09. Awake

Finalizada em: 13/12/2017

Capítulo Único


-“Mas eis a hora de partir: eu para morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo ninguém o segue, exceto os deuses”. - Era a décima vez que eu lia aquele trecho em particular. Rolei os olhos, arremessando aquela porcaria de livro em algum canto do cômodo escuro. - Qual a necessidade de usar palavras difíceis, quando não se diz nada com nada?
Blá blá blá. Sócrates era um tolo dramático. Se os livros não afirmassem (e glorificassem!) com tanta veemência que ele era um filósofo grego, eu poderia apostar que ele encaixaria perfeitamente no papel do mocinho de alguma novela mexicana que Nanny me obrigava a assistir com ela. Uma daquelas estreladas pela esposa do Tommy Mottola, aquela que tirou uma costela. Pensando bem, provavelmente Sócrates havia sido condenado por ser um pé no saco chato do caralho. E no final, para não ser morto, ele se matou.
Parabéns para o Romeu incompreendido e seu esplêndido raciocínio lógico.
Estar no corredor da morte me fazia ter questionamentos que eu nunca teria na minha rotina normal. Afinal, quando na vida eu colocaria Sócrates no mesmo patamar que a senhorita cintura de pilão? Sim, eu tinha bastante tempo livre para pensar em coisas aleatórias naquele lugar. Como por exemplo, imaginar o filósofo com mariachis na mão dançando Soy Maria com a dita cuja. Uma cena digna de entrar nos livros de história.
Eu tinha uma breve noção, pelos noticiários e documentários que assistia na tv, do quão cruel poderia ser o sistema penitenciário, mas nada havia me preparado para o corredor da morte. Principalmente quando se tem a esperança, ainda que mínima, de escapar dali. E eu, mesmo querendo negar, a cultivava dentro de mim, dia após dia, mesmo com a iminência que a minha hora chegaria, em breve. Era o único sentimento bom que não havia morrido em mim desde que eu havia chegado ali, dez anos atrás. Uma adolescente assustada, que ainda tentava provar para as pessoas que ela não havia matado aquela mulher. Meu Deus, como poderia? Só de lembrar do sangue que cobria o robusto corpo da Senhora Smith naquele dia, seu estômago embrulhava a ponto de desmaiar.
Mas de nada adiantaram minhas súplicas, era a minha verdade contra a de todos. Minhas digitais estavam espalhadas pelo corpo da vítima, pelo chão e, principalmente, na arma do crime. Haviam provas o suficiente para que eu fosse condenada e o assassino continuasse a solta. Eu conseguia me lembrar com exatidão do meu julgamento, mesmo após tanto tempo. Do meu grito estrangulado ao ouvir minha pena, o olhar desesperado de minha mãe, a descrença de Jack e, principalmente, o curioso sorriso desdenhoso do viúvo da Senhora Smith, que não havia derramado uma lágrima sequer pela morte da esposa e do bebê que ela esperava.
Eu havia sido indicada por uma amiga para trabalhar durante a festa de ano novo organizada pelo casal Smith, que era conhecido por suas festas memoráveis. Não por acaso, naquela quente noite de dezembro, a mansão dos milionários estava repleta de convidados, que brindavam a chegada do ano novo, enquanto acompanhavam encantados a hipnotizante dança de cores e luzes que acontecia do lado de fora. Enquanto abria mais uma garrafa de champanhe para servir aos convidados, ouvi um grito alto e seco, provavelmente vindo da biblioteca. Corri até lá, encontrando, horrorizada, a Senhora Smith, grávida de oito meses, jogada no chão, com um corte profundo que se estendia do seu peito até a barriga. Dividida entre a ânsia que sentia pela cena e a necessidade de tentar ajudá-la de alguma forma, resolvi me aproximar para verificar sua pressão arterial. Nada. Tentei novamente, sem sucesso. Por fim, em uma atitude impensada, encontrei a faca ensanguentada do lado do corpo e a toquei. Naquele momento, a porta da biblioteca foi aberta, mostrando uma dúzia de olhos assustados que encaravam a cena. A minha perspectiva de futuro havia acabado ali.
O futuro que eu imaginava ao lado dele. Eu nunca fui uma garota que ansiava por romance, nunca fui melosa, mas ele conseguia me provocar aquelas sensações tão bobas dos livros que eu lia. Seu sorriso brilhante, seus olhos castanhos, seu cabelo sobre a testa, como a maioria dos coreanos... Eu não sabia o que o deixava tão lindo, mas eu soube desde o primeiro dia, que estava encantada por ele. Eu, a garota da engenharia química, apaixonada pelo carinha de intercâmbio que estudava artes cênicas. Parece irônico, não acham? Como aqueles filmes ruins que passavam na Sessão da Tarde.
Eu não faço ideia de como ficamos juntos. Ainda não sei o que ele tinha na cabeça para escolher alguém tão diferente dele e insistir em um relacionamento assim. Quero dizer, um cara que é conhecido pela beleza e talento artístico, que todas as garotas na faculdade dizem ser excepcionalmente educado e modesto, por quem todas as professoras e coordenadoras são apaixonadas, o que ele estaria fazendo com uma garota como eu? A típica garota rebelde, sem papas na língua, sendo frequentemente repreendida por estar fumando em áreas proibidas, que todo mundo odiava por ser muito cheia de si. Sim, minha fama me precedia e talvez seja por isso que mesmo sendo defendida e sem provas que afirmassem minha participação no crime, eu tenha sido condenada. Quando você sustenta muito uma postura durona, as pessoas passam a acreditar nisso com muita veemência.
Seokjin nunca se deixou levar por isso. Eu gostaria de saber como ele conseguiu simplesmente ultrapassar minhas barreiras e fazer com que eu entregasse meu coração a ele. Talvez eu sequer tenha percebido que Jin estivesse tentando. Suas piadas ruins, sua gargalhada cômica, suas dancinhas ridículas e seus beijos lançados no ar, cada vez que ele me via no corredor, pareciam coisas tão superficiais e tão idiotas que quando dei por mim, já estava apaixonada por ele. Kim Seokjin foi mais longe do que qualquer outro cara, ele recebeu o coração que eu nunca tinha cedido a ninguém. Eu continuava sendo insensível e fechada com as pessoas, mas quando éramos só nós dois, eu não precisava ser assim. Eu não queria ser assim. Ele conseguia fazer com que eu apreciasse o lado romântico das coisas. Eu conseguia, facilmente, me imaginar ao lado dele por muito, muito tempo. Para sempre, talvez?
Mas, quando tudo aconteceu, foi hora de levantar o muro novamente. Revesti-lo com ainda mais força. Impedir que Seokjin penetrasse, de qualquer maneira, na bagunça que minha vida se tornou. Se estar com ele era como voar, ser acusada de assassinato fincou meus pés no chão, bem firme. Eu recusei as visitas que ele tentava me fazer, nunca respondi às cartas, praticamente implorava a qualquer divindade disponível que o fizesse seguir seu caminho sem mim e feliz. Era o que Jin merecia: felicidade.
Há mais de seis meses, ele parou de me escrever. Ainda fico admirada com quanto tempo isso demorou para acontecer. Cada nova carta que chegava, eu guardava, junto com todas as outras. Mas, ao saber da minha sentença, elas foram meu maior motivo para passar toda a noite chorando. Eu me lembro de cada palavra da última que ele me mandou. Ela me fazia recordar que eu nunca o mereci.

