I
Hoje
I’m out on my own again
Face down in the porcelain
Feeling so high but looking so low
Party favors on the floor
Group of girls banging on the door
So many new fair-weather friends
Ela precisa fechar os olhos para ignorar.
Ignorar as batidas desenfreadas e frenéticas na porta. Ignorar a dor de cabeça lancinante.
Ignorar o estômago revoltado pelo excesso de álcool. Ignorar o mau cheiro do vômito, que só a instiga a vomitar mais.
Parece que, nos últimos tempos, tudo que tem feito é ignorar. É o que sua vida milimetricamente perfeita se tornou.
Mais do que nunca, está sendo sustentada pelas aparências.
Já faz tanto tempo desde a última vez que sentiu alguma emoção real. Desde que se permitiu sentir alguma emoção real.
Ela aciona a descarga e se levanta do chão, precisando apoiar-se no vaso sanitário, no gabinete, nas paredes. Em qualquer coisa mais sólida e estável do que ela. Literalmente qualquer coisa.
É assim que, acidentalmente, ela abre a porta do banheiro, dando de cara com um casal impaciente por um lugar reservado. No entanto, as duas desistem ao encarar o cenário caótico e fétido à sua frente.
Ela bate a porta do banheiro de novo e se atreve a se olhar no espelho.
A maquiagem que está usando não é barata, mas o corretivo craquelou em volta dos olhos, o lápis preto borrou depois de tantos esfregões e o batom permanece firme apenas nos contornos dos lábios.
Parece uma boneca mal feita. Uma piada de porcelana de luxo.
Ela usa discos de algodão que encontra no armário para tirar todo o batom e amenizar as falhas grotescas ao redor dos olhos. O resultado final é um visual gótico não intencional, mas que lhe cai bem. Melhor que todo o álcool.
Ainda está enjoada, mas precisa sair dali.
Precisa aparecer por alguns instantes pelos corredores da festa, parecendo pelo menos um pouco com sua versão original.
Ela leva a mão até a barriga, e a deixa parada ali por um momento, esperando algum tipo de alívio.
Nada acontece.
Ela abre a porta. E se joga, emocionalmente às cegas, na realidade alternativa em que ainda é ela mesma. Em que tudo ainda é perfeito. Em que ela ainda não o conheceu.
I’m out on my own again
Face down in the porcelain
Feeling so high but looking so low
Party favors on the floor
Group of girls banging on the door
So many new fair-weather friends
Ela precisa fechar os olhos para ignorar.
Ignorar as batidas desenfreadas e frenéticas na porta. Ignorar a dor de cabeça lancinante.
Ignorar o estômago revoltado pelo excesso de álcool. Ignorar o mau cheiro do vômito, que só a instiga a vomitar mais.
Parece que, nos últimos tempos, tudo que tem feito é ignorar. É o que sua vida milimetricamente perfeita se tornou.
Mais do que nunca, está sendo sustentada pelas aparências.
Já faz tanto tempo desde a última vez que sentiu alguma emoção real. Desde que se permitiu sentir alguma emoção real.
Ela aciona a descarga e se levanta do chão, precisando apoiar-se no vaso sanitário, no gabinete, nas paredes. Em qualquer coisa mais sólida e estável do que ela. Literalmente qualquer coisa.
É assim que, acidentalmente, ela abre a porta do banheiro, dando de cara com um casal impaciente por um lugar reservado. No entanto, as duas desistem ao encarar o cenário caótico e fétido à sua frente.
Ela bate a porta do banheiro de novo e se atreve a se olhar no espelho.
A maquiagem que está usando não é barata, mas o corretivo craquelou em volta dos olhos, o lápis preto borrou depois de tantos esfregões e o batom permanece firme apenas nos contornos dos lábios.
Parece uma boneca mal feita. Uma piada de porcelana de luxo.
Ela usa discos de algodão que encontra no armário para tirar todo o batom e amenizar as falhas grotescas ao redor dos olhos. O resultado final é um visual gótico não intencional, mas que lhe cai bem. Melhor que todo o álcool.
Ainda está enjoada, mas precisa sair dali.
Precisa aparecer por alguns instantes pelos corredores da festa, parecendo pelo menos um pouco com sua versão original.
Ela leva a mão até a barriga, e a deixa parada ali por um momento, esperando algum tipo de alívio.
Nada acontece.
Ela abre a porta. E se joga, emocionalmente às cegas, na realidade alternativa em que ainda é ela mesma. Em que tudo ainda é perfeito. Em que ela ainda não o conheceu.
II
15 meses atrás
Have you ever been so lost?
Known the way and still so lost?
— É por isso que eu digo. Tarantino só é um gênio porque a gente dá um monte de significados para as merdas aleatórias que o cara inventa. Se ele peidar para as câmeras, a gente vai inventar um significado poético, filosófico, fabuloso. E o cara vai ser um gênio de novo. — um dos garotos sentados à mesa de piquenique diz, exaltado enquanto balança um monte de folhas sulfite de algum trabalho.
— Você tá falando merda. É melhor calar a boca, porque seu rabo vai ficar com inveja. — o outro nerd toma o trabalho da mão dele, e guarda os papéis de volta numa pasta azul, com todo o cuidado do mundo. — Você é uma vergonha, . Uma puta de uma vergonha. — completa, pegando seu material e abandonando a mesa, com o nerd revoltado anti-Tarantino ainda balançando a cabeça, indignado.
Ele percebe que ela está olhando. E dá um sorrisinho tímido enquanto cora, provavelmente a poucos segundos de morrer de vergonha.
— Você está certo. — ela diz. — Ele faz um monte de merda aleatória que a gente ressignifica.
Ele parece surpreso.
— S-sim. É... o que estou dizendo. Os filmes são bons. O cara é marcante. Mas ele também é presunçoso... ele sabe que vamos fazer tempestade em qualquer copo d’água que ele servir. — responde.
— Tipo considerar uma cena inteira um verdadeiro espetáculo de emancipação feminina, quando, na verdade, ele tá só levando a podolatria dele para as telas.
Ele ri.
Ela quase ri também, mas fica apenas num sorrisinho singelo.
Ele se levanta, cruzando a pequena distância entre os dois, e estica a mão para ela.
— . Pode me chamar de .
— . .
— É um prazer te conhecer. Só que seu timing falhou um pouquinho. Você poderia ter se pronunciado enquanto o Ezra estava aqui. Ele nunca me ouve. Mas sempre ouve uma garota bonita.
semicerra os olhos à última frase.
— Escapou. — explica, abrindo os braços, se isentando da culpa.
Ela assente.
— Arquitetura? — ele pergunta, apontando para o livro que ela tem no colo, sob uma lata de Coca diet. Ao que ela assente outra vez.
— Cinema? — ela retribui a pergunta.
Sorrindo, concorda.
— Você bem que podia ser minha dupla, em vez do ignorante do Ezra.
— Sinto muito. — sorri. — Se for um relatório, fale sobre a podolatria. — ela diz, antes de recolher suas coisas, levantar-se e ir embora, ciente de que a segue com seu olhar.
***
— Onde você estava? — Charlie pergunta, abraçando-a pela cintura.
Ele tem cheiro de colônia francesa cara, creme de barbear caro, shampoo caro. É um amálgama muitas vezes perigoso.
— Biblioteca. — ela responde, erguendo o livro sobre Neoclassicismo enquanto se senta entre o namorado e seus amigos, que planejam qual vai ser a festa do fim de semana.
Vão honrar à Kappa Kappa Foda-se ou uma das festas “intimistas” de algum jogador do time de lacrosse? Vão à uma boate badalada no centro, onde subirão direto para a área VIP, ou vão para um bar com cara de pub irlandês que até serve cerveja Guinness?
Seja o que for, não é nada de novo. Seja o que for, não é exatamente nenhum lugar onde ela queira estar.
Mas tudo bem. Ela não diz nada, apenas permanece ali, mais um enfeite bonito no grupo de enfeites bonitos, todos parecendo incrivelmente superficiais, como se seus cérebros os mantivessem vivos, mas incapazes de pensar um pouco.
Porque não é possível que realmente adorem tanto essas festas. Todas iguais. O tempo todo.
está cansada. Cansada de verdade, e faz tempo que não está mais ouvindo nada do que eles falam.
Porque ela ainda consegue pensar.
E, nesse exato momento, ela não consegue parar de pensar em Quentin Tarantino.
***
se olha no espelho uma última vez.
O vestido que está usando é desconfortável, ainda que muito bonito.
Fora um presente de Natal. Sua mãe vira na vitrine, sobre o corpo esbelto de um manequim inanimado e, nas próprias palavras, pensara que era a cara da filha.
O tecido sintético incomoda, e sufoca a pele o tempo inteiro. É a primeira vez que ela usa o vestido, mas conhece bem o tipo. Tem uma coleção de roupas assim. Para as festas!, diria animadamente sua mãe.
Para as festas.
Ela dirige até a casa de Elizabeth Forthwood. Ou Gotwood. Ou Lockwood. Alguma Elizabeth. Alguém que ela não conhece.
São raras as ocasiões em que dirige o próprio carro para ir às festas. Seu pai prefere pagar um táxi, sempre, para o caso dela ficar muito bêbada. Porque é o que os jovens fazem. Eles aproveitam., ele diria.
— Porra nenhuma. — murmura para si mesma.
As festas são quase sempre estressantes, não divertidas. São compromissos sociais sufocantes, cíclicos e cansativos.
Só de pensar em ter que tirar toda a maquiagem que demorou uma hora para fazer, ela já quer arrancar a própria cabeça.
Pensamentos complexos e sombrios como esses a estão perseguindo. Cada vez mais.
manobra o carro para estacioná-lo entre outros dois, em frente à casa enorme que parece prestes a saltar do chão com o volume da música.
Ela desliga o carro, e calça os sapatos de salto antes de descer, ajeitando sua postura e sorrindo para estranhos no jardim, que parecem saber quem ela é.
É quase mítico, mas um pequeno corredor se abre quando ela entra, levando-a diretamente para o sofá onde estão seu lindo namorado e seus lindos amigos.
Charlie sorri para ela, pousa a garrafa de cerveja sobre uma mesa com topo de mármore e se levanta, puxando-a para um beijo demorado, que provoca uma comoção barulhenta entre os rapazes.
O gosto de cerveja parece se impregnar imediatamente em seus lábios e, quando Charlie a puxa para um abraço desleixado, ela luta contra o instinto de esfregá-los.
Não pode borrar o batom. É a pior coisa que pode acontecer.
Aprendeu com sua mãe.
— Você demorou. — Charlie observa. Sua mão posicionada na coluna de a guia até uma vaga no sofá, onde, um milissegundo antes, uma garota estava sentada.
— Não podia aparecer se não estivesse no meu melhor para você. — ela diz, forçando um sorriso. Charlie sorri de volta, o ego massageado e feliz garantido por um bom tempo.
Mas não demora muito para ele se entreter no videogame com os outros rapazes enquanto bebem cervejas demais, que se acumulam na mesa luxuosa até começarem a cair, e todos começarem a rir.
Uma garota aparece, recolhendo tudo do chão, nervosamente, e jogando em uma caixa de papelão.
Elizabeth Qualquer Coisa. A dona da casa.
Sacrificando seu lar pelo bem maior do reconhecimento social.
Num impulso, se levanta de seu lugar no sofá, e se abaixa ao lado de Elizabeth, ignorando a saia que sobe um pouco, e recolhendo cacos de vidro cuidadosamente, acrescentando-os à pilha na caixa de papelão.
— Obrigada, . — Elizabeth sorri para ela.
Um sorriso cúmplice de verdade, e tem vontade de chorar.
Ela nem conhece a garota.
— Está tudo bem. — garante. E sente Charlie puxando a saia de seu vestido para baixo outra vez.
Elizabeth sorri de novo, e segue para dentro da casa, com a caixa de papelão nos braços.
a acompanha.
— Precisa de ajuda com isso? — pergunta.
Elizabeth olha para ela, assustada, mas depois sorri.
— Sim, por favor. Meus pais vão me matar se tiver cacos de vidro pela casa e, além do mais, não quero que ninguém se machuque.
gosta dela de cara. É alguém real. Pelo menos por enquanto. Ela ainda fala o que pensa.
Mas não sabe nada sobre festas. Porque alguém sempre se machuca.
As duas lacram a caixa de papelão com várias camadas de fita adesiva — “Quanto será que precisa para garantir que não rasgue?”, Elizabeth pergunta em algum ponto. — e levam para o lado de fora.
Quando retornam, um garoto descendo as escadas para abruptamente na frente delas.
— Liz, será que dá pra abaixar o... — ele para quando vê . — Ahn... oi.
— Tarantino. — ela saúda, fingindo não se lembrar o nome dele. Mas sorri. E ele sorri de volta.
Elizabeth olha de um para o outro, confusa.
— O que estava dizendo, ? — ela pergunta.
— Eu? — ele pergunta, franzindo o cenho, completamente esquecido sobre o que estava falando. — Nada... eu só... vim pegar um refrigerante.
Ele passa por elas e desaparece em direção à cozinha.
Está aí alguém que não está nem um pouco no clima da festa.
— Me desculpe pelo meu irmão idiota. Ele nasceu para estragar tudo. — Elizabeth diz, parecendo um pouco irritada. — Pelo menos eu fui filha única por três minutos inteiros antes dele chegar.
sorri.
— Vocês são gêmeos?
Elizabeth assente, dando de ombros.
— Pois é. Dividimos um útero por oito meses antes de um médico finalmente abrir as portas e nos tirar de lá. Estou me recuperando desse período até hoje.
ri. Ri de verdade.
E ainda está rindo quando volta da cozinha. Ele olha para ela por um instante, e sorri também.
A risada de se transforma num sorriso, e ela passa uma mecha de cabelo que lhe cai em frente aos olhos para trás da orelha antes de seguir de volta para a sala.
Charlie não está mais lá. Os outros garotos ainda estão no videogame, mas ele não está mais lá.
Ela sabe que não deve, mas acaba indo procurar por ele.
E quem procura, acha.
Charlie está sentado sobre o pequeno muro na lateral da casa e, misturados ao corpo dele, estão uma porção de cabelos loiros e um vestido rosa que se movem freneticamente enquanto os dois se beijam.
não sabe quem é a garota. Pode ser literalmente qualquer uma. E ela não consegue sentir raiva.
Não vai fazer um escândalo. Não vai sequer interromper a sessão de beijos ardentes.
Vai dar as costas e ignorar.
A gente não precisa literalmente ver tudo o que vemos., sua mãe dissera uma vez.
Ela se vira para sair dali e voltar para a casa, mas, quando chega à porta, dá de cara com .
— Bem... eu acho que aquele é seu namorado...? — ele pergunta, parecendo verdadeiramente constrangido e mais chocado do que ela.
assente.
— Coca? — pergunta, esticando a latinha para ela.
Ela balança a cabeça, recusando.
— Na verdade... será que você me arruma alguma coisa bem mais forte?
dá risada.
— Claro. Vem comigo. — ele a guia pelos corredores da casa, até o escritório, estranhamente silencioso e protegido.
Lá, ele destranca um conjunto de portas duplas, revelando uma adega particularmente impressionante.
— Uau.
Ela nunca viu tanta bebida na vida.
— Fique à vontade. Meu pai acha que percebe quando alguma coisa é tocada, mas, na verdade, não percebe nem quando some.
olha para as fileiras de vinho, as prateleiras de licores e as majestosas garrafas de uísque. Acaba puxando uma garrafa de vinho aleatória.
— 1986. — ela lê no rótulo. — Bem, é um pouco velho.
— Não muito. Mas é um dos bons. Bebi um dos irmãos dele há umas três semanas. Enchi a garrafa com vinho do mercado.
solta uma gargalhada.
— Vai fazer o mesmo com essa aqui? — pergunta.
— Não. — ele balança a cabeça. — Você vai.
Ela ri outra vez. também ri.
Ele abre um dos armários e tira uma taça de lá.
balança a cabeça.
— Se for para fazer isso, que seja direito.
Eles abrem a garrafa, e ela bebe direto do gargalo.
— É realmente muito bom. — diz, dando um gole maior antes de passar a garrafa para ele.
— Eu sei. — concorda. — Mas não posso beber. — olha para ele com curiosidade.
— Tenho que levar você para casa quando você encher o bico.
ri outra vez. Dessa vez, até os olhos lacrimejarem.
Ela tira da mini bolsa que carrega as chaves do carro.
— Meu endereço vai estar no GPS.
— Pode deixar, madame.
Ela não sabe o porquê, mas confia nele.
Como nunca confiaria em outra pessoa.
***
Quando acorda, está com muita dor de cabeça.
Não se esqueceu da noite anterior, e isso é muito bom.
É a primeira vez que fica realmente bêbada, e não ter com o quê comparar a estava deixando assustada.
Mas não impediu que bebesse duas garrafas de vinho na adega de .
Nem que dançasse sem sapatos à música nenhuma, rodopiando pelo escritório do pai dele.
