Capítulo Único
— Não podemos passar o resto das nossas vidas, enfurnados nesse seu Mustang 67’! - A ouvi dizer, tentando soar irritada, ao mesmo tempo que se afundava no banco do passageiro. Era uma legítima história de amor e ódio.
— Ela está nervosa e falando besteiras. Não é nada pessoal, Carrie. - Sussurrei cômico, acariciando o volante que dirigia, certificando que transmitira todo o amor genuíno que supria pela máquina.
— Pare de falar com esse carro ou eu juro... Eu juro, Joshua, que eu vendo isso hoje mesmo. - Ela nos ameaçou, entredentes. Eu sabia que tinha cutucado a onça com vara curta!
— Rach, não pode ficar de mal humor o dia inteiro apenas porque fomos pegos. Não é a primeira vez.
— O atendente tinha uma arma, Joshua! Você poderia ter morrido!
— Tudo bem. - Suspirei, dando-me por vencido e estacionando o veículo. — Não há com o que se preocupar. - Passei uma mão por seus cabelos, exatamente da maneira que sabia acalmá-la. — Existem perigos em não viver numa casa com anões no jardim e já passamos por vários deles. Este não foi o último. - Depositei um beijo demorado em uma das suas bochechas, vendo que Rach permanecera muda e eu sabia que ela continuava a remoer a cena em sua mente.
— Deveríamos tomar mais cuidado. - Confessou de voz baixa. Rach não era o tipo que conseguia demonstrar muito do medo que sentia, porque, em suas palavras, ela tinha medo de se tornar superprotetora com medo ridículos, então preferia guardá-los inteiramente para si.
Eu não precisava de muto para reverter essa história. Há muito que conheço Rachel, seus defeitos e suas incontáveis qualidades, logo a conhecia o suficiente para entender além de suas palavras, que ela estava farta da vida levamos. Sim, era um dia de cada vez, mas cada vez mais difíceis.
Os golpes que dávamos de olhos vendados em mercearias e mercadinhos da região não funcionavam mais. Os comerciantes começaram a se alertarem contra os golpes. Algo com a luta da classe trabalhadora, ou sei lá.
Nunca nos imaginamos engravatados, pagando pelo plano de saúde em dia, por exemplo. Somos bons no que fazemos, mas a partir do momento que crescemos e não pudemos usar dos olhos brilhantes e infantis como álibi, furtar pra conseguir comer se tornara uma briga diária.
— Talvez as coisas mudem quando você aceitar se tornar a senhora McCaulin. - Dei de ombros, como quem não dissera nada demais. Minha vontade não era exatamente uma novidade para Rachel.
— Não entendo como acredita que casamento é a solução dos problemas.
— Não acho que casamento vai solucionar tudo. Mas o casamento com você já é um bom começo.
— Não consigo me ver como uma Desperate Housewives.
— Vamos continuar os mesmos, Rach. Porém teremos a segurança de um compromisso efetivo entre nós.
— Na riqueza e na pobreza?
— Na saúde e na doença. - Completei-a. — Até que a morte nos separe.
As palavras não foram exatamente “Eu aceito”, porém se encaixaram como se fossem, deixando uma sensação gostosa de ansiedade em meu peito. Agora, no entanto, o casal mais problemático do estado do Texas estava noivo.
— Acelere isso, precisamos de uma bebida pra comemorar! - Nossos sorrisos se abriram, tomando boa parte de nossos rostos quando o ronco do motor soou imponente.
O bom e velho rock’n’roll tocava a todo vapor, resultando em gritos desafinados de ambos que achávamos que essa era uma das melhores formas de extravasar a felicidade que borbulhava nos corações tão errantes.
A poeira que o carro levantava pela estrada tornara a cena propícia, pois o próximo alvo se aproximava a cada segundo.
Um galão de gasolina do lado de fora e uma mirrada senhorinha para tomar conta da loja era o presente de casamento perfeito que ainda nem tivemos tempo de pedir.
Estacionei em modo de fuga, me exibindo com a manobra bem feita para a gata ao meu lado.
— Pegue algo para vender. Precisaremos de dinheiro para as alianças. - Ela piscou para mim, sapeca como se tornava quando arquitetava os passos do golpe em sua mente.
Showtime.
Nos canos de nossos coturnos, cada um de nós havia um canivete que se tornara desnecessário, devo dizer, já que nas mangas de nossas jaquetas empunhávamos outros canivetes.
Hoje, no entanto, seria diferente.
Era um costume. Já sabia onde encontrar o vidrinho com o que precisávamos. Hoje precisaríamos de mais coisas, uma despesa, por assim dizer. E o clorofórmio que molhava o pano em minha mão, nos proporcionaria a calmaria de tempo suficiente para fazê-lo.
Trocamos um último olhar significativo como em um acordo silêncio de que ambos estávamos prontos.
A sineta da porta tocou assim que passamos por ela e sem que pudéssemos pensar em outra coisa, nossos pares de olhos varreram todo o local, estudando se havia mais alguém com quem precisássemos lidar o alguma câmera de segurança.
Estava às moscas.
Nos separamos, de forma que cada um ficou com um cestinho para perambular pela lojinha interpretando o melhor papel de casal que fazia sua compra do mês. Desfilamos pelos corredores, pegando poucas das coisas que realmente precisávamos enquanto trocávamos poucos olhares de esguelha.
Fui bem mais rápido que Rachel para encher o cestinho com parte das nossas coisas, mas não podia culpá-la por escolher a melhores marcas. Segui para o caixa, chamando a atenção da senhorinha que demorou bons bocados até que chegasse até o balcão, demorando outros valiosos minutos até que limpasse as lentes de seus óculos.
— Quanto custa os fones de ouvido? - Apontei para a variedade exposta atrás dela, percebendo no lindo colar preso em seu pescoço.
— Os da prateleira de cima são 17 dólares e esses daqui... - Pegou a embalagem dos mais simples, mostrando-me. — Apenas cinco dólares.
— Vou querer dois, da prateleira de cima. - Ela assentiu, virando-se para esticar o máximo que podia. — Precisa de ajuda?
— Seria o ideal, meu filho. - Ajustou os óculos de grau ao rosto quando lancei um último olhar para Rach no fim do corredor, até que contornasse o balcão, parando ao lado da velhota sem precisar calcular muitos movimentos para tampar o nariz e bora dela para que expirasse a droga. Sem murmúrios, em poucos segundos seus olhos reviraram e o corpo pequeno dela caiu sob meus braços. Estiquei suas pernas, deitando-a rente ao balcão.
— Rachel! O máximo que puder, no menor tempo possível! Vamos! - Gritei, tendo como resposta a agilidade da mulher que atravessara pela porta com cestos lotados, abrindo o porta malas do carro e esvaziando-os. Ouvi sua voz reverberar na minha cabeça, “Pegue algo para vender. Precisaremos de dinheiro para as alianças”.
O colar.
Retornei para onde estava há pouco, contornando o balcão mais uma vez em segundos. O colar era delicado e apesar de parecer antigo, ainda brilhava no pescoço da velha. Cordão fino, dourado, acompanhado de um pingente em formato de coração. Puxei a joia em um impulso, analisando-o assim que o tive em mãos. Era um camafeu. Dentro havia uma foto pequena que se adaptava ao formato de coração, abraçando as três pessoas que pareciam formar uma família.
Não sabia dizer quanto tempo perdi ali, mas no fim das contas, abri a mão da senhorinha, emaranhando o cordão por seus dedos.
Rachel deu dois tapinhas no balcão, chamando minha atenção como quem perguntava o que fazia ali por tanto tempo.
— Está com a chave do carro? - Assenti energeticamente. — Então vamos.
Certifiquei-me sobre as voltas que o cordão dava nos dedos finos dela uma última vez e bati a porta da frente, adentrando o veículo e acelerando aos pedidos apressados da minha noiva.
Não precisávamos reforçar o combinado; após um golpe, se tudo corresse bem, descansávamos a noite inteira no hotel mais próximo como espécie de recompensa. Não era muito, porém para nós soava como bastante coisa.
Rachel secava os cabelos ao mesmo tempo que reclama do secador pequeno que fazia aquela tarefa demorar mais que o normal. Pela cama, algumas das bobeiras que conseguimos no golpe estavam espalhadas, comeríamos até que nos sentíssemos satisfeitos. A cortesia do hotel era apenas um café da manhã e válido apenas a partir das nove da manhã.
Deixei de prestar atenção nas palavras de Rach assim que percebi se tratar de mais uma reclamação, no entanto, preciso confessar que não seria muita coisa que conseguiria prender minha atenção. Não quando minha mente insistia em repetir o camafeu e a foto que carregava.
Aquela foto, representava uma semelhança gigantesca com a família que eu sonhava em construir com Rachel.
Nunca houvera nada que fizesse meu corpo travar daquela maneira, ainda mais em um golpe.
Hoje, eu e Rachel demos o primeiro passo para a família que tinha naquele camafeu.
A família que poderia ser a nossa.
— Josh? Joshua? - Rach balançou a mão em frente ao meu rosto, chamando a minha atenção. — Está tão quieto. - Analisou-me, estudando atentamente meus olhos até que um finco se formasse entre suas sobrancelhas. — O que foi?
— Não se preocupe. - Pisquei, tentando soar maroto, assistindo a mulher empurrar tudo o que havia na cama para melhor se aconchegar em meu colo. — Sério. - Um selinho fora o suficiente para que ela segurasse meus ombros, impedindo meu movimento seguinte, que era me levantar, encarando-me de olhos cerrados. — Tudo bem, tudo bem. - Me dei por vencido, porque a conhecendo do jeito que a conhecia, sabia que não demoraria até que ela conseguisse arrancar a verdade de mim. — Hoje, enquanto estávamos naquela mercearia. - Engoli em seco. — Eu finalmente entendi porque não suporta mais essa vida, Rach.
— Merecemos mais que isso, meu amor.
— Eu tentei roubar o colar daquela mulher que cuidava da loja, mas dentro dele tinha uma foto dela com mais duas pessoas. Não sei se era família, mas se fosse, eu queria que a nossa fosse exatamente daquela maneira. - Ela sorriu terna, passando os braços pelos meus ombros, me abraçando.
