Capítulo Único
Essa não é uma história de amor.
É a história de um coração quebrado.
Eu estava de pé no batente da porta com a última caixa da mudança nas mãos. Eu ainda achava estranho e um sinal nítido de fracasso admitir que estava voltando ao meu velho quarto na casa dos meus pais.
Minha mãe tirava pó da TV que agora parecia tão antiquada, mas na minha adolescência tinha sido um grande presente de Natal. A cama de solteiro com um edredom meio infantil… As fotos no mural já datadas e um pouco amareladas por pegarem sol quase todo dia.
Tudo ali estava exatamente como eu havia deixado há tanto tempo. Como se os últimos anos tivessem sido uma ilusão da minha cabeça. Quatro anos que cabiam em um mês. Uma fenda no tempo-espaço.
“Ficou bom?” - Minha mãe perguntou, ao me notar ali e dando uma olhada pelo quarto.
- “Vou comprar um edredom novo, não se preocupe!”
“Tá tudo ótimo!” - Respondi, colocando a caixa que segurava na penteadeira.
“Parece que foi ontem, né?” - Ela divagou, dizendo algo parecido com o que eu havia pensado. - “E aí num piscar de olhos… Vocês crescem!”
Sorri de lábios fechados e ela veio me dar um beijo no rosto.
“Obrigada, mãe!”
“De nada, minha querida! Vou descer e checar o seu pai na cozinha. Você sabe que não podemos deixá-lo sozinho!” - Falou, desaparecendo pela porta.
Me sentei na cadeira da penteadeira, meu reflexo no espelho me encarando como se não me reconhecesse. Eu havia sido metade por tanto tempo, que ainda não me via por completo. Parecia faltar algo. Mas eu sabia que não faltava. Que eu precisava me acostumar de novo a me bastar. Suspirei, me sentindo cansada. Fisicamente e psicologicamente.
Eu estava triste e despedaçada. Era o fim de um casamento e de um relacionamento que haviam feito rasgos talvez incuráveis em mim.
Num momento de vulnerabilidade pela perda de um amigo muito próximo, eu conheci a pessoa errada. Alguém disposto a usar minha fragilidade contra mim. Me tornar tão dependente dele, que eu achei que me voltar contra meus pais e amigos para nos casarmos era o único caminho. Com 24 anos, coloquei um anel bonito no dedo esquerdo, em uma cerimônia sem nenhum conhecido do meu lado da igreja. Fomos morar em um lugar longe, exigências do bom emprego que ele tinha, onde eu não pudesse responder se estava feliz, não tinha amigos de quem ele poderia sentir ciúmes, não saia de casa… Não existia.
Levou só um mês para eu me arrepender. E três anos e onze meses para que eu conseguisse me libertar.
Mas agora eu estava ali no meu velho quarto, admitindo a derrota. Mas meus pais, generosos como eles só, me acolheram de braços abertos. “O bom filho a casa torna”, recitaram, enquanto me abraçavam. E eu me lembrei o que era ser amada de verdade.
Eu não sabia dizer de onde o som vinha. Era uma melodia no violão que me acalmava. De repente percebi que ele estava ao meu lado. Nós estávamos no topo do morro onde costumávamos ir juntos.
“Eu vou chamar de The Sound of Reverie” - Disse.
Achei que era um nome apropriado. Eu sentia minha cabeça prazerosamente vazia. Ou cheia de pensamentos desconexos, mas bons. Como sonhar acordado em um dia de verão.
“Você acha que meus pais vão me perdoar um dia?” - Perguntei, mudando de assunto.
“Acho que já perdoaram.” - Ele continuava tocando a música, imperturbável.
“Você acha que eu vou me perdoar um dia?”
“Acho que você não pode perder tempo se sentindo mal com o que já passou.”
O lugar onde estávamos sentados sumiu e eu abri os olhos confusa para a escuridão do meu quarto. Levei um tempo para entender que havia sido um sonho.
Era a primeira vez que eu sonhava com ele em anos. Desde que tinha me casado, era como se ele fosse um dos amigos que deixei para trás. Eu o culpei por muito tempo pelo que tinha acontecido. Sua ausência havia me levado para aquele destino.
