que nos atingiu. Só sei que acabou com a energia do núcleo. - engoliu em seco. Estavam muito longe de qualquer planeta habitado.
- Estamos encalhados? – murmurou fechando os olhos.
- Sim, senhor.
- Eu estou ferido. Consegue me operar? – perguntou olhando sua barriga sangrando. Não estava conseguindo conter o sangramento.
- Não, senhor. Todos os equipamentos estão desligados.
- Todos? O que quer dizer com todos? – a preocupação cresceu. Estavam encalhados e a única coisa que não poderia falhar agora era o suporte de vida.
- Isso inclui o suporte de vida, senhor. – ficou tonto. O suporte de vida era essencial para sua sobrevivência. É ele que mantém o ar respirável, fornece gravidade, pressão e calor. – Quanto tempo de oxigênio eu tenho?
- Cinco horas.
- O traje tem oxigênio suficiente para eu alcançar o próximo planeta? – ele fechou os olhos novamente. Esforçava-se tentando arranjar soluções para a situação.
- Ele foi danificado com a explosão.
- O que pode fazer? – perguntou em um sussurro sentindo um nó se formar em sua garganta.
- A única coisa que posso fazer são leituras.
- Ótimo. – resmungou sarcástico. – Pode mandar um sinal de socorro?
- Senhor, ninguém vai captar esse sinal.
- Estou te perguntando se pode fazer. – sua respiração estava rápida e ele se esforçava em manter a calma.
- Sim, eu posso. Mas é inútil. Estamos longe de qualquer planeta habitado e tenho que lembrá-lo que nesse quadrante não há trânsito de naves.
- Eu não pedi leituras. Eu só quero que mande a merda do sinal. – esbravejou arremessando aparelhos na parede metálica. - Você trabalha com lógica, mas eu sou humano e minha raça conhece algo chamado esperança. Então, é uma ordem. Mande esse sinal agora!
- Sim, senhor.
encostou-se à parede e escorregou sentando no chão com as pernas esticadas e o braço esquerdo apoiado em uma bancada.
- Você me traiu, Grace. – murmurou após minutos de silêncio. – Eu te escolhi. Troquei ela por você e agora você me feriu e vai me matar.
- Não é minha culpa. Nós fomos atingidos.
- Eu troquei a e a minha família por você e agora eu vou morrer sozinho. – afirmou ignorando a fala de Grace. Os minutos passavam e a queda da temperatura já incomodava. – Eu estou desconectado do mundo. Eu sinto falta da Terra, do sol. Até sinto falta dos painéis luminosos que me cegavam, do barulho constante das feiras e britadeiras. Sinto falta do meu lar e de todas as pessoas que eu deixei lá. E eu troquei tudo por causa dessa maldita nave. – esbravejou e sentiu os olhos arderem. Nesse momento não chorava por tristeza ou dor, chorava por ódio de si mesmo.
- Senhor, seus ataques não vão gerar nenhum tipo de reação emocional em mim. O único resultado será a sua frustração.
- Acredite, esse seria o último item na minha longa lista de razões para ficar frustrado.
- Se o senhor amava tanto a sua família, deveria ter ficado com ela.
- Sim, eu deveria. Mas eu fui estúpido, cego por sonhos infantis. - ele abaixou a cabeça e limpou as lágrimas na manga da camisa. – Eu fiquei sabendo da morte dos meus avós por um relatório oficial. Tem ideia do que é isso? Uma porcaria de relatório que falava sobre minha missão. Em uma nota no fim avisaram que eles haviam morrido dois meses antes. Eu nem pude ir ao funeral. Grace, eu não vejo meus pais há dois anos e a última vez que eu vi a foi há três. – pensar na ex namorada era doloroso. Ela dominava seus pensamentos e lembranças.
- Por que não os visitou?
- Você devia saber porquê. Tenho estado em muitas missões, e eles só me dão duas semanas de folga. Não tenho tempo de ir até lá. – estava ofegante, se esforçando para conter o sangramento.
- Você devia ter arrumado tempo.
- É tão fácil para você falar. – suspirou e ficou em silêncio por alguns minutos. – Eu sinto tanta falta da . Sonho com ela quase toda noite. – confessou. – Sonho que encontro ela na superfície de cada planeta que eu visito.
- Planetas desse sistema?
- Planetas de todos os sistemas que visitamos.
- Isso é impossível.
- São só sonhos. – murmurou e apertou os olhos, estava ficando tonto e não sabia se era por causa da perda de sangue ou a quantidade cada vez menor de oxigênio. – É engraçado como eu costumava gostar da ideia de ir a planetas onde homem nenhum foi, mas acabei descobrindo que isso é muito solitário. E agora eu vou sangrar até a morte nessa maldita nave.