— O que vamos fazer agora?
— Carl saiu dessa vida. - Suspirei. — Tudo bem que Nat engravidou de trigêmeos, mas acho que temos com quem contar.
— Podemos convidá-los para serem nossos padrinhos!
— Com aquela criançada toda correndo? - Arqueei a sobrancelha. — Com certeza!
O resto da noite serviu para que começássemos cogitar como começaríamos uma vida tão diferente agora. Uma vida honesta. Uma vida que, meses atrás, estávamos rindo de quem a levava. Hoje a desejávamos por completo, até que um serzinho, 50 por cento meu e 50 por cento Rachel pudesse vir ao mundo com o conforto que não tivemos quando mais novos.
Algumas mensagens foram necessárias durante a madrugada para que conseguisse entender o que Carl fazia em Louisiana. Natalie conseguira um emprego melhor no estado vizinho e a família não pensou duas vezes em se mudar.
Carlton presenciara boa parte da minha infância que de inocente nada tivera, ao lado de Rachel que passara por poucas e boas também. Éramos um trio de crianças que ao invés de estarmos na mesa, conversando com os pais sobre os exercícios de matemática que resolvemos na escola, conversávamos entre si sobre a matemática do que comer hoje para não faltar amanhã. Nossos pais também eram amigos de longa data, mas do tipo que se conheceram na adolescência enquanto se drogavam e acharam uma boa ideia carregar o vício durante o resto da vida.
Helena, minha mãe, me fizera perder dias preciosos de aula enquanto eu estava ocupado demais mantendo-a fora de uma overdose, imersa na banheira de água fria. Perdi as contas de quantos padrastos tive, mas havia um que sempre voltava: Joseph. Ele estava longe de ser uma boa pessoa, porém entre todos que já vi sair do quarto dela, ele era o menos pior. Sempre que estava por perto, Joseph era quem a cobria de água gelada na banheira nos dias que eu tinha prova no colégio.
Benedict, no entanto, era meu pai biológico. Farreou durante sua adolescência também, e algumas histórias ainda me perseguiam pela pequena cidade quando eu decidia voltar. Este, se safou enquanto tivera tempo. Curou-se dos vícios nas agulhas até que parecesse bem o suficiente para assumir os negócios que passara de gerações desde meu tataravô, ou sei lá quem. Claro, os negócios da família brecaram em mim.
Sabia que Benedict estava vivo pelas capas de jornais que estampava com os bailes anuais da empresa, sempre com uma nova esposa, cada vez mais nova. E nem todos os seus vícios foram superados! Diversas das suas anuais esposas agora o denunciavam por violência doméstica após o uso de cocaína e uísque em excesso.
Minhas esperanças começavam e terminavam em Rachel. Soa egoísta, mas não havia muito em que apostar quando tínhamos apenas um ao outro.
Ela se sentia da mesma forma.
— Tente dormir um pouco... - Murmurou sonolenta, da melhor forma que pôde, aninhando-se a mim. Tê-la ali, de respiração serena ao meu lado era a única certeza que eu tinha, de que qualquer esforço era válido.
Bloqueei o celular, ouvindo-o vibrar mais algumas vezes com as mensagens de Carl que responderia ao amanhecer. Havia uma mulher naquela cama que adorava puxar meu lado do edredom durante toda a madrugada, e eu adorava mais ainda puxá-lo de volta apenas para ouvi-la tentar me xingar e acabar encostando a cabeça em meu peitoral.
Esta é Rachel Coleman – McCaulin –, e eu a amo desde que entendi ser digno desse sentimento.
Acordei com as tentativas falhas dela de alcançar as notas altas enquanto cantava Valerie, na sua mais empenhada interpretação de Amy Winehouse. O vapor do seu banho quente escapava pela fresta da porta que fora fechava segundos após eu batê-la em minhas costas.
A água quente, ou quase fervente como ela gostava, molhou meus cabelos assim que me dediquei a beijar a curva de seu pescoço. Ela se virou e enlaçou meu pescoço com seus braços, presenteando-me com um beijo tão quente quanto a água que caía sobre nós. As pernas dela logo enlaçaram minha cintura, nos sinais mais claros da melhor forma que poderíamos começar o dia.
Para não perder o costume, a voz da mulher soava esganiçada em suas reclamações enquanto secava os cabelos com o secador pequeno, mais uma vez. Pedimos o café da manhã e o devoramos enquanto a atualizava das novidades que Carl me contara na noite passada. Rach era uma apoiadora assídua do casal e principalmente dos trigêmeos fruto da relação.
Hoje, teríamos como meta atravessar os extremos do estado do Texas até que chegássemos à Louisiana. Pegamos a estrada cedo e o dia ensolarado tornou tudo mais tolerável enquanto o vento bagunçava os cabelos dela. Rach estava pensativa, descansando a cabeça nos braços dobrados na janela.
— Eu sei o que vai dizer, mas preciso ao menos tentar. - Ela disparou de uma só vez, como quem estava ansiosa para se livrar de um pensamento antes que se arrependesse dele. — Talvez pudéssemos pedir uma grana emprestada para o seu pai. - Inicialmente eu apenas ri nasalado, mas logo se transformou em uma gargalhada, forçada e amarga.
— Não. Começamos com os golpes quando tínhamos menos dinheiro do que agora, e apesar de um caminho torto, seguimos bem o suficiente sem ele.
— Agora vamos, finalmente, colocar nossas vidas nos eixos, babe. - Ela soltou um muxoxo, insatisfeita. — Não podemos ir em uma entrevista de emprego vestindo jaquetas de couro que tem furos das mangas pra caberem os canivetes!
— Confie em mim, isso seria mais digno do que qualquer roupa de grife comprada com o dinheiro dele.
— Josh...
— Carl vai nos ajudar no que precisarmos.
Um par de horas depois, muita estrada já havia sido percorrida mesmo que ainda houvesse muito mais a percorrer. Paramos quando vimos um parque aconchegante em meio aos quilômetros que não sabíamos muito bem de qual se tratar, Rach queria uns minutos para esticar as pernas enquanto o Sol caía.
Encostamos em uma árvore, espalhando uns pacotes de bolinhos pela coberta que ela forrou na grama do parque. Passei meu braço por sua cintura quando ela encostou a cabeça em meu ombro. O Sol de fim de tarde deixava seus cabelos alaranjados que combinavam com a tranquilidade do local, quando o único som entre nós era das crianças que brincavam de pique-esconde por todo o parque.
Esperava que ela compartilhasse dos mesmos pensamentos que eu quando imaginava que uma daquelas crianças – ou metade delas – poderiam ser nossas.
— Vamos? - A chamei, assim que a senti se encolher depois da brisa fria.
A noite caiu e, com ela, uma Rachel que se jogou pelos bancos traseiros coberta por uma manta enquanto sua jaqueta embolada servia-lhe de travesseiro.
Cantarolar mantinha minha mente atenta para que o sono se mantivesse longe e o fiz até que amanhecesse, ignorando os ombros tensos de se manterem travado da mesma posição por horas.
Não haviam novidades em cruzar as estradas até que chegássemos no estado vizinho, apenas o cansaço que apelou de forma que precisamos passar a noite num hotel de beira de estrada. Desta vez, Rach não reclamara do secador, mas reclamara do único quarto que nos restara, com camas de solteiro de alturas diferentes que nem podíamos juntá-las e talvez esse fosse o propósito.
Jogar os colchões no chão resolvera esse problema e de quebra, a saudade que estava de senti-la. Não fomos mesquinhos. Abdicamos de uma noite de sono tranquilo pelo conforto dos lençóis quentes e os gemidos que de inocentes não haviam nada.
Gostava de cada curva de Rachel, mesmo que ela se culpasse por gostar tanto de doces à ponto de não conseguir desistir deles por uma silhueta mais fina. Gostava de como ela prendia o lábio inferior entre os dentes para conter os murmúrios de quando a beijava entre as pernas. Gostava de como puxava meu cabelo, e como rebolava quando estava próximo do seu ápice.
A forma como suas pernas tremiam, como escondia seu rosto da curva do meu pescoço para que não soasse alto demais quando proferisse meu nome de voz arrastada. O beijo urgente dela para sentir do seu próprio gosto na minha língua, como reagia livremente estando por cima, comandando seus próprios movimentos.
Ela acordara mais disposta dessa vez, à ponto de tomar a chave do Mustang dos meus dedos, arrumando o banco do motorista como achava confortável e colocando alguma das suas bandas indies para tocar em alto e bom som.
Queríamos mudar de vida, mas em meio a esse percurso ainda precisaríamos resolver algumas coisas da nossa própria maneira. Uma delas foi reabastecer o tanque do carro que Rach recusou minha ajuda para fazê-lo. Segundo ela, queria usar da sua máscara de boa moça para que algum caipira desavisado abastecesse para ela e eu não duvidava que ela conseguisse. A mulher era um pecado por completo.
Abrir o segundo botão da camisa xadrez que ela vestia foi o suficiente para que faturasse um tanque cheio apenas com o poder do seu sorriso.
Eu conhecia cada vírgula do modus operandi dela e o quão impressionante poderia ser. Queria assisti-la em ação, porém hoje, ela é quem seria surpreendida e o pouco tempo do seu golpe era tempo suficiente para que eu pudesse fazê-lo. Gastar as contadas notas que tinha na carteira valeria a pena e a pequena loja de antiguidades fora o palco da minha primeira compra –honesta– em muito tempo.
Ela buzinou assim que passou por mim do outro lado da rua, para que eu voltasse para o banco do passageiro e arrancou com o Mustang aos gritos do caipira que cobrava os dólares gastos sem “recompensa” nenhuma.
A rota interestadual nos ligou à divisa com o estado de Louisiana, então poucas horas nos separavam da capital, Baton Rouge.
Pedi para que ela estacionasse no primeiro bar que encontramos na estrada e ela o fez, encostando no capô quando segui as placas que indicavam os sanitários. Como um adolescente que convidava a namoradinha para o baile, ensaiei algumas frases em frente ao espelho, tentando ao máximo não soar clichê e falhando em cem por cento das vezes.
