Capítulo Único
Malibu era a cidade perfeita para se passar as férias. Mais do que isso, no entanto, esperava que fosse também a cidade perfeita para ter algo próximo de um recomeço. Depois de todo o caos dos últimos meses, cursar uma universidade na Califórnia - para a qual seus esforços tinham rendido uma bolsa integral - e passar um tempo com a tia preferida parecia a melhor opção para silenciar um pouco todos os problemas recentes.
Sentia uma pontada no peito por deixar a mãe para trás em um momento tão delicado, mas, no fim das contas, tinha sido a progenitora a primeira a se dissolver em lágrimas de orgulho e a incentivá-la a ir ao ponto de ameaçá-la caso tomasse uma decisão negativa. Uma oportunidade dessas não aparecia sempre; muito menos para pessoas como elas, cuja simples permanência no país era incerta por baixíssimas expectativas do que o homem que ocupava a Casa Branca - sempre se recusaram a chamá-lo Presidente - poderia fazer e falar para seus seguidores, constantemente cegos pelo ódio e pelo preconceito, culpando pessoas diferentes pelos seus próprios problemas, falhas e incapacidades. Era muito fácil jogar a culpa de sua incompetência nas costas de uma ‘minoria’ historicamente marginalizada.
Por mais que quisesse respirar bem fundo, abandonar os próprios problemas no canto do quarto, onde deixava as caixas agora vazias, e seguir sua vida, sabia bem que todos aqueles pensamentos jamais abandonariam sua mente por completo. Nem o medo, nem a xenofobia e nem o trauma. era boa em muitas coisas, mas superar o que acontecera não era uma delas.
— Vai almoçar comigo? - A tia perguntou, aparecendo à porta do quarto que a jovem agora ocupava.
— Depende. É alguma gororoba fit de novo?
Rosa olhou para ela, com desprezo. não suportava o amontoado fedorento de coisas estranhas que a tia comia em alguma dieta bizarra que ela havia visto em algum lugar e, na maior parte do tempo, era inútil tentar convencê-la de que deveria procurar um nutricionista e aprender a comer direito. O que, basicamente, significava comer de tudo e não viver de gororobas fit que não tinham a taxa calórica diária suficiente nem para um louva-deus.
— Não. Tem salada, frango grelhado e purê de abóbora.
deu de ombros, guardando a camisa que tinha em mãos antes de se levantar.
— Continua saudável, mas é comida de gente. É um grande avanço, estou orgulhosa.
— Garota, eu vou te jogar dessa escada. Não me provoca - Rosa ameaçou, arrancando risadas da sobrinha. Era a mais nova irmã por parte de mãe e havia crescido muito apegada a ela, por mais que brincassem e brigassem como irmãs mais do que como tia e sobrinha.
Arrumaram seus respectivos pratos e se dirigiram a mesa branca, que sempre fazia os olhos arderem, parecendo polida demais. A garota tinha que confessar que tinha medo até de respirar um pouco mais forte perto do prato e fazê-lo deslizar pela mobília lisa e escorregadia. Qualquer hora dessas, teria que dar uma faxina na cozinha depois de derrubar tudo no chão.
— Já conheceu alguém da faculdade? - Rosa quis saber.
— Tia, eu nem pisei na faculdade ainda.
— E desde quando as pessoas aproveitam a faculdade estando nela?
fez uma careta, repreendendo-a.
— Brincadeirinha. Nada de matar aula, você tem bolsa.
— Eu nem estava pensando em faltar.
— Melhor ainda! Sua mãe estaria orgulhosa. Mas o que eu ia te falar mesmo era que vai ter uma festa hoje na praia, tipo um luau ou sei lá como vocês, jovens, chamam as coisas. É aberto e só vai dar gente da sua idade.
— E velhos tarados - a mais nova completou.
— Meu amor, sempre terão velhos tarados. O mundo é uma merda. Mas você precisa sair, se divertir, conhecer pessoas da sua idade e esmagar as partes baixas de homens idiotas com seu joelho.
— Obrigada por compartilhar sua sabedoria.
— Não por isso - Rosa respondeu. — Mas é sério. Você acabou de chegar, vai aproveitar a cidade, conhecer as pessoas. Vai ser incrível.
— Se eu for, você para de me encher?
— Nós duas sabemos que isso não vai acontecer.
♬♬♬
Mesmo sabendo que a chantagem não valeria de nada, sabia que a tia estava certa e ela queria mesmo sair. Como podia ir para Malibu sem aproveitar a praia? Era como ir a Las Vegas e não sair de lá casado.
Quando chegou ao local previsto, viu várias pessoas posicionando barris e coolers pela areia, estendendo as últimas toalhas e panos. A fogueira já estava acesa, começando a contrastar com o entardecer em uma paleta de cores digna de uma obra de arte a ser exposta em um museu caro para o qual seu orçamento jamais conseguiria comprar uma entrada.
— Precisa de ajuda? - Perguntou, aproximando-se de uma garota ruiva que parecia prestes a protagonizar uma queda colossal do topo da escada.
— Eu preciso prender essas luzinhas - ela apontou. — Pode segurar aí embaixo?
prontamente o fez, apertando os dedos contra os pés da escada. Não demorou para que a ruiva finalizasse o próprio trabalho com um sorriso orgulhoso.
— Eu nunca te vi por aqui.
— Cheguei ontem - a outra deu de ombros. — Sou a .
— Anne - a ruiva respondeu. — Que incrível já chegar em Malibu com o pé direito, em uma festa dessas. Pode ir se acostumando.
A outra esboçou um sorriso nervoso, ainda incerta. Não sabia se aquela tinha sido a melhor ideia do mundo. Talvez devesse simplesmente ter ficado em casa, reassistido às primeiras temporadas de Grey’s Anatomy - até porque eles já tinham se perdido e destruído a série mesmo - e feito doce de leite.
— Vem, vou te apresentar a uns amigos - Anne disse, puxando-a pela mão e obrigando-a a segui-la até o local que alguns jovens ocupavam, já abrindo as primeiras cervejas. — Gente, essa é a e ela chegou ontem. Tentem não passar vergonha.
Todos se apresentaram rapidamente, enquanto bebiam e organizavam os instrumentos e seus respectivos cabos. Era incrível a capacidade de jovens adultos em conseguir fazer várias coisas ao mesmo tempo, desde que uma delas incluísse equilibrar um pouco de álcool.
— Como você é nova por aqui, acho que vou te dar a incrível honra de pedir uma música antes que a gente comece a tocar - um dos rapazes, pelo que ela se lembrava, disse com um sorriso largo que deixaria qualquer odontologista orgulhoso. Ele claramente poderia ser garoto propaganda de alguma marca de pasta de dentes recomendada por 9 a cada 10 dentistas.
— Quão clichê eu sou se pedir Riptide?
riu, enquanto apertava e afinava o violão.
— Clichê o suficiente para eu não me esquecer disso.
Ela mordeu o lábio, segurando uma risada. Tinha acabado de perceber o detalhe que se formava na testa dele, quase como uma ruguinha, sempre que ele dava risada de qualquer coisa que falavam para ele. Sem contar as covinhas perto da bochecha, emoldurando sua face com perfeição. Deveria existir algum tipo de proibição em relação a ser brutalmente bonito, charmoso e encantador simultaneamente daquele jeito.
— Lady, running down to the riptide, taken away to the dark side, I wanna be your left hand man - ele cantarolou, dedilhando as cordas do instrumento.
Certo. Ele tocava e cantava bem também. Por que Deus tinha que ser tão óbvio quanto aos seus preferidos? Deveria ser tão injusto quanto uma mãe admitir que preferia um dos seus filhos, mesmo que no fundo todos eles soubessem que ela tinha um.
— De onde você veio, ?
— Minha família é mexicana, mas morávamos em uma cidade nos arredores de Miami há alguns anos já - ela explicou. — Vim para cá fazer faculdade.
— E tem família aqui?
Ela assentiu.
— Estou morando com a minha tia.
— Lá tem lugares bons para estudar - ponderou. — Por que sair? Não que eu não esteja feliz em te receber aqui, porque eu posso dizer com toda a convicção do mundo que estou.
A olhada pouco discreta que ele lhe deu, sem ser desrespeitoso, fez com que um arrepio corresse pela espinha da garota. Era normal querer descobrir a sensação do toque dos lábios de alguém que você conhecia há menos de trinta minutos? mordeu a pontinha do lábio, desviando o olhar, meio sem jeito.
— Problemas familiares - disse, abraçando o próprio corpo quando uma brisa um pouco mais forte veio do mar. — Muita coisa mudou bruscamente… Enfim, minha mãe achou melhor eu recomeçar em um lugar mais longe e eu sempre fui apegada à minha tia, então…
— Então aqui estamos - completou, com um sorriso, enquanto colocava a própria jaqueta sobre os ombros dela. Ela não tinha pedido por aquilo e nem previsto a atitude.
— Aqui estamos - ela repetiu, vendo-o perto demais.
— Vamos começar a tocar já já. Acho que posso deixar você no camarote VIP, também conhecido como sentada do meu lado.
— Que honra - ela comentou, erguendo um olhar surpreso. — Já posso me considerar uma groupie?
— As groupies costumam ir embora com o músico no fim da noite - ele disse e, de repente, sentiu que ele estava perto demais e provavelmente consumindo todo o oxigênio entre eles. Era a única explicação para a falta de ar que ela teve de repente. — Você pode se considerar uma groupie?
— , vem logo - Kyle gritou, quebrando a tensão entre os dois. não sabia se estava decepcionada ou aliviada por não ter a chance de responder.
Mas o rapaz não parecia disposto a desistir. Puxou-a pela mão, guiando-a até o local em que o grupo se sentava. Fez questão de sentar, colocar o violão sobre a perna e ceder espaço para ela ao seu lado.
— Oi pessoal - Kyle começou. — Bem-vindos ao nosso pocket show open bar. Espero que tenham pagado pelos ingressos na entrada porque é uma honra para vocês estarem aqui.
— Cala a boca e começa logo - Anne reclamou, enquanto mais pessoas se aproximavam, decidindo se sentavam em algum dos tecidos dispostos na areia ou se permaneciam em pé.
Com as primeiras notas, começaram o protótipo de show, trazendo consigo várias vozes desafinadas e pouco sincronizadas em cada canção. ria de algumas danças estranhas, totalmente ofuscadas por algumas garotas que, ao contrário da maioria, sabiam bem o que estavam fazendo e como dançar de forma a chamar atenção de um jeito positivo. Elas eram maravilhosas e se pegou precisando repreender a si própria por ter uma sensação estranha e desconfortável que só poderia ser indícios de inveja.
— O que foi? - perguntou, percebendo que ela tinha ficado quieta de repente. Ergueu o olhar para onde o dela estava, reconhecendo a mulher que mexia os quadris como se fosse o movimento mais simples de todo o universo. — É a Leah. O Kyle é completamente fissurado por ela.
— Jura?
— Desde o Ensino Médio. Ele simplesmente não supera o fora que tomou na formatura.
soltou uma risada fraca. Leah parecia o tipo de pessoa que lhe diria um ‘não’ alto e claro e você ainda agradeceria mesmo que fosse apenas pelos míseros segundos de atenção. Se Afrodite realmente assumia a forma humana que bem entendia para se divertir em terra, talvez lá ela estivesse, perdida - ou nem tanto - em uma festa adolescente com substâncias altamente perturbadoras do sistema nervoso, deixando alguns rapazes e garotas completamente obcecados por cada movimento. Rick Riordan estaria orgulhoso.
detestou se dar conta de que se sentia insegura perto de pessoas como ela. Sempre defenderia a beleza única de cada pessoa e abominaria a competição, mas era um discurso muito mais simples falado que praticado. Principalmente depois de tudo o que havia acontecido.
— Acho que ninguém precisa de mim aqui mais - comentou, colocando o violão nas costas. — Vem, vamos pegar alguma coisa para beber.
Ela já estava ficando mal acostumada com aquela mania que ele tinha de simplesmente tomar sua mão sem aviso prévio, causando faíscas por toda a extensão do seu braço, ainda coberto pela jaqueta dele.
Pegaram duas cervejas para cada, sem se importar se elas esquentariam. Aquele era um problema pequeno a se enfrentar considerando que não tinham a intenção de retornar ao meio da multidão tão cedo.
— Acho que eu não te perguntei - ele começou a puxar assunto, sentando-se em um deque relativamente desgastado, que não parecia seguro o suficiente. o imitou. — Onde você vai fazer faculdade?
— Pepperdine.
Ele arregalou os olhos, mexendo a mão livre de um jeito engraçado.
— Você é minha caloura - concluiu. — Que incrível! Você vai amar a faculdade. Pelo menos na maior parte do tempo.
sorriu nervosa. A ansiedade de uma fase, uma cidade e um lugar novos ainda era latente em excesso. Tinha que respirar fundo e pensar que nem tudo precisava sempre ser ruim. Ainda mais quando já conhecia alguém e não tivera problemas a princípio com as outras pessoas a quem tinha dirigido algumas palavras.