Agora, quando se levanta, repara nas coxas queimadas pelo tecido do vestido. A peça de roupa infernal está jogada sobre a poltrona vermelha.
Sem pensar duas vezes, apanha o vestido e o atira direto na lata de lixo do banheiro.
Se pudesse fazer o mesmo com todo o resto...
Seu celular toca na mesinha de cabeceira.
É Charlie. Ela ignora. Ele liga mais três vezes antes de desistir.
finalmente toma banho em paz, demorando mais que o suficiente, processando a noite passada, ruminando cada minuto.
Mesmo com a cabeça ardendo de dor, ela percebe que há muito tempo não consegue pensar tão claramente.
As coisas são, subitamente, incrivelmente fáceis. Alguma coisa mudou.
Quando Charlie liga de novo, ela atende.
— Porra, pensei que estava morta! — ele berra do outro lado. — O que aconteceu? Você sumiu da porra da festa ontem!
quer gritar. Mandá-lo ir à merda. Mas não o faz.
— Acabou, Charlie. Para mim, acabou. — é tudo que ela diz.
— De que porra você está falando?
Se ele falar “porra” de novo...
— De nós dois. Minha cabeça tá doendo de ressaca e dos chifres que você me colocou.
Ele fica sem fala por alguns segundos.
— , você sabe que não é assim. Não é assim que funciona, cara. Olha, eu sinto muito...
— Foda-se, Charlie. Não estou nem aí. Eu já disse, acabou. Pode falar o que quiser, para quem quiser, mas eu não vou mais ouvir suas merdas.
desliga o telefone. E percebe que sua mãe está parada em frente à porta, boquiaberta.
— Uau. Acho que isso foi você terminando com o Charlie...?
— Ah, mãe... eu não... não quero discutir isso agora.
— Tudo bem. — sua mãe se senta ao pé da cama. — Eu gostava dele no início, mas ele é um pé no saco. Você está certa.
começa a rir.
— Mas tem alguma coisa a ver com o rapaz que te trouxe para casa de madrugada?
sente o rosto corar.
Que maluquice. Ela acabara de conhecê-lo.
— Nós acabamos de nos conhecer e...
— Ele me pareceu muito educado. Deixou a chave do carro comigo, aliás.
Ora, ora. Disso não se lembrava.
— Deixou?
— Você estava... bem, mais para lá do que para cá. Ele não apertou a campainha nem nada, mas eu vi pela janela quando chegaram. Ele me entregou a chave, você entrou, subiu as escadas e... fim.
está morrendo de vergonha.
Ainda está pensando no que responder para a mãe quando seu celular toca de novo.
Número desconhecido. Sem paciência, não vai atender.
— Você não acha que pode ser ele? — a mãe de pergunta, levantando-se, com um olhar sugestivo.
Será?
atende.
— Como está sua cabeça? — ela começa a rir.
— Está me matando, .
— Tá a fim de um analgésico?
— Eu mataria por um. — ela suspira.
— Bom... se você prometer que eu não serei a vítima, é só descer.
arqueia uma sobrancelha, em sinal de confusão.
— O quê?
— Tô no seu jardim.
Ela se levanta para olhar pela janela.
Parado no meio do gramado, com o celular recostado à orelha, acena para ela.
não consegue conter o sorriso.
Ela se olha no espelho rapidamente antes de descer.
Está péssima, mas ele já a viu. E, apesar de desejar estar bonita, não consegue ligar tanto. Ela não precisa fingir.
***
Quando ele a chama para sair pela primeira vez, tem certeza de que vão se beijar no final do encontro.
Eles vão ao cinema. O maior clichê do mundo dos encontros, e ela nunca sequer fora convidada para um. Assistem a um filme bobo, mas nenhum dos dois comenta qualquer coisa. nem chega a tirar os olhos da tela.
Será que é assim mesmo?, ela se pergunta. Porque nos filmes não é.
Eles saem do cinema e vão a uma lanchonete com temática nerd, conversam sobre filmes enquanto comem batata frita e bebem milk-shakes de chocolate e baunilha. Nada de beijo.
lhe dá uma carona de volta para casa e, no carro, conversam sobre as músicas que tocam na rádio de rock. Ele para o carro em frente à casa dela. Conversam mais alguns minutos sobre música. E cinema. E arte. Mas nada de beijo.
bate a porta de casa atrás de si, e sua mãe está sentada na sala, olhando diretamente para ela.
— Como foi o encontro? — ela pergunta.
— Não sei. Acho que não foi um encontro.
Sua mãe faz uma careta.
tenta não pensar nisso enquanto se enfia embaixo do chuveiro quente. E enquanto troca de roupa. E enquanto se deita sob seu edredom de ursinho. Mas é tudo em vão.
Ela só consegue pensar nisso. Porque passou a noite toda querendo beijá-lo. Talvez as pessoas não se beijem no primeiro encontro?
No dia seguinte, liga. Aparentemente, seus amigos vão dar uma festa na piscina em algum lugar, e Liz faz questão de que vá.
Liz faz questão.
— É um convite? — ousa perguntar.
— Ahn... é claro. Sim. É... um convite.
Ela assente. Obviamente ele não vê. Assim como não vê o olhar curioso que ela sustenta.
— Tudo bem. Me passa o endereço.
— Certo. Vou te mandar por mensagem.
Ele manda. Ela começa a se arrumar.
Que tipo de roupa as pessoas vestem para uma festa na piscina? Ela já foi a várias, mas simplesmente não consegue se decidir entre uma produção impecável com um biquíni escondido ou um visual leve com qualquer coisa jogada por cima de um biquíni de roubar a cena.
não sabe como são os amigos de . Mas, se estivesse indo para uma festa na piscina com as pessoas que ela considerara seus amigos — mas que a haviam deixado de lado sem pensar duas vezes assim que o relacionamento com Charlie chegara ao fim —, escolheria a produção impecável. Sempre.
A mãe de aparece na porta do quarto no exato momento em que a pilha de roupas sobre a cama se torna insustentável e despenca no chão.
— Deixe-me adivinhar. — ela diz. — Segundo encontro?
— Não sei. Acho que não é um encontro.
A mãe rola os olhos, sentando-se na cama com uma careta séria.
— Vou te dizer uma coisa. — anuncia. — Se esse garoto é tão devagar quanto parece, você vai ter que assumir a frente. Se você quer que seja um encontro, faça ser.
encara a mãe, em choque.
— Quem é você? E o que fez com a minha mãe?
Ela ri.
— Bem... se você quer mesmo saber, eu achava que estava te ajudando. Achava que você estava feliz. Com a sua vida. Com seu namorado bunda mole. Mas é claro que, em algum momento, reparei que você não estava. E estou feliz por você ter pulado fora sozinha. Mas preocupada por você parecer uma garotinha desnorteada sem saber como conquistar o garotinho desnorteado.
dá uma gargalhada nervosa.
— Eu não estou tentando conq...
— Ah, minha filha, não fode, né?! — ela solta, impaciente. — Sei que está. Você está suspirando pela casa. Eu já fui jovem e linda e idiotamente suspirante antes. Sei como é. Você quer conquistar aquele garoto, e eu estou te dizendo: conquiste. Ele é um doce.
sorri.
— Aqui. — sua mãe diz, esticando-lhe um vestido vermelho com aparência retrô. — Biquíni preto. Não vai ter erro.
— Obrigada, mãe.
— Quer me agradecer? Vai lá e pega o garoto.
***
sai de casa decidida a usar as únicas coisas boas que aprendera com os seres humanos fúteis com os quais convivera boa parte de sua existência. Seduzir. O poder de sedução das garotas com quem andava era quase como um superpoder digno da Marvel. Ou da DC. Quem comprasse os direitos autorais primeiros.
Ela sabia fazer isso. Sabia seduzir. O fizera inúmeras vezes antes, quando não tinha a menor vontade, mas fazia mesmo assim. O fizera com Charlie, e com alguns amigos dele, só para provocar.
Mas nunca tentara seduzir alguém por quem seu coração parecia bater um pouquinho mais forte. Nunca.
é o primeiro.
E ele está parado em frente a uma casa grande, de tijolos vermelhos, cercada por jovens seminus, molhados e animados.
Sua mãe estivera certa na escolha da roupa.
desce do carro, levanta os óculos escuros e os prende sobre a cabeça, enquanto encara com um pouco de desconfiança, como uma inquisidora.
Ele está bonito. De fato bonito, mesmo com sua bermuda com estampa de pinguins.
sorri discretamente para ela, que demora um pouco a mais para devolver o sorriso.
— Você veio! — ele exclama.
— Disse que vinha. Onde está a Liz?
parece confuso.
— Na piscina, com o resto do pess... — não o espera terminar de falar. Segue a pequena multidão de universitários em direção à piscina.
Liz está sentada na beirada, os pés balançando animadamente dentro d’água.
Ela fica muito feliz quando nota indo em sua direção.
— ! — ela exclama, apoiando seu copo de bebida no chão e levantando-se para cumprimentá-la. Liz ostenta um biquíni cor de rosa que combina perfeitamente com ela.
retribui o abraço da garota.
Pelo menos, se tudo der errado com , ela pode tentar a outra gêmea., ela pensa. Brincadeira. Ou não.
— Que bom que você veio! O não parava de falar sobre isso e, talvez seja antiético da minha parte contar tudo para você, mas ele está morrendo de vergonha por ontem. Tipo... sério.
arqueia uma sobrancelha, curiosa, e dá uma olhada discreta na direção de , que ainda parece um pouco perdido, mas está conversando com uma garota. Hum.
— Você é a primeira garota com quem o sai desde a... bem, desde o desastre que foi a ex dele. Tenho certeza que ele gostava muito dela, e ela gostava muito da grana dele, e isso nunca poderia ter sido uma boa combinação, não é? — Liz fala tudo um pouco rápido demais, e é ligeiramente difícil processar tudo. — Ele está com medo, . Parece bobo, mas ele teve o coração partido uma vez. Simplesmente não sabe como se colocar na linha de novo correndo risco de tomar tiro. — a analogia quase faz com que solte uma risada. — E, para ser sincera, as outras opções dele são bizarras. — ela diz, olhando na direção da garota com quem está conversando. — Aquela é Charlotte-Kate. Tipo, tudo junto, mais ou menos. Ela cheira a tutti-frutti de chiclete barato. Não gosto dela. Ela faria picadinho do . E tá doida para fazer.
— Eu gosto do seu irmão, Liz. — ela ousa dizer. Os olhos de Liz se arregalam. — Gosto mesmo. E não estou disposta a atirar nele, se é o que te preocupa.
Liz suspira.
— Sim, sim. Isso me preocupa também. Mas outras coisas me preocupam, tipo o fato de que ele é meio... como posso dizer? Frouxo. Ele é meio frouxo. Resumindo: ele não vai beijar você. Porque vai sempre achar que está sendo invasivo. E porque ele acha que você é muita areia para o caminhãozinho dele.
começa a rir, o que acaba chamando a atenção de .
Eles se encaram por um breve momento. Depois, troca olhares com Liz.
— Você me dá só um momentinho?
— Até dois. — Liz responde, sorrindo.
se levanta de seu lugar recém-adquirido na beira da piscina, e segue para onde está.
O rapaz que está com ele interrompe a conversa e, captando a energia no ar, sai de cena, deixando-os sozinhos.
— O que há de errado? — pergunta.
— O-o quê?
— É. Com você. O que há de errado? — continua em silêncio, tão boquiaberto que talvez seu queixo acerte o chão em alguns segundos. — Tem medo de me matar com sua saliva radioativa? Por isso não me beijou ontem?
fica tão vermelho que parece prestes a explodir. pensa, por alguns instantes, se não pegou pesado demais.
Mas ele começa a rir.
— Isso foi uma referência a Potestade? Do Homem Aranha?
Ela assente.
— Puta merda. Então tinha uma coisa errada, sim. — é a última coisa que ele diz antes de enlaçar sua cintura e puxá-la para um beijo.
Até que não foi tão difícil assim.
— Quão a fim você tá de cair fora daqui? — pergunta.
— Isso evoluiu bem rápido. — ela observa, arqueando uma sobrancelha para ele.
ruboriza imediatamente.
— Eu não quis dizer que...
— Eu quis dizer que eu gosto. — responde, puxando-o pela mão.
***
Eles dirigem para a casa de .
A memória de não é muito boa — e ela estava ligeiramente bêbada naquela primeira noite —, mas a do GPS é.
Os pais de não estão em casa. O que não é novidade. Eles passam noventa e nove por cento do tempo fora, apesar de terem comprado a casa para ficarem todos juntos perto da faculdade.
liga o sistema de som, e uma música bonitinha que não conhece começa a tocar.
— Quer comer o melhor ravioli que já comeu na sua vida? — pergunta.
solta uma gargalhada. Ele, definitivamente, não é o que ela imaginava.
Uma meia hora depois, chega à sala de jantar com dois pratos de ravioli salpicados por queijo ralado.
— Madame. — ele diz, servindo-a. — Bon appetit.
— Hum... isso não é italiano?
dá de ombros.
— Quem liga? — ele faz uma careta. — Experimenta. — aponta para o prato dela. — É bom mesmo, eu juro.
experimenta.
E é perfeito.
E ela come enquanto olha para , indignada, intrigada, completamente arrebatada.
Nada mais está fazendo sentido. não é só um garoto que ela quer.
— Onde aprendeu a fazer isso?
— Com a antiga empregada. Ela tinha avós italianos. — responde. Repentinamente, seu semblante se torna triste. — Ela morreu antes de nos mudarmos para essa casa. Talvez por isso ainda não me sinta em um lar de verdade.
assente. Não faz ideia do que ele realmente está sentindo, mas sente muito por saber que ele não é plenamente feliz.
— Sorvete? — ele oferece, cortando o clima triste.
sorri para ele.
— Vai me engordar para a ceia? — pergunta.
— Quem sabe? — ele faz uma cara de mistério.
e comem sorvete de pistache e baunilha até ambos os potes acabarem. Não conversam nada de importante, mas mantêm o papo fluindo, indo e vindo. Dão algumas boas risadas.
— Eu preciso ir. — diz, em certo ponto. — Minha mãe está me chamando para uma emergência fashion, e não posso faltar.
dá uma gargalhada.
À porta, eles se encaram, olho no olho, por alguns instantes. Pequenas faíscas parecem dançar entre eles, entre seus olhares.
Até que seus lábios se unem, e as faíscas parecem crescer até preenchê-los por completo.
***
— Pegou? — a mãe de pergunta, assim que ela bate a porta de casa.
olha ao redor.
— Seu pai não está. E ele não liga. Fale o que interessa! Pegou ou não pegou?
começa a rir.
— Mãe, pelo amor de Deus!
— Pegou! Ah, eu sabia. Pegou o dia inteiro?
rola os olhos, subindo as escadas e deixando a mãe falando sozinha.
— Não vamos mais discutir isso, mãe. — berra, antes de fechar a porta do quarto.
— Meu vestido! — a mãe berra de volta. — Você precisa me ajudar a escolher meu vestido!
— Em cinco minutos!
se dirige ao banheiro.
Seu rosto está cheio de pontinhos vermelhos desconhecidos. Parece outro rosto.
Ainda está eufórica. Seu coração ainda bate fora do ritmo, descompassado, acelerado.
Ela só consegue pensar em ravioli. Sorvete de pistache e de baunilha. E em .
lava o rosto com a água gelada da torneira, depois esfrega com força na toalha antes de ir até o closet da mãe ajudá-la a escolher um vestido para uma festa de sei-lá-o-quê.
— Não acredito que você está sequer pensando. — diz, assim que repara em um vestido verde ainda no saco do ateliê. — Mãe, olha só para isso!
— Não quero chamar tanta atenção assim.
— Ah, você quer, sim. É perfeito! É tão... Victoria Grayson.
— Ela morre no final.
— Você entendeu! É poderoso. E lindo. E ainda não foi usado. E, muito provavelmente, ninguém tem outro igual.
A mãe de olha para o vestido novamente, parecendo considerar.
Enquanto isso, a filha escolhe um par de sandálias douradas novinhas.
— Aqui está. E o trio de braceletes daquela joalheira artesanal... com os brincos da mesma coleção. Sem colar, claro. A gola do vestido é linda demais para distrações.
— Você é minha pequena Stella McCartney.
faz uma reverência engraçada.
— A seus serviços, mademoiselle. — ela recebe um abraço breve da mãe em agradecimento, e volta para seu quarto.
Ravioli. Pistache. Baunilha. . Ravioli. Pistache. Baunilha. .
As coisas acontecem rápido demais.
Poucos segundos depois de sua mãe sair pela porta, a campainha tocou.
desceu para atender.
Abriu a porta sem pensar duas vezes.
No instante seguinte, estava nos braços de , os lábios selados aos dele, as pernas tropeçando enquanto andava de costas.
Eles se separaram por alguns microssegundos, apenas o suficiente para que ela apontasse a direção.
Quando chegaram, bateram a porta atrás de si, e bateu o cotovelo na penteadeira, mas não doeu o suficiente para separá-los de novo.