- Não senhor. Você vai sufocar até a morte e uma segunda opção é morte por congelamento.
- Ótimo. Você só está aqui para tornar as minhas últimas horas ainda mais miseráveis.
- Só estou aqui para ajudá-lo senhor.
- Você está sendo imprestável nesse quesito. – novamente fechou os olhos. Sua cabeça doía e conversar com Grace só estava piorando as coisas. Então, por alguns segundos ele sonhou. Sonhou que estava na superfície de Zarboe, um planeta distante que orbita uma estrela anã vermelha. Viu caminhando em sua direção e se alegrou. Quando ela finalmente o alcançou, eles tiraram seus capacetes e se beijaram. E então a realidade o atingiu. Percebeu que era apenas um devaneio, pois não poderia respirar naquele planeta. A maldita lógica havia o arrancado daqueles segundos de ilusão. Ao encarar novamente o rosto de a ouviu chamando seu nome, mas seus lábios não se mexiam.
- Capitão ! ! – Grace chamou repetidas vezes até abrir os olhos com dificuldade. – Por um segundo achei que estivesse morto senhor.
- Vou estar em pouco tempo e você nem me deixa morrer em paz. – sussurrou batendo as dentes. A temperatura descia cada vez mais rápido.
- O que quer dizer com isso?
- Eu estava sonhando. Um sonho bom. E sabe, quando se é despertado de um sonho como esse, é doloroso. Especialmente na situação em que me encontro. – suspirou. – Eu queria poder ver o rosto da mais uma vez. – confessou fechando os olhos reconstituindo em sua mente o rosto dela. – Ouvir a risada dela e ela se gabando sobre as descobertas cientifica que fez. Ela é uma cientista brilhante e seu ego é grande o suficiente para se gabar sobre isso – ele sorriu involuntariamente. – Ela é espontânea e faz o que quer. Ela poderia roubar um banco se quisesse e seria bem sucedida nisso. Ela é um projeto de pequeno gênio do mal. Tão engraçada, esperta e linda. Eu ainda a amo, mesmo depois de tanto tempo.
- Onde ela está agora?
- Na Terra. Sempre falou que não queria abandonar nosso planeta. Ela provavelmente casou com algum burocrata idiota. – resmungou machucado por essa possibilidade.
- Provavelmente.
- Você deveria fazer eu me sentir melhor.
- Eu não fui programada para contar mentiras, senhor.
- Claro que não. É programada para lidar com lógica, cálculos e regras. Sabe o que é mais triste? – questionou sentindo lágrimas descerem por sua bochecha.
- Você morrer congelado ou sufocado no meio do espaço? – deu uma risada sarcástica ao ouvir Grace.
- Não vai ter ninguém para chorar minha morte, ou se importar. Vão achar que eu estou em seguidas missões. – abaixou a cabeça e se deu conta que havia perdido completamente as forças para estancar o sangramento em sua barriga. – Eu escolhi viver sozinho e agora vou morrer assim.
- Você vai morrer fazendo algo que ama. No espaço. O lugar onde o senhor disse sempre ter sonhado em estar, desde criança. Para alguns essa é uma morte poética.
- Não é. Sou só um idiota em um túmulo metálico.– murmurou amargo.
- Eu sinto muito, senhor.
- Não, você não sente. – esbravejou já com dificuldades de respirar. – Você é só uma maldita máquina. – sentiu os olhos pesarem. Não havia mais esperança. Tinha poucos minutos de oxigênio e seu destino estava selado. Sufocado, congelado e sozinho em uma nave de exploração.
Um destino terrível. O sufocamento, a hipotermia, com a voz de Grace ecoando em seus ouvidos e antes da escuridão, avistar apenas a parede metálica daquela enfermaria. Sozinho e esquecido na imensidão do espaço. Esses pensamentos dominavam a mente de enquanto o frio e a dor o atingiam. Então, antes de apagar, ele fechou os olhos sem conseguir pensar em ou em estrelas, pois uma única frase martelava em sua mente “Eu não estou pronto”.
Uma luz forte, sombras e vozes desconexas confundiram . Se ele estava morto, pelo jeito tinha ido parar no limbo ou qualquer outro lugar de confusão e espera eterna. Quando finalmente as sombras tomaram forma, se assustou com o homem calvo o encarando.
- Você acordou! Finalmente.
- Onde eu estou? – não reconhecia aquele lugar. Era uma enfermaria mais sofisticada que a de sua nave. Tentou se mover, mas sentiu pontadas em seu abdômen.
- Fique calmo. Está na Perseus. – O homem afirmou e começou a examinar . – Uma nave comercial de médio porte. Sabe seu nome?
- .