“Olá, querida.
Estou escrevendo porque estou desesperado. Eu não pediria sua ajuda se não fosse realmente necessário, você sabe. Espero que você tenha contatos aí dentro para me ajudar. Estou na delegacia. Acabei de ser preso e o delegado está alegando que eu estou sendo acusado de ser a pessoa mais feia do mundo! Você pode dizer a eles que ganhei o título de beleza mundial por dois anos seguidos na escola? Eles não acreditam em mim, amor!
Tudo bem, desculpe pela piada. Foi péssima e você deve ter odiado. Gostaria de ver sua cara de raiva quando chegou ao fim. Provavelmente você iria me bater, mas eu ficaria feliz até com isso.
Eu daria qualquer coisa para poder abraçá-la outra vez. Sinto a sua falta como um louco. Todo santo dia. Ainda não entendo porque você insiste em me manter afastado. As coisas ficam ainda mais difíceis sem poder sequer te ver. Estou morrendo de saudades.
Sua sentença definitiva sai em alguns dias e eu irei acompanhar o resultado no site, já que você me proibiu de comparecer nas audiências. Pensamentos positivos, meu amor! Eu tenho certeza de que logo estaremos juntos de novo, com você me ameaçando com aquela suas fórmulas malucas enquanto eu cozinho seu prato coreano favorito. Ainda japchae, certo? Aposto que sim.
Não desista, querida. Não deixe que as coisas se tornem tão pesadas a ponto de afundarem. E se ficarem pesadas demais, deixe que eu as carregue com você. Meus ombros tem por volta de 41cm, sabia? Tudo bem, você sabe que é mentira, mas acho que não custava tentar.
Eu te amo. Não se esqueça disso, por favor.
E não chore muito. Meu coração fica menor do que uma formiga quando você chora.
Você está bem? Não minta para mim se decidir responder essa carta. Seja sincera e me diga se está fisicamente bem. Preciso de qualquer notícia sua que não venha de jornais ou relatórios jurídicos na internet.
Bom, acho que é só isso. Outra coisa: assim como a caixinha disse para o fósforo, “não esquente a cabeça”. Eu estarei aqui e irei te esperar. Melhor ainda! Independente do resultado, eu vou tirar você saí.