— Posso te ajudar com as matérias, se quiser - comentou. — Não que eu seja o melhor aluno. Ah, também posso te ajudar a se situar, se localizar… Acho que eu sou melhor nisso.
— Eu com certeza vou precisar.
O tempo passava, com ambos em silêncio, bebendo embalados pelo som de Kyle tocando qualquer coisa à distância e das ondas que ainda quebravam fracamente.
— De que signo você é? - perguntou, causando estranhamento em . Astrologia? Sério? Ela não sabia exatamente o que pensar daquilo.
— Virgem - ela respondeu, ainda não totalmente confiante se deveria ter saído correndo enquanto tinha tempo.
pareceu pensar por alguns instantes, enquanto olhava para cima. De repente, apontou para um lugar no céu, fazendo com que ela tentasse olhar para onde seu dedo apontava.
— Aquela ali é a constelação de Virgem - ele mostrou um punhado de estrelas. — E aquela outra é de sagitário.
Ela observou, atenta, tentando vislumbrar qualquer tipo de definição no céu noturno. Se havia uma coisa que ela detestava na astronomia, essa coisa era a sua total incapacidade de enxergar o formato que as constelações teoricamente tinham. Não conseguia definir absolutamente nada e se sentia absolutamente patética por isso, mesmo que, em diversos momentos, soubesse perfeitamente que não era exatamente sua culpa. Várias constelações não se pareciam em nada com aquilo que diziam que elas formavam. As pessoas que davam seus nomes provavelmente o faziam chapadas demais.
— Sério? - Ela perguntou, ainda tentando entender onde exatamente era Virgem.
— Não faço ideia - ele deu de ombros. — Era só para parecer que eu sabia de alguma coisa.
Ela riu, empurrando-o de leve com o ombro.
— Você é ridículo.
— Caramba, , a gente acabou de se conhecer e você já tem tantos elogios para mim… Desse jeito vou ficar mal acostumado.
A garota não ousou verbalizar, mas aquele comentário tinha feito com que ela divagasse brutalmente. Tinha total noção do alto teor de ironia naquela fala, mas também sabia que mal o conhecia e, mesmo assim, poderia fazer uma lista enorme de elogios para ele. Mesmo que a maioria deles fosse um completo reflexo de todas as coisas carnais - e possivelmente obscenas - que queria fazer com ele naquele exato momento. Hormônios eram mesmo uma porcaria.
Mas ela não precisou dizer uma palavra sequer para que ele parecesse entender cada um de seus pensamentos impuros e concordar silenciosa e solenemente com todos eles.
A sensação de sua boca na dele era muito melhor e mais intensa do que ela poderia esperar. Ele tinha pegada e isso era inegável; além de obviamente saber perfeitamente o que fazer com seu corpo. Não era como se fosse uma iniciante em beijos, mas , com certeza, havia acabado de se colocar na primeira posição no ranking dos melhores que ela havia experimentado.
O efeito que ele tinha sobre cada uma de suas terminações nervosas era implacável e fazia com que ela se sentisse em um estado misto do mais completo torpor e excitação. O jeito que ele a explorava, como se soubesse exatamente o que estava fazendo… sentia seu cérebro derreter a cada volta que sua língua dava.
Perderam completamente a noção do tempo, conhecendo um ao outro entre alguns papos curtos e vários beijos longos. O céu já tinha adquirido um conjunto de seus tons mais escuros, quando decidiu se arriscar e refazer a pergunta de mais cedo:
— Ainda não me respondeu se vai se considerar uma groupie - sussurrou, respirando contra o pescoço dela, antes de deixar um toque molhado de seus lábios por ali.
arrepiou por completo, não sabendo se era uma reação ao beijo ou à fala. Sabia perfeitamente o que aquele questionamento realmente queria saber. E, apesar de todas as suas incertezas, ouviu a voz da mãe e da tia, sempre cobrando-a para que fizesse as coisas que tivesse vontade - claro, sempre com responsabilidade - e aproveitasse sua juventude, sem se esconder de qualquer parte dela. Foi isso que a fez respirar fundo antes de responder com outra pergunta. Dessa vez, um tanto retórica.
— Por que não?
♬♬♬
ria alto, balançando de leve, junto ao movimento de seu próprio corpo. uma vez que o seu braço se encontrava pendurado de uma forma despojada e despreocupada sobre seu ombro. Os dois tinham se tornado cada vez mais dispostos a cumprir a meta de se conhecerem como ninguém no menor intervalo de tempo possível. E fora isso que os fizera ir ao shopping algumas vezes, ver uns filmes, comer em vários lugares diferentes e retornar incansavelmente à praia - em especial às memórias do deque da primeira noite - durante as últimas três semanas. Nenhum deles parecia disposto a reclamar disso.
— E daí a senhora Wells disse que se eu não entregar um trabalho decente na segunda-feira, eu vou reprovar a matéria dela sem ter uma chance sequer de tentar argumentar - Kyle contou, exasperado demais na mesa do pequeno restaurante familiar no qual costumavam almoçar juntos após as aulas da manhã.
— Caramba, Kyle, você precisa fazer um trabalho - Anne repetiu, inexpressiva. — Deve ser uma merda descobrir que você é absolutamente igual a todas as outras pessoas e ser obrigado a fazer o que todo mundo faz.
segurou a risada, enquanto o rapaz revirava os olhos para o comentário recém-feito.
— Para a sua informação, eu já fiz vários trabalhos, ok? Meu problema é especificamente com a data desse.
— Cara, o trabalho era para ontem - o lembrou. — Você devia era dar graças a Deus pela boa vontade da senhora Wells em permitir que você entregue segunda-feira.
— Mas ela quer que eu escreva pelo menos umas dez páginas! Não tem condição.
— Por isso que o trabalho foi dado com vinte dias de antecedência - Anne comentou, enquanto usava o canudo de papel para balançar o concentrado de açúcar que havia se formado no fundo de seu copo de suco de laranja. — E mesmo assim você tem o final de semana inteiro. Quem precisa dormir?
Kyle bufou, limpando com um guardanapo o molho que havia restado no canto de seus lábios.
— Eu tenho compromisso no fim de semana.
— Ah, é? - perguntou. — Qual?
— Eu chamei a Leah para sair.
A expressão que se sucedeu no rosto de Anne era um misto de descrença e nojo, cujo conjunto da obra se tornava completo com um longo e demorado revirar de olhos.
— E ela por acaso aceitou?
— Não, mas eu ia perguntar de novo, só para ter certeza. - O rapaz deu de ombros, enquanto bagunçava os próprios cabelos queimados pela altíssima frequência de exposição ao sol.
— Isso é bem chato - murmurou.
— O que é chato? - Kyle perguntou.
— Isso, Kyle - Anne interveio, com a voz alta. — Essa sua insistência patética em alguém que claramente não quer nada com você. E, pior, você ficar no pé de alguém que já te disse não com todas as letras. Você já era triste e deprimente, mas isso já é desrespeito. Não é não. Você não precisa confirmar. Deixa a garota em paz e segue com a droga da sua vida.
— Elas têm razão, cara - completou e o amigo não parecia feliz com a bronca.
sabia que Anne estava saturada daquele papo. Se ela, que tinha acabado de chegar, já se incomodava com a persistência cansativa, imaginava como a amiga se sentia. Ainda mais quando a garota claramente alimentava uma quedinha silenciosa - mas não tão bem escondida - pelo rapaz que só tinha olhos para outra. De qualquer forma, nem todos os ciúmes e frustração do universo poderiam ser poupados quando ele literalmente estava passando dos limites, estando realmente prestes a desrespeitar outra mulher.
— Eu sei que elas têm razão. - Ele bufou. — Só é uma merda curtir alguém que não te dá a mínima.
— Nem me fala - Anne reclamou, com um sorriso irônico, enquanto se levantou para devolver o prato utilizado no local adequado.
e trocaram um olhar cúmplice, apiedando-se um tanto da situação.
— O casal do momento está sabendo de alguma coisa que eu não sei? - Kyle perguntou, alternando seu olhar entre os dois que restavam na mesa.
— Eu estou sabendo que você tem um trabalho enorme para fazer e devia ir para casa começar - disse, levantando do seu lugar. — Isso é sério. Eu vou gravar nosso EP sozinho se você bombar nessa merda. Você precisa mesmo ter mais responsabilidade.
— Eu odeio vocês todos.
— Sabemos.
♬♬♬
— Vocês podem se sentar aqui - o homem grisalho apontou para duas cadeiras ao seu lado, nas quais as garotas se sentaram. — E você pode ir para a cabine.
entrou, observando todos os instrumentos, microfones, fiações e rindo sozinho de como achava incrível um vidro à prova de som naquele nível de eficiência. A maioria das pessoas provavelmente o acharia um tonto por isso. Do lado de dentro, mandou um beijo para , recebendo um sorriso largo e uma piscadela em resposta. Se aquele já era um dos melhores dias de sua vida só pelo que estava prestes a acontecer, tê-la ali, presenciando aquele momento fatídico, só o tornava ainda melhor e mais especial.
— Vocês são nojentos - Anne resmungou, dando uma risada em seguida. — É sério, garota, meu plano de saúde vai me abandonar se eu desenvolver diabetes por sua causa.
— Mas você bem que queria desenvolver diabetes por causa do Kyle - lembrou, fazendo a amiga revirar os olhos.
— Ele que morra sozinho. Cansei.
engasgou com a própria risada, tossindo de forma descontrolada, enquanto a amiga dava tapas em suas costas com força.
— Não é porque você quer que ele morra que precisa me matar também - comentou, alisando a coluna dolorida e, provavelmente avermelhada.
— Por isso mesmo que eu estava te salvando - Anne explicou. — De nada.
A outra jovem nem teve tempo de responder qualquer coisa, sendo interrompida - e pega de surpresa - por uma movimentação barulhenta, totalmente oposta a qualquer tentativa possível de discrição. Pela respiração pesada e profunda, ele realmente estava com tanta pressa quanto demonstrava com a sua chegada.
— Quem é vivo sempre aparece - comentou, enquanto terminava de ajustar a afinação do violão.
— Vocês não vão acreditar - Kyle falou, com a voz entrecortada, ainda tentando recuperar o fôlego. — A senhora Wells me deu uma nota boa. Estou salvo.
— Parabéns! - comemorou rapidamente. — Agora, entra logo, que o Michael não vai esperar o dia todo.
— Não vou mesmo - Michael confirmou, enquanto mantinha um sorriso divertido nos lábios.
Ninguém sabia explicar ao certo como as coisas tinham acontecido naquelas últimas semanas. Não dava para explicar como tudo havia sido tão rápido e nem como pontuar exatamente o momento em que tudo começou.
Michael havia literalmente surgido sem qualquer aviso prévio na porta de Pepperdine, apresentando-se da forma mais trivial do universo enquanto explicava que havia visto alguns vídeos do luau e tinha realmente curtido o som um tanto alternativo da dupla de rapazes.
O choque foi óbvio e ninguém soube muito bem como reagir. Não sabiam que alguém tinha realizado a gravação e muito menos que a mesma tinha sido postada na internet para que o mundo inteiro tivesse acesso. E entre o mundo todo, logo Michael tinha visto e se interessado. Algumas coisas simplesmente pareciam surreais demais às vezes.
Mas ninguém era nem louco de recusar uma oportunidade daquelas, por mais inesperada que ela pudesse parecer. Quando Michael sugeriu que eles fizessem um teste, gravando e lançando um EP com algumas músicas originais, ninguém pensou duas vezes. e Kyle provavelmente tinham berrado “SIM” antes mesmo de pensar naquilo pela primeira vez. E agora ali estavam, um passo mais perto de realizar um sonho que até então parecia completamente inalcançável.
— Podemos começar? - Michael perguntou, enquanto os dois jovens colocavam fones de ouvido pretos enormes que faziam Anne ter alguns arrepios, pensando em como aquilo deveria amassar completamente as suas orelhas.
Kyle fez um sinal afirmativo, enquanto Michael empurrava e apertava alguns botões no painel, fazendo com que a base de uma melodia leve, com uma pitada da vibe litorânea, soasse pelos auto-falantes e caixas de som. acompanhou com o violão, enquanto o amigo batucava ritmadamente em uma caixa. não conseguia tirar o sorriso orgulhoso do rosto. Ao menos não antes de ouvir a letra.
— Acho que eu não tinha ouvido essa música ainda - ela comentou, chamando a atenção de Anne.
— Eu também não. - A outra deu de ombros. — Acho que eles levaram a sério quando o Michael disse que estava louco para lançar algumas músicas inéditas.
Os dois continuavam cantando juntos, contando musicalmente a história de um rapaz que se apaixonava por uma garota da qual ele sabia pouco mais do que o nome. Mesmo com toda a rejeição e o descaso, ele permanecia tentando chamar a atenção dela enquanto ela dançava maravilhosamente. sabia que conhecia aquela história de algum lugar.
Ela soltou uma risada abafada.
— Por acaso isso é uma tentativa do Kyle de escrever sobre a Leah? Porque ela claramente é a garota de quem estamos falando.