Enquanto avançavam pelo quarto, peças de roupa ficavam pelo chão.
Known the way and still so lost?
— É por isso que eu digo. Tarantino só é um gênio porque a gente dá um monte de significados para as merdas aleatórias que o cara inventa. Se ele peidar para as câmeras, a gente vai inventar um significado poético, filosófico, fabuloso. E o cara vai ser um gênio de novo. — um dos garotos sentados à mesa de piquenique diz, exaltado enquanto balança um monte de folhas sulfite de algum trabalho.
— Você tá falando merda. É melhor calar a boca, porque seu rabo vai ficar com inveja. — o outro nerd toma o trabalho da mão dele, e guarda os papéis de volta numa pasta azul, com todo o cuidado do mundo. — Você é uma vergonha, . Uma puta de uma vergonha. — completa, pegando seu material e abandonando a mesa, com o nerd revoltado anti-Tarantino ainda balançando a cabeça, indignado.
Ele percebe que ela está olhando. E dá um sorrisinho tímido enquanto cora, provavelmente a poucos segundos de morrer de vergonha.
— Você está certo. — ela diz. — Ele faz um monte de merda aleatória que a gente ressignifica.
Ele parece surpreso.
— S-sim. É... o que estou dizendo. Os filmes são bons. O cara é marcante. Mas ele também é presunçoso... ele sabe que vamos fazer tempestade em qualquer copo d’água que ele servir. — responde.
— Tipo considerar uma cena inteira um verdadeiro espetáculo de emancipação feminina, quando, na verdade, ele tá só levando a podolatria dele para as telas.
Ele ri.
Ela quase ri também, mas fica apenas num sorrisinho singelo.
Ele se levanta, cruzando a pequena distância entre os dois, e estica a mão para ela.
— . Pode me chamar de .
— . .
— É um prazer te conhecer. Só que seu timing falhou um pouquinho. Você poderia ter se pronunciado enquanto o Ezra estava aqui. Ele nunca me ouve. Mas sempre ouve uma garota bonita.
semicerra os olhos à última frase.
— Escapou. — explica, abrindo os braços, se isentando da culpa.
Ela assente.
— Arquitetura? — ele pergunta, apontando para o livro que ela tem no colo, sob uma lata de Coca diet. Ao que ela assente outra vez.
— Cinema? — ela retribui a pergunta.
Sorrindo, concorda.
— Você bem que podia ser minha dupla, em vez do ignorante do Ezra.
— Sinto muito. — sorri. — Se for um relatório, fale sobre a podolatria. — ela diz, antes de recolher suas coisas, levantar-se e ir embora, ciente de que a segue com seu olhar.
Ele tem cheiro de colônia francesa cara, creme de barbear caro, shampoo caro. É um amálgama muitas vezes perigoso.
— Biblioteca. — ela responde, erguendo o livro sobre Neoclassicismo enquanto se senta entre o namorado e seus amigos, que planejam qual vai ser a festa do fim de semana.
Vão honrar à Kappa Kappa Foda-se ou uma das festas “intimistas” de algum jogador do time de lacrosse? Vão à uma boate badalada no centro, onde subirão direto para a área VIP, ou vão para um bar com cara de pub irlandês que até serve cerveja Guinness?
Seja o que for, não é nada de novo. Seja o que for, não é exatamente nenhum lugar onde ela queira estar.
Mas tudo bem. Ela não diz nada, apenas permanece ali, mais um enfeite bonito no grupo de enfeites bonitos, todos parecendo incrivelmente superficiais, como se seus cérebros os mantivessem vivos, mas incapazes de pensar um pouco.
Porque não é possível que realmente adorem tanto essas festas. Todas iguais. O tempo todo.
está cansada. Cansada de verdade, e faz tempo que não está mais ouvindo nada do que eles falam.
Porque ela ainda consegue pensar.
E, nesse exato momento, ela não consegue parar de pensar em Quentin Tarantino.
O vestido que está usando é desconfortável, ainda que muito bonito.
Fora um presente de Natal. Sua mãe vira na vitrine, sobre o corpo esbelto de um manequim inanimado e, nas próprias palavras, pensara que era a cara da filha.
O tecido sintético incomoda, e sufoca a pele o tempo inteiro. É a primeira vez que ela usa o vestido, mas conhece bem o tipo. Tem uma coleção de roupas assim. Para as festas!, diria animadamente sua mãe.
Para as festas.
Ela dirige até a casa de Elizabeth Forthwood. Ou Gotwood. Ou Lockwood. Alguma Elizabeth. Alguém que ela não conhece.
São raras as ocasiões em que dirige o próprio carro para ir às festas. Seu pai prefere pagar um táxi, sempre, para o caso dela ficar muito bêbada. Porque é o que os jovens fazem. Eles aproveitam., ele diria.
— Porra nenhuma. — murmura para si mesma.
As festas são quase sempre estressantes, não divertidas. São compromissos sociais sufocantes, cíclicos e cansativos.
Só de pensar em ter que tirar toda a maquiagem que demorou uma hora para fazer, ela já quer arrancar a própria cabeça.
Pensamentos complexos e sombrios como esses a estão perseguindo. Cada vez mais.
manobra o carro para estacioná-lo entre outros dois, em frente à casa enorme que parece prestes a saltar do chão com o volume da música.
Ela desliga o carro, e calça os sapatos de salto antes de descer, ajeitando sua postura e sorrindo para estranhos no jardim, que parecem saber quem ela é.
É quase mítico, mas um pequeno corredor se abre quando ela entra, levando-a diretamente para o sofá onde estão seu lindo namorado e seus lindos amigos.
Charlie sorri para ela, pousa a garrafa de cerveja sobre uma mesa com topo de mármore e se levanta, puxando-a para um beijo demorado, que provoca uma comoção barulhenta entre os rapazes.
O gosto de cerveja parece se impregnar imediatamente em seus lábios e, quando Charlie a puxa para um abraço desleixado, ela luta contra o instinto de esfregá-los.
Não pode borrar o batom. É a pior coisa que pode acontecer.
Aprendeu com sua mãe.
— Você demorou. — Charlie observa. Sua mão posicionada na coluna de a guia até uma vaga no sofá, onde, um milissegundo antes, uma garota estava sentada.
— Não podia aparecer se não estivesse no meu melhor para você. — ela diz, forçando um sorriso. Charlie sorri de volta, o ego massageado e feliz garantido por um bom tempo.
Mas não demora muito para ele se entreter no videogame com os outros rapazes enquanto bebem cervejas demais, que se acumulam na mesa luxuosa até começarem a cair, e todos começarem a rir.
Uma garota aparece, recolhendo tudo do chão, nervosamente, e jogando em uma caixa de papelão.
Elizabeth Qualquer Coisa. A dona da casa.
Sacrificando seu lar pelo bem maior do reconhecimento social.
Num impulso, se levanta de seu lugar no sofá, e se abaixa ao lado de Elizabeth, ignorando a saia que sobe um pouco, e recolhendo cacos de vidro cuidadosamente, acrescentando-os à pilha na caixa de papelão.
— Obrigada, . — Elizabeth sorri para ela.
Um sorriso cúmplice de verdade, e tem vontade de chorar.
Ela nem conhece a garota.
— Está tudo bem. — garante. E sente Charlie puxando a saia de seu vestido para baixo outra vez.
Elizabeth sorri de novo, e segue para dentro da casa, com a caixa de papelão nos braços.
a acompanha.
— Precisa de ajuda com isso? — pergunta.
Elizabeth olha para ela, assustada, mas depois sorri.
— Sim, por favor. Meus pais vão me matar se tiver cacos de vidro pela casa e, além do mais, não quero que ninguém se machuque.
gosta dela de cara. É alguém real. Pelo menos por enquanto. Ela ainda fala o que pensa.
Mas não sabe nada sobre festas. Porque alguém sempre se machuca.
As duas lacram a caixa de papelão com várias camadas de fita adesiva — “Quanto será que precisa para garantir que não rasgue?”, Elizabeth pergunta em algum ponto. — e levam para o lado de fora.
Quando retornam, um garoto descendo as escadas para abruptamente na frente delas.
— Liz, será que dá pra abaixar o... — ele para quando vê . — Ahn... oi.
— Tarantino. — ela saúda, fingindo não se lembrar o nome dele. Mas sorri. E ele sorri de volta.
Elizabeth olha de um para o outro, confusa.
— O que estava dizendo, ? — ela pergunta.
— Eu? — ele pergunta, franzindo o cenho, completamente esquecido sobre o que estava falando. — Nada... eu só... vim pegar um refrigerante.
Ele passa por elas e desaparece em direção à cozinha.
Está aí alguém que não está nem um pouco no clima da festa.
— Me desculpe pelo meu irmão idiota. Ele nasceu para estragar tudo. — Elizabeth diz, parecendo um pouco irritada. — Pelo menos eu fui filha única por três minutos inteiros antes dele chegar.
sorri.
— Vocês são gêmeos?
Elizabeth assente, dando de ombros.
— Pois é. Dividimos um útero por oito meses antes de um médico finalmente abrir as portas e nos tirar de lá. Estou me recuperando desse período até hoje.
ri. Ri de verdade.
E ainda está rindo quando volta da cozinha. Ele olha para ela por um instante, e sorri também.
A risada de se transforma num sorriso, e ela passa uma mecha de cabelo que lhe cai em frente aos olhos para trás da orelha antes de seguir de volta para a sala.
Charlie não está mais lá. Os outros garotos ainda estão no videogame, mas ele não está mais lá.
Ela sabe que não deve, mas acaba indo procurar por ele.
E quem procura, acha.
Charlie está sentado sobre o pequeno muro na lateral da casa e, misturados ao corpo dele, estão uma porção de cabelos loiros e um vestido rosa que se movem freneticamente enquanto os dois se beijam.
não sabe quem é a garota. Pode ser literalmente qualquer uma. E ela não consegue sentir raiva.
Não vai fazer um escândalo. Não vai sequer interromper a sessão de beijos ardentes.
Vai dar as costas e ignorar.
A gente não precisa literalmente ver tudo o que vemos., sua mãe dissera uma vez.
Ela se vira para sair dali e voltar para a casa, mas, quando chega à porta, dá de cara com .
— Bem... eu acho que aquele é seu namorado...? — ele pergunta, parecendo verdadeiramente constrangido e mais chocado do que ela.
assente.
— Coca? — pergunta, esticando a latinha para ela.
Ela balança a cabeça, recusando.
— Na verdade... será que você me arruma alguma coisa bem mais forte?
dá risada.
— Claro. Vem comigo. — ele a guia pelos corredores da casa, até o escritório, estranhamente silencioso e protegido.
Lá, ele destranca um conjunto de portas duplas, revelando uma adega particularmente impressionante.
— Uau.
Ela nunca viu tanta bebida na vida.
— Fique à vontade. Meu pai acha que percebe quando alguma coisa é tocada, mas, na verdade, não percebe nem quando some.
olha para as fileiras de vinho, as prateleiras de licores e as majestosas garrafas de uísque. Acaba puxando uma garrafa de vinho aleatória.
— 1986. — ela lê no rótulo. — Bem, é um pouco velho.
— Não muito. Mas é um dos bons. Bebi um dos irmãos dele há umas três semanas. Enchi a garrafa com vinho do mercado.
solta uma gargalhada.
— Vai fazer o mesmo com essa aqui? — pergunta.
— Não. — ele balança a cabeça. — Você vai.
Ela ri outra vez. também ri.
Ele abre um dos armários e tira uma taça de lá.
balança a cabeça.
— Se for para fazer isso, que seja direito.
Eles abrem a garrafa, e ela bebe direto do gargalo.
— É realmente muito bom. — diz, dando um gole maior antes de passar a garrafa para ele.
— Eu sei. — concorda. — Mas não posso beber. — olha para ele com curiosidade.
— Tenho que levar você para casa quando você encher o bico.
ri outra vez. Dessa vez, até os olhos lacrimejarem.
Ela tira da mini bolsa que carrega as chaves do carro.
— Meu endereço vai estar no GPS.
— Pode deixar, madame.
Ela não sabe o porquê, mas confia nele.
Como nunca confiaria em outra pessoa.
Não se esqueceu da noite anterior, e isso é muito bom.
É a primeira vez que fica realmente bêbada, e não ter com o quê comparar a estava deixando assustada.
Mas não impediu que bebesse duas garrafas de vinho na adega de .
Nem que dançasse sem sapatos à música nenhuma, rodopiando pelo escritório do pai dele.
Agora, quando se levanta, repara nas coxas queimadas pelo tecido do vestido. A peça de roupa infernal está jogada sobre a poltrona vermelha.
Sem pensar duas vezes, apanha o vestido e o atira direto na lata de lixo do banheiro.
Se pudesse fazer o mesmo com todo o resto...
Seu celular toca na mesinha de cabeceira.
É Charlie. Ela ignora. Ele liga mais três vezes antes de desistir.
finalmente toma banho em paz, demorando mais que o suficiente, processando a noite passada, ruminando cada minuto.
Mesmo com a cabeça ardendo de dor, ela percebe que há muito tempo não consegue pensar tão claramente.
As coisas são, subitamente, incrivelmente fáceis. Alguma coisa mudou.
Quando Charlie liga de novo, ela atende.
— Porra, pensei que estava morta! — ele berra do outro lado. — O que aconteceu? Você sumiu da porra da festa ontem!
quer gritar. Mandá-lo ir à merda. Mas não o faz.
— Acabou, Charlie. Para mim, acabou. — é tudo que ela diz.
— De que porra você está falando?
Se ele falar “porra” de novo...
— De nós dois. Minha cabeça tá doendo de ressaca e dos chifres que você me colocou.
Ele fica sem fala por alguns segundos.
— , você sabe que não é assim. Não é assim que funciona, cara. Olha, eu sinto muito...
— Foda-se, Charlie. Não estou nem aí. Eu já disse, acabou. Pode falar o que quiser, para quem quiser, mas eu não vou mais ouvir suas merdas.
desliga o telefone. E percebe que sua mãe está parada em frente à porta, boquiaberta.
— Uau. Acho que isso foi você terminando com o Charlie...?
— Ah, mãe... eu não... não quero discutir isso agora.
— Tudo bem. — sua mãe se senta ao pé da cama. — Eu gostava dele no início, mas ele é um pé no saco. Você está certa.
começa a rir.
— Mas tem alguma coisa a ver com o rapaz que te trouxe para casa de madrugada?
sente o rosto corar.
Que maluquice. Ela acabara de conhecê-lo.
— Nós acabamos de nos conhecer e...
— Ele me pareceu muito educado. Deixou a chave do carro comigo, aliás.
Ora, ora. Disso não se lembrava.
— Deixou?
— Você estava... bem, mais para lá do que para cá. Ele não apertou a campainha nem nada, mas eu vi pela janela quando chegaram. Ele me entregou a chave, você entrou, subiu as escadas e... fim.
está morrendo de vergonha.
Ainda está pensando no que responder para a mãe quando seu celular toca de novo.
Número desconhecido. Sem paciência, não vai atender.
— Você não acha que pode ser ele? — a mãe de pergunta, levantando-se, com um olhar sugestivo.
Será?
atende.
— Como está sua cabeça? — ela começa a rir.
— Está me matando, .
— Tá a fim de um analgésico?
— Eu mataria por um. — ela suspira.
— Bom... se você prometer que eu não serei a vítima, é só descer.
arqueia uma sobrancelha, em sinal de confusão.
— O quê?
— Tô no seu jardim.
Ela se levanta para olhar pela janela.
Parado no meio do gramado, com o celular recostado à orelha, acena para ela.
não consegue conter o sorriso.
Ela se olha no espelho rapidamente antes de descer.
Está péssima, mas ele já a viu. E, apesar de desejar estar bonita, não consegue ligar tanto. Ela não precisa fingir.
Eles vão ao cinema. O maior clichê do mundo dos encontros, e ela nunca sequer fora convidada para um. Assistem a um filme bobo, mas nenhum dos dois comenta qualquer coisa. nem chega a tirar os olhos da tela.
Será que é assim mesmo?, ela se pergunta. Porque nos filmes não é.
Eles saem do cinema e vão a uma lanchonete com temática nerd, conversam sobre filmes enquanto comem batata frita e bebem milk-shakes de chocolate e baunilha. Nada de beijo.
lhe dá uma carona de volta para casa e, no carro, conversam sobre as músicas que tocam na rádio de rock. Ele para o carro em frente à casa dela. Conversam mais alguns minutos sobre música. E cinema. E arte. Mas nada de beijo.
bate a porta de casa atrás de si, e sua mãe está sentada na sala, olhando diretamente para ela.
— Como foi o encontro? — ela pergunta.
— Não sei. Acho que não foi um encontro.
Sua mãe faz uma careta.
tenta não pensar nisso enquanto se enfia embaixo do chuveiro quente. E enquanto troca de roupa. E enquanto se deita sob seu edredom de ursinho. Mas é tudo em vão.