Baguncei meus cabelos, encarando-a recostada ali, admirando as árvores ressecadas que eram a única vista do local. Ela sorriu quando me viu aproximar e assim como ela, me encostei no capô do carro. Puxei sua mão até que ela estivesse junto de mim, e abracei sua cintura, deixando um beijo solitário no ombro dela.
— Lembra quando te disse que entendia o motivo de você não suportar mais essa vida? - Sussurrei sem realmente esperar uma resposta dela. — O motivo que me deu esse choque de realidade eu ainda não te contei, mas posso te mostrar. - Desvencilhei uma das mãos que lhe abraçava para puxar o cordão dourado do bolso interno da jaqueta que eu ainda vestia, mantendo-o em minha mão. — A senhora daquela mercaria tinha um camafeu preso no pescoço e eu não consegui roubá-lo porque tinha a foto da família dela. - Mostrei-lhe o colar que estava na palma da minha mão. — Hoje, eu quero te dar um semelhante. - Desuni as duas metades do pingente, ouvindo-a arfar. — Coloquei apenas uma foto de quando éramos mais novos, porque a foto que vai ocupar o outro lado eu espero que já seja da nossa família, Rach.
Os braços finos dela me abraçaram pelo pescoço e eu a ouvi fungar. Meus dedos em seus cabelos a consolaram com um cafuné que acalmou a respiração acelerada da mulher que me apertou um pouco mais.
— Você é incrível, Joshua McCaulin. - Colou nossos rostos, selando os lábios rapidamente. — E seremos felizes como merecemos ser. É uma promessa!
A animação da mulher ao volante parecia crescer a cada minuto, sua voz entoava hits pop que substituíram os indies, tornando fosca a joia em seu pescoço quando comparada ao brilho no rosto dela. Ela parecia livre. Confortável com nossa mudança de ares, mas não completamente, porque um sorriso perverso tomou conta de seu rosto quando ela confessou querer escolher as roupas da sua primeira entrevista de emprego.
Apesar de não haver necessidade, de nada adianta eu enumerar mais uma vez, tudo o que Carl nos ajudaria a mudar. Ela estava convicta de querer se despedir dos golpes, ironicamente, como o primeiro passo que daríamos quando dentro das leis.
Seu entusiasmo se tornou ainda mais nítido quando ela descreveu a roupa que escolheria para a primeira entrevista de emprego de sua vida. Segundo ela, seria um clássico conjunto social como aqueles que Sandra Bullock usou em “A Proposta”, a comédia romântica com Ryan Reynolds. A saia de cintura alta prenderia parte da sua camisa social branca que não desvalorizaria suas curvas por conta dos scarpins que fazia parte de seus planos, também. Precisou pausar os detalhes que disparava eufórica, para recuperar a respiração e estacionar em modo de fuga poucos metros após a loja que ela escolhera.
Um selinho de despedida selou o fim da vida marginal que deixamos no Texas.
Rach mandou um beijo no ar antes de adentrar a loja, desfilando confiante e eu ri nasalado. Céus! Eu sou um completo clichê quando se trata dela. Chega a ser ridículo!
Algumas chamadas perdidas de Carl piscavam na tela do meu celular. Abri nossa conversa respondendo pacientemente as trezentas mensagens insistentes dele e em uma delas, questionava se algum de nós dois éramos alérgicos a amendoins ou frutos do mar. Minha boca salivou no mesmo segundo porque boa parte das minhas comidas favoritas envolviam os dois ingredientes.
Quando tomava coragem de se arriscar na cozinha, Carl fazia pratos típicos espanhóis que faziam Natalie implorar para que a ensinasse e ele apenas respondia que a mágica que acontecia na cozinha era segredo entre ele e os trigêmeos.
Uma correria na rua me fez largar o celular sem prestar atenção se havia enviado o que digitara. Algumas pessoas se agacharam entre outras que tentavam proteger crianças aos seus arredores. Rachel corria. E a expressão em seu rosto era de pânico.
Tentei ajudá-la quando a vi mancar.
Corri a seu encontro, mas não vi muita coisa após reparar no sangue em suas mãos.
Lágrimas molharam o rosto dela e sua voz tentou gritar abafada assim que seu corpo atingiu o chão.
Rachel tentava estancar o sangue que jorrava de um tiro que levara na barriga. Mas havia outro. Próximo ao camafeu. Próximo ao seu coração.
Minhas pernas tremiam, a boca estava seca e meus olhos não acreditavam no que viam. A mulher em meus braços mal conseguia mexer os lábios para formar uma frase.
A aconcheguei da melhor forma possível nos bancos traseiros, mas o coração descompassado tornava impossível completar um raciocínio sequer. Cantei pneu seguindo algumas placas que indicavam o centro da cidade, alguma delas em algum momento deverá indicar um hospital. O celular começou a tocar, no banco do passageiro, era Carl.
— Parece um milagre ter me atendido! Não sabe o que te espera... - O amigo soou animado.
— Carl... Rachel. - Tentei continuar, mas o embargo em minha garganta me empatou quando a ouvi agonizar.
— O que houve? Onde vocês estão?
— Ela foi baleada. Preciso do hospital mais próximo, acabamos de cruzar a divisa dos estados.
— Cacete. Siga as placas que indicam o museu da cidade, assim que encontrá-lo, siga reto duas quadras e encontrará um hospital.
Queria agradecê-lo, mas havia que lidar com o essencial agora. Salvar a vida da minha noiva.
— Seremos felizes como merecemos ser, Rach. É uma promessa! - Repeti suas palavras de mais cedo, acelerando o carro mesmo que sequer sentisse o volante em minhas mãos.
A toalha que cobri seus ferimentos já estava encharcada e seus olhos custavam a permanecer abertos.
Eu me sentia impotente por não conseguir protegê-la.
Furei sinais que não me importei e pouco liguei para os xingamentos que ouvi por fazê-lo, porque logo a frente, as letras vermelhas da emergência do hospital se tornaram mais próximas quando pisei no acelerador.
Alguns enfermeiros se prontificaram assim que me viram equilibrar o corpo enfraquecido de Rachel em meus braços.
O sangue dela estava em mim. Em minhas roupas. Nos meus braços.
Uma maca a transportou para dentro do hospital e meus pensamentos alvoroçados impediam que eu assimilasse as recomendações dos médicos, até segurarem meus braços, impedindo que eu continuasse a segui-la. Ela é minha noiva, quem em sã consciência me impediria de acompanhá-la?
— Senhor. Senhor? - Os enfermeiros que a socorreram, agora, me brecavam pelos ombros. — Esta é a ala cirúrgica e não pode ultrapassá-la. - Um deles me explicou. — O senhor a conhece?
— S-sim. É minha noiva.
— Certo. Sua noiva está em boas mãos agora.
— Eu preciso ajudá-la. P-por favor, me deixe ajudar a Rachel. - Tentei ultrapassá-los mais uma vez, sem insistir por sentir meu corpo fraco devido o choro que se tornara incontrolável.
— Posso ajudá-lo a preencher o formulário com as informações de Rachel. - O enfermeiro disse de voz baixa, talvez tentando transmitir-me calma. — É neste formulário que atualizaremos o quadro da sua noiva.
Assenti, sabendo que apesar de sentir que conseguiria mover o mundo por Rachel, agora, não havia muito o que fazer à não ser aguardar por notícias da minha futura esposa.
Minhas pernas ainda tremiam e o frio que sentia pelo corpo todo piorava os calafrios sempre que meus olhos corriam pelas manchas do sangue dela em mim.
Encarar os ponteiros do relógio na parede não ajudava como eu queria, e uma eternidade já se passara. 40 minutos sem novidades de como Rach reagira aos tratamentos e se eu conseguisse completar qualquer pensamento que fosse, agora, seriam os piores possíveis.
— Joshua! - Carl se esgueirou entre algumas pessoas na sala de espera até chegasse a mim. Eu tentei falar com ele, mas não havia espaço além dos soluços que eram repetitivos e cada mais desesperados, frustrados. — Eu sei, eu sei. Ela vai ficar bem, acredite nisso.
Eu queria acreditar, e eu tentava ao máximo, mas era inquestionavelmente difícil enquanto lutava às cegas.
Meus passos de um lado para o outro se tornara a coreografia dos últimos 40 minutos. A sala de espera agora já estava mais vazia. Encarar as paredes brancas me davam náuseas e em minha mente, se projetava uma cena em que eu sairia daqui com Rachel ao meu lado, sorrindo tranquilos como se apenas estivéssemos acordados desse pesadelo.
— Acompanhante de Rachel Coleman? - Uma enfermeira anunciou no começo do corredor.
Não senti o chão abaixo dos meus pés, assim como não senti o ar que respirava preencher meus pulmões.
— Como ela está? - Me adiantei, não importando com os olhares tortos em minha direção.
— O médico quer atualizá-lo sobre o estado da sua noiva. - Carl deu dois tapinhas em meu ombro e eu segui os passos da enfermeira. — Este é o cirurgião geral, Dr. Hoever. Vou deixá-los a sós.
— Imagino que você e sua noiva tenham passado por poucas e boas, meu rapaz. - O médico em torno de seus cinquenta anos, ponderou, ajustando os óculos de grau em seu rosto.
— Não me esconda nada, doutor.
— Bom, Rachel é muito forte. Perdeu muito sangue até que chegasse aqui e na mesa de cirurgia também. Conseguimos retirar apenas um dos projéteis. O outro está alojado em uma área muito próxima do coração e é uma região de grande risco. Ela ainda está sedada e respirando majoritariamente por si própria. Aparentemente, reagiu bem à cirurgia e ficará em observação. - Suspirou. — Poderá vê-la, rapaz. - Dr. Hoever indicou com a mão a porta atrás de si, era o quarto de Rachel.
O corpo dela parecia minúsculo naquela maca, o lençol que a cobria até os ombros deixava essa impressão ainda mais evidente. Os bipes dos aparelhos eram o único som no cômodo e luz fraca dali apenas contribuía para que tudo se tornasse ainda mais angustiante.