Mas naquela noite, enquanto eu fazia as pazes com John dentro de mim, eu também fazia as pazes comigo mesma. Eu concordava com o que ele havia dito. Eu precisava me perdoar e seguir em frente.
A única vantagem do fundo do poço era essa: Eu não tinha nada a perder.
Soltei o ar impaciente e reposicionei o violão no colo. A canção do sonho tocava na minha cabeça, mas eu parecia incapaz de reproduzí-la. O violão ainda era um pouco estranho a mim, como todo o resto da minha vida pré casamento, mas eu não iria desistir. Ir cantarolando a música parecia facilitar, porém eu precisaria de mais treino.
Eu tinha tempo, então estava tudo bem…
“Achei mesmo que tinha ouvido o violão!” - Meu pai estava parado na porta e eu me assustei ao perceber que ele me observava. Tinha estado tão absorta que não o vi chegar.
Sorri.
“Estou um pouco destreinada. Não consigo me lembrar de acordes… Mas estava na minha lista de coisas que eu nunca tinha feito e queria fazer. E de coisas que eu queria aperfeiçoar.” - Falei, apontando para o papelzinho perto dos meus pés.
“Você está indo bem.” - Ele disse e eu achei que não era só sobre o violão. Fiz que sim com a cabeça, me sentindo grata. - “Tá um solzão lá fora… Se eu fosse você, iria dar uma volta!”
Olhei pela janela e pude ver o quão azul o céu estava. Parecia convidativo.
“Boa ideia!” - Concordei, colocando o violão na cama e me levantando. Me virei para ele. - “Obrigada por guardarem o violão do John para mim. Significa muito!”
Meu pai abriu um sorriso quando me aproximei e o abracei.
“Sua mãe guardou esse edredom medonho… Porque não guardaria algo tão valioso?”
Rimos juntos e eu beijei seu rosto antes de sair.
A passagem de tempo era uma coisa agridoce ao meu ver. Mas era bom saber que o tempo que eu passava dentro daquela casacom meus pais ainda eram as melhores horas do meu dia. Isso não havia mudado.
A cidade dos meus pais, que agora voltava a ser minha também, não era grande. Era uma cidade humilde, cercada por montanhas, que ficava perto da costa. Por isso, se você subisse até um dos morros mais altos, era possível ver o mar ao longe, quase como uma miragem. Eu costumava passar muito tempo nesse lugar.
Ainda que houvesse como ir até lá de carro, naquele dia eu fui a pé. Eu não tinha pressa alguma e, tirando a garrafa d’água que comprei em uma vendinha ali por perto, não precisava de mais nada que não fossem meus pés e meus pulmões.
Não foi uma subida fácil, era verdade. Como todo o resto da minha vida, eu também não estava preparada para tanto exercício físico.
Mas para minha surpresa, foi aquele cansaço que me fez perceber algo. Passando por um carro estacionado no topo do morro, involuntariamente olhei para o reflexo para ver meu estado. E pela primeira vez em anos, me senti bonita. Meus olhos brilhavam com a alegria de finalmente ter chegado; eu sorria para ninguém, talvez para mim mesma; meu peito subia e descia tentando colocar ar para dentro dos pulmões e minhas bochechas e pescoço estavam vermelhos com o sangue que fluía rápido. O sangue que pulsava da pontinha do pé ao topo da minha cabeça.
Eu parecia viva. Eu estava viva.
E eu podia voltar a amar aquela pessoa sorridente.
Sentei no banco que costumava me sentar quando era mais jovem e fechei os olhos, sentindo o vento refrescar meu corpo. Com o tempo aberto como estava, eu podia ver o sol tocar o mar lá longe e me senti mais uma vez muito calma. Como no sonho da noite anterior.
O mundo era lindo, como há muito eu não via ou me lembrava. Ele também pulsava como algo vivo e se modificava, tentando sobreviver às adversidades.
E eu podia voltar a amar aquele mundo colorido.
As semanas que vieram depois não foram fáceis. Mas eu sabia que não seriam e talvez aquele primeiro dia tendo sido tão positivo me ajudou a ver que, independente de quão difícil parecesse, eu não havia tomado a decisão errada.