Ela só consegue pensar nisso. Porque passou a noite toda querendo beijá-lo. Talvez as pessoas não se beijem no primeiro encontro?
No dia seguinte, liga. Aparentemente, seus amigos vão dar uma festa na piscina em algum lugar, e Liz faz questão de que vá.
Liz faz questão.
— É um convite? — ousa perguntar.
— Ahn... é claro. Sim. É... um convite.
Ela assente. Obviamente ele não vê. Assim como não vê o olhar curioso que ela sustenta.
— Tudo bem. Me passa o endereço.
— Certo. Vou te mandar por mensagem.
Ele manda. Ela começa a se arrumar.
Que tipo de roupa as pessoas vestem para uma festa na piscina? Ela já foi a várias, mas simplesmente não consegue se decidir entre uma produção impecável com um biquíni escondido ou um visual leve com qualquer coisa jogada por cima de um biquíni de roubar a cena.
não sabe como são os amigos de . Mas, se estivesse indo para uma festa na piscina com as pessoas que ela considerara seus amigos — mas que a haviam deixado de lado sem pensar duas vezes assim que o relacionamento com Charlie chegara ao fim —, escolheria a produção impecável. Sempre.
A mãe de aparece na porta do quarto no exato momento em que a pilha de roupas sobre a cama se torna insustentável e despenca no chão.
— Deixe-me adivinhar. — ela diz. — Segundo encontro?
— Não sei. Acho que não é um encontro.
A mãe rola os olhos, sentando-se na cama com uma careta séria.
— Vou te dizer uma coisa. — anuncia. — Se esse garoto é tão devagar quanto parece, você vai ter que assumir a frente. Se você quer que seja um encontro, faça ser.
encara a mãe, em choque.
— Quem é você? E o que fez com a minha mãe?
Ela ri.
— Bem... se você quer mesmo saber, eu achava que estava te ajudando. Achava que você estava feliz. Com a sua vida. Com seu namorado bunda mole. Mas é claro que, em algum momento, reparei que você não estava. E estou feliz por você ter pulado fora sozinha. Mas preocupada por você parecer uma garotinha desnorteada sem saber como conquistar o garotinho desnorteado.
dá uma gargalhada nervosa.
— Eu não estou tentando conq...
— Ah, minha filha, não fode, né?! — ela solta, impaciente. — Sei que está. Você está suspirando pela casa. Eu já fui jovem e linda e idiotamente suspirante antes. Sei como é. Você quer conquistar aquele garoto, e eu estou te dizendo: conquiste. Ele é um doce.
sorri.
— Aqui. — sua mãe diz, esticando-lhe um vestido vermelho com aparência retrô. — Biquíni preto. Não vai ter erro.
— Obrigada, mãe.
— Quer me agradecer? Vai lá e pega o garoto.
Ela sabia fazer isso. Sabia seduzir. O fizera inúmeras vezes antes, quando não tinha a menor vontade, mas fazia mesmo assim. O fizera com Charlie, e com alguns amigos dele, só para provocar.
Mas nunca tentara seduzir alguém por quem seu coração parecia bater um pouquinho mais forte. Nunca.
é o primeiro.
E ele está parado em frente a uma casa grande, de tijolos vermelhos, cercada por jovens seminus, molhados e animados.
Sua mãe estivera certa na escolha da roupa.
desce do carro, levanta os óculos escuros e os prende sobre a cabeça, enquanto encara com um pouco de desconfiança, como uma inquisidora.
Ele está bonito. De fato bonito, mesmo com sua bermuda com estampa de pinguins.
sorri discretamente para ela, que demora um pouco a mais para devolver o sorriso.
— Você veio! — ele exclama.
— Disse que vinha. Onde está a Liz?
parece confuso.
— Na piscina, com o resto do pess... — não o espera terminar de falar. Segue a pequena multidão de universitários em direção à piscina.
Liz está sentada na beirada, os pés balançando animadamente dentro d’água.
Ela fica muito feliz quando nota indo em sua direção.
— ! — ela exclama, apoiando seu copo de bebida no chão e levantando-se para cumprimentá-la. Liz ostenta um biquíni cor de rosa que combina perfeitamente com ela.
retribui o abraço da garota.
Pelo menos, se tudo der errado com , ela pode tentar a outra gêmea., ela pensa. Brincadeira. Ou não.
— Que bom que você veio! O não parava de falar sobre isso e, talvez seja antiético da minha parte contar tudo para você, mas ele está morrendo de vergonha por ontem. Tipo... sério.
arqueia uma sobrancelha, curiosa, e dá uma olhada discreta na direção de , que ainda parece um pouco perdido, mas está conversando com uma garota. Hum.
— Você é a primeira garota com quem o sai desde a... bem, desde o desastre que foi a ex dele. Tenho certeza que ele gostava muito dela, e ela gostava muito da grana dele, e isso nunca poderia ter sido uma boa combinação, não é? — Liz fala tudo um pouco rápido demais, e é ligeiramente difícil processar tudo. — Ele está com medo, . Parece bobo, mas ele teve o coração partido uma vez. Simplesmente não sabe como se colocar na linha de novo correndo risco de tomar tiro. — a analogia quase faz com que solte uma risada. — E, para ser sincera, as outras opções dele são bizarras. — ela diz, olhando na direção da garota com quem está conversando. — Aquela é Charlotte-Kate. Tipo, tudo junto, mais ou menos. Ela cheira a tutti-frutti de chiclete barato. Não gosto dela. Ela faria picadinho do . E tá doida para fazer.
— Eu gosto do seu irmão, Liz. — ela ousa dizer. Os olhos de Liz se arregalam. — Gosto mesmo. E não estou disposta a atirar nele, se é o que te preocupa.
Liz suspira.
— Sim, sim. Isso me preocupa também. Mas outras coisas me preocupam, tipo o fato de que ele é meio... como posso dizer? Frouxo. Ele é meio frouxo. Resumindo: ele não vai beijar você. Porque vai sempre achar que está sendo invasivo. E porque ele acha que você é muita areia para o caminhãozinho dele.
começa a rir, o que acaba chamando a atenção de .
Eles se encaram por um breve momento. Depois, troca olhares com Liz.
— Você me dá só um momentinho?
— Até dois. — Liz responde, sorrindo.
se levanta de seu lugar recém-adquirido na beira da piscina, e segue para onde está.
O rapaz que está com ele interrompe a conversa e, captando a energia no ar, sai de cena, deixando-os sozinhos.
— O que há de errado? — pergunta.
— O-o quê?
— É. Com você. O que há de errado? — continua em silêncio, tão boquiaberto que talvez seu queixo acerte o chão em alguns segundos. — Tem medo de me matar com sua saliva radioativa? Por isso não me beijou ontem?
fica tão vermelho que parece prestes a explodir. pensa, por alguns instantes, se não pegou pesado demais.
Mas ele começa a rir.
— Isso foi uma referência a Potestade? Do Homem Aranha?
Ela assente.
— Puta merda. Então tinha uma coisa errada, sim. — é a última coisa que ele diz antes de enlaçar sua cintura e puxá-la para um beijo.
Até que não foi tão difícil assim.
— Quão a fim você tá de cair fora daqui? — pergunta.
— Isso evoluiu bem rápido. — ela observa, arqueando uma sobrancelha para ele.
ruboriza imediatamente.
— Eu não quis dizer que...
— Eu quis dizer que eu gosto. — responde, puxando-o pela mão.
A memória de não é muito boa — e ela estava ligeiramente bêbada naquela primeira noite —, mas a do GPS é.
Os pais de não estão em casa. O que não é novidade. Eles passam noventa e nove por cento do tempo fora, apesar de terem comprado a casa para ficarem todos juntos perto da faculdade.
liga o sistema de som, e uma música bonitinha que não conhece começa a tocar.
— Quer comer o melhor ravioli que já comeu na sua vida? — pergunta.
solta uma gargalhada. Ele, definitivamente, não é o que ela imaginava.
Uma meia hora depois, chega à sala de jantar com dois pratos de ravioli salpicados por queijo ralado.
— Madame. — ele diz, servindo-a. — Bon appetit.
— Hum... isso não é italiano?
dá de ombros.
— Quem liga? — ele faz uma careta. — Experimenta. — aponta para o prato dela. — É bom mesmo, eu juro.
experimenta.
E é perfeito.
E ela come enquanto olha para , indignada, intrigada, completamente arrebatada.
Nada mais está fazendo sentido. não é só um garoto que ela quer.
— Onde aprendeu a fazer isso?
— Com a antiga empregada. Ela tinha avós italianos. — responde. Repentinamente, seu semblante se torna triste. — Ela morreu antes de nos mudarmos para essa casa. Talvez por isso ainda não me sinta em um lar de verdade.
assente. Não faz ideia do que ele realmente está sentindo, mas sente muito por saber que ele não é plenamente feliz.
— Sorvete? — ele oferece, cortando o clima triste.
sorri para ele.
— Vai me engordar para a ceia? — pergunta.
— Quem sabe? — ele faz uma cara de mistério.
e comem sorvete de pistache e baunilha até ambos os potes acabarem. Não conversam nada de importante, mas mantêm o papo fluindo, indo e vindo. Dão algumas boas risadas.
— Eu preciso ir. — diz, em certo ponto. — Minha mãe está me chamando para uma emergência fashion, e não posso faltar.
dá uma gargalhada.
À porta, eles se encaram, olho no olho, por alguns instantes. Pequenas faíscas parecem dançar entre eles, entre seus olhares.
Até que seus lábios se unem, e as faíscas parecem crescer até preenchê-los por completo.
olha ao redor.
— Seu pai não está. E ele não liga. Fale o que interessa! Pegou ou não pegou?
começa a rir.
— Mãe, pelo amor de Deus!
— Pegou! Ah, eu sabia. Pegou o dia inteiro?
rola os olhos, subindo as escadas e deixando a mãe falando sozinha.
— Não vamos mais discutir isso, mãe. — berra, antes de fechar a porta do quarto.
— Meu vestido! — a mãe berra de volta. — Você precisa me ajudar a escolher meu vestido!
— Em cinco minutos!
se dirige ao banheiro.
Seu rosto está cheio de pontinhos vermelhos desconhecidos. Parece outro rosto.
Ainda está eufórica. Seu coração ainda bate fora do ritmo, descompassado, acelerado.
Ela só consegue pensar em ravioli. Sorvete de pistache e de baunilha. E em .
lava o rosto com a água gelada da torneira, depois esfrega com força na toalha antes de ir até o closet da mãe ajudá-la a escolher um vestido para uma festa de sei-lá-o-quê.
— Não acredito que você está sequer pensando. — diz, assim que repara em um vestido verde ainda no saco do ateliê. — Mãe, olha só para isso!
— Não quero chamar tanta atenção assim.
— Ah, você quer, sim. É perfeito! É tão... Victoria Grayson.
— Ela morre no final.
— Você entendeu! É poderoso. E lindo. E ainda não foi usado. E, muito provavelmente, ninguém tem outro igual.
A mãe de olha para o vestido novamente, parecendo considerar.
Enquanto isso, a filha escolhe um par de sandálias douradas novinhas.
— Aqui está. E o trio de braceletes daquela joalheira artesanal... com os brincos da mesma coleção. Sem colar, claro. A gola do vestido é linda demais para distrações.
— Você é minha pequena Stella McCartney.
faz uma reverência engraçada.
— A seus serviços, mademoiselle. — ela recebe um abraço breve da mãe em agradecimento, e volta para seu quarto.
Ravioli. Pistache. Baunilha. . Ravioli. Pistache. Baunilha. .
As coisas acontecem rápido demais.
Poucos segundos depois de sua mãe sair pela porta, a campainha tocou.
desceu para atender.
Abriu a porta sem pensar duas vezes.
No instante seguinte, estava nos braços de , os lábios selados aos dele, as pernas tropeçando enquanto andava de costas.
Eles se separaram por alguns microssegundos, apenas o suficiente para que ela apontasse a direção.
Quando chegaram, bateram a porta atrás de si, e bateu o cotovelo na penteadeira, mas não doeu o suficiente para separá-los de novo.
Enquanto avançavam pelo quarto, peças de roupa ficavam pelo chão.
III
13 meses atrás
Caught in the eye of a hurricane
Slowly waving goodbye like a pageant parade
So sick of this town pulling me down
Ele rola para fora da cama com um livro amassado que compraram em um sebo três dias atrás. O apanhador no campo de centeio.
simplesmente não consegue acreditar que ele passou por todo o ensino médio sem ler aquele livro, então o está obrigando a ler. Mesmo que ele leia um parágrafo e, no seguinte, esteja grudando suas bocas de novo.
Ela não pode dizer que se incomoda. Porque não se incomoda.
Na verdade, nunca esteve tão feliz.
— Podemos ler outro livro? — sugere, fazendo uma careta. — Um mais animado? Menos velho? Talvez ilustrado?
rola os olhos.
— Você não leu nem metade! — exclama.
— E não estou gostando, mesmo. Tem um monte de outras leituras que prefiro fazer.
semicerra os olhos para ele.
— Você não vale absolutamente nada. — diz.
se levanta para empurrá-la de brincadeira, mas acerta imediatamente a mesinha de cabeceira com seu nariz.
— Puta merda! — exclama, vendo o fio de sangue que começa a aumentar, escorrendo de seu nariz. — Espere aí! Vou buscar um algodão!
sai correndo para o banheiro, mas os algodões no pote de vidro na bancada acabaram, e ela precisa abrir o armário para procurar por mais.
Toalhas de rosto, pacotes de absorvente, potes de creme... pacotes de absorvente. Ela olha para eles por um pouco mais de tempo. Depois, volta a procurar pelos algodões.
***
Depois que vai embora, com um bolo de algodão enfiado no nariz, mesmo depois de ter parado de sangrar, volta imediatamente para o banheiro.
Abre as portas do armário de novo. Tira as toalhas de rosto da frente. E os pacotes de absorvente. Três pacotes. Comprados no Walmart... quase três meses antes.
precisa respirar fundo algumas vezes antes de abrir o último setor de seu planner.
Nove semanas. A última vez que menstruou foi há nove semanas.
Ela simplesmente não sabe o que fazer.
Sua mãe grita alguma coisa da cozinha. Sanduíche de salmão. Meu Deus do céu., ela pensa. Faz três dias que está enjoada. Tudo a enjoa. Mas não pode ser. Simplesmente não pode.
O coração está acelerado e, antes de sair correndo escada abaixo, ela sente o gosto horrível de vômito lhe subindo a garganta. Volta correndo e só tem tempo de abaixar a cabeça em direção à privada. Dá descarga rapidamente e, sem conseguir se preocupar sequer em escovar os dentes, finalmente desce as escadas outra vez, e ignora a mãe enquanto bate a porta atrás de si e entra no carro.
A farmácia mais próxima fica a uns três quilômetros, mas parece uma eternidade até que ela consiga chegar.
Estaciona o carro de qualquer jeito e entra na farmácia, ignorando completamente a senhora que distribui panfletos logo em frente.
Não sabe onde ficam. Não tem ideia de onde encontrá-los. Nunca precisou de um antes.
É bobagem. É bobagem., repete para si mesma. É um engano. Só pode ser um engano.
Finalmente ela os avista. As caixinhas assombrosas, todas nas mesmas paletas de cores — branco, azul, rosa —, enfileiradas, das mais diversas marcas.
escolhe o mais caro. Vai direto para o caixa, tira o dinheiro do bolso, entrega tudo para a balconista, que está sorrindo.
Pelo menos alguém sabe como se sente.
***
Não são duas listrinhas. É a porra de um teste digital. Ler a palavra é ainda pior do que ver os risquinhos vermelhos. Grávida. E aquela merda ainda estima de quantas semanas.
fecha os olhos. Reabre os olhos. Fecha os olhos de novo.
A palavra continua lá.
Grávida. está grávida.
E não engravidou sozinha. Então ela precisa contar para a outra pessoa envolvida. Precisa contar para .
Ela grita alguma coisa de volta para a mãe quando ela parece estressada demais com as saídas repentinas sem explicação.
Parece que o “grávida” não foi chocante o suficiente para um único dia.
Quando ela chega à casa de , ele está apoiado no capô do carro, parecendo um pouco confuso, desnorteado. Quase como se tivesse um teste de gravidez positivo na bolsa.
Mas não é isso. É Charlotte-Kate. Com as duas mãos apoiadas nos ombros dele, os braços esticados, a cabeça tombando em sua direção.
não quer esperar para ver o resto da cena. Não precisa ver o resto da cena.
No instante em que vai acelerar, troca os pedais, e o carro morre.
Ela tem a impressão de que e Charlotte-Kate a veem, mas não tem certeza, e não quer ter certeza.
Só quer ir embora.
***
não consegue falar com a mãe assim que chega em casa. Não consegue fazer com que nenhuma palavra real saia de sua boca. Mas, como se comandada por uma força maior que si própria, ela sabe exatamente o que vai fazer.