— Acorde, meu amor. - Sussurrei sôfrego, assim que me aproximei, afastando os poucos fios grudados em sua testa. — Me diga que está bem. - Beijei o topo de sua cabeça, estudando o rosto apático dela.
Puxei a cadeira no canto da parede até que estivesse do lado da cama. Enlacei nossos dedos não sentindo sua pele ferver na minha, como de costume. Sem sentir o beijo que ela sempre deixava nas costas da minha mão.
Na falta de sentir como ela fazia, eu beijei individualmente seus dedos frios, não importando com as lágrimas que eu não aguentava mais segurar. Era inevitável e me sentiria miserável enquanto não pudesse apreciar a intensidade da maneira que ela pronunciava meu nome. Não sabia dizer por quanto tempo a encarei e não me importava porque o faria até que ela acordasse, queria ser a primeira coisa que ela visse, queria que ela soubesse que eu estive ali o tempo inteiro.
— Hey. - A porta rangeu quando aberta, era Carl. — Como ela está?
— A cirurgia foi bem, mas só tiraram uma bala. Está sedada até que o corpo comece reagir à cirurgia.
— Não quer ir pra casa? Tomar um banho, trocar de roupa, comer? Nat pode vir te buscar.
— Quero estar aqui quando ela acordar. - Carl permaneceu quieto, pois sabia que era desnecessário insistir. Não moveria um dedo sem que Rachel acordasse.
— Volto logo, tudo bem? Trago uma muda de roupas limpas pra você. Me avise de qualquer coisa. - Ele bagunçou meus cabelos, tomando cuidado ao bater a porta atrás de si quando saiu.
Um bom tempo se passou, o tic-tac do relógio era quase enlouquecedor. Enfermeiras iam e vinham. Médicos cheios de segundas e terceiras opiniões não apontavam nada promissor. Carl também voltou, com Nat e os trigêmeos na tentativa de me tirarem dali para que tivesse pelo menos a chance de organizar os pensamentos. Eles conseguiram, mas não sem que me ouvisse discursar para Carl a importância de ele me ligar se Rachel suspirasse.
Era uma mínima sensação de conforto sentir a água quente lavar meu corpo, assim como o tempero mágico de Natalie que tanto sentia falta. Os olhos verdes da mulher se arregalaram e brilharam com as lágrimas que se formaram assim que lhe contei a novidade de que eu e Rachel estávamos com um pé no altar. Os trigêmeos me fizeram companhia à mesa e não cansavam de elogiar o professor de Educação Física da nova escola, mudando de assunto apenas para cobrar a sobremesa da mãe que apenas ria os observando, maravilhada.
Pela casa, ainda havia porta-retratos com fotos nossas por todos os lados. Algumas apenas de mim, Rachel e Carl, adolescentes e cheios de espinhas. Em outras mais recentes, já incluíam Natalie e em uma delas, ela já tinha a barriga aparente da gestação dos trigêmeos em um show do Thirty Seconds To Mars em Baytown.
Eram apenas lembranças iniciais de tanta coisa quem ainda estava por vir. De tanta felicidade que eu e Rachel partilharemos com o casal, sempre tão companheiros.
Uma vizinha ficou de tomar conta dos três pestinhas enquanto voltávamos para o hospital. Natalie preencheu o silêncio do trajeto contando as mais cômicas histórias do convívio com os filhos e eu mal reagi. Não era por mal, ela sabia disso, era apenas a incapacidade de manter o pensamento longe da única mulher que fui capaz de amar durante a vida.
As mãos de Carl bagunçavam seus cabelos e os puxava vez ou outra. Os olhos avermelhados do homem diziam muita coisa.
Meu coração pulsou em uma velocidade quase violenta.
— Precisaram entubá-la. E-eu não sei direito, Josh, cara, me desculpe. - Murmurou confuso, gaguejando.
Voltei para o quarto de Rach e não pude ver muito dela. Impediram que eu entrasse, mais uma vez.
Uma enfermeira tinha os olhos vidrados enquanto fazia massagem cardíaca em Rach. Vozes se sobressaíam dentro do quarto e todas elas eram para salvá-la. Mas nenhuma parecia adiantar.
“A sala de cirurgia está pronta” um enfermeiro anunciou assim que abriu a porta. Poucos segundos foram necessários até que começassem a transferi-la e atravessam todo o corredor até que ao fim dele, chegassem à ala cirúrgica pela segunda vez em poucas horas.
Meus passos eram incertos e a única coisa que eu pedia, eram respostas. O que aconteceu? Uma nova cirurgia poderia salvá-la de uma vez? Ou remediava um mal maior? Haviam sequelas? Era uma cirurgia de risco?
Ninguém parecia querer me ajudar ou me responder a única coisa que eu queria saber: Rachel vai sobreviver?
Carl ainda se desculpava e eu não conseguia realmente ouvir sua voz, tudo parecia ser um murmúrio de muito longe.
Eu não aguentava mais não ter respostas.
No entanto, não lembrava de muita coisa após meus gritos agoniados pelos corredores.
Natalie e Carl seguraram meus braços e, no segundo seguinte, eu não conseguia sequer manter minhas pernas. Tudo se apagou.
Um cateter nasal me ajudava a respirar, mesmo que o julgasse desnecessário. Minha cabeça doía e piorou quando tentei me sentar na cama.
— Com calma, garotão. - A voz de Natalie soou marota assim que a mulher se prontificou a me ajudar. — Está com alguma dor?
— Rach... Rachel! Onde ela está? - Despertei assim que percebi onde estava e por que esperava.
— Ela ainda está em cirurgia. Carl está procurando por notícias. Lembra por que está aqui, Josh?
— Preciso de notícias. - Tentei me levantar, mas o acesso ligado a bolsa de soro me impediu.
— Você surtou, Joshua. Está em observação. - Após ouvi-la, algumas memórias me tomaram. Lembrava vagamente de ouvir meus gritos ecoarem nos corredores e todos eles doerem fisicamente em mim, porque não havia resposta para nenhum deles, por mais agoniantes que fossem. — Vou chamar a enfermeira para retirar o seu acesso. - Explicou calmamente, certificando-se que a bolsa de soro estava vazia.
Encarei o teto, ainda tentando assimilar. Era muita coisa, para tão pouco tempo.
Dr. Hoever adentrou o quarto, tendo Nat, Carl e uma enfermeira em seu encalço.
Ele tinha aquele olhar.
O olhar vazio que médicos demonstram nas notícias ruins.
Murmurou algo com o casal, enquanto eles assentiam prontamente, até que a enfermeira conseguisse tirar o acesso do meu braço. Agradeci e ela se retirou rápido tanto quanto entrou, e os três logo se viraram para mim.
— Temos muito o que conversar, Josh. - Carl sentou-se ao meu lado na beirada da maca assim que me viu fazê-lo.
— Garoto, mais cedo você me pediu para que eu não escondesse nada de você. - Dr. Hoever tomou a frente, calmamente e um buraco se formou em meu estômago automaticamente. Nat tentou disfarçar, mas suas lágrimas denunciaram boa parte do que estava por vir. — O projétil que ainda estava alojado em Rachel se movimentou, atingindo o coração e isso a fez convulsionar. A cirurgia de emergência foi para retirar o projétil e reparar o tecido danificado. Apesar de todos os esforços, Rachel teve uma parada cardíaca. Tentamos reanimá-la, mas o coração estava parado desde a convulsão.
Meus pés formigavam e não foram capazes me manter em pé quando tentei, sendo amparado por Carl. Minha cabeça girava e a respiração entrecortada tornava quase impossível a missão de me manter são. Se tivesse entendido bem, eu havia perdido de uma vez por todas a única pessoa que me amara com genuína devoção por anos. Eu não poderia fazer nada. Ninguém pediu minha ajuda porque sabiam eu falhei até mesmo na única missão que tinha: era proteger a mulher mais incrível que esse mundo já viu.
— O coração parado não bombeia sangue para o corpo, então mesmo que recuperássemos o coração, ainda teríamos de lidar com a morte cerebral. Eu sinto muito.
Eu sinto muito.
Era o que ele tinha pra dizer.
Perdi Rachel. A única parte de mim que ainda valia a pena lutar.
Ela se foi e nem se despediu.
Seu último olhar para mim foi desesperado, clamando ajuda. Talvez ela sentisse o que estava por vir.
— Isso estava com ela. - Dr. Hoever abriu minha mão, depositando o camafeu ali.
O camafeu dourado estava fosco, porque era assim que o via sem Rachel.
Tinha manchas, e era do seu sangue.
A foto de dentro, estava intacta. Mas a outra metade, vazia, tinha as manchas do seu sangue também.
“Coloquei apenas uma foto de quando éramos mais novos, porque a foto que vai ocupar o outro lado eu espero que já seja da nossa família, Rach.”
Uma metade do coração continuaria vazia, porque o meu acabara de se tornar oco a partir do momento que Rachel me deixou sozinho.
— Você é incrível, Joshua McCaulin. E seremos felizes como merecemos ser. É uma promessa!
Rachel Coleman, você me deve uma promessa.
Justo cuando yo bajé la guardia
(Justamente quando abaixei a guarda)
Cuando vi una luz en nuestra historia
(Quando vi uma luz em nossa história)
Justo cuando quise añadirle el para siempre
(Justamente quando eu quis adicionar o para sempre)
Tú te fuiste, así tan de repente
(Você se foi, assim, tão repentinamente)
Con mi amor, atado entre tus manos
(Com meu amor, preso entre tuas mãos)
Con mis sueños, todos enredados
(Com meus sonhos, todos emaranhados)
Con mi amor, tan lejos de tus labios
(Com meu amor, tão longe dos seus lábios)
Ooh, justo cuando yo me enamoré
(Ooh, justamente quando eu me apaixonei)
Te fuiste y no sé por qué
(Você se foi e eu não sei o porquê)
— Ela está nervosa e falando besteiras. Não é nada pessoal, Carrie. - Sussurrei cômico, acariciando o volante que dirigia, certificando que transmitira todo o amor genuíno que supria pela máquina.