Meus pais foram pacientes e incondicionalmente amorosos. Minha mãe segurou minha mão firme na sala de espera na primeira visita ao terapeuta. E me esperou do lado de fora para depois me levar para casa. Me deu espaço, mas sem nunca sair do meu campo de visão. Meu pai me levou à loja de tintas e escolhemos juntos a nova cor do meu quarto. Nós redecoramos o cômodo todo enquanto ouvíamos músicas velhas e dançávamos descoordenados. Eles provavelmente sentiam como se tivessem a filhinha pequena mais uma vez embaixo de suas asas e eu aproveitei enquanto podia descansar e lamber minhas feridas em um lugar seguro.
Mas ter todo o tempo do mundo era uma benção e uma maldição. E logo o fato de não ter nada que fosse só meu começou a me incomodar. Uma grande interrogação sobre meu futuro que piscava em cores fluorescentes passou a ser parte da decoração do meu quarto. Eu deveria voltar para a faculdade? Fazer outro curso? Arrumar um emprego? Sair da casa dos meus pais? Sair daquela cidade?
Em um desses momentos de crise, enquanto eu andava pelo quarto afobada, quase não cabendo nos meus próprios pensamentos, avistei o violão de John escondido atrás dos meus casacos. Durante a reorganização do quarto, ele havia sido guardado e depois eu fui engolida pelo meu mundinho mais uma vez e o esquecera.
Logo me lembrei da canção que eu tanto queria aprender a tocar e como tinha sido fácil deixar mais aquilo de lado para me preocupar demais com outras coisas.
Me sentei no chão e dedilhei as cordas, enquanto fazia com a boca a melodia da música.
Toda a minha atenção só naquele exercício. Levou algumas horas, mas eu finalmente consegui e, quando isso aconteceu, eu me senti invencível. Uma sensação muito satisfatória de dever cumprido.
E se eu pudesse “parcelar” minha preocupações? E se eu as cortasse em pedaços que eu pudesse de fato digerir? Me concentrasse no que estava ao meu alcance em vez de tentar abraçar o mundo, como tinha sido com a tarefa de aprender a música. Era esse o caminho?
Se eu ao menos soubesse o que John achava daquilo… Ele sempre sabia o que fazer. Mesmo quando éramos mais jovens, sempre tivera esse ar sábio e esse dom de dizer o que eu precisava ouvir. Algumas pessoas simplesmente eram assim, eu acreditava. Luz na escuridão.
“Let's take our time
While it's still ours to take
'Cause some things hardly change
But nothing ever stays the same”
Eu tentava escrever uma letra para a música do sonho, mas não parecia ser capaz de criar mais do que aqueles versos. A folha de papel, porém, parecia lotada de desenhos de corações e flores que eu havia distraidamente desenhado por ali.
Minha cabeça sempre acabava divagando para outras coisas.
“Se você parar de desenhar corações e flores, talvez consiga continuar…” - O ouvi dizer e levantei a cabeça.
John estava parado perto do banco e esperou que eu me afastasse para sentar ao meu lado.
Nós estávamos de novo no alto daquele morro, como em muitas outras vezes.
“Você se importa se eu colocar letra na sua música?” - Perguntei, apontando para o caderno.
Era engraçado como eu nunca me preocupava em perguntar o que ele estava fazendo ali, porque tinha vindo, se aquilo era um sonho ou se ele precisava de algo. Sempre parecia natural continuarmos uma conversa que não tinha realmente começado.
“A música é sua.” - Ele disse, sorrindo e dando de ombros. - “Desde que te faça feliz…”
Ficamos um tempo em silêncio, observando o mar brilhante de raios de sol.
“John?”
“Sim?”
“Eu estou com medo. Do futuro.”
“Você não precisa ter medo do que não pode controlar. Você só precisa decidir o que quer e ir atrás disso. Foco!”
“Mas eu não estou muito velha para começar tudo do zero? Eu não tenho mais 17 anos!”
Ele virou o rosto para mim, como se me analisasse.
“Nunca é tarde demais… Nós ainda somos jovens.”
Balancei a cabeça.
“Fácil para você dizer. Vai ter 22 anos para sempre…”
John riu.
“Verdade. Mas isso quer dizer que eu sempre vou ser o que você está vendo. Já você ainda tem a chance de ser o que quiser! E mudar sempre que tiver vontade. O que você tem a perder, afinal? Acredite em mim: vai ficar tudo bem!”