— É bem óbvio mesmo - Anne suspirou, infeliz. — Ele nunca vai superar e ainda decide eternizar isso em uma música no primeiro EP?
— Não foi Kyle quem escreveu a música - Michael se intrometeu no papo delas. — Todas as canções que eles me apresentaram foram compostas pelo . Sozinho.
De repente o peixe frito do almoço parecia ter recuperado sua vida e voltado a nadar e se debater com ódio contra as paredes do estômago de . Se aquilo fosse um desenho animado caricato, ela com certeza teria ficado vergonhosamente verde.
— Preciso ir ao banheiro - disse, simplesmente, andando até a porta da sala.
— Ok, garotos. Ficou muito bom - Michael comentou, ignorando-a completamente. — Mais uma vez do começo, sim?
continuou caminhando a passos pesados pelo corredor, até encontrar a placa que tinha avistado mais cedo, com uma bonequinha vermelha desenhada na porta. Estava tentando respirar fundo e juntar as peças para entender tudo aquilo. Piscou com força, tentando afastar os pensamentos ruins e sabotadores, mas já era tarde demais.
Lembrava-se da primeira vez em que havia falado sobre Leah. Lembrava-se de ter invejado cada um de seus passos excessivamente precisos e sensuais de dança. Lembrava-se de ter tentado suprimir a sensação de que precisava ser um pouco mais como ela para chamar atenção de alguém. Para ser desejada. Mas havia conseguido fazer com que ela acreditasse que ele a queria, mesmo com alguém como Leah por perto. Não parecia mais uma verdade assim tão segura.
sabia muito pouco sobre música e processos criativos que fossem além de seus trabalhos para a escola e, agora, para a faculdade. Mesmo assim, tinha uma impressão muito forte e certeira de que as pessoas não escreviam sobre outras por nada. Algum de seus cantores favoritos - ela nem lembrava ao certo qual - havia dado uma entrevista dizendo sobre a facilidade que era escrever e cantar contando as suas próprias histórias. Ela só se sentia uma idiota por não ter percebido que era apenas um personagem secundário inútil e não o par romântico dele.
— Você está exagerando - ela repetia para si mesma. — Não é verdade. Ele não mentiu.
Mas ela já não sabia se acreditava mais naquilo, por mais que quisesse com todas as suas forças. Respirou fundo, enquanto lavava o rosto com água gelada corrente. Precisava se parecer menos com uma morta viva, destruída após uma festa intensa ou uma fossa igualmente profunda.
Retornou à sala de gravação, vendo os rapazes já recolhendo os instrumentos.
— Você perdeu a segunda música - Anne comentou.
— Foi mal. O peixe do almoço não me fez muito bem.
— E é por isso que eu não como peixe em dia útil - a outra comentou, rindo e se retirando dali.
sentia sua respiração ainda relativamente descompassada. Precisava agir normalmente. Precisava entender que aquilo era fruto de uma imaginação fértil e traumatizada, não a realidade. era perfeito, doce, gentil, atencioso… Mentiroso definitivamente não era um adjetivo que parecia se encaixar bem aos demais.
— Quer, sei lá, tomar um sorvete? - Ela perguntou, tentando controlar a entonação da própria voz e disfarçar o tsunami que se erguia cada vez mais, prestes a destruí-la por dentro.
beijou sua bochecha rapidamente antes de responder.
— Desculpa, linda. Hoje eu não posso. Tenho um compromisso. Mas nos vemos amanhã depois da aula, pode ser?
— Claro. - O sorriso que ela tentou forçar provavelmente tinha sido completamente ridículo. Mas era tudo o que ela tinha a oferecer naquele momento.
Enquanto analisava as costas dele se afastando, ela teve certeza de que o tsunami já havia chegado à costa.
Oh, and I don’t mean to get so caught up and insecure
(E eu não quero ficar tão presa e insegura)
About all the things you say
(Sobre todas as coisas que você diz)
Oh, and I don’t mean to be jealous, it’s just careless me
(E eu não quero ser ciumenta, é só descuido meu)
Boy, I must drive you mad
(Garoto, eu devo te enlouquecer)
Singing, singing, singing ooh-la-la, he breaks my heart
(Cantando, cantando, cantando ooh-la-la, ele parte meu coração)
I know he thinks about her when he plays guitar
(Eu sei que ele pensa nela quando toca violão)
Ooh-la-la, my american boy
(Ooh-la-la, meu garoto americano)
♬♬♬
já tinha lido a teoria para a prova que seria aplicada dali a três dias pelo menos umas cinquenta vezes. Não adiantava. Era como se nada que ela lesse fosse absorvido, independentemente do quanto tentasse ou se esforçasse para aquilo. Sua cabeça estava longe demais, espiralando em um ciclo vicioso de pensamentos ruins que faziam com que seu coração doesse de tal forma que ela chegou a se questionar sobre a possibilidade de estar infartando.
Mal tinha visto os garotos nos últimos dias. Eles estavam quase completamente dedicados às gravações e ainda tinham a faculdade para conciliar. Eles tinham convidado-as para ouvir as últimas demos das músicas, mas recusou o convite, usando alguma desculpa aleatória sobre precisar comprar algo com a tia exatamente no mesmo horário. Não sabia se estava pronta para ouvir outra música como aquela e não estava a fim de ter um episódio vergonhoso em público novamente. Podia facilmente se poupar daquela vergonha.
Contudo, por mais que tivesse fisicamente se afastado de toda aquela situação, não havia conseguido cumprir a mesma proeza em termos psicológicos. Uma placa grande e vistosa piscava com luzes em neon em sua mente, berrando sobre como ela poderia ser facilmente trocada porque, afinal, sequer havia significado qualquer coisa. Talvez aquela fosse uma maldição de família. Era a única coisa que ela era capaz de concluir após tudo o que havia acontecido. A história parecia se esforçar intensamente para se repetir.
Não havia admitido aquilo em voz alta para ninguém. Só a tia sabia da real motivação pela qual havia se mudado e nem ela ficara sabendo da história por sua boca. nunca conheceu o avô materno. A história sabida entre a família era que ele havia abandonado sua avó quando Rosa nascera, justificando que nunca quisera sequer uma filha, quem dirá duas. Não tinha intenção alguma de criar duas mulheres, ainda mais quando não havia tido seu filho homem - motivo pelo qual ele culpava a esposa abandonada, mesmo que a “culpa” biológica só pudesse ser atribuída a ele próprio e mais ninguém.
Como em uma constante maldita em suas vidas, a mãe de também não tinha exatamente tirado a sorte grande. Os dezessete anos de casamento não haviam acabado da melhor forma possível quando uma ligação supostamente anônima e obviamente intencional denunciou uma traição que já vinha ocorrendo há pelo menos seis anos enquanto ele dizia estar preso no trabalho ou saindo há negócios. Talvez manter uma relação adúltera com a secretária pudesse ser considerado trabalho no fim das contas.
Mas a traição nem de longe havia sido a pior parte. Com certeza confrontar um homem sem interesse ou qualquer resquício de respeito ou consideração tinha conseguido ser disparado a parte mais dolorosa de tudo. As besteiras que ele despejou sem nenhum pudor sobre mãe e filha foram dolorosas demais de se ouvir. Ninguém no universo merecia escutar aquelas coisas de um pai que, mesmo que não fosse dos mais carinhosos, ainda deveria ser algum tipo de modelo ou figura positiva em sua vida. Tudo isso tinha ido por água abaixo de uma forma irreparável e dolorosa. A pseudo-quase-maldição tinha se tornado ainda mais evidente.
E se repetia. Depois de tantos abandonos e mentiras, não sabia sequer como justificar a sua inocência e ingenuidade extremas ao pensar que com ela poderia ser diferente; que ela talvez pudesse quebrar aquela corrente de relacionamentos horríveis e descaso contínuos. Mas ela era só uma garota e deveria ter esperado menos de si mesma. Se tivesse sido mais esperta e mantido expectativas baixas, não estaria se decepcionando de uma forma tão brutal e visceral agora.
Ficava remoendo aquilo constantemente, perguntando-se se não deveria fazer alguma coisa sobre, mas, por experiência própria, preferia fugir de confrontos a todo custo. Algumas coisas eram melhores quando deixadas quietas e não cutucadas.
Mas ela não conseguia parar de pensar no que ele deveria estar fazendo naquele momento. Simplesmente não conseguiria afastar aquele pensamento ruim e conturbado enquanto não ligasse para ver se ele estava em casa.
Correu até sua lista de contatos, clicando rapidamente nos ícones, iniciando uma chamada para ele. O telefone não demorou a ser atendido.
— Alô?
A voz do outro lado era feminina. Não havia a menor chance de confundir. sentiu seu mundo desabar de uma só vez.
So I wanna know who's on your phone
(Então eu quero saber quem está no seu telefone)
Making me paranoid, making me bad
(Me deixando paranóica, me deixando mal)
Making me sad, making me crazy
(Me deixando triste, me deixando maluca)
And making me feel like I needed to ask
(E fazendo eu me sentir como se precisasse perguntar)
I wanna know if you're at home
(Eu quero saber se você está em casa)
And if you're at home, baby, are you alone?
(E se você estiver em casa, querido, você está sozinho?)
Are you alone? Answer your phone!
(Você está sozinho? Atenda o seu telefone)
Oh, baby, oh, no, no
(Oh, querido, oh, não, não)
— Quem é? - perguntou, sentindo a própria voz tremer ao checar o visor de seu celular, confirmando que havia ligado para o número correto. Não sabia se queria mesmo receber a resposta para sua pergunta.
— Caramba, a matéria já derreteu o seu cérebro ao ponto de não reconhecer a minha voz? É a Anne, sua tonta. Eu vim buscar o MEU livro de antropologia porque o seu namoradinho simplesmente se apossou dele e se recusou a me devolver.
— Entendi. - sentiu seu batimento ainda muito acelerado, apesar de ter conseguido voltar a respirar. — E você sabe onde ele está?
— Acho que ele está no chuveiro. Na verdade, ele nem sabe que eu entrei porque deixa a porcaria da porta aberta sempre. E com certeza ele vai ficar muito puto por eu ter atendido o celular dele. Mas eu vou deixar um recadinho para ele avisando que você ligou. Vejo você amanhã.
— Certo, até amanhã, Anne. Obrigada.
Todo o ar que ainda se encontrava em seus pulmões foi completa e forçosamente expulso naquele momento. Não sabia descrever o intenso alívio que sentira, acompanhado de uma vergonha absurda. Estava prestes a culpar sua melhor amiga por algo que estava corroendo sua mente, apesar de ela nem saber se era verdade. Não que não fosse ruim o suficiente ter aquela vozinha infernal no fundo de sua mente, cutucando o pedaço do seu cérebro responsável pela maior insegurança da história e berrando “você já sabia que seria assim”.
Precisava mesmo dormir. De preferência alguns dias inteiros. Talvez mais.
♬♬♬
tinha acabado de deixar um beijo rápido nos lábios de e estava se preparando para descer do carro após o jantar daquela noite. Havia sido um encontro tranquilo, apesar de ela saber que seu coração apertava absolutamente toda vez que ele dava aquele sorriso que ela tanto amava. Provavelmente, era esse o problema. Ela o amava e não queria ter que encarar todos os problemas que isso lhe traria. Tudo o que mais desejava era poder atropelar absolutamente tudo aquilo e fingir que não era nada. Talvez pudesse se fingir de morte e se forçar a tirar aquilo da cabeça. Talvez a ilusão não fosse a pior das opções.
— Ei - chamou, vendo a mão dela se dirigindo à maçaneta. — Talvez seja meio cedo para dizer isso. Mas eu amo você.
Foi naquele momento que ela sentiu seu corpo todo murchar, como se estivesse se fechando, preparado para cair como uma flor que não era mais compatível com a vida depois de tanto ser cutucada e agredida. Não havia maldade, nem violência, mas as palavras que ela sempre desejara ouvir doíam com intensidade absurda. Ela não sabia o que dizer. Ou se tinha mesmo algo a dizer em vez de apenas engolir em seco todo o seu surto que a dilacerava internamente.
Foi salva pelo gongo, como diziam alguns de seus parentes. O rádio, para o qual não poderiam estar dando menos atenção, interrompeu o momento dos dois. A música que vinha lhe causando pesadelos há tanto tempo. deu um grito confuso antes de ficar totalmente sem palavras. congelou exatamente onde estava, piscando repetidamente como se aquilo fosse melhorar alguma coisa.
— Vocês estão na rádio - ela murmurou, não conseguindo soar tão animada quanto gostaria.
— Puta merda, a gente está na rádio - ele repetiu, dando uma risada alta e escandalosa e puxando-a para um abraço apertado em seguida.
Ela sentiu as lágrimas escorrendo pelas bochechas. Não conseguia se desvencilhar da imagem de Leah dançando em sua mente de forma quase persecutória.