— Pare de falar com esse carro ou eu juro... Eu juro, Joshua, que eu vendo isso hoje mesmo. - Ela nos ameaçou, entredentes. Eu sabia que tinha cutucado a onça com vara curta!
— Rach, não pode ficar de mal humor o dia inteiro apenas porque fomos pegos. Não é a primeira vez.
— O atendente tinha uma arma, Joshua! Você poderia ter morrido!
— Tudo bem. - Suspirei, dando-me por vencido e estacionando o veículo. — Não há com o que se preocupar. - Passei uma mão por seus cabelos, exatamente da maneira que sabia acalmá-la. — Existem perigos em não viver numa casa com anões no jardim e já passamos por vários deles. Este não foi o último. - Depositei um beijo demorado em uma das suas bochechas, vendo que Rach permanecera muda e eu sabia que ela continuava a remoer a cena em sua mente.
— Deveríamos tomar mais cuidado. - Confessou de voz baixa. Rach não era o tipo que conseguia demonstrar muito do medo que sentia, porque, em suas palavras, ela tinha medo de se tornar superprotetora com medo ridículos, então preferia guardá-los inteiramente para si.
Eu não precisava de muto para reverter essa história. Há muito que conheço Rachel, seus defeitos e suas incontáveis qualidades, logo a conhecia o suficiente para entender além de suas palavras, que ela estava farta da vida levamos. Sim, era um dia de cada vez, mas cada vez mais difíceis.
Os golpes que dávamos de olhos vendados em mercearias e mercadinhos da região não funcionavam mais. Os comerciantes começaram a se alertarem contra os golpes. Algo com a luta da classe trabalhadora, ou sei lá.
Nunca nos imaginamos engravatados, pagando pelo plano de saúde em dia, por exemplo. Somos bons no que fazemos, mas a partir do momento que crescemos e não pudemos usar dos olhos brilhantes e infantis como álibi, furtar pra conseguir comer se tornara uma briga diária.
— Talvez as coisas mudem quando você aceitar se tornar a senhora McCaulin. - Dei de ombros, como quem não dissera nada demais. Minha vontade não era exatamente uma novidade para Rachel.
— Não entendo como acredita que casamento é a solução dos problemas.
— Não acho que casamento vai solucionar tudo. Mas o casamento com você já é um bom começo.
— Não consigo me ver como uma Desperate Housewives.
— Vamos continuar os mesmos, Rach. Porém teremos a segurança de um compromisso efetivo entre nós.
— Na riqueza e na pobreza?
— Na saúde e na doença. - Completei-a. — Até que a morte nos separe.
As palavras não foram exatamente “Eu aceito”, porém se encaixaram como se fossem, deixando uma sensação gostosa de ansiedade em meu peito. Agora, no entanto, o casal mais problemático do estado do Texas estava noivo.
— Acelere isso, precisamos de uma bebida pra comemorar! - Nossos sorrisos se abriram, tomando boa parte de nossos rostos quando o ronco do motor soou imponente.
O bom e velho rock’n’roll tocava a todo vapor, resultando em gritos desafinados de ambos que achávamos que essa era uma das melhores formas de extravasar a felicidade que borbulhava nos corações tão errantes.
A poeira que o carro levantava pela estrada tornara a cena propícia, pois o próximo alvo se aproximava a cada segundo.
Um galão de gasolina do lado de fora e uma mirrada senhorinha para tomar conta da loja era o presente de casamento perfeito que ainda nem tivemos tempo de pedir.
Estacionei em modo de fuga, me exibindo com a manobra bem feita para a gata ao meu lado.
— Pegue algo para vender. Precisaremos de dinheiro para as alianças. - Ela piscou para mim, sapeca como se tornava quando arquitetava os passos do golpe em sua mente.
Showtime.
Nos canos de nossos coturnos, cada um de nós havia um canivete que se tornara desnecessário, devo dizer, já que nas mangas de nossas jaquetas empunhávamos outros canivetes.
Hoje, no entanto, seria diferente.
Era um costume. Já sabia onde encontrar o vidrinho com o que precisávamos. Hoje precisaríamos de mais coisas, uma despesa, por assim dizer. E o clorofórmio que molhava o pano em minha mão, nos proporcionaria a calmaria de tempo suficiente para fazê-lo.
Trocamos um último olhar significativo como em um acordo silêncio de que ambos estávamos prontos.
A sineta da porta tocou assim que passamos por ela e sem que pudéssemos pensar em outra coisa, nossos pares de olhos varreram todo o local, estudando se havia mais alguém com quem precisássemos lidar o alguma câmera de segurança.
Estava às moscas.
Nos separamos, de forma que cada um ficou com um cestinho para perambular pela lojinha interpretando o melhor papel de casal que fazia sua compra do mês. Desfilamos pelos corredores, pegando poucas das coisas que realmente precisávamos enquanto trocávamos poucos olhares de esguelha.
Fui bem mais rápido que Rachel para encher o cestinho com parte das nossas coisas, mas não podia culpá-la por escolher a melhores marcas. Segui para o caixa, chamando a atenção da senhorinha que demorou bons bocados até que chegasse até o balcão, demorando outros valiosos minutos até que limpasse as lentes de seus óculos.
— Quanto custa os fones de ouvido? - Apontei para a variedade exposta atrás dela, percebendo no lindo colar preso em seu pescoço.
— Os da prateleira de cima são 17 dólares e esses daqui... - Pegou a embalagem dos mais simples, mostrando-me. — Apenas cinco dólares.
— Vou querer dois, da prateleira de cima. - Ela assentiu, virando-se para esticar o máximo que podia. — Precisa de ajuda?
— Seria o ideal, meu filho. - Ajustou os óculos de grau ao rosto quando lancei um último olhar para Rach no fim do corredor, até que contornasse o balcão, parando ao lado da velhota sem precisar calcular muitos movimentos para tampar o nariz e bora dela para que expirasse a droga. Sem murmúrios, em poucos segundos seus olhos reviraram e o corpo pequeno dela caiu sob meus braços. Estiquei suas pernas, deitando-a rente ao balcão.
— Rachel! O máximo que puder, no menor tempo possível! Vamos! - Gritei, tendo como resposta a agilidade da mulher que atravessara pela porta com cestos lotados, abrindo o porta malas do carro e esvaziando-os. Ouvi sua voz reverberar na minha cabeça, “Pegue algo para vender. Precisaremos de dinheiro para as alianças”.
O colar.
Retornei para onde estava há pouco, contornando o balcão mais uma vez em segundos. O colar era delicado e apesar de parecer antigo, ainda brilhava no pescoço da velha. Cordão fino, dourado, acompanhado de um pingente em formato de coração. Puxei a joia em um impulso, analisando-o assim que o tive em mãos. Era um camafeu. Dentro havia uma foto pequena que se adaptava ao formato de coração, abraçando as três pessoas que pareciam formar uma família.
Não sabia dizer quanto tempo perdi ali, mas no fim das contas, abri a mão da senhorinha, emaranhando o cordão por seus dedos.
Rachel deu dois tapinhas no balcão, chamando minha atenção como quem perguntava o que fazia ali por tanto tempo.
— Está com a chave do carro? - Assenti energeticamente. — Então vamos.
Certifiquei-me sobre as voltas que o cordão dava nos dedos finos dela uma última vez e bati a porta da frente, adentrando o veículo e acelerando aos pedidos apressados da minha noiva.
Não precisávamos reforçar o combinado; após um golpe, se tudo corresse bem, descansávamos a noite inteira no hotel mais próximo como espécie de recompensa. Não era muito, porém para nós soava como bastante coisa.
Rachel secava os cabelos ao mesmo tempo que reclama do secador pequeno que fazia aquela tarefa demorar mais que o normal. Pela cama, algumas das bobeiras que conseguimos no golpe estavam espalhadas, comeríamos até que nos sentíssemos satisfeitos. A cortesia do hotel era apenas um café da manhã e válido apenas a partir das nove da manhã.
Deixei de prestar atenção nas palavras de Rach assim que percebi se tratar de mais uma reclamação, no entanto, preciso confessar que não seria muita coisa que conseguiria prender minha atenção. Não quando minha mente insistia em repetir o camafeu e a foto que carregava.
Aquela foto, representava uma semelhança gigantesca com a família que eu sonhava em construir com Rachel.
Nunca houvera nada que fizesse meu corpo travar daquela maneira, ainda mais em um golpe.
Hoje, eu e Rachel demos o primeiro passo para a família que tinha naquele camafeu.
A família que poderia ser a nossa.
— Josh? Joshua? - Rach balançou a mão em frente ao meu rosto, chamando a minha atenção. — Está tão quieto. - Analisou-me, estudando atentamente meus olhos até que um finco se formasse entre suas sobrancelhas. — O que foi?
— Não se preocupe. - Pisquei, tentando soar maroto, assistindo a mulher empurrar tudo o que havia na cama para melhor se aconchegar em meu colo. — Sério. - Um selinho fora o suficiente para que ela segurasse meus ombros, impedindo meu movimento seguinte, que era me levantar, encarando-me de olhos cerrados. — Tudo bem, tudo bem. - Me dei por vencido, porque a conhecendo do jeito que a conhecia, sabia que não demoraria até que ela conseguisse arrancar a verdade de mim. — Hoje, enquanto estávamos naquela mercearia. - Engoli em seco. — Eu finalmente entendi porque não suporta mais essa vida, Rach.
— Merecemos mais que isso, meu amor.
— Eu tentei roubar o colar daquela mulher que cuidava da loja, mas dentro dele tinha uma foto dela com mais duas pessoas. Não sei se era família, mas se fosse, eu queria que a nossa fosse exatamente daquela maneira. - Ela sorriu terna, passando os braços pelos meus ombros, me abraçando.
— O que vamos fazer agora?
— Carl saiu dessa vida. - Suspirei. — Tudo bem que Nat engravidou de trigêmeos, mas acho que temos com quem contar.
— Podemos convidá-los para serem nossos padrinhos!