Voltei a olhar para frente, absorvendo aquilo que ele me dizia. Senti uma paz imensa vinda daquelas palavras, senti esperança de que John estava certo.
Eu ia me virar para agradecê-lo, mas ele não estava mais ali. E eu sabia que não voltaria a vê-lo; não daquela forma, pelo menos.
De alguma forma, porém, não me senti sozinha. Havia um sentimento quente no meu coração que eu sabia que não me abandonaria. Era esse sentimento que me motivaria a ser uma pessoa melhor. A ir atrás dos meus novos sonhos, me amar, me encontrar, voltar a amar outras pessoas no futuro, quem sabe...
Eu sabia que enquanto estivesse à procura das coisas que provocavam em mim a calmaria que a canção de John provocava, eu estaria andando no caminho certo.
Seguindo incessantemente The sound of reverie.
Essa era sim uma história de amor.
Era a história de um amor próprio recém encontrado que estava só começando!
Eu estava de pé no batente da porta com a última caixa da mudança nas mãos. Eu ainda achava estranho e um sinal nítido de fracasso admitir que estava voltando ao meu velho quarto na casa dos meus pais.
Minha mãe tirava pó da TV que agora parecia tão antiquada, mas na minha adolescência tinha sido um grande presente de Natal. A cama de solteiro com um edredom meio infantil… As fotos no mural já datadas e um pouco amareladas por pegarem sol quase todo dia.
Tudo ali estava exatamente como eu havia deixado há tanto tempo. Como se os últimos anos tivessem sido uma ilusão da minha cabeça. Quatro anos que cabiam em um mês. Uma fenda no tempo-espaço.
“Ficou bom?” - Minha mãe perguntou, ao me notar ali e dando uma olhada pelo quarto.
- “Vou comprar um edredom novo, não se preocupe!”
“Tá tudo ótimo!” - Respondi, colocando a caixa que segurava na penteadeira.
“Parece que foi ontem, né?” - Ela divagou, dizendo algo parecido com o que eu havia pensado. - “E aí num piscar de olhos… Vocês crescem!”
Sorri de lábios fechados e ela veio me dar um beijo no rosto.
“Obrigada, mãe!”
“De nada, minha querida! Vou descer e checar o seu pai na cozinha. Você sabe que não podemos deixá-lo sozinho!” - Falou, desaparecendo pela porta.
Me sentei na cadeira da penteadeira, meu reflexo no espelho me encarando como se não me reconhecesse. Eu havia sido metade por tanto tempo, que ainda não me via por completo. Parecia faltar algo. Mas eu sabia que não faltava. Que eu precisava me acostumar de novo a me bastar. Suspirei, me sentindo cansada. Fisicamente e psicologicamente.
Eu estava triste e despedaçada. Era o fim de um casamento e de um relacionamento que haviam feito rasgos talvez incuráveis em mim.
Num momento de vulnerabilidade pela perda de um amigo muito próximo, eu conheci a pessoa errada. Alguém disposto a usar minha fragilidade contra mim. Me tornar tão dependente dele, que eu achei que me voltar contra meus pais e amigos para nos casarmos era o único caminho. Com 24 anos, coloquei um anel bonito no dedo esquerdo, em uma cerimônia sem nenhum conhecido do meu lado da igreja. Fomos morar em um lugar longe, exigências do bom emprego que ele tinha, onde eu não pudesse responder se estava feliz, não tinha amigos de quem ele poderia sentir ciúmes, não saia de casa… Não existia.
Levou só um mês para eu me arrepender. E três anos e onze meses para que eu conseguisse me libertar.
Mas agora eu estava ali no meu velho quarto, admitindo a derrota. Mas meus pais, generosos como eles só, me acolheram de braços abertos. “O bom filho a casa torna”, recitaram, enquanto me abraçavam. E eu me lembrei o que era ser amada de verdade.
Eu não sabia dizer de onde o som vinha. Era uma melodia no violão que me acalmava. De repente percebi que ele estava ao meu lado. Nós estávamos no topo do morro onde costumávamos ir juntos.
“Eu vou chamar de The Sound of Reverie” - Disse.