— Eu podia explodir de felicidade nesse exato momento - ele falou, apertando-a com um pouco mais de força. — E o melhor de tudo é poder viver isso com você do meu lado. Caramba, . Eu sou o cara mais sortudo do universo inteiro.
fungou com força, antes de despejar, entre soluços distorcidos, as palavras que estavam pesando em seu coração há muito tempo:
— Nós dois sabemos que não era comigo que você queria estar vivendo qualquer momento.
O rapaz a soltou, afastando-a para olhar com firmeza e indagação para seu rosto.
— Do que você está falando? O que você quer dizer com isso?
— Você sabe perfeitamente para quem escreveu essa música e eu não sou tonta o suficiente para não saber também. Só sou idiota por ter achado que eu era importante na sua vida e não ter percebido a história se repetindo.
— O quê? Que história? , eu não estou entendendo.
Mas já era tarde. Ela tinha puxado a maçaneta com força, deixando o carro para trás enquanto corria para dentro da casa, sem dar tempo para que ele a seguisse ou para que ela própria mudasse de ideia e insistisse em explicar para ele o óbvio: ela já sabia de tudo.
Irrompeu como um trovão, assustando a tia que estava na sala, assistindo ao episódio inédito de sua telenovela.
— ? O que aconteceu?
Ela não se deu ao trabalho de responder, subindo as escadas tão rápido quanto seus pulmões permitiram apenas para se jogar nos seus travesseiros e chorar tudo aquilo que tinha passado tantos dias entalado. Precisava se livrar de toda a dor e a negatividade que assolavam o peito. Por mais que não acreditasse que as lágrimas seriam suficientes para se libertar, aquela parecia a única opção no momento.
♬♬♬
Em meio a tantas horas regadas a lágrimas e soluços altos, não sabia ao certo definir quando havia definitivamente caído no sono. Tinha dormido completamente torta e sentia as consequências claras disso em sua coluna. Precisava de um remédio para a dor ou não seria capaz de chegar sequer ao banheiro para lavar aquela cara amassada e vermelha.
Caminhou pesadamente até sua escrivaninha, encontrando uma cartela de comprimidos logo ali. Engoliu um deles com água, esfregando os olhos com um pouco de força. Parecia que tinha sido atropelada durante a madrugada.
Ao retornar para a cama, acabou tendo sua atenção desviada para a tela acesa do celular, vibrando com uma notificação nova. Apertou os olhos ao fitar o aparelho, um tanto incomodada com a luz. Tinham mensagens demais ali. Deu-se ao trabalho de olhar apenas a última, mais recente e causa daquela iluminação desnecessária. Era Anne:
“Onde é que você está? Nós estamos saindo para o aeroporto em poucos minutos.”
— Merda.
Fora exatamente por isso que havia saído com para um último jantar na noite anterior. Kyle e ele haviam sido convidados para abrir um festival de música alternativa em outra cidade e passariam quase duas semanas viajando e divulgando o novo EP, que acabava de chegar às rádios - como ela mesma tinha vivido para comprovar e presenciar. Ela e Anne tinham combinado, por sua vez, de acompanhá-los até o aeroporto para se despedirem.
respirou fundo, deslizando o dedo pela tela a fim de ter acesso às mensagens anteriores. O contato de estava ali. Ela não sabia se estava pronta para ler.
— Ele embarca em algumas horas - disse para si mesma. — E a merda já está feita.
E leu.
“Você pode, por favor, ir ao aeroporto amanhã? Nós precisamos conversar. Sem rancor, sem mágoa. Acho que os dois têm pendências a resolver e esclarecer.”
“Sem contar que você entendeu tudo errado. Por favor, eu não vou conseguir ir para esses shows sem ter te explicado tudo.”
O conflito que se instalou dentro dela parecia prestes a fazer seu cérebro entrar em curto circuito completo. Não sabia se tinha estrutura para lidar com aquilo e nem se tinha coragem de fazê-lo em um lugar público e em frente aos amigos que havia acabado de fazer. Provavelmente Kyle e Anne ficariam do lado de , por conhecê-lo há mais tempo, e ela ficaria sozinha. Simplesmente perderia as pessoas que tinham se tornado tão importantes para ela.
Por outro lado, ela se importava com intensamente e não podia deixá-lo partir sem que ambos tivessem um encerramento adequado. Não conseguiria aguentar o fardo de tê-lo prejudicado, enquanto poderia ter evitado todo esse transtorno. Mesmo que seu peito doesse, ela sabia que também precisava daquilo.
Arrastou-se até o banheiro, jogando água gelada o suficiente no rosto para obrigá-la a acordar de uma vez por todas. Vestiu-se em tempo recorde e pediu um carro pelo aplicativo, ciente de que, mesmo assim, chegaria lá em cima da hora.
Nem se deu ao trabalho de pegar algo para comer. Estava estressada demais para colocar qualquer coisa no estômago. Simplesmente entrou no carro solicitado e torceu intensamente para que o trânsito não lhe pregasse uma peça. Não era possível que a vida ia querer jogar mais aquilo em sua cara, gritando um “lide com isso”.
Passou todo o percurso apertando o telefone celular com tanta força que seus nós dos dedos estavam rígidos e brancos. O motorista a tinha encarado com certo estranhamento e curiosidade algumas vezes pelo retrovisor, apesar de não ter comentado ou perguntado coisa alguma. Provavelmente, só estava ficando aflito com a aflição dela. Vai ver era contagioso.
Agradeceu o motorista e desceu a passos rápidos, dividindo-se entre tratar de ser o mais rápida possível, seguir as coordenadas e direções que Anne tinha lhe enviado e olhar para o alto, tentando encontrar as placas correspondentes antes que fosse parar em algum canto totalmente oposto do aeroporto, fazendo com que absolutamente todo o seu esforço tivesse sido totalmente em vão.
Teve que parar umas duas vezes para pedir orientações de funcionários antes de, finalmente, encontrar o portão de embarque dos rapazes. Estava completamente esbaforida - e com toda a certeza bem vermelha e descabelada - quando avistou os três amigos sentados nas poltronas, rindo de qualquer coisa que tinham acabado de dizer.
tinha olheiras que ela não tinha visto antes. sentiu uma vontade extrema de correr até ele e apertá-lo em seus braços. Só ela sabia como ter autocontrole naquele momento era excruciante. Na verdade, talvez ele também soubesse. Era o único motivo para que ele estivesse lhe oferecendo aquele meio sorriso abatido e um pouco triste.
— Vem, Kyle, vamos comprar um lanche - Anne disse, levantando-se e puxando o rapaz pelo braço.
— Mas eu não estou com fome - ele resmungou.
— Eu disse vem - ela ralhou, puxando-o novamente.
Com um longo revirar de olhos, ele a seguiu, deixando os dois para trás, com as mãos procurando os próprios bolsos e as cabeças sem saberem exatamente para onde olhar. Com certeza a pessoa que havia inventado a palavra “constrangimento” o tinha feito por ter vivido um momento como aquele.
— Eu pensei que você não fosse vir - comentou, a voz baixa e tranquila.
— Sinceramente? Eu também pensei.
Ele sorriu, cansado.
— Você não parece ter dormido direito - ela comentou, sem saber ao certo o que deveria dizer.
— Fiquei até tarde na sua casa - explicou. — E demorei muito até conseguir dormir quando cheguei à minha.
— Como assim ficou até tarde na minha casa?
Ele respirou fundo, esfregando um pouco os olhos marcados.
— , o que aconteceu ontem?
Foi a vez dela de tentar controlar seu próprio nervosismo.
— Eu não consegui lidar com o fato de a música ser sobre a Leah. Desde o dia na gravadora. Quando Michael disse que era você o compositor, eu não soube o que pensar.
— Se você tivesse simplesmente me perguntado, eu teria te dito que a ideia da música tinha sido do Kyle, mas ele pediu para que eu a escrevesse porque ele é simplesmente um lixo compondo. Sério, você deveria ter visto as atrocidades que ele já escreveu.
sentiu os olhos queimando, ardendo como se alguém tivesse dado um jeito de secá-los por completo, apesar de eles estarem completamente marejados. Queria correr para o colo de alguém e chorar como uma criança sofrendo por pouca coisa que, ainda sim, parecia o fim do mundo. Era isso então? Simples assim?
— Eu não sabia - foi tudo o que ela conseguiu dizer, enquanto tentava engolir o soluço preso na garganta.
— É, eu sei. Queria que você tivesse só conversado comigo. Nada disso teria acontecido.
A garota levou a mão rapidamente ao rosto, secando a lágrima que escorria.
— Eu estava insegura - admitiu. — Muito insegura. E eu sei que isso não justifica nada, mas…
— Mas você achou que a história estava se repetindo - ele completou, lembrando-se das palavras que ela havia usado na noite anterior. — Eu não entendi nada na hora, mas a sua tia me explicou.
Ela não conseguiu evitar a exclamação de surpresa.
— Minha tia fez o quê?
— Quando você saiu correndo, eu fui até a sua porta. Queria saber o que tinha acontecido, queria conversar - ele contou. — Sua tia também estava preocupada, disse que você tinha subido correndo sem dizer o porquê. Ela me perguntou o que tinha acontecido e eu só repeti.
— Daí ela te contou - ela concluiu, recebendo um aceno de cabeça em confirmação.
— Ela falou dos seus avós e da sua mãe. E eu entendo a sua preocupação e insegurança, mas você não está amaldiçoada. - Ele soltou uma risada anasalada, enquanto colocava uma mecha do cabelo dela atrás da orelha. — Sinto muito mesmo que você tenha passado por tudo isso, mas eu não sou o seu avô e não sou o seu pai. Eu sou só um cara que faz faculdade por aí, gosta de tocar nas horas vagas e está completamente apaixonado pela garota nova que apareceu na festa da praia.
sentiu as lágrimas rolando com mais força, respondendo ao calor do toque dele contra sua pele. Seu medo tinha destruído a coisa mais linda que ela poderia ter vivido.
— Eu sei que você nunca mais vai querer nem olhar na minha cara - ela começou. — Mas eu realmente preciso te pedir todas as desculpas do universo. Perdão, de verdade. Queria que as coisas tivessem sido diferentes.
riu, meneando a cabeça.
— Você tem que parar de decidir as coisas por mim. Não pode assumir que nunca vou nem olhar na sua cara sem me perguntar. Achei que já tivéssemos chegado à essa conclusão.
Ela mordeu o lábio, concordando. Tinha mesmo que parar de decidir ou controlar coisas, pensamentos e sentimentos que não lhe pertenciam. Tudo o que podia fazer naquele momento era esperar que as coisas acontecessem. Deixar que o tempo se seguisse e trouxesse com ele as situações futuras.
Uma voz feminina melódica soou pelos auto-falantes, anunciando o início do embarque no voo que eles deveriam pegar.
— Bom, acho que nos vemos em alguns dias - ele disse, sorrindo verdadeiramente, enquanto a puxava para um abraço. — Com o peito mais leve e as ideias mais claras. Podemos conversar de novo, com mais calma.
— Eu adoraria - ela respondeu, apertando-o um pouco mais, sem se importar se tornasse a situação ainda mais estranha. — Boa sorte nos shows. Tenho certeza de que você vai arrasar.
— Ah, eu não tenho dúvidas disso. - Ele riu abertamente. — É bem fácil considerando que quatro das cinco músicas que temos são sobre você.
enrubesceu, sentindo a vergonha tomar conta de si. Estava tão focada na primeira música que nem tinha se atentado para as demais. Com certeza o faria assim que voltasse para casa.
— Pronto, cara? - Kyle perguntou.
— Pronto.
Os dois abraçaram as garotas mais uma vez, antes de seguir para a fila do embarque, sumindo rapidamente com um aceno animado.
— Como foi a conversa com ? - Anne quis saber.
— Melhor do que eu esperava. - A outra deu de ombros.
— Que bom - a amiga emendou. — É melhor mesmo que só uma de nós duas tenha acabado de fazer uma merda enorme.
fez uma careta, antes de se virar para ela.
— O que você fez?
— Contei para o Kyle que gostava dele, da forma mais trivial possível enquanto tomava o meu refrigerante.
— O quê?! Como assim? Você vai me contar o que aconteceu agora. O que foi que ele disse?
— Eu te conto no caminho - Anne respondeu, seguindo pelo aeroporto, enquanto repetia mentalmente o lugar em que tinha estacionado o carro.
assentiu, seguindo-a. Estava se segurando para não rir com o desespero da amiga, apesar de esperar do fundo do coração para que tudo desse certo para elas. Na verdade, que tudo desse certo para os quatro.
Mas só o tempo diria aquilo. E, enquanto o tempo não chegasse, poderia se distrair um pouco com as histórias das outras pessoas.
Sentia uma pontada no peito por deixar a mãe para trás em um momento tão delicado, mas, no fim das contas, tinha sido a progenitora a primeira a se dissolver em lágrimas de orgulho e a incentivá-la a ir ao ponto de ameaçá-la caso tomasse uma decisão negativa. Uma oportunidade dessas não aparecia sempre; muito menos para pessoas como elas, cuja simples permanência no país era incerta por baixíssimas expectativas do que o homem que ocupava a Casa Branca - sempre se recusaram a chamá-lo Presidente - poderia fazer e falar para seus seguidores, constantemente cegos pelo ódio e pelo preconceito, culpando pessoas diferentes pelos seus próprios problemas, falhas e incapacidades. Era muito fácil jogar a culpa de sua incompetência nas costas de uma ‘minoria’ historicamente marginalizada.