— Com aquela criançada toda correndo? - Arqueei a sobrancelha. — Com certeza!
O resto da noite serviu para que começássemos cogitar como começaríamos uma vida tão diferente agora. Uma vida honesta. Uma vida que, meses atrás, estávamos rindo de quem a levava. Hoje a desejávamos por completo, até que um serzinho, 50 por cento meu e 50 por cento Rachel pudesse vir ao mundo com o conforto que não tivemos quando mais novos.
Algumas mensagens foram necessárias durante a madrugada para que conseguisse entender o que Carl fazia em Louisiana. Natalie conseguira um emprego melhor no estado vizinho e a família não pensou duas vezes em se mudar.
Carlton presenciara boa parte da minha infância que de inocente nada tivera, ao lado de Rachel que passara por poucas e boas também. Éramos um trio de crianças que ao invés de estarmos na mesa, conversando com os pais sobre os exercícios de matemática que resolvemos na escola, conversávamos entre si sobre a matemática do que comer hoje para não faltar amanhã. Nossos pais também eram amigos de longa data, mas do tipo que se conheceram na adolescência enquanto se drogavam e acharam uma boa ideia carregar o vício durante o resto da vida.
Helena, minha mãe, me fizera perder dias preciosos de aula enquanto eu estava ocupado demais mantendo-a fora de uma overdose, imersa na banheira de água fria. Perdi as contas de quantos padrastos tive, mas havia um que sempre voltava: Joseph. Ele estava longe de ser uma boa pessoa, porém entre todos que já vi sair do quarto dela, ele era o menos pior. Sempre que estava por perto, Joseph era quem a cobria de água gelada na banheira nos dias que eu tinha prova no colégio.
Benedict, no entanto, era meu pai biológico. Farreou durante sua adolescência também, e algumas histórias ainda me perseguiam pela pequena cidade quando eu decidia voltar. Este, se safou enquanto tivera tempo. Curou-se dos vícios nas agulhas até que parecesse bem o suficiente para assumir os negócios que passara de gerações desde meu tataravô, ou sei lá quem. Claro, os negócios da família brecaram em mim.
Sabia que Benedict estava vivo pelas capas de jornais que estampava com os bailes anuais da empresa, sempre com uma nova esposa, cada vez mais nova. E nem todos os seus vícios foram superados! Diversas das suas anuais esposas agora o denunciavam por violência doméstica após o uso de cocaína e uísque em excesso.
Minhas esperanças começavam e terminavam em Rachel. Soa egoísta, mas não havia muito em que apostar quando tínhamos apenas um ao outro.
Ela se sentia da mesma forma.
— Tente dormir um pouco... - Murmurou sonolenta, da melhor forma que pôde, aninhando-se a mim. Tê-la ali, de respiração serena ao meu lado era a única certeza que eu tinha, de que qualquer esforço era válido.
Bloqueei o celular, ouvindo-o vibrar mais algumas vezes com as mensagens de Carl que responderia ao amanhecer. Havia uma mulher naquela cama que adorava puxar meu lado do edredom durante toda a madrugada, e eu adorava mais ainda puxá-lo de volta apenas para ouvi-la tentar me xingar e acabar encostando a cabeça em meu peitoral.
Esta é Rachel Coleman – McCaulin –, e eu a amo desde que entendi ser digno desse sentimento.
Acordei com as tentativas falhas dela de alcançar as notas altas enquanto cantava Valerie, na sua mais empenhada interpretação de Amy Winehouse. O vapor do seu banho quente escapava pela fresta da porta que fora fechava segundos após eu batê-la em minhas costas.
A água quente, ou quase fervente como ela gostava, molhou meus cabelos assim que me dediquei a beijar a curva de seu pescoço. Ela se virou e enlaçou meu pescoço com seus braços, presenteando-me com um beijo tão quente quanto a água que caía sobre nós. As pernas dela logo enlaçaram minha cintura, nos sinais mais claros da melhor forma que poderíamos começar o dia.
Para não perder o costume, a voz da mulher soava esganiçada em suas reclamações enquanto secava os cabelos com o secador pequeno, mais uma vez. Pedimos o café da manhã e o devoramos enquanto a atualizava das novidades que Carl me contara na noite passada. Rach era uma apoiadora assídua do casal e principalmente dos trigêmeos fruto da relação.
Hoje, teríamos como meta atravessar os extremos do estado do Texas até que chegássemos à Louisiana. Pegamos a estrada cedo e o dia ensolarado tornou tudo mais tolerável enquanto o vento bagunçava os cabelos dela. Rach estava pensativa, descansando a cabeça nos braços dobrados na janela.
— Eu sei o que vai dizer, mas preciso ao menos tentar. - Ela disparou de uma só vez, como quem estava ansiosa para se livrar de um pensamento antes que se arrependesse dele. — Talvez pudéssemos pedir uma grana emprestada para o seu pai. - Inicialmente eu apenas ri nasalado, mas logo se transformou em uma gargalhada, forçada e amarga.
— Não. Começamos com os golpes quando tínhamos menos dinheiro do que agora, e apesar de um caminho torto, seguimos bem o suficiente sem ele.
— Agora vamos, finalmente, colocar nossas vidas nos eixos, babe. - Ela soltou um muxoxo, insatisfeita. — Não podemos ir em uma entrevista de emprego vestindo jaquetas de couro que tem furos das mangas pra caberem os canivetes!
— Confie em mim, isso seria mais digno do que qualquer roupa de grife comprada com o dinheiro dele.
— Josh...
— Carl vai nos ajudar no que precisarmos.
Um par de horas depois, muita estrada já havia sido percorrida mesmo que ainda houvesse muito mais a percorrer. Paramos quando vimos um parque aconchegante em meio aos quilômetros que não sabíamos muito bem de qual se tratar, Rach queria uns minutos para esticar as pernas enquanto o Sol caía.
Encostamos em uma árvore, espalhando uns pacotes de bolinhos pela coberta que ela forrou na grama do parque. Passei meu braço por sua cintura quando ela encostou a cabeça em meu ombro. O Sol de fim de tarde deixava seus cabelos alaranjados que combinavam com a tranquilidade do local, quando o único som entre nós era das crianças que brincavam de pique-esconde por todo o parque.
Esperava que ela compartilhasse dos mesmos pensamentos que eu quando imaginava que uma daquelas crianças – ou metade delas – poderiam ser nossas.
— Vamos? - A chamei, assim que a senti se encolher depois da brisa fria.
A noite caiu e, com ela, uma Rachel que se jogou pelos bancos traseiros coberta por uma manta enquanto sua jaqueta embolada servia-lhe de travesseiro.
Cantarolar mantinha minha mente atenta para que o sono se mantivesse longe e o fiz até que amanhecesse, ignorando os ombros tensos de se manterem travado da mesma posição por horas.
Não haviam novidades em cruzar as estradas até que chegássemos no estado vizinho, apenas o cansaço que apelou de forma que precisamos passar a noite num hotel de beira de estrada. Desta vez, Rach não reclamara do secador, mas reclamara do único quarto que nos restara, com camas de solteiro de alturas diferentes que nem podíamos juntá-las e talvez esse fosse o propósito.
Jogar os colchões no chão resolvera esse problema e de quebra, a saudade que estava de senti-la. Não fomos mesquinhos. Abdicamos de uma noite de sono tranquilo pelo conforto dos lençóis quentes e os gemidos que de inocentes não haviam nada.
Gostava de cada curva de Rachel, mesmo que ela se culpasse por gostar tanto de doces à ponto de não conseguir desistir deles por uma silhueta mais fina. Gostava de como ela prendia o lábio inferior entre os dentes para conter os murmúrios de quando a beijava entre as pernas. Gostava de como puxava meu cabelo, e como rebolava quando estava próximo do seu ápice.
A forma como suas pernas tremiam, como escondia seu rosto da curva do meu pescoço para que não soasse alto demais quando proferisse meu nome de voz arrastada. O beijo urgente dela para sentir do seu próprio gosto na minha língua, como reagia livremente estando por cima, comandando seus próprios movimentos.
Ela acordara mais disposta dessa vez, à ponto de tomar a chave do Mustang dos meus dedos, arrumando o banco do motorista como achava confortável e colocando alguma das suas bandas indies para tocar em alto e bom som.
Queríamos mudar de vida, mas em meio a esse percurso ainda precisaríamos resolver algumas coisas da nossa própria maneira. Uma delas foi reabastecer o tanque do carro que Rach recusou minha ajuda para fazê-lo. Segundo ela, queria usar da sua máscara de boa moça para que algum caipira desavisado abastecesse para ela e eu não duvidava que ela conseguisse. A mulher era um pecado por completo.
Abrir o segundo botão da camisa xadrez que ela vestia foi o suficiente para que faturasse um tanque cheio apenas com o poder do seu sorriso.
Eu conhecia cada vírgula do modus operandi dela e o quão impressionante poderia ser. Queria assisti-la em ação, porém hoje, ela é quem seria surpreendida e o pouco tempo do seu golpe era tempo suficiente para que eu pudesse fazê-lo. Gastar as contadas notas que tinha na carteira valeria a pena e a pequena loja de antiguidades fora o palco da minha primeira compra –honesta– em muito tempo.
Ela buzinou assim que passou por mim do outro lado da rua, para que eu voltasse para o banco do passageiro e arrancou com o Mustang aos gritos do caipira que cobrava os dólares gastos sem “recompensa” nenhuma.
A rota interestadual nos ligou à divisa com o estado de Louisiana, então poucas horas nos separavam da capital, Baton Rouge.
Pedi para que ela estacionasse no primeiro bar que encontramos na estrada e ela o fez, encostando no capô quando segui as placas que indicavam os sanitários. Como um adolescente que convidava a namoradinha para o baile, ensaiei algumas frases em frente ao espelho, tentando ao máximo não soar clichê e falhando em cem por cento das vezes.
Baguncei meus cabelos, encarando-a recostada ali, admirando as árvores ressecadas que eram a única vista do local. Ela sorriu quando me viu aproximar e assim como ela, me encostei no capô do carro. Puxei sua mão até que ela estivesse junto de mim, e abracei sua cintura, deixando um beijo solitário no ombro dela.