Tira a mala do armário e, em segundos, já está enfiando roupas dobradas ali dentro. Quando a mala enche, pega mais uma. E uma mochila.
Depois, olha para a bagagem amontoada em cima da cama e, sem pensar duas vezes, abre a porta do quarto, arrastando tudo consigo.
— , o que está acontecendo? — sua mãe pergunta, os olhos arregalados, o rosto franzido em extrema confusão.
— Preciso ir embora, mãe. Inventa qualquer coisa. Eu preciso ir embora.
Boquiaberta, a mãe de continua a encará-la.
— O que...? — ela nem sabe o que perguntar. — , por favor... o que está acontecendo? Foi o ?
suspira uma vez. Duas. Várias.
— Estou grávida, mãe. O não pode saber.
Por mais inacreditável que seja, sua mãe não diz nada. Não começa a gritar. Só continua em choque, mas, agora, mais inexpressiva.
— Preciso ir.
A mãe assente.
— Você sabe o que vai fazer com...? Com a situação toda?
balança a cabeça. Não. Não sabe. Não ainda. Mas precisa ir. Não pode ficar. Não pode deixar que saiba. Que Charlotte-Kate saiba também. Que todos saibam.
Ela hesita um instante, mas dá um abraço rápido na mãe antes de sair correndo pela porta, entrar no carro e dirigir sem destino até o nível do combustível estar baixo demais. Só então ela para, abastece o carro, olha o celular e, ignorando as ligações e mensagens de , decide para onde ir.
Vai para Baton Rouge. Sem motivo específico, mas simplesmente porque não consegue pensar em ninguém que conhece que viva lá.
Tem cem dólares na carteira, mas sabe que não terá problemas em usar os cartões da família. Sabe que pode confiar na mãe. Ela é uma boa mentirosa e certamente inventará uma ótima história para o pai de e para todas as outras pessoas. Até para .
Porque ele irá procurá-la em casa, com certeza. Se já não tiver ido.
precisa encostar o rosto ao volante por um tempo, de olhos fechados, obrigando sua mente a tirar do caminho.
Ela não pode pensar nele. Não agora.
Porque está esperando um filho dele.
E porque não quer ter esse filho.
Então, por uma questão de tempo, ela precisa agir logo.
Caught in the eye of a hurricane
Slowly waving goodbye like a pageant parade
So sick of this town pulling me down
Ele rola para fora da cama com um livro amassado que compraram em um sebo três dias atrás. O apanhador no campo de centeio.
simplesmente não consegue acreditar que ele passou por todo o ensino médio sem ler aquele livro, então o está obrigando a ler. Mesmo que ele leia um parágrafo e, no seguinte, esteja grudando suas bocas de novo.
Ela não pode dizer que se incomoda. Porque não se incomoda.
Na verdade, nunca esteve tão feliz.
— Podemos ler outro livro? — sugere, fazendo uma careta. — Um mais animado? Menos velho? Talvez ilustrado?
rola os olhos.
— Você não leu nem metade! — exclama.
— E não estou gostando, mesmo. Tem um monte de outras leituras que prefiro fazer.
semicerra os olhos para ele.
— Você não vale absolutamente nada. — diz.
se levanta para empurrá-la de brincadeira, mas acerta imediatamente a mesinha de cabeceira com seu nariz.
— Puta merda! — exclama, vendo o fio de sangue que começa a aumentar, escorrendo de seu nariz. — Espere aí! Vou buscar um algodão!
sai correndo para o banheiro, mas os algodões no pote de vidro na bancada acabaram, e ela precisa abrir o armário para procurar por mais.
Toalhas de rosto, pacotes de absorvente, potes de creme... pacotes de absorvente. Ela olha para eles por um pouco mais de tempo. Depois, volta a procurar pelos algodões.
Abre as portas do armário de novo. Tira as toalhas de rosto da frente. E os pacotes de absorvente. Três pacotes. Comprados no Walmart... quase três meses antes.
precisa respirar fundo algumas vezes antes de abrir o último setor de seu planner.
Nove semanas. A última vez que menstruou foi há nove semanas.
Ela simplesmente não sabe o que fazer.
Sua mãe grita alguma coisa da cozinha. Sanduíche de salmão. Meu Deus do céu., ela pensa. Faz três dias que está enjoada. Tudo a enjoa. Mas não pode ser. Simplesmente não pode.
O coração está acelerado e, antes de sair correndo escada abaixo, ela sente o gosto horrível de vômito lhe subindo a garganta. Volta correndo e só tem tempo de abaixar a cabeça em direção à privada. Dá descarga rapidamente e, sem conseguir se preocupar sequer em escovar os dentes, finalmente desce as escadas outra vez, e ignora a mãe enquanto bate a porta atrás de si e entra no carro.
A farmácia mais próxima fica a uns três quilômetros, mas parece uma eternidade até que ela consiga chegar.
Estaciona o carro de qualquer jeito e entra na farmácia, ignorando completamente a senhora que distribui panfletos logo em frente.
Não sabe onde ficam. Não tem ideia de onde encontrá-los. Nunca precisou de um antes.
É bobagem. É bobagem., repete para si mesma. É um engano. Só pode ser um engano.
Finalmente ela os avista. As caixinhas assombrosas, todas nas mesmas paletas de cores — branco, azul, rosa —, enfileiradas, das mais diversas marcas.
escolhe o mais caro. Vai direto para o caixa, tira o dinheiro do bolso, entrega tudo para a balconista, que está sorrindo.
Pelo menos alguém sabe como se sente.
fecha os olhos. Reabre os olhos. Fecha os olhos de novo.
A palavra continua lá.
Grávida. está grávida.
E não engravidou sozinha. Então ela precisa contar para a outra pessoa envolvida. Precisa contar para .
Ela grita alguma coisa de volta para a mãe quando ela parece estressada demais com as saídas repentinas sem explicação.
Parece que o “grávida” não foi chocante o suficiente para um único dia.
Quando ela chega à casa de , ele está apoiado no capô do carro, parecendo um pouco confuso, desnorteado. Quase como se tivesse um teste de gravidez positivo na bolsa.
Mas não é isso. É Charlotte-Kate. Com as duas mãos apoiadas nos ombros dele, os braços esticados, a cabeça tombando em sua direção.
não quer esperar para ver o resto da cena. Não precisa ver o resto da cena.
No instante em que vai acelerar, troca os pedais, e o carro morre.
Ela tem a impressão de que e Charlotte-Kate a veem, mas não tem certeza, e não quer ter certeza.
Só quer ir embora.
Tira a mala do armário e, em segundos, já está enfiando roupas dobradas ali dentro. Quando a mala enche, pega mais uma. E uma mochila.
Depois, olha para a bagagem amontoada em cima da cama e, sem pensar duas vezes, abre a porta do quarto, arrastando tudo consigo.
— , o que está acontecendo? — sua mãe pergunta, os olhos arregalados, o rosto franzido em extrema confusão.
— Preciso ir embora, mãe. Inventa qualquer coisa. Eu preciso ir embora.
Boquiaberta, a mãe de continua a encará-la.
— O que...? — ela nem sabe o que perguntar. — , por favor... o que está acontecendo? Foi o ?
suspira uma vez. Duas. Várias.
— Estou grávida, mãe. O não pode saber.
Por mais inacreditável que seja, sua mãe não diz nada. Não começa a gritar. Só continua em choque, mas, agora, mais inexpressiva.
— Preciso ir.
A mãe assente.
— Você sabe o que vai fazer com...? Com a situação toda?
balança a cabeça. Não. Não sabe. Não ainda. Mas precisa ir. Não pode ficar. Não pode deixar que saiba. Que Charlotte-Kate saiba também. Que todos saibam.
Ela hesita um instante, mas dá um abraço rápido na mãe antes de sair correndo pela porta, entrar no carro e dirigir sem destino até o nível do combustível estar baixo demais. Só então ela para, abastece o carro, olha o celular e, ignorando as ligações e mensagens de , decide para onde ir.
Vai para Baton Rouge. Sem motivo específico, mas simplesmente porque não consegue pensar em ninguém que conhece que viva lá.
Tem cem dólares na carteira, mas sabe que não terá problemas em usar os cartões da família. Sabe que pode confiar na mãe. Ela é uma boa mentirosa e certamente inventará uma ótima história para o pai de e para todas as outras pessoas. Até para .
Porque ele irá procurá-la em casa, com certeza. Se já não tiver ido.
precisa encostar o rosto ao volante por um tempo, de olhos fechados, obrigando sua mente a tirar do caminho.
Ela não pode pensar nele. Não agora.
Porque está esperando um filho dele.
E porque não quer ter esse filho.
Então, por uma questão de tempo, ela precisa agir logo.
IV
10 meses atrás
My mother says I should come back home
But I can’t find the way ‘cause the way’s gone
So if I pray am I just sending words into outer space
Ela mal consegue ver a barriga. Exceto quando se olha no espelho de lado.
Três meses se passaram e, o tempo todo, ela só consegue pensar no exato momento em que se instalara em um apartamento minúsculo a duas quadras de uma clínica de aborto e, quase instantaneamente, decidira não fazer o procedimento.
Tinha um panfleto em mãos. Opções. Medicamentos? Aspiração intrauterina? Ela podia escolher.
E escolhera.
Não ia fazer um aborto.
Ela podia. Mas não queria.
E, assim, seguira adiante, consultando-se com um obstetra que atendia a dez quilômetros do apartamentinho.
A barriga crescera um pouco.
Mas os pés haviam adquirido um inchaço considerável. E ficavam ainda maiores ao final de cada dia.
Vivendo sozinha no pequeno apartamento, experimenta todas as oscilações possíveis de humor. Às vezes, tem vontade de chorar quando olha pela janela e vê alguém passeando com um cachorro. Em outros momentos, tem vontade de gritar de ódio. Ódio por toda e qualquer coisa. Por estar sozinha. Por estar grávida. Por estar sozinha e grávida.
Às vezes, grita com o bebê. Conversa com ele, mas sabe que não é seu.
A mãe daquele bebê está esperando por ele a meia hora de viagem de carro. Às vezes, ela visita . Leva coisas para comer. Acaricia a barriga e conversa com ela.
São os momentos estranhos. E tem todas as emoções bizarras a cada vez que isso acontece. Vontade de chorar. De gritar. De empurrar aquela mulher e sair correndo, arrancar a barriga do corpo e voltar para sua vida normal, sua vida de antes. Sua vida antes de .
Mas essas coisas acontecem cada vez com menos frequência.
Consegue sentir carinho pelo bebê. Mesmo sabendo que não é seu filho. Nem de .
A mãe desse bebê se chama Mary. E vai recebê-lo nos braços assim que der à luz.
escolhera assim. E sabe que é a melhor escolha, o melhor caminho. E é o que está dizendo para o bebê em sua barriga.
Ela não sabe se é um menino ou uma menina. Isso fora escolha de Mary. Descobririam quando nascesse.
Agora, tudo que sabe, é que deixou de ligar. Liz também. As únicas pessoas que ainda ligam são sua mãe — que sabe de tudo — e seu pai, que não sabe de nada.
Todas as outras pessoas pensam que ela ganhou uma bolsa sobre a qual tinha se esquecido. Pensam que está fazendo um curso. E ela está fazendo vários. Virtuais. Para passar o tempo enquanto o bebê não nasce.
Com um deles, descobrira que não queria continuar com a arquitetura. Tinha se apaixonado pela psicologia e, mesmo sabendo que não seria nem um pouco fácil, decidira-se por começar a faculdade — em outro lugar — assim que o bebê nascesse.
ouve a campainha tocar. Com toda certeza do mundo, é Mary. Talvez com Jeff, seu marido, o pai do bebê.
— , querida! — Mary é sempre muito eloquente. E adora abraçar. — Como a barriga cresceu! — a primeira coisa que ela faz é acariciar a minúscula barriga de .
Jeff está com ela. Ele não acaricia a barriga. Mas fala com o bebê. Os dois o fazem como se não estivesse lá.
— O seu quartinho já está pronto! Só falta você para tudo estar completo. — Mary diz, os dedos pousados em um ponto sobre o umbigo de , onde o bebê está chutando. — Fizemos tudo como o céu... você vai se sentir no céu quando chegar! Seu pai fez nuvens lindas e pendurou acima do seu berço. Não é, Jeff?
Jeff assente, como se o bebê pudesse ver.
— É verdade. E não foi nem um pouco fácil, sabia? Então é bom que você aceite essa decoração até os... dezoito anos. Pelo menos.
Mary e Jeff soltam gargalhadas.
sente os olhos pesarem. Não pode chorar. Não na frente daquelas pessoas.
Os pais do bebê que está em sua barriga.
***
À noite, a mãe de liga. Está chorando, mas falando baixinho, então sabe que ela está ligando escondido.
— Você devia voltar. — ela diz. — Nós daríamos um jeito. Poderíamos ir embora... embora daqui. Tenho certeza de que seu pai entenderia.
— Mãe. — pronuncia, calmamente. — Os pais do bebê estão esperando por ele.
— Você... — ela fica em silêncio por um tempo, pensando. — O não está com ninguém. Ele parou de vir até aqui, é claro. Mas eu sei que ele ainda pensa em você.
solta um risinho nervoso.
— Mãe, isso já não tem mais nada a ver. Não tem mais nada a ver com o .
— Não tinha nada a ver com o quando você não ia ter o bebê. Agora tem. O bebê vai nascer. E é o bebê dele!
— Não, não é. Isso não está aberto a discussões, mãe. Se você não consegue aceitar isso, é melhor ficar de fora.
Mais silêncio.
— Tudo bem. Eu entendi, .
— Que bom.
— Você está... você está bem? Está tudo bem?
— Está sim. Agora falta pouco, mãe. Falta pouco.
But I can’t find the way ‘cause the way’s gone
So if I pray am I just sending words into outer space
Ela mal consegue ver a barriga. Exceto quando se olha no espelho de lado.
Três meses se passaram e, o tempo todo, ela só consegue pensar no exato momento em que se instalara em um apartamento minúsculo a duas quadras de uma clínica de aborto e, quase instantaneamente, decidira não fazer o procedimento.
Tinha um panfleto em mãos. Opções. Medicamentos? Aspiração intrauterina? Ela podia escolher.
E escolhera.
Não ia fazer um aborto.
Ela podia. Mas não queria.
E, assim, seguira adiante, consultando-se com um obstetra que atendia a dez quilômetros do apartamentinho.
A barriga crescera um pouco.
Mas os pés haviam adquirido um inchaço considerável. E ficavam ainda maiores ao final de cada dia.
Vivendo sozinha no pequeno apartamento, experimenta todas as oscilações possíveis de humor. Às vezes, tem vontade de chorar quando olha pela janela e vê alguém passeando com um cachorro. Em outros momentos, tem vontade de gritar de ódio. Ódio por toda e qualquer coisa. Por estar sozinha. Por estar grávida. Por estar sozinha e grávida.
Às vezes, grita com o bebê. Conversa com ele, mas sabe que não é seu.
A mãe daquele bebê está esperando por ele a meia hora de viagem de carro. Às vezes, ela visita . Leva coisas para comer. Acaricia a barriga e conversa com ela.
São os momentos estranhos. E tem todas as emoções bizarras a cada vez que isso acontece. Vontade de chorar. De gritar. De empurrar aquela mulher e sair correndo, arrancar a barriga do corpo e voltar para sua vida normal, sua vida de antes. Sua vida antes de .
Mas essas coisas acontecem cada vez com menos frequência.
Consegue sentir carinho pelo bebê. Mesmo sabendo que não é seu filho. Nem de .
A mãe desse bebê se chama Mary. E vai recebê-lo nos braços assim que der à luz.
escolhera assim. E sabe que é a melhor escolha, o melhor caminho. E é o que está dizendo para o bebê em sua barriga.
Ela não sabe se é um menino ou uma menina. Isso fora escolha de Mary. Descobririam quando nascesse.
Agora, tudo que sabe, é que deixou de ligar. Liz também. As únicas pessoas que ainda ligam são sua mãe — que sabe de tudo — e seu pai, que não sabe de nada.
Todas as outras pessoas pensam que ela ganhou uma bolsa sobre a qual tinha se esquecido. Pensam que está fazendo um curso. E ela está fazendo vários. Virtuais. Para passar o tempo enquanto o bebê não nasce.
Com um deles, descobrira que não queria continuar com a arquitetura. Tinha se apaixonado pela psicologia e, mesmo sabendo que não seria nem um pouco fácil, decidira-se por começar a faculdade — em outro lugar — assim que o bebê nascesse.
ouve a campainha tocar. Com toda certeza do mundo, é Mary. Talvez com Jeff, seu marido, o pai do bebê.
— , querida! — Mary é sempre muito eloquente. E adora abraçar. — Como a barriga cresceu! — a primeira coisa que ela faz é acariciar a minúscula barriga de .
Jeff está com ela. Ele não acaricia a barriga. Mas fala com o bebê. Os dois o fazem como se não estivesse lá.