Achei que era um nome apropriado. Eu sentia minha cabeça prazerosamente vazia. Ou cheia de pensamentos desconexos, mas bons. Como sonhar acordado em um dia de verão.
“Você acha que meus pais vão me perdoar um dia?” - Perguntei, mudando de assunto.
“Acho que já perdoaram.” - Ele continuava tocando a música, imperturbável.
“Você acha que eu vou me perdoar um dia?”
“Acho que você não pode perder tempo se sentindo mal com o que já passou.”
O lugar onde estávamos sentados sumiu e eu abri os olhos confusa para a escuridão do meu quarto. Levei um tempo para entender que havia sido um sonho.
Era a primeira vez que eu sonhava com ele em anos. Desde que tinha me casado, era como se ele fosse um dos amigos que deixei para trás. Eu o culpei por muito tempo pelo que tinha acontecido. Sua ausência havia me levado para aquele destino.
Mas naquela noite, enquanto eu fazia as pazes com John dentro de mim, eu também fazia as pazes comigo mesma. Eu concordava com o que ele havia dito. Eu precisava me perdoar e seguir em frente.
A única vantagem do fundo do poço era essa: Eu não tinha nada a perder.
Soltei o ar impaciente e reposicionei o violão no colo. A canção do sonho tocava na minha cabeça, mas eu parecia incapaz de reproduzí-la. O violão ainda era um pouco estranho a mim, como todo o resto da minha vida pré casamento, mas eu não iria desistir. Ir cantarolando a música parecia facilitar, porém eu precisaria de mais treino.
Eu tinha tempo, então estava tudo bem…
“Achei mesmo que tinha ouvido o violão!” - Meu pai estava parado na porta e eu me assustei ao perceber que ele me observava. Tinha estado tão absorta que não o vi chegar.
Sorri.
“Estou um pouco destreinada. Não consigo me lembrar de acordes… Mas estava na minha lista de coisas que eu nunca tinha feito e queria fazer. E de coisas que eu queria aperfeiçoar.” - Falei, apontando para o papelzinho perto dos meus pés.
“Você está indo bem.” - Ele disse e eu achei que não era só sobre o violão. Fiz que sim com a cabeça, me sentindo grata. - “Tá um solzão lá fora… Se eu fosse você, iria dar uma volta!”
Olhei pela janela e pude ver o quão azul o céu estava. Parecia convidativo.
“Boa ideia!” - Concordei, colocando o violão na cama e me levantando. Me virei para ele. - “Obrigada por guardarem o violão do John para mim. Significa muito!”
Meu pai abriu um sorriso quando me aproximei e o abracei.
“Sua mãe guardou esse edredom medonho… Porque não guardaria algo tão valioso?”
Rimos juntos e eu beijei seu rosto antes de sair.
A passagem de tempo era uma coisa agridoce ao meu ver. Mas era bom saber que o tempo que eu passava dentro daquela casacom meus pais ainda eram as melhores horas do meu dia. Isso não havia mudado.
A cidade dos meus pais, que agora voltava a ser minha também, não era grande. Era uma cidade humilde, cercada por montanhas, que ficava perto da costa. Por isso, se você subisse até um dos morros mais altos, era possível ver o mar ao longe, quase como uma miragem. Eu costumava passar muito tempo nesse lugar.
Ainda que houvesse como ir até lá de carro, naquele dia eu fui a pé. Eu não tinha pressa alguma e, tirando a garrafa d’água que comprei em uma vendinha ali por perto, não precisava de mais nada que não fossem meus pés e meus pulmões.
Não foi uma subida fácil, era verdade. Como todo o resto da minha vida, eu também não estava preparada para tanto exercício físico.
Mas para minha surpresa, foi aquele cansaço que me fez perceber algo. Passando por um carro estacionado no topo do morro, involuntariamente olhei para o reflexo para ver meu estado. E pela primeira vez em anos, me senti bonita. Meus olhos brilhavam com a alegria de finalmente ter chegado; eu sorria para ninguém, talvez para mim mesma; meu peito subia e descia tentando colocar ar para dentro dos pulmões e minhas bochechas e pescoço estavam vermelhos com o sangue que fluía rápido. O sangue que pulsava da pontinha do pé ao topo da minha cabeça.
Eu parecia viva. Eu estava viva.