- Nós captamos o seu pedido de socorro, . Te encontramos quase morto, gravemente ferido, com hipotermia e quase sem oxigênio. É um milagre ter sobrevivido. Eu te operei e você vai ficar bem logo.
- Obrigado. – respondeu ainda confuso.
- Já comunicamos os planetas centrais sobre a sua situação e eles vão mandar alguém para rebocar a sua nave. Agora descanse.
- Ok. Muito obrigado. – o médico sorriu e se afastou. fechou os olhos e sorriu aliviado. Ouviu passos e ao abrir os olhos, emudeceu diante da pessoa a sua frente.
- Bem vindo de volta. – estava na sua frente, falando com ele e com um largo sorriso. Ele não conseguia entender. Talvez ainda estivesse confuso devido à hipotermia e tudo mais. – Eu não sou uma miragem. – ela falou sorrindo e acariciou o rosto dele. - Eu estou morto? – questionou surpreso.
- Não. Não acho que no céu as pessoas quebrem os braços, nem nada do tipo. – ele então notou que ela estava com o braço esquerdo imobilizado. – Seria uma pena ter que passar a eternidade desse jeito.
- O que aconteceu? - ficou agitado com a preocupação e com dificuldades, se ajeitou na cama.
- Eu estava trabalhando em Sebek...
- Sério? – ele a interrompeu. – Achei que não queria deixar a Terra.
- Depois que você partiu eu não tinha muitos motivos para ficar. – ele tentou alcançar a mão dela, mas ela se afastou um pouco da cama e começou a gesticular. – Bom, eu estava trabalhando lá há algum tempo. Você sabe que todo planeta terra formado tem suas doenças. E eu estava tentando achar a cura para todas elas. Tudo estava bem, até que um terremoto destruiu várias cidades, e como já deve ter percebido, eu estava em uma delas. – ela falava rápido animada e ansiosa para contar tudo a ele. Tinham anos de conversas para colocar em dia.
- Mas está bem?
- Sim, só um braço quebrado. Uma lesão pequena, perto do estrago que o terremoto fez. – ela novamente se aproximou da cama. – Depois disso eu decidi voltar para Terra e peguei carona nessa nave. E 32 horas atrás eles captaram o sinal vindo da sua nave. Consegue imaginar o quão surpresa eu fiquei quando vi eles te carregando para essa enfermaria?
- É, eu posso imaginar. – ele sorria admirado com a situação.
- Foi assustador. Te ver daquele jeito, quase morto. Por algum tempo pensei que nunca mais ia ver esses olhos lindos. – ela então sentou na beirada da cama.
- Só os olhos são lindos? – deu um sorriso galanteador.
- Não. Você é todo lindo. – eles riram.
- Cada partezinha?
- Cada partezinha.
- ... Eu sei que talvez seja tarde demais, mas... – ia falando, mas foi interrompido pelo médico da nave que entrou na enfermaria silenciosamente.
- Ele precisa descansar.
- Sim, claro. “Você precisa descansar!”. – ela ordenou imitando a voz do médico. O médico a encarou com um olhar de repreensão e ficou esperando na porta. – Já ia me esquecendo. Não precisa se preocupar com a nave, ela vai ser rebocada e assim que se recuperar pode voltar ao trabalho.
- Não me importo com a nave e nem quero voltar ao trabalho.
- O que pretende fazer?
- Voltar para casa com você. – ela sorriu encarando os olhos dele. – Eu tenho tanta coisa para te falar. – segurou a mão de que repousava próximo a sua.
- Vai ter oportunidades para me falar tudo. Mas agora tem que descansar. – ela apertou a mão dele e acariciou com o polegar.
- Vai estar aqui quando eu acordar?
- Sim. Eu não vou a lugar algum. – então se aproximou e o beijou. – Agora descanse. Temos uma longa viagem para casa e muita coisa para conversar. – se afastou sorrindo.
O improvável aconteceu. Contra a lógica e as probabilidades, ele havia sido resgatado. Havia encontrado e ia para Terra com ela. Talvez os humanos não sejam tão “espertos” e precisos como as máquinas, mas ao contrário delas, eles têm sentimentos como esperança e a vontade que podem mudar o curso dos fatos, fugindo de coisas como o destino e lógica.
Fim!
Nota da autora: Espero que tenham curtido. Amo the maine e sci fi e tentei juntar os dois.
Outras Fanfics:
Distopia:
Coisas frágeis (Outros/Em andamento)
Comédia romântica:
Barefoot (Outros/Em andamento)
White Dress (Outros/Finalizada)
Sobre Grandes Guerras:
A esposa do tenente inglês (Outros/Finalizada)
Tempos de Guerra (Outros/Finalizada)
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
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