Por mais que quisesse respirar bem fundo, abandonar os próprios problemas no canto do quarto, onde deixava as caixas agora vazias, e seguir sua vida, sabia bem que todos aqueles pensamentos jamais abandonariam sua mente por completo. Nem o medo, nem a xenofobia e nem o trauma. era boa em muitas coisas, mas superar o que acontecera não era uma delas.
— Vai almoçar comigo? - A tia perguntou, aparecendo à porta do quarto que a jovem agora ocupava.
— Depende. É alguma gororoba fit de novo?
Rosa olhou para ela, com desprezo. não suportava o amontoado fedorento de coisas estranhas que a tia comia em alguma dieta bizarra que ela havia visto em algum lugar e, na maior parte do tempo, era inútil tentar convencê-la de que deveria procurar um nutricionista e aprender a comer direito. O que, basicamente, significava comer de tudo e não viver de gororobas fit que não tinham a taxa calórica diária suficiente nem para um louva-deus.
— Não. Tem salada, frango grelhado e purê de abóbora.
deu de ombros, guardando a camisa que tinha em mãos antes de se levantar.
— Continua saudável, mas é comida de gente. É um grande avanço, estou orgulhosa.
— Garota, eu vou te jogar dessa escada. Não me provoca - Rosa ameaçou, arrancando risadas da sobrinha. Era a mais nova irmã por parte de mãe e havia crescido muito apegada a ela, por mais que brincassem e brigassem como irmãs mais do que como tia e sobrinha.
Arrumaram seus respectivos pratos e se dirigiram a mesa branca, que sempre fazia os olhos arderem, parecendo polida demais. A garota tinha que confessar que tinha medo até de respirar um pouco mais forte perto do prato e fazê-lo deslizar pela mobília lisa e escorregadia. Qualquer hora dessas, teria que dar uma faxina na cozinha depois de derrubar tudo no chão.
— Já conheceu alguém da faculdade? - Rosa quis saber.
— Tia, eu nem pisei na faculdade ainda.
— E desde quando as pessoas aproveitam a faculdade estando nela?
fez uma careta, repreendendo-a.
— Brincadeirinha. Nada de matar aula, você tem bolsa.
— Eu nem estava pensando em faltar.
— Melhor ainda! Sua mãe estaria orgulhosa. Mas o que eu ia te falar mesmo era que vai ter uma festa hoje na praia, tipo um luau ou sei lá como vocês, jovens, chamam as coisas. É aberto e só vai dar gente da sua idade.
— E velhos tarados - a mais nova completou.
— Meu amor, sempre terão velhos tarados. O mundo é uma merda. Mas você precisa sair, se divertir, conhecer pessoas da sua idade e esmagar as partes baixas de homens idiotas com seu joelho.
— Obrigada por compartilhar sua sabedoria.
— Não por isso - Rosa respondeu. — Mas é sério. Você acabou de chegar, vai aproveitar a cidade, conhecer as pessoas. Vai ser incrível.
— Se eu for, você para de me encher?
— Nós duas sabemos que isso não vai acontecer.
Mesmo sabendo que a chantagem não valeria de nada, sabia que a tia estava certa e ela queria mesmo sair. Como podia ir para Malibu sem aproveitar a praia? Era como ir a Las Vegas e não sair de lá casado.
Quando chegou ao local previsto, viu várias pessoas posicionando barris e coolers pela areia, estendendo as últimas toalhas e panos. A fogueira já estava acesa, começando a contrastar com o entardecer em uma paleta de cores digna de uma obra de arte a ser exposta em um museu caro para o qual seu orçamento jamais conseguiria comprar uma entrada.
— Precisa de ajuda? - Perguntou, aproximando-se de uma garota ruiva que parecia prestes a protagonizar uma queda colossal do topo da escada.
— Eu preciso prender essas luzinhas - ela apontou. — Pode segurar aí embaixo?
prontamente o fez, apertando os dedos contra os pés da escada. Não demorou para que a ruiva finalizasse o próprio trabalho com um sorriso orgulhoso.
— Eu nunca te vi por aqui.
— Cheguei ontem - a outra deu de ombros. — Sou a .
— Anne - a ruiva respondeu. — Que incrível já chegar em Malibu com o pé direito, em uma festa dessas. Pode ir se acostumando.
A outra esboçou um sorriso nervoso, ainda incerta. Não sabia se aquela tinha sido a melhor ideia do mundo. Talvez devesse simplesmente ter ficado em casa, reassistido às primeiras temporadas de Grey’s Anatomy - até porque eles já tinham se perdido e destruído a série mesmo - e feito doce de leite.
— Vem, vou te apresentar a uns amigos - Anne disse, puxando-a pela mão e obrigando-a a segui-la até o local que alguns jovens ocupavam, já abrindo as primeiras cervejas. — Gente, essa é a e ela chegou ontem. Tentem não passar vergonha.
Todos se apresentaram rapidamente, enquanto bebiam e organizavam os instrumentos e seus respectivos cabos. Era incrível a capacidade de jovens adultos em conseguir fazer várias coisas ao mesmo tempo, desde que uma delas incluísse equilibrar um pouco de álcool.
— Como você é nova por aqui, acho que vou te dar a incrível honra de pedir uma música antes que a gente comece a tocar - um dos rapazes, pelo que ela se lembrava, disse com um sorriso largo que deixaria qualquer odontologista orgulhoso. Ele claramente poderia ser garoto propaganda de alguma marca de pasta de dentes recomendada por 9 a cada 10 dentistas.
— Quão clichê eu sou se pedir Riptide?
riu, enquanto apertava e afinava o violão.
— Clichê o suficiente para eu não me esquecer disso.
Ela mordeu o lábio, segurando uma risada. Tinha acabado de perceber o detalhe que se formava na testa dele, quase como uma ruguinha, sempre que ele dava risada de qualquer coisa que falavam para ele. Sem contar as covinhas perto da bochecha, emoldurando sua face com perfeição. Deveria existir algum tipo de proibição em relação a ser brutalmente bonito, charmoso e encantador simultaneamente daquele jeito.
— Lady, running down to the riptide, taken away to the dark side, I wanna be your left hand man - ele cantarolou, dedilhando as cordas do instrumento.
Certo. Ele tocava e cantava bem também. Por que Deus tinha que ser tão óbvio quanto aos seus preferidos? Deveria ser tão injusto quanto uma mãe admitir que preferia um dos seus filhos, mesmo que no fundo todos eles soubessem que ela tinha um.
— De onde você veio, ?
— Minha família é mexicana, mas morávamos em uma cidade nos arredores de Miami há alguns anos já - ela explicou. — Vim para cá fazer faculdade.
— E tem família aqui?
Ela assentiu.
— Estou morando com a minha tia.
— Lá tem lugares bons para estudar - ponderou. — Por que sair? Não que eu não esteja feliz em te receber aqui, porque eu posso dizer com toda a convicção do mundo que estou.
A olhada pouco discreta que ele lhe deu, sem ser desrespeitoso, fez com que um arrepio corresse pela espinha da garota. Era normal querer descobrir a sensação do toque dos lábios de alguém que você conhecia há menos de trinta minutos? mordeu a pontinha do lábio, desviando o olhar, meio sem jeito.
— Problemas familiares - disse, abraçando o próprio corpo quando uma brisa um pouco mais forte veio do mar. — Muita coisa mudou bruscamente… Enfim, minha mãe achou melhor eu recomeçar em um lugar mais longe e eu sempre fui apegada à minha tia, então…
— Então aqui estamos - completou, com um sorriso, enquanto colocava a própria jaqueta sobre os ombros dela. Ela não tinha pedido por aquilo e nem previsto a atitude.
— Aqui estamos - ela repetiu, vendo-o perto demais.
— Vamos começar a tocar já já. Acho que posso deixar você no camarote VIP, também conhecido como sentada do meu lado.
— Que honra - ela comentou, erguendo um olhar surpreso. — Já posso me considerar uma groupie?
— As groupies costumam ir embora com o músico no fim da noite - ele disse e, de repente, sentiu que ele estava perto demais e provavelmente consumindo todo o oxigênio entre eles. Era a única explicação para a falta de ar que ela teve de repente. — Você pode se considerar uma groupie?
— , vem logo - Kyle gritou, quebrando a tensão entre os dois. não sabia se estava decepcionada ou aliviada por não ter a chance de responder.
Mas o rapaz não parecia disposto a desistir. Puxou-a pela mão, guiando-a até o local em que o grupo se sentava. Fez questão de sentar, colocar o violão sobre a perna e ceder espaço para ela ao seu lado.
— Oi pessoal - Kyle começou. — Bem-vindos ao nosso pocket show open bar. Espero que tenham pagado pelos ingressos na entrada porque é uma honra para vocês estarem aqui.
— Cala a boca e começa logo - Anne reclamou, enquanto mais pessoas se aproximavam, decidindo se sentavam em algum dos tecidos dispostos na areia ou se permaneciam em pé.
Com as primeiras notas, começaram o protótipo de show, trazendo consigo várias vozes desafinadas e pouco sincronizadas em cada canção. ria de algumas danças estranhas, totalmente ofuscadas por algumas garotas que, ao contrário da maioria, sabiam bem o que estavam fazendo e como dançar de forma a chamar atenção de um jeito positivo. Elas eram maravilhosas e se pegou precisando repreender a si própria por ter uma sensação estranha e desconfortável que só poderia ser indícios de inveja.
— O que foi? - perguntou, percebendo que ela tinha ficado quieta de repente. Ergueu o olhar para onde o dela estava, reconhecendo a mulher que mexia os quadris como se fosse o movimento mais simples de todo o universo. — É a Leah. O Kyle é completamente fissurado por ela.
— Jura?
— Desde o Ensino Médio. Ele simplesmente não supera o fora que tomou na formatura.
soltou uma risada fraca. Leah parecia o tipo de pessoa que lhe diria um ‘não’ alto e claro e você ainda agradeceria mesmo que fosse apenas pelos míseros segundos de atenção. Se Afrodite realmente assumia a forma humana que bem entendia para se divertir em terra, talvez lá ela estivesse, perdida - ou nem tanto - em uma festa adolescente com substâncias altamente perturbadoras do sistema nervoso, deixando alguns rapazes e garotas completamente obcecados por cada movimento. Rick Riordan estaria orgulhoso.
detestou se dar conta de que se sentia insegura perto de pessoas como ela. Sempre defenderia a beleza única de cada pessoa e abominaria a competição, mas era um discurso muito mais simples falado que praticado. Principalmente depois de tudo o que havia acontecido.
— Acho que ninguém precisa de mim aqui mais - comentou, colocando o violão nas costas. — Vem, vamos pegar alguma coisa para beber.
Ela já estava ficando mal acostumada com aquela mania que ele tinha de simplesmente tomar sua mão sem aviso prévio, causando faíscas por toda a extensão do seu braço, ainda coberto pela jaqueta dele.
Pegaram duas cervejas para cada, sem se importar se elas esquentariam. Aquele era um problema pequeno a se enfrentar considerando que não tinham a intenção de retornar ao meio da multidão tão cedo.
— Acho que eu não te perguntei - ele começou a puxar assunto, sentando-se em um deque relativamente desgastado, que não parecia seguro o suficiente. o imitou. — Onde você vai fazer faculdade?
— Pepperdine.
Ele arregalou os olhos, mexendo a mão livre de um jeito engraçado.
— Você é minha caloura - concluiu. — Que incrível! Você vai amar a faculdade. Pelo menos na maior parte do tempo.
sorriu nervosa. A ansiedade de uma fase, uma cidade e um lugar novos ainda era latente em excesso. Tinha que respirar fundo e pensar que nem tudo precisava sempre ser ruim. Ainda mais quando já conhecia alguém e não tivera problemas a princípio com as outras pessoas a quem tinha dirigido algumas palavras.
— Posso te ajudar com as matérias, se quiser - comentou. — Não que eu seja o melhor aluno. Ah, também posso te ajudar a se situar, se localizar… Acho que eu sou melhor nisso.
— Eu com certeza vou precisar.
O tempo passava, com ambos em silêncio, bebendo embalados pelo som de Kyle tocando qualquer coisa à distância e das ondas que ainda quebravam fracamente.
— De que signo você é? - perguntou, causando estranhamento em . Astrologia? Sério? Ela não sabia exatamente o que pensar daquilo.
— Virgem - ela respondeu, ainda não totalmente confiante se deveria ter saído correndo enquanto tinha tempo.
pareceu pensar por alguns instantes, enquanto olhava para cima. De repente, apontou para um lugar no céu, fazendo com que ela tentasse olhar para onde seu dedo apontava.