— Lembra quando te disse que entendia o motivo de você não suportar mais essa vida? - Sussurrei sem realmente esperar uma resposta dela. — O motivo que me deu esse choque de realidade eu ainda não te contei, mas posso te mostrar. - Desvencilhei uma das mãos que lhe abraçava para puxar o cordão dourado do bolso interno da jaqueta que eu ainda vestia, mantendo-o em minha mão. — A senhora daquela mercaria tinha um camafeu preso no pescoço e eu não consegui roubá-lo porque tinha a foto da família dela. - Mostrei-lhe o colar que estava na palma da minha mão. — Hoje, eu quero te dar um semelhante. - Desuni as duas metades do pingente, ouvindo-a arfar. — Coloquei apenas uma foto de quando éramos mais novos, porque a foto que vai ocupar o outro lado eu espero que já seja da nossa família, Rach.
Os braços finos dela me abraçaram pelo pescoço e eu a ouvi fungar. Meus dedos em seus cabelos a consolaram com um cafuné que acalmou a respiração acelerada da mulher que me apertou um pouco mais.
— Você é incrível, Joshua McCaulin. - Colou nossos rostos, selando os lábios rapidamente. — E seremos felizes como merecemos ser. É uma promessa!
A animação da mulher ao volante parecia crescer a cada minuto, sua voz entoava hits pop que substituíram os indies, tornando fosca a joia em seu pescoço quando comparada ao brilho no rosto dela. Ela parecia livre. Confortável com nossa mudança de ares, mas não completamente, porque um sorriso perverso tomou conta de seu rosto quando ela confessou querer escolher as roupas da sua primeira entrevista de emprego.
Apesar de não haver necessidade, de nada adianta eu enumerar mais uma vez, tudo o que Carl nos ajudaria a mudar. Ela estava convicta de querer se despedir dos golpes, ironicamente, como o primeiro passo que daríamos quando dentro das leis.
Seu entusiasmo se tornou ainda mais nítido quando ela descreveu a roupa que escolheria para a primeira entrevista de emprego de sua vida. Segundo ela, seria um clássico conjunto social como aqueles que Sandra Bullock usou em “A Proposta”, a comédia romântica com Ryan Reynolds. A saia de cintura alta prenderia parte da sua camisa social branca que não desvalorizaria suas curvas por conta dos scarpins que fazia parte de seus planos, também. Precisou pausar os detalhes que disparava eufórica, para recuperar a respiração e estacionar em modo de fuga poucos metros após a loja que ela escolhera.
Um selinho de despedida selou o fim da vida marginal que deixamos no Texas.
Rach mandou um beijo no ar antes de adentrar a loja, desfilando confiante e eu ri nasalado. Céus! Eu sou um completo clichê quando se trata dela. Chega a ser ridículo!
Algumas chamadas perdidas de Carl piscavam na tela do meu celular. Abri nossa conversa respondendo pacientemente as trezentas mensagens insistentes dele e em uma delas, questionava se algum de nós dois éramos alérgicos a amendoins ou frutos do mar. Minha boca salivou no mesmo segundo porque boa parte das minhas comidas favoritas envolviam os dois ingredientes.
Quando tomava coragem de se arriscar na cozinha, Carl fazia pratos típicos espanhóis que faziam Natalie implorar para que a ensinasse e ele apenas respondia que a mágica que acontecia na cozinha era segredo entre ele e os trigêmeos.
Uma correria na rua me fez largar o celular sem prestar atenção se havia enviado o que digitara. Algumas pessoas se agacharam entre outras que tentavam proteger crianças aos seus arredores. Rachel corria. E a expressão em seu rosto era de pânico.
Tentei ajudá-la quando a vi mancar.
Corri a seu encontro, mas não vi muita coisa após reparar no sangue em suas mãos.
Lágrimas molharam o rosto dela e sua voz tentou gritar abafada assim que seu corpo atingiu o chão.
Rachel tentava estancar o sangue que jorrava de um tiro que levara na barriga. Mas havia outro. Próximo ao camafeu. Próximo ao seu coração.
Minhas pernas tremiam, a boca estava seca e meus olhos não acreditavam no que viam. A mulher em meus braços mal conseguia mexer os lábios para formar uma frase.
A aconcheguei da melhor forma possível nos bancos traseiros, mas o coração descompassado tornava impossível completar um raciocínio sequer. Cantei pneu seguindo algumas placas que indicavam o centro da cidade, alguma delas em algum momento deverá indicar um hospital. O celular começou a tocar, no banco do passageiro, era Carl.
— Parece um milagre ter me atendido! Não sabe o que te espera... - O amigo soou animado.
— Carl... Rachel. - Tentei continuar, mas o embargo em minha garganta me empatou quando a ouvi agonizar.
— O que houve? Onde vocês estão?
— Ela foi baleada. Preciso do hospital mais próximo, acabamos de cruzar a divisa dos estados.
— Cacete. Siga as placas que indicam o museu da cidade, assim que encontrá-lo, siga reto duas quadras e encontrará um hospital.
Queria agradecê-lo, mas havia que lidar com o essencial agora. Salvar a vida da minha noiva.
— Seremos felizes como merecemos ser, Rach. É uma promessa! - Repeti suas palavras de mais cedo, acelerando o carro mesmo que sequer sentisse o volante em minhas mãos.
A toalha que cobri seus ferimentos já estava encharcada e seus olhos custavam a permanecer abertos.
Eu me sentia impotente por não conseguir protegê-la.
Furei sinais que não me importei e pouco liguei para os xingamentos que ouvi por fazê-lo, porque logo a frente, as letras vermelhas da emergência do hospital se tornaram mais próximas quando pisei no acelerador.
Alguns enfermeiros se prontificaram assim que me viram equilibrar o corpo enfraquecido de Rachel em meus braços.
O sangue dela estava em mim. Em minhas roupas. Nos meus braços.
Uma maca a transportou para dentro do hospital e meus pensamentos alvoroçados impediam que eu assimilasse as recomendações dos médicos, até segurarem meus braços, impedindo que eu continuasse a segui-la. Ela é minha noiva, quem em sã consciência me impediria de acompanhá-la?
— Senhor. Senhor? - Os enfermeiros que a socorreram, agora, me brecavam pelos ombros. — Esta é a ala cirúrgica e não pode ultrapassá-la. - Um deles me explicou. — O senhor a conhece?
— S-sim. É minha noiva.
— Certo. Sua noiva está em boas mãos agora.
— Eu preciso ajudá-la. P-por favor, me deixe ajudar a Rachel. - Tentei ultrapassá-los mais uma vez, sem insistir por sentir meu corpo fraco devido o choro que se tornara incontrolável.
— Posso ajudá-lo a preencher o formulário com as informações de Rachel. - O enfermeiro disse de voz baixa, talvez tentando transmitir-me calma. — É neste formulário que atualizaremos o quadro da sua noiva.
Assenti, sabendo que apesar de sentir que conseguiria mover o mundo por Rachel, agora, não havia muito o que fazer à não ser aguardar por notícias da minha futura esposa.
Minhas pernas ainda tremiam e o frio que sentia pelo corpo todo piorava os calafrios sempre que meus olhos corriam pelas manchas do sangue dela em mim.
Encarar os ponteiros do relógio na parede não ajudava como eu queria, e uma eternidade já se passara. 40 minutos sem novidades de como Rach reagira aos tratamentos e se eu conseguisse completar qualquer pensamento que fosse, agora, seriam os piores possíveis.
— Joshua! - Carl se esgueirou entre algumas pessoas na sala de espera até chegasse a mim. Eu tentei falar com ele, mas não havia espaço além dos soluços que eram repetitivos e cada mais desesperados, frustrados. — Eu sei, eu sei. Ela vai ficar bem, acredite nisso.
Eu queria acreditar, e eu tentava ao máximo, mas era inquestionavelmente difícil enquanto lutava às cegas.
Meus passos de um lado para o outro se tornara a coreografia dos últimos 40 minutos. A sala de espera agora já estava mais vazia. Encarar as paredes brancas me davam náuseas e em minha mente, se projetava uma cena em que eu sairia daqui com Rachel ao meu lado, sorrindo tranquilos como se apenas estivéssemos acordados desse pesadelo.
— Acompanhante de Rachel Coleman? - Uma enfermeira anunciou no começo do corredor.
Não senti o chão abaixo dos meus pés, assim como não senti o ar que respirava preencher meus pulmões.
— Como ela está? - Me adiantei, não importando com os olhares tortos em minha direção.
— O médico quer atualizá-lo sobre o estado da sua noiva. - Carl deu dois tapinhas em meu ombro e eu segui os passos da enfermeira. — Este é o cirurgião geral, Dr. Hoever. Vou deixá-los a sós.
— Imagino que você e sua noiva tenham passado por poucas e boas, meu rapaz. - O médico em torno de seus cinquenta anos, ponderou, ajustando os óculos de grau em seu rosto.
— Não me esconda nada, doutor.
— Bom, Rachel é muito forte. Perdeu muito sangue até que chegasse aqui e na mesa de cirurgia também. Conseguimos retirar apenas um dos projéteis. O outro está alojado em uma área muito próxima do coração e é uma região de grande risco. Ela ainda está sedada e respirando majoritariamente por si própria. Aparentemente, reagiu bem à cirurgia e ficará em observação. - Suspirou. — Poderá vê-la, rapaz. - Dr. Hoever indicou com a mão a porta atrás de si, era o quarto de Rachel.
O corpo dela parecia minúsculo naquela maca, o lençol que a cobria até os ombros deixava essa impressão ainda mais evidente. Os bipes dos aparelhos eram o único som no cômodo e luz fraca dali apenas contribuía para que tudo se tornasse ainda mais angustiante.
— Acorde, meu amor. - Sussurrei sôfrego, assim que me aproximei, afastando os poucos fios grudados em sua testa. — Me diga que está bem. - Beijei o topo de sua cabeça, estudando o rosto apático dela.