E eu podia voltar a amar aquela pessoa sorridente.
Sentei no banco que costumava me sentar quando era mais jovem e fechei os olhos, sentindo o vento refrescar meu corpo. Com o tempo aberto como estava, eu podia ver o sol tocar o mar lá longe e me senti mais uma vez muito calma. Como no sonho da noite anterior.
O mundo era lindo, como há muito eu não via ou me lembrava. Ele também pulsava como algo vivo e se modificava, tentando sobreviver às adversidades.
E eu podia voltar a amar aquele mundo colorido.
As semanas que vieram depois não foram fáceis. Mas eu sabia que não seriam e talvez aquele primeiro dia tendo sido tão positivo me ajudou a ver que, independente de quão difícil parecesse, eu não havia tomado a decisão errada.
Meus pais foram pacientes e incondicionalmente amorosos. Minha mãe segurou minha mão firme na sala de espera na primeira visita ao terapeuta. E me esperou do lado de fora para depois me levar para casa. Me deu espaço, mas sem nunca sair do meu campo de visão. Meu pai me levou à loja de tintas e escolhemos juntos a nova cor do meu quarto. Nós redecoramos o cômodo todo enquanto ouvíamos músicas velhas e dançávamos descoordenados. Eles provavelmente sentiam como se tivessem a filhinha pequena mais uma vez embaixo de suas asas e eu aproveitei enquanto podia descansar e lamber minhas feridas em um lugar seguro.
Mas ter todo o tempo do mundo era uma benção e uma maldição. E logo o fato de não ter nada que fosse só meu começou a me incomodar. Uma grande interrogação sobre meu futuro que piscava em cores fluorescentes passou a ser parte da decoração do meu quarto. Eu deveria voltar para a faculdade? Fazer outro curso? Arrumar um emprego? Sair da casa dos meus pais? Sair daquela cidade?
Em um desses momentos de crise, enquanto eu andava pelo quarto afobada, quase não cabendo nos meus próprios pensamentos, avistei o violão de John escondido atrás dos meus casacos. Durante a reorganização do quarto, ele havia sido guardado e depois eu fui engolida pelo meu mundinho mais uma vez e o esquecera.
Logo me lembrei da canção que eu tanto queria aprender a tocar e como tinha sido fácil deixar mais aquilo de lado para me preocupar demais com outras coisas.
Me sentei no chão e dedilhei as cordas, enquanto fazia com a boca a melodia da música.
Toda a minha atenção só naquele exercício. Levou algumas horas, mas eu finalmente consegui e, quando isso aconteceu, eu me senti invencível. Uma sensação muito satisfatória de dever cumprido.
E se eu pudesse “parcelar” minha preocupações? E se eu as cortasse em pedaços que eu pudesse de fato digerir? Me concentrasse no que estava ao meu alcance em vez de tentar abraçar o mundo, como tinha sido com a tarefa de aprender a música. Era esse o caminho?
Se eu ao menos soubesse o que John achava daquilo… Ele sempre sabia o que fazer. Mesmo quando éramos mais jovens, sempre tivera esse ar sábio e esse dom de dizer o que eu precisava ouvir. Algumas pessoas simplesmente eram assim, eu acreditava. Luz na escuridão.
While it's still ours to take
'Cause some things hardly change
But nothing ever stays the same”
Minha cabeça sempre acabava divagando para outras coisas.
“Se você parar de desenhar corações e flores, talvez consiga continuar…” - O ouvi dizer e levantei a cabeça.
John estava parado perto do banco e esperou que eu me afastasse para sentar ao meu lado.
Nós estávamos de novo no alto daquele morro, como em muitas outras vezes.
“Você se importa se eu colocar letra na sua música?” - Perguntei, apontando para o caderno.
Era engraçado como eu nunca me preocupava em perguntar o que ele estava fazendo ali, porque tinha vindo, se aquilo era um sonho ou se ele precisava de algo. Sempre parecia natural continuarmos uma conversa que não tinha realmente começado.
“A música é sua.” - Ele disse, sorrindo e dando de ombros. - “Desde que te faça feliz…”
Ficamos um tempo em silêncio, observando o mar brilhante de raios de sol.
“John?”
“Sim?”
“Eu estou com medo. Do futuro.”