— Aquela ali é a constelação de Virgem - ele mostrou um punhado de estrelas. — E aquela outra é de sagitário.
Ela observou, atenta, tentando vislumbrar qualquer tipo de definição no céu noturno. Se havia uma coisa que ela detestava na astronomia, essa coisa era a sua total incapacidade de enxergar o formato que as constelações teoricamente tinham. Não conseguia definir absolutamente nada e se sentia absolutamente patética por isso, mesmo que, em diversos momentos, soubesse perfeitamente que não era exatamente sua culpa. Várias constelações não se pareciam em nada com aquilo que diziam que elas formavam. As pessoas que davam seus nomes provavelmente o faziam chapadas demais.
— Sério? - Ela perguntou, ainda tentando entender onde exatamente era Virgem.
— Não faço ideia - ele deu de ombros. — Era só para parecer que eu sabia de alguma coisa.
Ela riu, empurrando-o de leve com o ombro.
— Você é ridículo.
— Caramba, , a gente acabou de se conhecer e você já tem tantos elogios para mim… Desse jeito vou ficar mal acostumado.
A garota não ousou verbalizar, mas aquele comentário tinha feito com que ela divagasse brutalmente. Tinha total noção do alto teor de ironia naquela fala, mas também sabia que mal o conhecia e, mesmo assim, poderia fazer uma lista enorme de elogios para ele. Mesmo que a maioria deles fosse um completo reflexo de todas as coisas carnais - e possivelmente obscenas - que queria fazer com ele naquele exato momento. Hormônios eram mesmo uma porcaria.
Mas ela não precisou dizer uma palavra sequer para que ele parecesse entender cada um de seus pensamentos impuros e concordar silenciosa e solenemente com todos eles.
A sensação de sua boca na dele era muito melhor e mais intensa do que ela poderia esperar. Ele tinha pegada e isso era inegável; além de obviamente saber perfeitamente o que fazer com seu corpo. Não era como se fosse uma iniciante em beijos, mas , com certeza, havia acabado de se colocar na primeira posição no ranking dos melhores que ela havia experimentado.
O efeito que ele tinha sobre cada uma de suas terminações nervosas era implacável e fazia com que ela se sentisse em um estado misto do mais completo torpor e excitação. O jeito que ele a explorava, como se soubesse exatamente o que estava fazendo… sentia seu cérebro derreter a cada volta que sua língua dava.
Perderam completamente a noção do tempo, conhecendo um ao outro entre alguns papos curtos e vários beijos longos. O céu já tinha adquirido um conjunto de seus tons mais escuros, quando decidiu se arriscar e refazer a pergunta de mais cedo:
— Ainda não me respondeu se vai se considerar uma groupie - sussurrou, respirando contra o pescoço dela, antes de deixar um toque molhado de seus lábios por ali.
arrepiou por completo, não sabendo se era uma reação ao beijo ou à fala. Sabia perfeitamente o que aquele questionamento realmente queria saber. E, apesar de todas as suas incertezas, ouviu a voz da mãe e da tia, sempre cobrando-a para que fizesse as coisas que tivesse vontade - claro, sempre com responsabilidade - e aproveitasse sua juventude, sem se esconder de qualquer parte dela. Foi isso que a fez respirar fundo antes de responder com outra pergunta. Dessa vez, um tanto retórica.
— Por que não?
ria alto, balançando de leve, junto ao movimento de seu próprio corpo. uma vez que o seu braço se encontrava pendurado de uma forma despojada e despreocupada sobre seu ombro. Os dois tinham se tornado cada vez mais dispostos a cumprir a meta de se conhecerem como ninguém no menor intervalo de tempo possível. E fora isso que os fizera ir ao shopping algumas vezes, ver uns filmes, comer em vários lugares diferentes e retornar incansavelmente à praia - em especial às memórias do deque da primeira noite - durante as últimas três semanas. Nenhum deles parecia disposto a reclamar disso.
— E daí a senhora Wells disse que se eu não entregar um trabalho decente na segunda-feira, eu vou reprovar a matéria dela sem ter uma chance sequer de tentar argumentar - Kyle contou, exasperado demais na mesa do pequeno restaurante familiar no qual costumavam almoçar juntos após as aulas da manhã.
— Caramba, Kyle, você precisa fazer um trabalho - Anne repetiu, inexpressiva. — Deve ser uma merda descobrir que você é absolutamente igual a todas as outras pessoas e ser obrigado a fazer o que todo mundo faz.
segurou a risada, enquanto o rapaz revirava os olhos para o comentário recém-feito.
— Para a sua informação, eu já fiz vários trabalhos, ok? Meu problema é especificamente com a data desse.
— Cara, o trabalho era para ontem - o lembrou. — Você devia era dar graças a Deus pela boa vontade da senhora Wells em permitir que você entregue segunda-feira.
— Mas ela quer que eu escreva pelo menos umas dez páginas! Não tem condição.
— Por isso que o trabalho foi dado com vinte dias de antecedência - Anne comentou, enquanto usava o canudo de papel para balançar o concentrado de açúcar que havia se formado no fundo de seu copo de suco de laranja. — E mesmo assim você tem o final de semana inteiro. Quem precisa dormir?
Kyle bufou, limpando com um guardanapo o molho que havia restado no canto de seus lábios.
— Eu tenho compromisso no fim de semana.
— Ah, é? - perguntou. — Qual?
— Eu chamei a Leah para sair.
A expressão que se sucedeu no rosto de Anne era um misto de descrença e nojo, cujo conjunto da obra se tornava completo com um longo e demorado revirar de olhos.
— E ela por acaso aceitou?
— Não, mas eu ia perguntar de novo, só para ter certeza. - O rapaz deu de ombros, enquanto bagunçava os próprios cabelos queimados pela altíssima frequência de exposição ao sol.
— Isso é bem chato - murmurou.
— O que é chato? - Kyle perguntou.
— Isso, Kyle - Anne interveio, com a voz alta. — Essa sua insistência patética em alguém que claramente não quer nada com você. E, pior, você ficar no pé de alguém que já te disse não com todas as letras. Você já era triste e deprimente, mas isso já é desrespeito. Não é não. Você não precisa confirmar. Deixa a garota em paz e segue com a droga da sua vida.
— Elas têm razão, cara - completou e o amigo não parecia feliz com a bronca.
sabia que Anne estava saturada daquele papo. Se ela, que tinha acabado de chegar, já se incomodava com a persistência cansativa, imaginava como a amiga se sentia. Ainda mais quando a garota claramente alimentava uma quedinha silenciosa - mas não tão bem escondida - pelo rapaz que só tinha olhos para outra. De qualquer forma, nem todos os ciúmes e frustração do universo poderiam ser poupados quando ele literalmente estava passando dos limites, estando realmente prestes a desrespeitar outra mulher.
— Eu sei que elas têm razão. - Ele bufou. — Só é uma merda curtir alguém que não te dá a mínima.
— Nem me fala - Anne reclamou, com um sorriso irônico, enquanto se levantou para devolver o prato utilizado no local adequado.
e trocaram um olhar cúmplice, apiedando-se um tanto da situação.
— O casal do momento está sabendo de alguma coisa que eu não sei? - Kyle perguntou, alternando seu olhar entre os dois que restavam na mesa.
— Eu estou sabendo que você tem um trabalho enorme para fazer e devia ir para casa começar - disse, levantando do seu lugar. — Isso é sério. Eu vou gravar nosso EP sozinho se você bombar nessa merda. Você precisa mesmo ter mais responsabilidade.
— Eu odeio vocês todos.
— Sabemos.
— Vocês podem se sentar aqui - o homem grisalho apontou para duas cadeiras ao seu lado, nas quais as garotas se sentaram. — E você pode ir para a cabine.
entrou, observando todos os instrumentos, microfones, fiações e rindo sozinho de como achava incrível um vidro à prova de som naquele nível de eficiência. A maioria das pessoas provavelmente o acharia um tonto por isso. Do lado de dentro, mandou um beijo para , recebendo um sorriso largo e uma piscadela em resposta. Se aquele já era um dos melhores dias de sua vida só pelo que estava prestes a acontecer, tê-la ali, presenciando aquele momento fatídico, só o tornava ainda melhor e mais especial.
— Vocês são nojentos - Anne resmungou, dando uma risada em seguida. — É sério, garota, meu plano de saúde vai me abandonar se eu desenvolver diabetes por sua causa.
— Mas você bem que queria desenvolver diabetes por causa do Kyle - lembrou, fazendo a amiga revirar os olhos.
— Ele que morra sozinho. Cansei.
engasgou com a própria risada, tossindo de forma descontrolada, enquanto a amiga dava tapas em suas costas com força.
— Não é porque você quer que ele morra que precisa me matar também - comentou, alisando a coluna dolorida e, provavelmente avermelhada.
— Por isso mesmo que eu estava te salvando - Anne explicou. — De nada.
A outra jovem nem teve tempo de responder qualquer coisa, sendo interrompida - e pega de surpresa - por uma movimentação barulhenta, totalmente oposta a qualquer tentativa possível de discrição. Pela respiração pesada e profunda, ele realmente estava com tanta pressa quanto demonstrava com a sua chegada.
— Quem é vivo sempre aparece - comentou, enquanto terminava de ajustar a afinação do violão.
— Vocês não vão acreditar - Kyle falou, com a voz entrecortada, ainda tentando recuperar o fôlego. — A senhora Wells me deu uma nota boa. Estou salvo.
— Parabéns! - comemorou rapidamente. — Agora, entra logo, que o Michael não vai esperar o dia todo.
— Não vou mesmo - Michael confirmou, enquanto mantinha um sorriso divertido nos lábios.
Ninguém sabia explicar ao certo como as coisas tinham acontecido naquelas últimas semanas. Não dava para explicar como tudo havia sido tão rápido e nem como pontuar exatamente o momento em que tudo começou.
Michael havia literalmente surgido sem qualquer aviso prévio na porta de Pepperdine, apresentando-se da forma mais trivial do universo enquanto explicava que havia visto alguns vídeos do luau e tinha realmente curtido o som um tanto alternativo da dupla de rapazes.
O choque foi óbvio e ninguém soube muito bem como reagir. Não sabiam que alguém tinha realizado a gravação e muito menos que a mesma tinha sido postada na internet para que o mundo inteiro tivesse acesso. E entre o mundo todo, logo Michael tinha visto e se interessado. Algumas coisas simplesmente pareciam surreais demais às vezes.
Mas ninguém era nem louco de recusar uma oportunidade daquelas, por mais inesperada que ela pudesse parecer. Quando Michael sugeriu que eles fizessem um teste, gravando e lançando um EP com algumas músicas originais, ninguém pensou duas vezes. e Kyle provavelmente tinham berrado “SIM” antes mesmo de pensar naquilo pela primeira vez. E agora ali estavam, um passo mais perto de realizar um sonho que até então parecia completamente inalcançável.
— Podemos começar? - Michael perguntou, enquanto os dois jovens colocavam fones de ouvido pretos enormes que faziam Anne ter alguns arrepios, pensando em como aquilo deveria amassar completamente as suas orelhas.
Kyle fez um sinal afirmativo, enquanto Michael empurrava e apertava alguns botões no painel, fazendo com que a base de uma melodia leve, com uma pitada da vibe litorânea, soasse pelos auto-falantes e caixas de som. acompanhou com o violão, enquanto o amigo batucava ritmadamente em uma caixa. não conseguia tirar o sorriso orgulhoso do rosto. Ao menos não antes de ouvir a letra.
— Acho que eu não tinha ouvido essa música ainda - ela comentou, chamando a atenção de Anne.
— Eu também não. - A outra deu de ombros. — Acho que eles levaram a sério quando o Michael disse que estava louco para lançar algumas músicas inéditas.
Os dois continuavam cantando juntos, contando musicalmente a história de um rapaz que se apaixonava por uma garota da qual ele sabia pouco mais do que o nome. Mesmo com toda a rejeição e o descaso, ele permanecia tentando chamar a atenção dela enquanto ela dançava maravilhosamente. sabia que conhecia aquela história de algum lugar.
Ela soltou uma risada abafada.
— Por acaso isso é uma tentativa do Kyle de escrever sobre a Leah? Porque ela claramente é a garota de quem estamos falando.
— É bem óbvio mesmo - Anne suspirou, infeliz. — Ele nunca vai superar e ainda decide eternizar isso em uma música no primeiro EP?
— Não foi Kyle quem escreveu a música - Michael se intrometeu no papo delas. — Todas as canções que eles me apresentaram foram compostas pelo . Sozinho.
De repente o peixe frito do almoço parecia ter recuperado sua vida e voltado a nadar e se debater com ódio contra as paredes do estômago de . Se aquilo fosse um desenho animado caricato, ela com certeza teria ficado vergonhosamente verde.
— Preciso ir ao banheiro - disse, simplesmente, andando até a porta da sala.
— Ok, garotos. Ficou muito bom - Michael comentou, ignorando-a completamente. — Mais uma vez do começo, sim?
continuou caminhando a passos pesados pelo corredor, até encontrar a placa que tinha avistado mais cedo, com uma bonequinha vermelha desenhada na porta. Estava tentando respirar fundo e juntar as peças para entender tudo aquilo. Piscou com força, tentando afastar os pensamentos ruins e sabotadores, mas já era tarde demais.