Puxei a cadeira no canto da parede até que estivesse do lado da cama. Enlacei nossos dedos não sentindo sua pele ferver na minha, como de costume. Sem sentir o beijo que ela sempre deixava nas costas da minha mão.
Na falta de sentir como ela fazia, eu beijei individualmente seus dedos frios, não importando com as lágrimas que eu não aguentava mais segurar. Era inevitável e me sentiria miserável enquanto não pudesse apreciar a intensidade da maneira que ela pronunciava meu nome. Não sabia dizer por quanto tempo a encarei e não me importava porque o faria até que ela acordasse, queria ser a primeira coisa que ela visse, queria que ela soubesse que eu estive ali o tempo inteiro.
— Hey. - A porta rangeu quando aberta, era Carl. — Como ela está?
— A cirurgia foi bem, mas só tiraram uma bala. Está sedada até que o corpo comece reagir à cirurgia.
— Não quer ir pra casa? Tomar um banho, trocar de roupa, comer? Nat pode vir te buscar.
— Quero estar aqui quando ela acordar. - Carl permaneceu quieto, pois sabia que era desnecessário insistir. Não moveria um dedo sem que Rachel acordasse.
— Volto logo, tudo bem? Trago uma muda de roupas limpas pra você. Me avise de qualquer coisa. - Ele bagunçou meus cabelos, tomando cuidado ao bater a porta atrás de si quando saiu.
Um bom tempo se passou, o tic-tac do relógio era quase enlouquecedor. Enfermeiras iam e vinham. Médicos cheios de segundas e terceiras opiniões não apontavam nada promissor. Carl também voltou, com Nat e os trigêmeos na tentativa de me tirarem dali para que tivesse pelo menos a chance de organizar os pensamentos. Eles conseguiram, mas não sem que me ouvisse discursar para Carl a importância de ele me ligar se Rachel suspirasse.
Era uma mínima sensação de conforto sentir a água quente lavar meu corpo, assim como o tempero mágico de Natalie que tanto sentia falta. Os olhos verdes da mulher se arregalaram e brilharam com as lágrimas que se formaram assim que lhe contei a novidade de que eu e Rachel estávamos com um pé no altar. Os trigêmeos me fizeram companhia à mesa e não cansavam de elogiar o professor de Educação Física da nova escola, mudando de assunto apenas para cobrar a sobremesa da mãe que apenas ria os observando, maravilhada.
Pela casa, ainda havia porta-retratos com fotos nossas por todos os lados. Algumas apenas de mim, Rachel e Carl, adolescentes e cheios de espinhas. Em outras mais recentes, já incluíam Natalie e em uma delas, ela já tinha a barriga aparente da gestação dos trigêmeos em um show do Thirty Seconds To Mars em Baytown.
Eram apenas lembranças iniciais de tanta coisa quem ainda estava por vir. De tanta felicidade que eu e Rachel partilharemos com o casal, sempre tão companheiros.
Uma vizinha ficou de tomar conta dos três pestinhas enquanto voltávamos para o hospital. Natalie preencheu o silêncio do trajeto contando as mais cômicas histórias do convívio com os filhos e eu mal reagi. Não era por mal, ela sabia disso, era apenas a incapacidade de manter o pensamento longe da única mulher que fui capaz de amar durante a vida.
As mãos de Carl bagunçavam seus cabelos e os puxava vez ou outra. Os olhos avermelhados do homem diziam muita coisa.
Meu coração pulsou em uma velocidade quase violenta.
— Precisaram entubá-la. E-eu não sei direito, Josh, cara, me desculpe. - Murmurou confuso, gaguejando.
Voltei para o quarto de Rach e não pude ver muito dela. Impediram que eu entrasse, mais uma vez.
Uma enfermeira tinha os olhos vidrados enquanto fazia massagem cardíaca em Rach. Vozes se sobressaíam dentro do quarto e todas elas eram para salvá-la. Mas nenhuma parecia adiantar.
“A sala de cirurgia está pronta” um enfermeiro anunciou assim que abriu a porta. Poucos segundos foram necessários até que começassem a transferi-la e atravessam todo o corredor até que ao fim dele, chegassem à ala cirúrgica pela segunda vez em poucas horas.
Meus passos eram incertos e a única coisa que eu pedia, eram respostas. O que aconteceu? Uma nova cirurgia poderia salvá-la de uma vez? Ou remediava um mal maior? Haviam sequelas? Era uma cirurgia de risco?
Ninguém parecia querer me ajudar ou me responder a única coisa que eu queria saber: Rachel vai sobreviver?
Carl ainda se desculpava e eu não conseguia realmente ouvir sua voz, tudo parecia ser um murmúrio de muito longe.
Eu não aguentava mais não ter respostas.
No entanto, não lembrava de muita coisa após meus gritos agoniados pelos corredores.
Natalie e Carl seguraram meus braços e, no segundo seguinte, eu não conseguia sequer manter minhas pernas. Tudo se apagou.
Um cateter nasal me ajudava a respirar, mesmo que o julgasse desnecessário. Minha cabeça doía e piorou quando tentei me sentar na cama.
— Com calma, garotão. - A voz de Natalie soou marota assim que a mulher se prontificou a me ajudar. — Está com alguma dor?
— Rach... Rachel! Onde ela está? - Despertei assim que percebi onde estava e por que esperava.
— Ela ainda está em cirurgia. Carl está procurando por notícias. Lembra por que está aqui, Josh?
— Preciso de notícias. - Tentei me levantar, mas o acesso ligado a bolsa de soro me impediu.
— Você surtou, Joshua. Está em observação. - Após ouvi-la, algumas memórias me tomaram. Lembrava vagamente de ouvir meus gritos ecoarem nos corredores e todos eles doerem fisicamente em mim, porque não havia resposta para nenhum deles, por mais agoniantes que fossem. — Vou chamar a enfermeira para retirar o seu acesso. - Explicou calmamente, certificando-se que a bolsa de soro estava vazia.
Encarei o teto, ainda tentando assimilar. Era muita coisa, para tão pouco tempo.
Dr. Hoever adentrou o quarto, tendo Nat, Carl e uma enfermeira em seu encalço.
Ele tinha aquele olhar.
O olhar vazio que médicos demonstram nas notícias ruins.
Murmurou algo com o casal, enquanto eles assentiam prontamente, até que a enfermeira conseguisse tirar o acesso do meu braço. Agradeci e ela se retirou rápido tanto quanto entrou, e os três logo se viraram para mim.
— Temos muito o que conversar, Josh. - Carl sentou-se ao meu lado na beirada da maca assim que me viu fazê-lo.
— Garoto, mais cedo você me pediu para que eu não escondesse nada de você. - Dr. Hoever tomou a frente, calmamente e um buraco se formou em meu estômago automaticamente. Nat tentou disfarçar, mas suas lágrimas denunciaram boa parte do que estava por vir. — O projétil que ainda estava alojado em Rachel se movimentou, atingindo o coração e isso a fez convulsionar. A cirurgia de emergência foi para retirar o projétil e reparar o tecido danificado. Apesar de todos os esforços, Rachel teve uma parada cardíaca. Tentamos reanimá-la, mas o coração estava parado desde a convulsão.
Meus pés formigavam e não foram capazes me manter em pé quando tentei, sendo amparado por Carl. Minha cabeça girava e a respiração entrecortada tornava quase impossível a missão de me manter são. Se tivesse entendido bem, eu havia perdido de uma vez por todas a única pessoa que me amara com genuína devoção por anos. Eu não poderia fazer nada. Ninguém pediu minha ajuda porque sabiam eu falhei até mesmo na única missão que tinha: era proteger a mulher mais incrível que esse mundo já viu.
— O coração parado não bombeia sangue para o corpo, então mesmo que recuperássemos o coração, ainda teríamos de lidar com a morte cerebral. Eu sinto muito.
Eu sinto muito.
Era o que ele tinha pra dizer.
Perdi Rachel. A única parte de mim que ainda valia a pena lutar.
Ela se foi e nem se despediu.
Seu último olhar para mim foi desesperado, clamando ajuda. Talvez ela sentisse o que estava por vir.
— Isso estava com ela. - Dr. Hoever abriu minha mão, depositando o camafeu ali.
O camafeu dourado estava fosco, porque era assim que o via sem Rachel.
Tinha manchas, e era do seu sangue.
A foto de dentro, estava intacta. Mas a outra metade, vazia, tinha as manchas do seu sangue também.
“Coloquei apenas uma foto de quando éramos mais novos, porque a foto que vai ocupar o outro lado eu espero que já seja da nossa família, Rach.”
Uma metade do coração continuaria vazia, porque o meu acabara de se tornar oco a partir do momento que Rachel me deixou sozinho.
— Você é incrível, Joshua McCaulin. E seremos felizes como merecemos ser. É uma promessa!
Rachel Coleman, você me deve uma promessa.
(Justamente quando abaixei a guarda)
Cuando vi una luz en nuestra historia
(Quando vi uma luz em nossa história)
Justo cuando quise añadirle el para siempre
(Justamente quando eu quis adicionar o para sempre)
Tú te fuiste, así tan de repente
(Você se foi, assim, tão repentinamente)
Con mi amor, atado entre tus manos
(Com meu amor, preso entre tuas mãos)
Con mis sueños, todos enredados
(Com meus sonhos, todos emaranhados)
Con mi amor, tan lejos de tus labios
(Com meu amor, tão longe dos seus lábios)
Ooh, justo cuando yo me enamoré
(Ooh, justamente quando eu me apaixonei)
Te fuiste y no sé por qué
(Você se foi e eu não sei o porquê)
Fim.
Nota da autora: Hello, hello! ;D Vocês estão bem? Espero que sim, porque apesar de todo esse drama -que a gente tanto ama-, há o amor puro (e fora da lei) desses dois! Primeira PP que a gente mata, a gente também nunca esquece né?
Romântica incurável que sou, me doeu (eu juro que doeu, é verdade esse bilhete!) não dar uma família enorme pra esse PP, que sonhava tanto com isso.
Espero que tenham gostado, assim como eu e me digam o que acharam!
XOXO, ♥
Nota da beta: Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
XOXO, ♥