— O seu quartinho já está pronto! Só falta você para tudo estar completo. — Mary diz, os dedos pousados em um ponto sobre o umbigo de , onde o bebê está chutando. — Fizemos tudo como o céu... você vai se sentir no céu quando chegar! Seu pai fez nuvens lindas e pendurou acima do seu berço. Não é, Jeff?
Jeff assente, como se o bebê pudesse ver.
— É verdade. E não foi nem um pouco fácil, sabia? Então é bom que você aceite essa decoração até os... dezoito anos. Pelo menos.
Mary e Jeff soltam gargalhadas.
sente os olhos pesarem. Não pode chorar. Não na frente daquelas pessoas.
Os pais do bebê que está em sua barriga.
— Você devia voltar. — ela diz. — Nós daríamos um jeito. Poderíamos ir embora... embora daqui. Tenho certeza de que seu pai entenderia.
— Mãe. — pronuncia, calmamente. — Os pais do bebê estão esperando por ele.
— Você... — ela fica em silêncio por um tempo, pensando. — O não está com ninguém. Ele parou de vir até aqui, é claro. Mas eu sei que ele ainda pensa em você.
solta um risinho nervoso.
— Mãe, isso já não tem mais nada a ver. Não tem mais nada a ver com o .
— Não tinha nada a ver com o quando você não ia ter o bebê. Agora tem. O bebê vai nascer. E é o bebê dele!
— Não, não é. Isso não está aberto a discussões, mãe. Se você não consegue aceitar isso, é melhor ficar de fora.
Mais silêncio.
— Tudo bem. Eu entendi, .
— Que bom.
— Você está... você está bem? Está tudo bem?
— Está sim. Agora falta pouco, mãe. Falta pouco.
V
6 meses atrás
Have you ever been so lost?
Known the way and still so lost?
Another night waiting for someone
To take me home
Have you ever been so lost?
Dói. Tipo, dói para cacete.
É tudo que consegue pensar.
Está há seis horas sentindo as contrações intensas.
O bebê está quase nascendo. É o que o médico diz o tempo inteiro há, pelo menos, dez horas. Pouco depois da saída do tampão.
O bebê está quase nascendo, mas parece que nunca vai nascer.
Mary está segurando a mão de . Jeff não está na sala. Seria um pouco vergonhoso.
Porque ela está pelada, de cócoras, fazendo força contra a cama. É a única posição em que consegue ficar, mesmo com as pernas e a coluna doendo impiedosamente.
Tentara ficar deitada, sentada, em pé, de todas as maneiras. Mas a dor era insuportável.
— Está quase lá, , você está indo muito bem. — o médico diz, olhando outra vez no rosto dela. Mentiroso do cacete., ela pensa. Mentiroso do cacete. Mentiroso do cacete. Mentiroso do cacete. Mentiroso do... então ela sente a dor.
Não é a mesma dor de antes.
Algo está queimando. Bem no meio de suas pernas.
De repente, ela tem certeza de que o bebê morreu. É isso. É por isso que está doendo tanto. E por isso que Mary está chorando tanto.
Continua queimando por mais alguns instantes, até que ela sente um alívio estranho, como se tivesse acabado de passar por um desentupidor.
O choro do bebê é estridente. E prova que ele não morreu com o fogo. O fogo era ele nascendo.
Ele. É um menino. Matthew. Foi esse o nome que os pais dele escolheram. O nome de seu avô. O pai de Mary.
consegue vê-lo.
Consegue ver tudo.
Ele tem o nariz e os lábios dela, mas os olhos... os olhos são os olhos de .
E ela começa a chorar.
É Mary quem corta o cordão e o segura perto do peito. Balançando, acalentando, como uma mãe.
Matthew continua chorando. E também.
— Você quer segurá-lo? — Mary pergunta, sorrindo para ela.
Não. Não. Não quer.
Mas, antes que responda, Mary já colocou o filho nos braços dela.
E o bebê para de chorar.
***
só quer ir embora. Só isso.
Mas, além de permanecer de repouso por pelo menos doze horas, ainda tem que assinar uma porção de papéis antes de poder ir.
Tem que deixar por escrito, em várias e várias vias, muito claro que está abrindo mão de Matthew. Tem que deixar claro que está abrindo mão de quaisquer direitos sobre seu filho.
Ela fica sozinha no quarto durante as horas seguintes ao parto.
Matthew está no berçário, e seus pais devem estar com ele. O médico explicara, em algum momento que não consegue exatamente se lembrar, de que o contato físico entre a mãe e o bebê nas primeiras horas de vida seriam essenciais. O bebê precisa do contato com a mãe.
E a mãe dele é Mary.
Sabendo de tudo isso, e sentindo-se cansada demais, tenta dormir.
No entanto, ela não consegue sequer fechar os olhos.
Ela espera algumas horas. Se mantém na mesma posição, encolhida na cama, por horas.
Depois, se levanta, tira a camisola do hospital, veste as roupas confortáveis que levou para lá em sua mochila, e sai do quarto.
O berçário está a pouco mais de vinte passos dali. E ela os percorre olhando para todos os lados, como uma criminosa.
Mary e Jeff não estão lá.
Mas Matthew está.
O nome dele é Matthew Franklin King.
Mas ele não tem cara de Matthew. Tem cara de Jimmy.
olha para ele direito. Por um segundo longo demais. Até ouvir as vozes de Mary e Jeff no corredor.
Jimmy., ela pensa, correndo de volta para seu quarto e voltando para a posição em que estava antes.
Deitada, encolhida e com as mãos sobre a barriga, pensa em como tudo mudou.
Tudo. Até seu corpo. A flacidez abdominal e a pequena protuberância em formato de concha que ela sustenta agora não vão durar para sempre. Mas ela sabe que tudo mudou.
Known the way and still so lost?
Another night waiting for someone
To take me home
Have you ever been so lost?
Dói. Tipo, dói para cacete.
É tudo que consegue pensar.
Está há seis horas sentindo as contrações intensas.
O bebê está quase nascendo. É o que o médico diz o tempo inteiro há, pelo menos, dez horas. Pouco depois da saída do tampão.
O bebê está quase nascendo, mas parece que nunca vai nascer.
Mary está segurando a mão de . Jeff não está na sala. Seria um pouco vergonhoso.
Porque ela está pelada, de cócoras, fazendo força contra a cama. É a única posição em que consegue ficar, mesmo com as pernas e a coluna doendo impiedosamente.
Tentara ficar deitada, sentada, em pé, de todas as maneiras. Mas a dor era insuportável.
— Está quase lá, , você está indo muito bem. — o médico diz, olhando outra vez no rosto dela. Mentiroso do cacete., ela pensa. Mentiroso do cacete. Mentiroso do cacete. Mentiroso do cacete. Mentiroso do... então ela sente a dor.
Não é a mesma dor de antes.
Algo está queimando. Bem no meio de suas pernas.
De repente, ela tem certeza de que o bebê morreu. É isso. É por isso que está doendo tanto. E por isso que Mary está chorando tanto.
Continua queimando por mais alguns instantes, até que ela sente um alívio estranho, como se tivesse acabado de passar por um desentupidor.
O choro do bebê é estridente. E prova que ele não morreu com o fogo. O fogo era ele nascendo.
Ele. É um menino. Matthew. Foi esse o nome que os pais dele escolheram. O nome de seu avô. O pai de Mary.
consegue vê-lo.
Consegue ver tudo.
Ele tem o nariz e os lábios dela, mas os olhos... os olhos são os olhos de .
E ela começa a chorar.
É Mary quem corta o cordão e o segura perto do peito. Balançando, acalentando, como uma mãe.
Matthew continua chorando. E também.
— Você quer segurá-lo? — Mary pergunta, sorrindo para ela.
Não. Não. Não quer.
Mas, antes que responda, Mary já colocou o filho nos braços dela.
E o bebê para de chorar.
Mas, além de permanecer de repouso por pelo menos doze horas, ainda tem que assinar uma porção de papéis antes de poder ir.
Tem que deixar por escrito, em várias e várias vias, muito claro que está abrindo mão de Matthew. Tem que deixar claro que está abrindo mão de quaisquer direitos sobre seu filho.
Ela fica sozinha no quarto durante as horas seguintes ao parto.
Matthew está no berçário, e seus pais devem estar com ele. O médico explicara, em algum momento que não consegue exatamente se lembrar, de que o contato físico entre a mãe e o bebê nas primeiras horas de vida seriam essenciais. O bebê precisa do contato com a mãe.
E a mãe dele é Mary.
Sabendo de tudo isso, e sentindo-se cansada demais, tenta dormir.
No entanto, ela não consegue sequer fechar os olhos.
Ela espera algumas horas. Se mantém na mesma posição, encolhida na cama, por horas.
Depois, se levanta, tira a camisola do hospital, veste as roupas confortáveis que levou para lá em sua mochila, e sai do quarto.
O berçário está a pouco mais de vinte passos dali. E ela os percorre olhando para todos os lados, como uma criminosa.
Mary e Jeff não estão lá.
Mas Matthew está.
O nome dele é Matthew Franklin King.
Mas ele não tem cara de Matthew. Tem cara de Jimmy.
olha para ele direito. Por um segundo longo demais. Até ouvir as vozes de Mary e Jeff no corredor.
Jimmy., ela pensa, correndo de volta para seu quarto e voltando para a posição em que estava antes.
Deitada, encolhida e com as mãos sobre a barriga, pensa em como tudo mudou.
Tudo. Até seu corpo. A flacidez abdominal e a pequena protuberância em formato de concha que ela sustenta agora não vão durar para sempre. Mas ela sabe que tudo mudou.
VI
Hoje
Is there a light, is there a light?
At the end of the road
I’m pushing everyone away
‘Cause I can’t feel this anymore
Can’t feel this anymore
Ela sai do banheiro de volta para a festa. A música alta é ensurdecedora, e sua cabeça já está doendo demais para sequer decifrar que música está tocando.
As pessoas falam com ela pelo corredor. Ela responde. Não tem ideia do que estão falando. Muito menos do que ela está respondendo.
Mas estão todos tão animados por ela estar de volta, mesmo que apenas para as férias, que não conseguem disfarçar e ficar longe dela.
achava que ninguém se lembraria mais dela. Não seria mais importante.
Tinha ido embora há muito tempo e, antes disso, abandonara a elite ao terminar com Charlie.
Mas todo mundo se lembra.
É uma festa qualquer, e tem um monte de gente que ela nunca viu na vida, mas também as mesmas pessoas de sempre.
Ela vira Charlie um pouco depois de começar a ficar bêbada de verdade.
Ele falara com ela. Sorrira, perguntara onde ela estivera.
Charlie tinha dado um abraço nela. Dito que sentira falta dela. Mas é claro que ele tinha outra namorada linda a tiracolo, que fora igualmente simpática, mesmo sem conhecê-la.
também fora simpática. Porque já estava bêbada. Caso contrário, teria sido uma vaca.
Como estava sendo o tempo todo nos últimos meses.
Pensando na namorada perfeita de Charlie, pega uma garrafa de vodca que encontra em cima da mesa e enche um copinho vermelho até a boca antes de enfiar um monte de balas de gelatina e transbordar o álcool para fora do copo.
Ela está limpando a meleca que fez com um guardanapo quando ouve alguém a chamando.
Porra., ela pensa. Quem ainda falta?
se vira, pronta para fingir simpatia outra vez, quando seu sorriso desmonta e o copo de vodca com balinhas despenca de sua mão.
.
Faltava .
— Como... o que... — não diz nada com nada e Liz, ao lado dele, parece tão surpresa e atônita quanto.
respira fundo e tenta manter a compostura — e a aparência de calma — enquanto se vira para sair e ir embora, mas encosta sua mão no pulso dela.
Merda. Ele não devia tocá-la. Ele não pode tocá-la.
— Me deixa ir, . — sai quase como um murmúrio. Ela fecha os olhos. Não quer olhar para ele. Não pode olhar para ele.
— Ir? De novo? Para onde? — a voz dele é cheia de indignação. E pesar.
pode jurar que os olhos de estão marejados. E vermelhos. E são tão intensos que ela mesma não tem certeza de que vai conseguir segurar o choro.
— , a gente precisa conv...
— Não precisamos, não. — ela diz, tentando ser firme. — Nós não temos nada para conversar, .
— O quê? Como não? — ele olha para ela com indignação, mas já está a caminho da porta. — Você foi embora, sumiu, quando estávamos juntos, sem...
— Quando “estávamos juntos”? Por isso eu vi você beijando a Charlotte-qualquer coisa? Porque “estávamos juntos”?
agora a encara boquiaberto.
— Você não tem ideia do que aconteceu aquele dia... você não...
— E nem quero ter. — responde, cortando-o novamente.
O olhar chocado e decepcionado de Liz é mais uma coisa que deixa de coração partido, então ela evita encará-la enquanto passa pelos irmãos em direção ao jardim da frente da casa.
Precisa ir embora. Precisa sair dali.
Mas não está em condições. A cabeça e o estômago estão girando, confusos e doloridos. O coração bate mais forte no peito, quase como se estivesse infartando.
Não pode arriscar pegar o carro daquele jeito.
Assim, parecendo uma criança perdida, se senta sob os longos galhos de uma árvore no quintal do vizinho.
E lá fica, encolhida, abraçada aos próprios joelhos, a cabeça escondida, os olhos fechados, tentando afastar todos os pensamentos, sentimentos e lembranças que ela, definitivamente, não quer por perto outra vez.
Mas ela está bêbada, e é claro que seu cérebro não a obedece. Se as coisas saíssem como o planejado por ela, nada disso estaria acontecendo.
“Ele se levantou, cruzando a pequena distância entre os dois, e esticou a mão para ela.
— . Pode me chamar de .
— . .
— É um prazer te conhecer. Só que seu timing falhou um pouquinho. Você poderia ter se pronunciado enquanto o Ezra estava aqui. Ele nunca me ouve. Mas sempre ouve uma garota bonita.”
“— Bem... eu acho que aquele é seu namorado...? — perguntara, parecendo verdadeiramente constrangido e mais chocado do que ela.
assentiu.
— Coca? — ele perguntara, esticando a latinha para ela.
recusara.
— Na verdade... será que você me arruma alguma coisa bem mais forte?”
Ela aperta as têmporas com força. Não pode se deixar levar pela enxurrada de memórias, pelo turbilhão emotivo de sua história com .
Não pode sequer pensar que tem uma história com .
“— Como está sua cabeça? — começara a rir.
— Está me matando, .
— Tá a fim de um analgésico?
— Eu mataria por um.
— Bom... se você prometer que eu não serei a vítima, é só descer.
arqueara uma sobrancelha, em sinal de confusão.
— O quê?
— Tô no seu jardim.
Ela se levantara para olhar pela janela.
Parado no meio do gramado, com o celular recostado à orelha, acenava para ela.”
Seus olhos ardiam com a cachoeira infinita de lágrimas que pareciam correr completamente alheias à sua vontade.
Não, não e não. Essas coisas precisam ficar guardadas, escondidas como as lembranças com as quais não quer se reencontrar.
Tudo isso precisa ficar guardado. Tudo isso precisa desaparecer.
“— Eu preciso ir. — dissera. — Minha mãe está me chamando para uma emergência fashion, e não posso faltar.
rira. Sua gargalhada incomparável.
À porta, eles se encararam, olho no olho, por alguns instantes. Pequenas faíscas dançando entre eles, entre seus olhares.
Até seus lábios se unirem, e as faíscas crescerem até preenchê-los por completo.”
ouve passos no gramado perto de onde está.
Não precisa levantar a cabeça, não precisa olhar para lá.
Ela simplesmente sabe.
É . De novo.
Ele está lá. Olhando para ela. Vendo-a chorar.
não se move.
também não.
***
— Você devia pensar em ficar mais um pouco. — sua mãe diz, colocando uma garrafa de suco verde em frente a e gesticulando para que ela bebesse. — Que mal fariam alguns dias com a sua mãe?
— E o seu pai. — o pai completa, mastigando uma torrada e esticando a caneca de café em sua direção, como um reforço do que estava dizendo.
— Não posso. Não posso perder uma semana de aula, gente. Sinto muito. — ela tenta ser persuasiva, mas sem se entregar tanto.
Não vai suportar prolongar sua estadia. Fora ingênua ao acreditar que conseguiria.
— Bom... pelo menos você vai voltar no próximo feriado. — a mãe conclui.
não olha para ela. Não quer que seus pais percebam que não, ela não vai voltar no próximo feriado.
— Eu vou... bem... vou tomar meu café da manhã lá fora. — ela diz, esforçando-se ao máximo para sorrir para os dois.
Com a garrafa de suco verde na mão, ela abre a porta e se acomoda sobre a mureta no quintal.
Dessa vez, ela vê chegando.
Com as mãos nos bolsos, um pouco encolhido, mas a expressão menos sofrida no rosto.
— Eu quero saber o que aconteceu com você. — ele diz. Não é inquisitivo. Não está exigindo nada. Só dizendo. — Porque... não foi a Charlotte-Kate. Alguma coisa aconteceu com você, . E eu quero muito saber o que foi.
fecha os olhos e suspira. Não sabe quanto tempo vai conseguir segurar.