“Você não precisa ter medo do que não pode controlar. Você só precisa decidir o que quer e ir atrás disso. Foco!”
“Mas eu não estou muito velha para começar tudo do zero? Eu não tenho mais 17 anos!”
Ele virou o rosto para mim, como se me analisasse.
“Nunca é tarde demais… Nós ainda somos jovens.”
Balancei a cabeça.
“Fácil para você dizer. Vai ter 22 anos para sempre…”
John riu.
“Verdade. Mas isso quer dizer que eu sempre vou ser o que você está vendo. Já você ainda tem a chance de ser o que quiser! E mudar sempre que tiver vontade. O que você tem a perder, afinal? Acredite em mim: vai ficar tudo bem!”
Voltei a olhar para frente, absorvendo aquilo que ele me dizia. Senti uma paz imensa vinda daquelas palavras, senti esperança de que John estava certo.
Eu ia me virar para agradecê-lo, mas ele não estava mais ali. E eu sabia que não voltaria a vê-lo; não daquela forma, pelo menos.
De alguma forma, porém, não me senti sozinha. Havia um sentimento quente no meu coração que eu sabia que não me abandonaria. Era esse sentimento que me motivaria a ser uma pessoa melhor. A ir atrás dos meus novos sonhos, me amar, me encontrar, voltar a amar outras pessoas no futuro, quem sabe...
Eu sabia que enquanto estivesse à procura das coisas que provocavam em mim a calmaria que a canção de John provocava, eu estaria andando no caminho certo.
Seguindo incessantemente The sound of reverie.
Essa era sim uma história de amor.
Era a história de um amor próprio recém encontrado que estava só começando!
FIM.
Nota da autora: Antes de começar a rasgar todas as minhas sedas pra essa música, eu queria dizer que sim, eu matei o John nessa fic. Como a ideia era que a pp estivesse saindo de um relacionamento abusivo, eu não queria outro par romântico para ela. “Po, Lari, mas era só deixar o rapaz vivo sendo amigo dela, irmão dela… Sei lá!”. Pois é, ia ser isso mesmo. Mas aí me veio a ideia da protagonista no topo do morro sentadinha com ele no diálogo final e o “John the Ghost” na cabeça ao mesmo tempo. E eu achei que ia ficar diferente e valia a pena tentar. O que vocês acharam? Muita viagem? Muito “A Viagem” (essa referência é só pras 90’s kids)? Não deixem de comentar aqui!
Agora vamos falar dela que é a minha música de 2017! Eu nem tinha entrado no ficstape do LLL, apesar dele ser (para mim) o álbum do ano. Mas quando vi que logo ela e Little estavam vagas… Achei que era um sinal!
Os dois primeiros parágrafos da fic são meio autobiográficos. Em abril desse ano eu terminei um capítulo da minha vida (diferente da protagonista, era o melhor capítulo da minha vida) e estava nervosa e triste em voltar para casa. E meio perdida sobre o futuro também. Little e Sound of Reverie vieram na hora certa pra me dizer tudo o que eu precisava escutar. Até hoje elas me tocam tão fundo, que se eu estiver ouvindo realmente concentrada, me dá vontade de chorar. E em julho eu quis dizer isso pro John, agradecer a ele por escrever a cama elástica que estava embaixo da minha corda bamba quando eu caí. Mas me deu uma tela azul no M&G e eu só balbuciei umas palavras e não falei nada que tinha ensaiado, hahahahahaha… Fica pra próxima! De qualquer forma, são coisas assim que me fazem amar a música e o poder que ela tem!
Enfim… Eu espero ter feito jus a essa música que significa tanto pra mim, apesar da fic ter ficado curtinha e corrida, e tenho certeza que também significa pra um monte de gente (me dei conta agora que eu overshared um bocado nessa nota da autora hahahaha).
Desculpa não ter feito uma fanfic-história de amor convencional… Achei que essa letra merecia algo mais transcendental.
Outras Fanfics:
On the third floor (1D/Em andamento)
Trap (1D/Finalizada)
When we were young (Outros/Finalizada)
While my guitar gently weeps (Outros/Finalizada)
06. Glasgow (Ficstape Catfish and the Bottlemen/Finalizada)
Nota da beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
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