Lembrava-se da primeira vez em que havia falado sobre Leah. Lembrava-se de ter invejado cada um de seus passos excessivamente precisos e sensuais de dança. Lembrava-se de ter tentado suprimir a sensação de que precisava ser um pouco mais como ela para chamar atenção de alguém. Para ser desejada. Mas havia conseguido fazer com que ela acreditasse que ele a queria, mesmo com alguém como Leah por perto. Não parecia mais uma verdade assim tão segura.
sabia muito pouco sobre música e processos criativos que fossem além de seus trabalhos para a escola e, agora, para a faculdade. Mesmo assim, tinha uma impressão muito forte e certeira de que as pessoas não escreviam sobre outras por nada. Algum de seus cantores favoritos - ela nem lembrava ao certo qual - havia dado uma entrevista dizendo sobre a facilidade que era escrever e cantar contando as suas próprias histórias. Ela só se sentia uma idiota por não ter percebido que era apenas um personagem secundário inútil e não o par romântico dele.
— Você está exagerando - ela repetia para si mesma. — Não é verdade. Ele não mentiu.
Mas ela já não sabia se acreditava mais naquilo, por mais que quisesse com todas as suas forças. Respirou fundo, enquanto lavava o rosto com água gelada corrente. Precisava se parecer menos com uma morta viva, destruída após uma festa intensa ou uma fossa igualmente profunda.
Retornou à sala de gravação, vendo os rapazes já recolhendo os instrumentos.
— Você perdeu a segunda música - Anne comentou.
— Foi mal. O peixe do almoço não me fez muito bem.
— E é por isso que eu não como peixe em dia útil - a outra comentou, rindo e se retirando dali.
sentia sua respiração ainda relativamente descompassada. Precisava agir normalmente. Precisava entender que aquilo era fruto de uma imaginação fértil e traumatizada, não a realidade. era perfeito, doce, gentil, atencioso… Mentiroso definitivamente não era um adjetivo que parecia se encaixar bem aos demais.
— Quer, sei lá, tomar um sorvete? - Ela perguntou, tentando controlar a entonação da própria voz e disfarçar o tsunami que se erguia cada vez mais, prestes a destruí-la por dentro.
beijou sua bochecha rapidamente antes de responder.
— Desculpa, linda. Hoje eu não posso. Tenho um compromisso. Mas nos vemos amanhã depois da aula, pode ser?
— Claro. - O sorriso que ela tentou forçar provavelmente tinha sido completamente ridículo. Mas era tudo o que ela tinha a oferecer naquele momento.
Enquanto analisava as costas dele se afastando, ela teve certeza de que o tsunami já havia chegado à costa.
Oh, and I don’t mean to get so caught up and insecure
(E eu não quero ficar tão presa e insegura)
About all the things you say
(Sobre todas as coisas que você diz)
Oh, and I don’t mean to be jealous, it’s just careless me
(E eu não quero ser ciumenta, é só descuido meu)
Boy, I must drive you mad
(Garoto, eu devo te enlouquecer)
Singing, singing, singing ooh-la-la, he breaks my heart
(Cantando, cantando, cantando ooh-la-la, ele parte meu coração)
I know he thinks about her when he plays guitar
(Eu sei que ele pensa nela quando toca violão)
Ooh-la-la, my american boy
(Ooh-la-la, meu garoto americano)
já tinha lido a teoria para a prova que seria aplicada dali a três dias pelo menos umas cinquenta vezes. Não adiantava. Era como se nada que ela lesse fosse absorvido, independentemente do quanto tentasse ou se esforçasse para aquilo. Sua cabeça estava longe demais, espiralando em um ciclo vicioso de pensamentos ruins que faziam com que seu coração doesse de tal forma que ela chegou a se questionar sobre a possibilidade de estar infartando.
Mal tinha visto os garotos nos últimos dias. Eles estavam quase completamente dedicados às gravações e ainda tinham a faculdade para conciliar. Eles tinham convidado-as para ouvir as últimas demos das músicas, mas recusou o convite, usando alguma desculpa aleatória sobre precisar comprar algo com a tia exatamente no mesmo horário. Não sabia se estava pronta para ouvir outra música como aquela e não estava a fim de ter um episódio vergonhoso em público novamente. Podia facilmente se poupar daquela vergonha.
Contudo, por mais que tivesse fisicamente se afastado de toda aquela situação, não havia conseguido cumprir a mesma proeza em termos psicológicos. Uma placa grande e vistosa piscava com luzes em neon em sua mente, berrando sobre como ela poderia ser facilmente trocada porque, afinal, sequer havia significado qualquer coisa. Talvez aquela fosse uma maldição de família. Era a única coisa que ela era capaz de concluir após tudo o que havia acontecido. A história parecia se esforçar intensamente para se repetir.
Não havia admitido aquilo em voz alta para ninguém. Só a tia sabia da real motivação pela qual havia se mudado e nem ela ficara sabendo da história por sua boca. nunca conheceu o avô materno. A história sabida entre a família era que ele havia abandonado sua avó quando Rosa nascera, justificando que nunca quisera sequer uma filha, quem dirá duas. Não tinha intenção alguma de criar duas mulheres, ainda mais quando não havia tido seu filho homem - motivo pelo qual ele culpava a esposa abandonada, mesmo que a “culpa” biológica só pudesse ser atribuída a ele próprio e mais ninguém.
Como em uma constante maldita em suas vidas, a mãe de também não tinha exatamente tirado a sorte grande. Os dezessete anos de casamento não haviam acabado da melhor forma possível quando uma ligação supostamente anônima e obviamente intencional denunciou uma traição que já vinha ocorrendo há pelo menos seis anos enquanto ele dizia estar preso no trabalho ou saindo há negócios. Talvez manter uma relação adúltera com a secretária pudesse ser considerado trabalho no fim das contas.
Mas a traição nem de longe havia sido a pior parte. Com certeza confrontar um homem sem interesse ou qualquer resquício de respeito ou consideração tinha conseguido ser disparado a parte mais dolorosa de tudo. As besteiras que ele despejou sem nenhum pudor sobre mãe e filha foram dolorosas demais de se ouvir. Ninguém no universo merecia escutar aquelas coisas de um pai que, mesmo que não fosse dos mais carinhosos, ainda deveria ser algum tipo de modelo ou figura positiva em sua vida. Tudo isso tinha ido por água abaixo de uma forma irreparável e dolorosa. A pseudo-quase-maldição tinha se tornado ainda mais evidente.
E se repetia. Depois de tantos abandonos e mentiras, não sabia sequer como justificar a sua inocência e ingenuidade extremas ao pensar que com ela poderia ser diferente; que ela talvez pudesse quebrar aquela corrente de relacionamentos horríveis e descaso contínuos. Mas ela era só uma garota e deveria ter esperado menos de si mesma. Se tivesse sido mais esperta e mantido expectativas baixas, não estaria se decepcionando de uma forma tão brutal e visceral agora.
Ficava remoendo aquilo constantemente, perguntando-se se não deveria fazer alguma coisa sobre, mas, por experiência própria, preferia fugir de confrontos a todo custo. Algumas coisas eram melhores quando deixadas quietas e não cutucadas.
Mas ela não conseguia parar de pensar no que ele deveria estar fazendo naquele momento. Simplesmente não conseguiria afastar aquele pensamento ruim e conturbado enquanto não ligasse para ver se ele estava em casa.
Correu até sua lista de contatos, clicando rapidamente nos ícones, iniciando uma chamada para ele. O telefone não demorou a ser atendido.
— Alô?
A voz do outro lado era feminina. Não havia a menor chance de confundir. sentiu seu mundo desabar de uma só vez.
So I wanna know who's on your phone
(Então eu quero saber quem está no seu telefone)
Making me paranoid, making me bad
(Me deixando paranóica, me deixando mal)
Making me sad, making me crazy
(Me deixando triste, me deixando maluca)
And making me feel like I needed to ask
(E fazendo eu me sentir como se precisasse perguntar)
I wanna know if you're at home
(Eu quero saber se você está em casa)
And if you're at home, baby, are you alone?
(E se você estiver em casa, querido, você está sozinho?)
Are you alone? Answer your phone!
(Você está sozinho? Atenda o seu telefone)
Oh, baby, oh, no, no
(Oh, querido, oh, não, não)
— Quem é? - perguntou, sentindo a própria voz tremer ao checar o visor de seu celular, confirmando que havia ligado para o número correto. Não sabia se queria mesmo receber a resposta para sua pergunta.
— Caramba, a matéria já derreteu o seu cérebro ao ponto de não reconhecer a minha voz? É a Anne, sua tonta. Eu vim buscar o MEU livro de antropologia porque o seu namoradinho simplesmente se apossou dele e se recusou a me devolver.
— Entendi. - sentiu seu batimento ainda muito acelerado, apesar de ter conseguido voltar a respirar. — E você sabe onde ele está?
— Acho que ele está no chuveiro. Na verdade, ele nem sabe que eu entrei porque deixa a porcaria da porta aberta sempre. E com certeza ele vai ficar muito puto por eu ter atendido o celular dele. Mas eu vou deixar um recadinho para ele avisando que você ligou. Vejo você amanhã.
— Certo, até amanhã, Anne. Obrigada.
Todo o ar que ainda se encontrava em seus pulmões foi completa e forçosamente expulso naquele momento. Não sabia descrever o intenso alívio que sentira, acompanhado de uma vergonha absurda. Estava prestes a culpar sua melhor amiga por algo que estava corroendo sua mente, apesar de ela nem saber se era verdade. Não que não fosse ruim o suficiente ter aquela vozinha infernal no fundo de sua mente, cutucando o pedaço do seu cérebro responsável pela maior insegurança da história e berrando “você já sabia que seria assim”.
Precisava mesmo dormir. De preferência alguns dias inteiros. Talvez mais.
tinha acabado de deixar um beijo rápido nos lábios de e estava se preparando para descer do carro após o jantar daquela noite. Havia sido um encontro tranquilo, apesar de ela saber que seu coração apertava absolutamente toda vez que ele dava aquele sorriso que ela tanto amava. Provavelmente, era esse o problema. Ela o amava e não queria ter que encarar todos os problemas que isso lhe traria. Tudo o que mais desejava era poder atropelar absolutamente tudo aquilo e fingir que não era nada. Talvez pudesse se fingir de morte e se forçar a tirar aquilo da cabeça. Talvez a ilusão não fosse a pior das opções.
— Ei - chamou, vendo a mão dela se dirigindo à maçaneta. — Talvez seja meio cedo para dizer isso. Mas eu amo você.
Foi naquele momento que ela sentiu seu corpo todo murchar, como se estivesse se fechando, preparado para cair como uma flor que não era mais compatível com a vida depois de tanto ser cutucada e agredida. Não havia maldade, nem violência, mas as palavras que ela sempre desejara ouvir doíam com intensidade absurda. Ela não sabia o que dizer. Ou se tinha mesmo algo a dizer em vez de apenas engolir em seco todo o seu surto que a dilacerava internamente.
Foi salva pelo gongo, como diziam alguns de seus parentes. O rádio, para o qual não poderiam estar dando menos atenção, interrompeu o momento dos dois. A música que vinha lhe causando pesadelos há tanto tempo. deu um grito confuso antes de ficar totalmente sem palavras. congelou exatamente onde estava, piscando repetidamente como se aquilo fosse melhorar alguma coisa.
— Vocês estão na rádio - ela murmurou, não conseguindo soar tão animada quanto gostaria.
— Puta merda, a gente está na rádio - ele repetiu, dando uma risada alta e escandalosa e puxando-a para um abraço apertado em seguida.
Ela sentiu as lágrimas escorrendo pelas bochechas. Não conseguia se desvencilhar da imagem de Leah dançando em sua mente de forma quase persecutória.
— Eu podia explodir de felicidade nesse exato momento - ele falou, apertando-a com um pouco mais de força. — E o melhor de tudo é poder viver isso com você do meu lado. Caramba, . Eu sou o cara mais sortudo do universo inteiro.
fungou com força, antes de despejar, entre soluços distorcidos, as palavras que estavam pesando em seu coração há muito tempo:
— Nós dois sabemos que não era comigo que você queria estar vivendo qualquer momento.
O rapaz a soltou, afastando-a para olhar com firmeza e indagação para seu rosto.
— Do que você está falando? O que você quer dizer com isso?
— Você sabe perfeitamente para quem escreveu essa música e eu não sou tonta o suficiente para não saber também. Só sou idiota por ter achado que eu era importante na sua vida e não ter percebido a história se repetindo.
— O quê? Que história? , eu não estou entendendo.
Mas já era tarde. Ela tinha puxado a maçaneta com força, deixando o carro para trás enquanto corria para dentro da casa, sem dar tempo para que ele a seguisse ou para que ela própria mudasse de ideia e insistisse em explicar para ele o óbvio: ela já sabia de tudo.