— Não te devo nada, . — ela diz. As palavras saem duras, cortando o ar entre os dois.
Ela abre os olhos outra vez. está assentindo.
— Eu sei que não. Já entendi isso. — ele responde. — Mas eu não tenho o direito? — pergunta. — Quer dizer... nós estávamos juntos, não estávamos? E eu não estou falando do que você viu, porque aquilo era obviamente a maluca da Charlotte me beijando e, se você tivesse esperado um segundo, um só segundo a mais, teria visto que eu a empurrei, porque ela estava bêbada e mais maluca do que o normal. Estou falando de tudo que aconteceu antes. De todas as coisas... — suspira, apertando ainda mais as mãos nos bolsos. — Eu sei que não foi muito tempo, . Mas você não pode me dizer que aquilo não foi nada. Pode?
não responde. Até olhar para dói. Mentir para ele seria demais.
— Porque o que eu posso te dizer, , é que eu me apaixonei por você como nunca imaginei que seria possível na vida real. Eu amei você durante todos aqueles dias e, muito provavelmente, desde o primeiro instante em que meus olhos encontraram você e meus ouvidos escutaram a sua voz. Então, por favor, se é isso que você pensa, me diga. Eu não tenho o direito de saber?
está chorando antes mesmo de que ele termine de falar.
É tanta coisa... é tanta coisa em sua cabeça que parece que vai explodir. Ela só quer o silêncio... o vazio. Quer o vazio de volta.
O buraco no peito deixado por , e por tudo que veio depois dele.
— . — ele sussurra, se aproximando dela, mas parando antes de chegar próximo demais, próximo o suficiente para tocar.
— Eu não posso, . — ela diz, balançando a cabeça. As lágrimas caem por seu rosto enquanto ela se move. — Não posso. Não posso.
elimina a distância entre eles, estica os braços até ela, leva suas mãos até seu rosto.
— Confia em mim, . Por favor.
Ela finalmente ousa olhar para ele. E talvez seja seu maior erro.
Porque os olhos de estão cheios de lágrimas, mas ainda são os olhos dele. Os mesmos olhos que ela vira em outra pessoa, meses antes.
— O que aconteceu com você, ? — ele sussurra.
Está tão perto... perto demais...
Tão perto que ela pode sentir, quase em sua pele, a conexão entre eles.
Ela fecha os olhos.
— Eu tive um filho. — responde.
Sua pele para de formigar. se afastou.
abre os olhos de novo.
Alguns segundos se passam. Ou uma eternidade inteira.
— Você teve um filho? — ele pergunta, confuso. Seu rosto inteiro está distorcido em confusão e descrença. — Você teve um filho? Ou... nós tivemos um filho?
volta a chorar. Dessa vez, copiosamente.
— , o que é que você está me dizendo? — a voz de se torna mais grave, mas ainda rouca, vacilante. — Você teve um bebê? Meu bebê? E... nunca... você não... você nem sequer pensou em me contar?
abre a boca, mas não consegue dizer nada.
olha para ela e, pela primeira vez, não tem a menor ideia do que ele está pensando.
***
Quando coloca a última peça de roupa na mala e dá uma olhada para o próprio quarto, ela suspira. Um pouco de alívio. Um pouco de tristeza. Um pouco de tudo.
percebe a mãe parada à porta, apenas olhando-a.
— O sabe. — ela diz, mas não olha de volta para a mãe. — Eu contei.
Silêncio.
— Eu não sei... eu não sei o que fazer. Eu nem sei o que estou sentindo.
começa a chorar. Outra vez. Já perdeu as contas de quantas vezes chorou desde que voltou.
Sua mãe a abraça. Com força. De um jeito carinhoso e cúmplice que nunca esperaria antes de tudo acontecer.
— Você vai ficar bem. Você é forte. Muito forte. Está me ouvindo?
assente.
— Tenho muito orgulho de você, . Você é uma mulher muito mais forte do que eu nunca vou ser. — elas se afastam do abraço.
enxuga os olhos com a manga da blusa. E fecha o zíper da mala.
E, no mesmo momento em que coloca a mala no chão, a campainha toca.
É claro que é .
Dessa vez, no entanto, ele não está com as mãos escondidas no bolso. Nem cabisbaixo.
Parece decidido, ainda que claramente infeliz.
Ele olha para . Não da mesma maneira como olhou no outro dia, quando descobriu sobre o bebê, mas ainda indecifrável.
O que aconteceu com a gente, ?, tem vontade de perguntar. Mas ela sabe que muita coisa aconteceu. É impossível voltarem ao que era antes.
— Menino ou menina? — pergunta, finalmente quebrando o silêncio.
suspira. Tem tentado, em vão, não pensar no bebê. Não pensar em quão crescido ele deve estar. Em tudo que já deve ter aprendido.
— Menino. — responde.
assente.
Mais silêncio.
— E onde ele está?
hesita. Como vai explicar? Como pode explicar?
— Com os pais dele. — ela finalmente diz.
O rosto de fica vermelho. Intensamente vermelho.
— Nós somos os pais dele. — ele diz, entredentes.
— Não. Não somos, não.
parece prestes a arrancar os próprios cabelos.
— E quem decidiu isso, ? Você pode me dizer?
É claro que ela tinha imaginado cenários em que saberia da verdade. Ele sentiria tanta raiva dela quanto demonstra estar sentindo.
Mas ela não tinha se preparado. Não estava pronta para isso.
Ela não sabe o que dizer. Não sabe o que vai acontecer depois que disser.
— Eu decidi. — ela, no entanto, diz. — Eu decidi, . — ergue a cabeça e olha para ela.
Seus olhos nunca olharam a outra da maneira como estão olhando. Com estranheza, dureza, tristeza.
— E por que diabos você pensou que era uma decisão só sua? Como foi que você pôde... esquecer que eu fazia parte disso?
— Meu corpo, .
Ele bufa, irritado.
— É, eu sei! E, tenha certeza disso, se você tivesse me contado tudo e dito que gostaria de fazer um aborto, eu te apoiaria. Não porque sou um canalha irresponsável, mas porque eu entenderia. Saberia, pelo menos imaginaria, o que estaria se passando na sua cabeça. — suspira. — Ninguém merece nascer sabendo que não foi amado, que não foi desejado. É claro que era seu direito, mas não foi a sua escolha, não é? — ele a encara, inquisitivo, impaciente. — Você não escolheu um aborto. Você seguiu adiante. Você teve o bebê. E, se isso não está claro o suficiente para você ainda, , quando você o colocou no mundo, não era mais uma decisão sua. Nesse mundo aqui, nesse mundo... ele é meu também.
mal percebe quando começa a chorar de novo. Mas, dessa vez, perde o controle.
Sente o rosto encharcado de lágrimas. Está soluçando. O peito dói. O nariz entope e escorre. A respiração está difícil e pesada.
— Eu quero conhecê-lo, . Não ligo onde quer que ele esteja. Eu quero conhecê-lo. — diz, encarando-a novamente. — Você vai me dar esse direito? Ou vai tirá-lo também?
balança a cabeça.
— Eu não posso garantir... não posso garantir que eles aceitem. Não posso garantir, .
Ele dá de ombros.
— Tente. Eu quero conhecer meu filho, . E eu vou fazer isso. Mesmo sem a sua ajuda.
olha para ele. Seu rosto também está encharcado pelas lágrimas.
— Está bem. — ela diz. — Vou ligar para eles.
***
liga cinco vezes.
Mary não atende.
A próxima coisa que acontece é pegar as chaves do carro, olhar para , cem por cento decidido e dizer:
— Eu vou até eles, então. Você vai comigo ou vai me dar o endereço?
demora alguns segundos para acreditar no que ouviu.
— Eu... eu vou com você. — responde.
— Ótimo. Então vamos. — diz, abrindo a porta do carona, mas nem sequer esperando-a entrar antes de tomar seu lugar no banco do motorista e ligar o carro.
coloca o cinto e fecha a porta.
— Para onde?
— Baton Rouge.
Ele parece um pouco surpreso, mas não demonstra tanto.
Olhando para a frente, apenas dirige.
***
Mais ou menos na metade do caminho, eles param em um posto de gasolina.
reabastece o carro. compra salgadinhos, barras de chocolate, refrigerantes e dois sanduíches de peito de peru.
Comem em silêncio.
Parece que parte da tensão se dissipou durante o caminho, mas é claro que ainda está lá.
Muitas coisas foram ditas, mas muitas outras ficaram para trás.
Quando finalmente chegam ao endereço de Mary e Jeff, desce do carro sozinha.
Aperta a campainha. Espera um pouco.
Ninguém atende, então ela aperta outra vez.
E espera. Nada.
olha para , ansioso e impaciente dentro do carro.
Está prestes a desistir e tentar convencê-lo a fazer o mesmo quando ouve a voz de Mary.
— ?
Ela se vira para eles.
No exato momento em que bate os olhos no bebê, Jeff o puxa para mais perto, protetoramente.
— Que bom te ver! — Mary diz, sorrindo.
É claro que Jeff não é tão amistoso, afinal de contas não está nem um pouco empolgado com a visita e com o que ela pode significar.
— Mary, eu... bem, eu nem sei como dizer isso, mas...
desce do carro, atravessando até eles.
— Esse é o . O...
— O pai. — Mary diz. Seu sorriso diminuiu, mas ela ainda parece bem mais receptiva que Jeff, que aperta o bebê contra o peito à menção da palavra “pai”.
Os quatro ficam em silêncio por algum tempo.
— Vocês querem entrar? — Mary pergunta.
Jeff olha para ela com cara feia.
— Não... não me entendam errado. Eu não estou aqui para... vocês sabem, pegar o J... Matthew de volta. É só que... o quer muito conhecê-lo.
Mary coloca uma mão sobre o ombro de , gentilmente.
— Eu sempre te disse que seria bem vinda na vida dele, . Isso vale para o também. Vamos entrar.
Ela destranca a porta de casa e gesticula para que e entrem.
A sala está cheia de brinquedos no chão, e à essa altura, Matthew já está acordado, embora permaneça quieto, com os grandes olhos brilhantes fixos no rosto de .
É claro que ele a reconhece.
olha para . Ele está imóvel, ainda a poucos centímetros da porta, com os olhos marejados e ligeiramente boquiaberto.
Jeff coloca Matthew sentado no tapete no centro da sala. O bebê parece perder um pouco do interesse que tem na cena ao seu redor, se entretendo com os brinquedos.
— Senta com ele, . Ele adora esses brinquedos. — Mary diz, cortando o silêncio entre eles. — Dá para perceber pelo estado da sala, não é? — ela brinca.
Jeff continua de cara feia, que só piora quando concorda e se senta no chão, ao lado de Matthew.
Mary segura a mão do marido, tentando tranquilizá-lo.
— Oi... Matthew. — murmura, pegando um cubo de plástico da casa de montar e oferecendo-o para o bebê.
Matthew se inclina na direção de , mas não pega o cubo de sua mão. Ao invés disso, apoia as mãozinhas na perna dele, encarando-o com os olhos que tanto se parecem com os seus.
De repente, sem mais nem menos, o bebê solta uma gargalhada, e sorri, ao mesmo tempo em que uma lágrima solitária escorre de seu olho.
Ele estende a mão para Matthew, que envolve seu dedão com uma mãozinha gorducha.
também deixa algumas lágrimas escorrerem pelo rosto.
E Mary. E Jeff.
***
— Vocês são sempre bem vindos. Espero que saibam disso. — Mary diz, parada na calçada com Matthew no colo enquanto eles se despedem.
O bebê divide seus olhares entre e , que só assentem.
— Obrigada, Mary. — diz.
A mulher sorri para ela, puxando-a para um abraço.
— Você não tem nada por que me agradecer. Eu é que tenho. Nós dois. — ela diz, encarando o marido, que também não diz nada, só balança a cabeça.
dá uma última olhada no bebê antes de entrar no carro para irem embora.
É claro que ele tem vontade de dar um jeito de ficar ali. É claro que pensa em levar o filho consigo. Mas não pode. Porque sabe, também, que Matthew é feliz com a família que tem. Eles são completos juntos, os três. E não tem tanta certeza de que ele e possam ser metade do que Mary e Jeff são para o bebê.
também entra no carro, bate a porta e coloca o cinto.
Em silêncio, os dois se encaram.
— Obrigado. — diz. — Por ter feito isso por mim.
assente.
O silêncio sem fim parece querer retornar à medida em que seguem caminho de volta para casa, mas nem e nem estão completamente dispostos a permitir.
— Ele é lindo. — diz, sorrindo.
também sorri.
— Eu sei. — concorda.
— E como ele se parece com a gente!
Os dois dão risada.
E então o silêncio retorna.
At the end of the road
I’m pushing everyone away
‘Cause I can’t feel this anymore
Can’t feel this anymore
Ela sai do banheiro de volta para a festa. A música alta é ensurdecedora, e sua cabeça já está doendo demais para sequer decifrar que música está tocando.
As pessoas falam com ela pelo corredor. Ela responde. Não tem ideia do que estão falando. Muito menos do que ela está respondendo.
Mas estão todos tão animados por ela estar de volta, mesmo que apenas para as férias, que não conseguem disfarçar e ficar longe dela.
achava que ninguém se lembraria mais dela. Não seria mais importante.
Tinha ido embora há muito tempo e, antes disso, abandonara a elite ao terminar com Charlie.
Mas todo mundo se lembra.
É uma festa qualquer, e tem um monte de gente que ela nunca viu na vida, mas também as mesmas pessoas de sempre.
Ela vira Charlie um pouco depois de começar a ficar bêbada de verdade.
Ele falara com ela. Sorrira, perguntara onde ela estivera.
Charlie tinha dado um abraço nela. Dito que sentira falta dela. Mas é claro que ele tinha outra namorada linda a tiracolo, que fora igualmente simpática, mesmo sem conhecê-la.
também fora simpática. Porque já estava bêbada. Caso contrário, teria sido uma vaca.
Como estava sendo o tempo todo nos últimos meses.
Pensando na namorada perfeita de Charlie, pega uma garrafa de vodca que encontra em cima da mesa e enche um copinho vermelho até a boca antes de enfiar um monte de balas de gelatina e transbordar o álcool para fora do copo.
Ela está limpando a meleca que fez com um guardanapo quando ouve alguém a chamando.
Porra., ela pensa. Quem ainda falta?
se vira, pronta para fingir simpatia outra vez, quando seu sorriso desmonta e o copo de vodca com balinhas despenca de sua mão.
.
Faltava .
— Como... o que... — não diz nada com nada e Liz, ao lado dele, parece tão surpresa e atônita quanto.
respira fundo e tenta manter a compostura — e a aparência de calma — enquanto se vira para sair e ir embora, mas encosta sua mão no pulso dela.
Merda. Ele não devia tocá-la. Ele não pode tocá-la.
— Me deixa ir, . — sai quase como um murmúrio. Ela fecha os olhos. Não quer olhar para ele. Não pode olhar para ele.
— Ir? De novo? Para onde? — a voz dele é cheia de indignação. E pesar.
pode jurar que os olhos de estão marejados. E vermelhos. E são tão intensos que ela mesma não tem certeza de que vai conseguir segurar o choro.
— , a gente precisa conv...
— Não precisamos, não. — ela diz, tentando ser firme. — Nós não temos nada para conversar, .
— O quê? Como não? — ele olha para ela com indignação, mas já está a caminho da porta. — Você foi embora, sumiu, quando estávamos juntos, sem...
— Quando “estávamos juntos”? Por isso eu vi você beijando a Charlotte-qualquer coisa? Porque “estávamos juntos”?
agora a encara boquiaberto.
— Você não tem ideia do que aconteceu aquele dia... você não...
— E nem quero ter. — responde, cortando-o novamente.
O olhar chocado e decepcionado de Liz é mais uma coisa que deixa de coração partido, então ela evita encará-la enquanto passa pelos irmãos em direção ao jardim da frente da casa.
Precisa ir embora. Precisa sair dali.
Mas não está em condições. A cabeça e o estômago estão girando, confusos e doloridos. O coração bate mais forte no peito, quase como se estivesse infartando.
Não pode arriscar pegar o carro daquele jeito.
Assim, parecendo uma criança perdida, se senta sob os longos galhos de uma árvore no quintal do vizinho.
E lá fica, encolhida, abraçada aos próprios joelhos, a cabeça escondida, os olhos fechados, tentando afastar todos os pensamentos, sentimentos e lembranças que ela, definitivamente, não quer por perto outra vez.
Mas ela está bêbada, e é claro que seu cérebro não a obedece. Se as coisas saíssem como o planejado por ela, nada disso estaria acontecendo.
“Ele se levantou, cruzando a pequena distância entre os dois, e esticou a mão para ela.
— . Pode me chamar de .
— . .