Eu te amo (sei que já disse isso, mas estou repetindo).
Seu para sempre (e mundialmente bonito),
Kim Seok Jin”


Fui tirada dos meus devaneios pelo sotaque carregado de Gretta, a guardã alemã, que chamava meu nome. Em uma tranquilidade comum à ela, a guarda tirou o molho de chaves para abrir minha cela, me puxando para fora quando viu que meus pés estavam congelados no lugar. Eu sabia o motivo da presença dela e, mesmo que eu tivesse fingido suportar tudo aquilo, estava apavorada. Havia chegado a minha hora.

- É hora de ir! - Gretta disse, e desejei responder de forma tão dramática quanto Sócrates. Talvez eu também fosse uma tola, afinal. Será que o filósofo estaria me esperando em algum lugar pós-mortem para discutirmos sobre a vida, a verdade e o universo? Ou quem sabe sobre a próxima novela da televisa?

Olhei para a minha cela, onde eu passava a maior parte do meu tempo na cadeia. Se eu dissesse que o silêncio do lugar não me assustava, seria mentira. Eu só ouvia os meus passos e os de Gretta, que seguia na minha frente, com a calma de quem sabia que eu não fugiria dali. Simplesmente não tinha como. A única saída era a porta branca no final do corredor, pela qual eu teria que passar, de um jeito e do outro. E aquilo era o que mais me aterrorizava. Mesmo que o corredor fosse iluminado, eu me sentia caminhando na mais completa escuridão.
E em meio ao monotônico branco do corredor, eu me dei conta que fazia dez anos que eu não via o azul do céu. Dez anos que não respirava o ar puro, pisava meus pés na areia e sentia a brisa do mor no meu rosto. Céus, eu sentia falta até mesmo de tocar as pétalas das flores, do cheiro do bolo recém saído do forno… de coisas tão triviais e que eu não valorizava antes. Então ali, em frente àquela porta branca, o meu destino final, eu desejei de todo o coração ser livre. Ter novamente minha vida sob meu controle. Eu desejei voar.


Fim.



Nota da autora: Sem nota.



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