Irrompeu como um trovão, assustando a tia que estava na sala, assistindo ao episódio inédito de sua telenovela.
— ? O que aconteceu?
Ela não se deu ao trabalho de responder, subindo as escadas tão rápido quanto seus pulmões permitiram apenas para se jogar nos seus travesseiros e chorar tudo aquilo que tinha passado tantos dias entalado. Precisava se livrar de toda a dor e a negatividade que assolavam o peito. Por mais que não acreditasse que as lágrimas seriam suficientes para se libertar, aquela parecia a única opção no momento.
Em meio a tantas horas regadas a lágrimas e soluços altos, não sabia ao certo definir quando havia definitivamente caído no sono. Tinha dormido completamente torta e sentia as consequências claras disso em sua coluna. Precisava de um remédio para a dor ou não seria capaz de chegar sequer ao banheiro para lavar aquela cara amassada e vermelha.
Caminhou pesadamente até sua escrivaninha, encontrando uma cartela de comprimidos logo ali. Engoliu um deles com água, esfregando os olhos com um pouco de força. Parecia que tinha sido atropelada durante a madrugada.
Ao retornar para a cama, acabou tendo sua atenção desviada para a tela acesa do celular, vibrando com uma notificação nova. Apertou os olhos ao fitar o aparelho, um tanto incomodada com a luz. Tinham mensagens demais ali. Deu-se ao trabalho de olhar apenas a última, mais recente e causa daquela iluminação desnecessária. Era Anne:
“Onde é que você está? Nós estamos saindo para o aeroporto em poucos minutos.”
— Merda.
Fora exatamente por isso que havia saído com para um último jantar na noite anterior. Kyle e ele haviam sido convidados para abrir um festival de música alternativa em outra cidade e passariam quase duas semanas viajando e divulgando o novo EP, que acabava de chegar às rádios - como ela mesma tinha vivido para comprovar e presenciar. Ela e Anne tinham combinado, por sua vez, de acompanhá-los até o aeroporto para se despedirem.
respirou fundo, deslizando o dedo pela tela a fim de ter acesso às mensagens anteriores. O contato de estava ali. Ela não sabia se estava pronta para ler.
— Ele embarca em algumas horas - disse para si mesma. — E a merda já está feita.
E leu.
“Você pode, por favor, ir ao aeroporto amanhã? Nós precisamos conversar. Sem rancor, sem mágoa. Acho que os dois têm pendências a resolver e esclarecer.”
“Sem contar que você entendeu tudo errado. Por favor, eu não vou conseguir ir para esses shows sem ter te explicado tudo.”
O conflito que se instalou dentro dela parecia prestes a fazer seu cérebro entrar em curto circuito completo. Não sabia se tinha estrutura para lidar com aquilo e nem se tinha coragem de fazê-lo em um lugar público e em frente aos amigos que havia acabado de fazer. Provavelmente Kyle e Anne ficariam do lado de , por conhecê-lo há mais tempo, e ela ficaria sozinha. Simplesmente perderia as pessoas que tinham se tornado tão importantes para ela.
Por outro lado, ela se importava com intensamente e não podia deixá-lo partir sem que ambos tivessem um encerramento adequado. Não conseguiria aguentar o fardo de tê-lo prejudicado, enquanto poderia ter evitado todo esse transtorno. Mesmo que seu peito doesse, ela sabia que também precisava daquilo.
Arrastou-se até o banheiro, jogando água gelada o suficiente no rosto para obrigá-la a acordar de uma vez por todas. Vestiu-se em tempo recorde e pediu um carro pelo aplicativo, ciente de que, mesmo assim, chegaria lá em cima da hora.
Nem se deu ao trabalho de pegar algo para comer. Estava estressada demais para colocar qualquer coisa no estômago. Simplesmente entrou no carro solicitado e torceu intensamente para que o trânsito não lhe pregasse uma peça. Não era possível que a vida ia querer jogar mais aquilo em sua cara, gritando um “lide com isso”.
Passou todo o percurso apertando o telefone celular com tanta força que seus nós dos dedos estavam rígidos e brancos. O motorista a tinha encarado com certo estranhamento e curiosidade algumas vezes pelo retrovisor, apesar de não ter comentado ou perguntado coisa alguma. Provavelmente, só estava ficando aflito com a aflição dela. Vai ver era contagioso.
Agradeceu o motorista e desceu a passos rápidos, dividindo-se entre tratar de ser o mais rápida possível, seguir as coordenadas e direções que Anne tinha lhe enviado e olhar para o alto, tentando encontrar as placas correspondentes antes que fosse parar em algum canto totalmente oposto do aeroporto, fazendo com que absolutamente todo o seu esforço tivesse sido totalmente em vão.
Teve que parar umas duas vezes para pedir orientações de funcionários antes de, finalmente, encontrar o portão de embarque dos rapazes. Estava completamente esbaforida - e com toda a certeza bem vermelha e descabelada - quando avistou os três amigos sentados nas poltronas, rindo de qualquer coisa que tinham acabado de dizer.
tinha olheiras que ela não tinha visto antes. sentiu uma vontade extrema de correr até ele e apertá-lo em seus braços. Só ela sabia como ter autocontrole naquele momento era excruciante. Na verdade, talvez ele também soubesse. Era o único motivo para que ele estivesse lhe oferecendo aquele meio sorriso abatido e um pouco triste.
— Vem, Kyle, vamos comprar um lanche - Anne disse, levantando-se e puxando o rapaz pelo braço.
— Mas eu não estou com fome - ele resmungou.
— Eu disse vem - ela ralhou, puxando-o novamente.
Com um longo revirar de olhos, ele a seguiu, deixando os dois para trás, com as mãos procurando os próprios bolsos e as cabeças sem saberem exatamente para onde olhar. Com certeza a pessoa que havia inventado a palavra “constrangimento” o tinha feito por ter vivido um momento como aquele.
— Eu pensei que você não fosse vir - comentou, a voz baixa e tranquila.
— Sinceramente? Eu também pensei.
Ele sorriu, cansado.
— Você não parece ter dormido direito - ela comentou, sem saber ao certo o que deveria dizer.
— Fiquei até tarde na sua casa - explicou. — E demorei muito até conseguir dormir quando cheguei à minha.
— Como assim ficou até tarde na minha casa?
Ele respirou fundo, esfregando um pouco os olhos marcados.
— , o que aconteceu ontem?
Foi a vez dela de tentar controlar seu próprio nervosismo.
— Eu não consegui lidar com o fato de a música ser sobre a Leah. Desde o dia na gravadora. Quando Michael disse que era você o compositor, eu não soube o que pensar.
— Se você tivesse simplesmente me perguntado, eu teria te dito que a ideia da música tinha sido do Kyle, mas ele pediu para que eu a escrevesse porque ele é simplesmente um lixo compondo. Sério, você deveria ter visto as atrocidades que ele já escreveu.
sentiu os olhos queimando, ardendo como se alguém tivesse dado um jeito de secá-los por completo, apesar de eles estarem completamente marejados. Queria correr para o colo de alguém e chorar como uma criança sofrendo por pouca coisa que, ainda sim, parecia o fim do mundo. Era isso então? Simples assim?
— Eu não sabia - foi tudo o que ela conseguiu dizer, enquanto tentava engolir o soluço preso na garganta.
— É, eu sei. Queria que você tivesse só conversado comigo. Nada disso teria acontecido.
A garota levou a mão rapidamente ao rosto, secando a lágrima que escorria.
— Eu estava insegura - admitiu. — Muito insegura. E eu sei que isso não justifica nada, mas…
— Mas você achou que a história estava se repetindo - ele completou, lembrando-se das palavras que ela havia usado na noite anterior. — Eu não entendi nada na hora, mas a sua tia me explicou.
Ela não conseguiu evitar a exclamação de surpresa.
— Minha tia fez o quê?
— Quando você saiu correndo, eu fui até a sua porta. Queria saber o que tinha acontecido, queria conversar - ele contou. — Sua tia também estava preocupada, disse que você tinha subido correndo sem dizer o porquê. Ela me perguntou o que tinha acontecido e eu só repeti.
— Daí ela te contou - ela concluiu, recebendo um aceno de cabeça em confirmação.
— Ela falou dos seus avós e da sua mãe. E eu entendo a sua preocupação e insegurança, mas você não está amaldiçoada. - Ele soltou uma risada anasalada, enquanto colocava uma mecha do cabelo dela atrás da orelha. — Sinto muito mesmo que você tenha passado por tudo isso, mas eu não sou o seu avô e não sou o seu pai. Eu sou só um cara que faz faculdade por aí, gosta de tocar nas horas vagas e está completamente apaixonado pela garota nova que apareceu na festa da praia.
sentiu as lágrimas rolando com mais força, respondendo ao calor do toque dele contra sua pele. Seu medo tinha destruído a coisa mais linda que ela poderia ter vivido.
— Eu sei que você nunca mais vai querer nem olhar na minha cara - ela começou. — Mas eu realmente preciso te pedir todas as desculpas do universo. Perdão, de verdade. Queria que as coisas tivessem sido diferentes.
riu, meneando a cabeça.
— Você tem que parar de decidir as coisas por mim. Não pode assumir que nunca vou nem olhar na sua cara sem me perguntar. Achei que já tivéssemos chegado à essa conclusão.
Ela mordeu o lábio, concordando. Tinha mesmo que parar de decidir ou controlar coisas, pensamentos e sentimentos que não lhe pertenciam. Tudo o que podia fazer naquele momento era esperar que as coisas acontecessem. Deixar que o tempo se seguisse e trouxesse com ele as situações futuras.
Uma voz feminina melódica soou pelos auto-falantes, anunciando o início do embarque no voo que eles deveriam pegar.
— Bom, acho que nos vemos em alguns dias - ele disse, sorrindo verdadeiramente, enquanto a puxava para um abraço. — Com o peito mais leve e as ideias mais claras. Podemos conversar de novo, com mais calma.
— Eu adoraria - ela respondeu, apertando-o um pouco mais, sem se importar se tornasse a situação ainda mais estranha. — Boa sorte nos shows. Tenho certeza de que você vai arrasar.
— Ah, eu não tenho dúvidas disso. - Ele riu abertamente. — É bem fácil considerando que quatro das cinco músicas que temos são sobre você.
enrubesceu, sentindo a vergonha tomar conta de si. Estava tão focada na primeira música que nem tinha se atentado para as demais. Com certeza o faria assim que voltasse para casa.
— Pronto, cara? - Kyle perguntou.
— Pronto.
Os dois abraçaram as garotas mais uma vez, antes de seguir para a fila do embarque, sumindo rapidamente com um aceno animado.
— Como foi a conversa com ? - Anne quis saber.
— Melhor do que eu esperava. - A outra deu de ombros.
— Que bom - a amiga emendou. — É melhor mesmo que só uma de nós duas tenha acabado de fazer uma merda enorme.
fez uma careta, antes de se virar para ela.
— O que você fez?
— Contei para o Kyle que gostava dele, da forma mais trivial possível enquanto tomava o meu refrigerante.
— O quê?! Como assim? Você vai me contar o que aconteceu agora. O que foi que ele disse?
— Eu te conto no caminho - Anne respondeu, seguindo pelo aeroporto, enquanto repetia mentalmente o lugar em que tinha estacionado o carro.
assentiu, seguindo-a. Estava se segurando para não rir com o desespero da amiga, apesar de esperar do fundo do coração para que tudo desse certo para elas. Na verdade, que tudo desse certo para os quatro.
Mas só o tempo diria aquilo. E, enquanto o tempo não chegasse, poderia se distrair um pouco com as histórias das outras pessoas.
FIM
Nota da autora: Vamos lá.
Primeiro, rivalidade feminina é uma grande porcaria e me irrita. Mas essa rivalidade aqui nunca existiu de verdade
Segundo, conviver com a insegurança de um trauma é uma gigantesca porcaria. Adoece a pessoa, de verdade, e vai impedi-la de viver várias coisas incríveis. Conversar abertamente com as pessoas e terapia são sempre atitudes bem-vindas. Você não precisa carregar esse fardo.
Enfim, ademais espero que tenham gostado. Sei que não é o romance que a gente espera, né? Mas a vida nem sempre é mesmo. Amo vocês <3 Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Blow Me (One Last Kiss)
02. Stitches
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Robot
11. Nós
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallflower
Primeiro, rivalidade feminina é uma grande porcaria e me irrita. Mas essa rivalidade aqui nunca existiu de verdade
Segundo, conviver com a insegurança de um trauma é uma gigantesca porcaria. Adoece a pessoa, de verdade, e vai impedi-la de viver várias coisas incríveis. Conversar abertamente com as pessoas e terapia são sempre atitudes bem-vindas. Você não precisa carregar esse fardo.
Enfim, ademais espero que tenham gostado. Sei que não é o romance que a gente espera, né? Mas a vida nem sempre é mesmo. Amo vocês <3 Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp
Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Blow Me (One Last Kiss)
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03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Robot
11. Nós
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
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Not Over
Señorita
Wallflower