— É um prazer te conhecer. Só que seu timing falhou um pouquinho. Você poderia ter se pronunciado enquanto o Ezra estava aqui. Ele nunca me ouve. Mas sempre ouve uma garota bonita.”
“— Bem... eu acho que aquele é seu namorado...? — perguntara, parecendo verdadeiramente constrangido e mais chocado do que ela.
assentiu.
— Coca? — ele perguntara, esticando a latinha para ela.
recusara.
— Na verdade... será que você me arruma alguma coisa bem mais forte?”
Ela aperta as têmporas com força. Não pode se deixar levar pela enxurrada de memórias, pelo turbilhão emotivo de sua história com .
Não pode sequer pensar que tem uma história com .
“— Como está sua cabeça? — começara a rir.
— Está me matando, .
— Tá a fim de um analgésico?
— Eu mataria por um.
— Bom... se você prometer que eu não serei a vítima, é só descer.
arqueara uma sobrancelha, em sinal de confusão.
— O quê?
— Tô no seu jardim.
Ela se levantara para olhar pela janela.
Parado no meio do gramado, com o celular recostado à orelha, acenava para ela.”
Seus olhos ardiam com a cachoeira infinita de lágrimas que pareciam correr completamente alheias à sua vontade.
Não, não e não. Essas coisas precisam ficar guardadas, escondidas como as lembranças com as quais não quer se reencontrar.
Tudo isso precisa ficar guardado. Tudo isso precisa desaparecer.
“— Eu preciso ir. — dissera. — Minha mãe está me chamando para uma emergência fashion, e não posso faltar.
rira. Sua gargalhada incomparável.
À porta, eles se encararam, olho no olho, por alguns instantes. Pequenas faíscas dançando entre eles, entre seus olhares.
Até seus lábios se unirem, e as faíscas crescerem até preenchê-los por completo.”
ouve passos no gramado perto de onde está.
Não precisa levantar a cabeça, não precisa olhar para lá.
Ela simplesmente sabe.
É . De novo.
Ele está lá. Olhando para ela. Vendo-a chorar.
não se move.
também não.
— E o seu pai. — o pai completa, mastigando uma torrada e esticando a caneca de café em sua direção, como um reforço do que estava dizendo.
— Não posso. Não posso perder uma semana de aula, gente. Sinto muito. — ela tenta ser persuasiva, mas sem se entregar tanto.
Não vai suportar prolongar sua estadia. Fora ingênua ao acreditar que conseguiria.
— Bom... pelo menos você vai voltar no próximo feriado. — a mãe conclui.
não olha para ela. Não quer que seus pais percebam que não, ela não vai voltar no próximo feriado.
— Eu vou... bem... vou tomar meu café da manhã lá fora. — ela diz, esforçando-se ao máximo para sorrir para os dois.
Com a garrafa de suco verde na mão, ela abre a porta e se acomoda sobre a mureta no quintal.
Dessa vez, ela vê chegando.
Com as mãos nos bolsos, um pouco encolhido, mas a expressão menos sofrida no rosto.
— Eu quero saber o que aconteceu com você. — ele diz. Não é inquisitivo. Não está exigindo nada. Só dizendo. — Porque... não foi a Charlotte-Kate. Alguma coisa aconteceu com você, . E eu quero muito saber o que foi.
fecha os olhos e suspira. Não sabe quanto tempo vai conseguir segurar.
— Não te devo nada, . — ela diz. As palavras saem duras, cortando o ar entre os dois.
Ela abre os olhos outra vez. está assentindo.
— Eu sei que não. Já entendi isso. — ele responde. — Mas eu não tenho o direito? — pergunta. — Quer dizer... nós estávamos juntos, não estávamos? E eu não estou falando do que você viu, porque aquilo era obviamente a maluca da Charlotte me beijando e, se você tivesse esperado um segundo, um só segundo a mais, teria visto que eu a empurrei, porque ela estava bêbada e mais maluca do que o normal. Estou falando de tudo que aconteceu antes. De todas as coisas... — suspira, apertando ainda mais as mãos nos bolsos. — Eu sei que não foi muito tempo, . Mas você não pode me dizer que aquilo não foi nada. Pode?
não responde. Até olhar para dói. Mentir para ele seria demais.
— Porque o que eu posso te dizer, , é que eu me apaixonei por você como nunca imaginei que seria possível na vida real. Eu amei você durante todos aqueles dias e, muito provavelmente, desde o primeiro instante em que meus olhos encontraram você e meus ouvidos escutaram a sua voz. Então, por favor, se é isso que você pensa, me diga. Eu não tenho o direito de saber?
está chorando antes mesmo de que ele termine de falar.
É tanta coisa... é tanta coisa em sua cabeça que parece que vai explodir. Ela só quer o silêncio... o vazio. Quer o vazio de volta.
O buraco no peito deixado por , e por tudo que veio depois dele.
— . — ele sussurra, se aproximando dela, mas parando antes de chegar próximo demais, próximo o suficiente para tocar.
— Eu não posso, . — ela diz, balançando a cabeça. As lágrimas caem por seu rosto enquanto ela se move. — Não posso. Não posso.
elimina a distância entre eles, estica os braços até ela, leva suas mãos até seu rosto.
— Confia em mim, . Por favor.
Ela finalmente ousa olhar para ele. E talvez seja seu maior erro.
Porque os olhos de estão cheios de lágrimas, mas ainda são os olhos dele. Os mesmos olhos que ela vira em outra pessoa, meses antes.
— O que aconteceu com você, ? — ele sussurra.
Está tão perto... perto demais...
Tão perto que ela pode sentir, quase em sua pele, a conexão entre eles.
Ela fecha os olhos.
— Eu tive um filho. — responde.
Sua pele para de formigar. se afastou.
abre os olhos de novo.
Alguns segundos se passam. Ou uma eternidade inteira.
— Você teve um filho? — ele pergunta, confuso. Seu rosto inteiro está distorcido em confusão e descrença. — Você teve um filho? Ou... nós tivemos um filho?
volta a chorar. Dessa vez, copiosamente.
— , o que é que você está me dizendo? — a voz de se torna mais grave, mas ainda rouca, vacilante. — Você teve um bebê? Meu bebê? E... nunca... você não... você nem sequer pensou em me contar?
abre a boca, mas não consegue dizer nada.
olha para ela e, pela primeira vez, não tem a menor ideia do que ele está pensando.
percebe a mãe parada à porta, apenas olhando-a.
— O sabe. — ela diz, mas não olha de volta para a mãe. — Eu contei.
Silêncio.
— Eu não sei... eu não sei o que fazer. Eu nem sei o que estou sentindo.
começa a chorar. Outra vez. Já perdeu as contas de quantas vezes chorou desde que voltou.
Sua mãe a abraça. Com força. De um jeito carinhoso e cúmplice que nunca esperaria antes de tudo acontecer.
— Você vai ficar bem. Você é forte. Muito forte. Está me ouvindo?
assente.
— Tenho muito orgulho de você, . Você é uma mulher muito mais forte do que eu nunca vou ser. — elas se afastam do abraço.
enxuga os olhos com a manga da blusa. E fecha o zíper da mala.
E, no mesmo momento em que coloca a mala no chão, a campainha toca.
É claro que é .
Dessa vez, no entanto, ele não está com as mãos escondidas no bolso. Nem cabisbaixo.
Parece decidido, ainda que claramente infeliz.
Ele olha para . Não da mesma maneira como olhou no outro dia, quando descobriu sobre o bebê, mas ainda indecifrável.
O que aconteceu com a gente, ?, tem vontade de perguntar. Mas ela sabe que muita coisa aconteceu. É impossível voltarem ao que era antes.
— Menino ou menina? — pergunta, finalmente quebrando o silêncio.
suspira. Tem tentado, em vão, não pensar no bebê. Não pensar em quão crescido ele deve estar. Em tudo que já deve ter aprendido.
— Menino. — responde.
assente.
Mais silêncio.
— E onde ele está?
hesita. Como vai explicar? Como pode explicar?
— Com os pais dele. — ela finalmente diz.
O rosto de fica vermelho. Intensamente vermelho.
— Nós somos os pais dele. — ele diz, entredentes.
— Não. Não somos, não.
parece prestes a arrancar os próprios cabelos.
— E quem decidiu isso, ? Você pode me dizer?
É claro que ela tinha imaginado cenários em que saberia da verdade. Ele sentiria tanta raiva dela quanto demonstra estar sentindo.
Mas ela não tinha se preparado. Não estava pronta para isso.
Ela não sabe o que dizer. Não sabe o que vai acontecer depois que disser.
— Eu decidi. — ela, no entanto, diz. — Eu decidi, . — ergue a cabeça e olha para ela.
Seus olhos nunca olharam a outra da maneira como estão olhando. Com estranheza, dureza, tristeza.
— E por que diabos você pensou que era uma decisão só sua? Como foi que você pôde... esquecer que eu fazia parte disso?
— Meu corpo, .
Ele bufa, irritado.
— É, eu sei! E, tenha certeza disso, se você tivesse me contado tudo e dito que gostaria de fazer um aborto, eu te apoiaria. Não porque sou um canalha irresponsável, mas porque eu entenderia. Saberia, pelo menos imaginaria, o que estaria se passando na sua cabeça. — suspira. — Ninguém merece nascer sabendo que não foi amado, que não foi desejado. É claro que era seu direito, mas não foi a sua escolha, não é? — ele a encara, inquisitivo, impaciente. — Você não escolheu um aborto. Você seguiu adiante. Você teve o bebê. E, se isso não está claro o suficiente para você ainda, , quando você o colocou no mundo, não era mais uma decisão sua. Nesse mundo aqui, nesse mundo... ele é meu também.
mal percebe quando começa a chorar de novo. Mas, dessa vez, perde o controle.
Sente o rosto encharcado de lágrimas. Está soluçando. O peito dói. O nariz entope e escorre. A respiração está difícil e pesada.
— Eu quero conhecê-lo, . Não ligo onde quer que ele esteja. Eu quero conhecê-lo. — diz, encarando-a novamente. — Você vai me dar esse direito? Ou vai tirá-lo também?
balança a cabeça.
— Eu não posso garantir... não posso garantir que eles aceitem. Não posso garantir, .
Ele dá de ombros.
— Tente. Eu quero conhecer meu filho, . E eu vou fazer isso. Mesmo sem a sua ajuda.
olha para ele. Seu rosto também está encharcado pelas lágrimas.
— Está bem. — ela diz. — Vou ligar para eles.
Mary não atende.
A próxima coisa que acontece é pegar as chaves do carro, olhar para , cem por cento decidido e dizer:
— Eu vou até eles, então. Você vai comigo ou vai me dar o endereço?
demora alguns segundos para acreditar no que ouviu.
— Eu... eu vou com você. — responde.
— Ótimo. Então vamos. — diz, abrindo a porta do carona, mas nem sequer esperando-a entrar antes de tomar seu lugar no banco do motorista e ligar o carro.
coloca o cinto e fecha a porta.
— Para onde?
— Baton Rouge.
Ele parece um pouco surpreso, mas não demonstra tanto.
Olhando para a frente, apenas dirige.
reabastece o carro. compra salgadinhos, barras de chocolate, refrigerantes e dois sanduíches de peito de peru.
Comem em silêncio.
Parece que parte da tensão se dissipou durante o caminho, mas é claro que ainda está lá.
Muitas coisas foram ditas, mas muitas outras ficaram para trás.
Quando finalmente chegam ao endereço de Mary e Jeff, desce do carro sozinha.
Aperta a campainha. Espera um pouco.
Ninguém atende, então ela aperta outra vez.
E espera. Nada.
olha para , ansioso e impaciente dentro do carro.
Está prestes a desistir e tentar convencê-lo a fazer o mesmo quando ouve a voz de Mary.
— ?
Ela se vira para eles.
No exato momento em que bate os olhos no bebê, Jeff o puxa para mais perto, protetoramente.
— Que bom te ver! — Mary diz, sorrindo.
É claro que Jeff não é tão amistoso, afinal de contas não está nem um pouco empolgado com a visita e com o que ela pode significar.
— Mary, eu... bem, eu nem sei como dizer isso, mas...
desce do carro, atravessando até eles.
— Esse é o . O...
— O pai. — Mary diz. Seu sorriso diminuiu, mas ela ainda parece bem mais receptiva que Jeff, que aperta o bebê contra o peito à menção da palavra “pai”.
Os quatro ficam em silêncio por algum tempo.
— Vocês querem entrar? — Mary pergunta.
Jeff olha para ela com cara feia.
— Não... não me entendam errado. Eu não estou aqui para... vocês sabem, pegar o J... Matthew de volta. É só que... o quer muito conhecê-lo.
Mary coloca uma mão sobre o ombro de , gentilmente.
— Eu sempre te disse que seria bem vinda na vida dele, . Isso vale para o também. Vamos entrar.
Ela destranca a porta de casa e gesticula para que e entrem.
A sala está cheia de brinquedos no chão, e à essa altura, Matthew já está acordado, embora permaneça quieto, com os grandes olhos brilhantes fixos no rosto de .
É claro que ele a reconhece.
olha para . Ele está imóvel, ainda a poucos centímetros da porta, com os olhos marejados e ligeiramente boquiaberto.
Jeff coloca Matthew sentado no tapete no centro da sala. O bebê parece perder um pouco do interesse que tem na cena ao seu redor, se entretendo com os brinquedos.
— Senta com ele, . Ele adora esses brinquedos. — Mary diz, cortando o silêncio entre eles. — Dá para perceber pelo estado da sala, não é? — ela brinca.
Jeff continua de cara feia, que só piora quando concorda e se senta no chão, ao lado de Matthew.
Mary segura a mão do marido, tentando tranquilizá-lo.
— Oi... Matthew. — murmura, pegando um cubo de plástico da casa de montar e oferecendo-o para o bebê.
Matthew se inclina na direção de , mas não pega o cubo de sua mão. Ao invés disso, apoia as mãozinhas na perna dele, encarando-o com os olhos que tanto se parecem com os seus.
De repente, sem mais nem menos, o bebê solta uma gargalhada, e sorri, ao mesmo tempo em que uma lágrima solitária escorre de seu olho.
Ele estende a mão para Matthew, que envolve seu dedão com uma mãozinha gorducha.
também deixa algumas lágrimas escorrerem pelo rosto.
E Mary. E Jeff.
O bebê divide seus olhares entre e , que só assentem.
— Obrigada, Mary. — diz.
A mulher sorri para ela, puxando-a para um abraço.
— Você não tem nada por que me agradecer. Eu é que tenho. Nós dois. — ela diz, encarando o marido, que também não diz nada, só balança a cabeça.
dá uma última olhada no bebê antes de entrar no carro para irem embora.
É claro que ele tem vontade de dar um jeito de ficar ali. É claro que pensa em levar o filho consigo. Mas não pode. Porque sabe, também, que Matthew é feliz com a família que tem. Eles são completos juntos, os três. E não tem tanta certeza de que ele e possam ser metade do que Mary e Jeff são para o bebê.
também entra no carro, bate a porta e coloca o cinto.
Em silêncio, os dois se encaram.
— Obrigado. — diz. — Por ter feito isso por mim.
assente.
O silêncio sem fim parece querer retornar à medida em que seguem caminho de volta para casa, mas nem e nem estão completamente dispostos a permitir.
— Ele é lindo. — diz, sorrindo.
também sorri.
— Eu sei. — concorda.
— E como ele se parece com a gente!
Os dois dão risada.
E então o silêncio retorna.
VII — Epílogo
6 meses depois
Have you ever been so lost?
Known the way and still so lost?
Another night waiting for someone
To take me home
Have you ever been so lost?
Have you ever been so lost?
fecha a porta do apartamento atrás de si.
Está exausta.
Teve um dia tão cansativo que só consegue pensar em um banho quente, pijama, qualquer comida congelada que encontrar e, logo em seguida, cama.
É claro que ela sabe que dia é.
Matthew está fazendo um ano.
É claro que ela gostaria de estar lá. Afinal de contas, é o aniversário de seu filho.
Isso não é uma coisa de que se esquece., ela pensa, enquanto pendura seu casaco no cabideiro.
Pega o celular no bolso, e dá uma olhada na foto de perfil do contato de Mary.
Matthew está muito mais crescido. Os cabelos escureceram um pouco, e seu olhar para a foto é mais direto.
É inegável que, a cada dia que se passa, ele se parece mais com . Tudo por causa dos olhos.
também sente falta dele. De .
Passaram mais tempo separados do que juntos, mas também não é algo que seja capaz de se esquecer.
Porque o ama.
Ela o ama tanto que, às vezes, tem vontade de sair correndo, bater à porta dele e dizer tudo que sente.
Dizer o quanto o ama, o quanto é feliz e orgulhosa por ser mãe de um filho dele, ainda que Matthew não seja, de fato, seu.
Dizer que, da mesma maneira como nunca conseguirá esquecer o bebê, também nunca será capaz de esquecê-lo.
Ela, de repente, se pega lembrando de quando se despediram depois que conhecera o filho.
Ele a deixara em frente à casa dos pais dela. Os dois tinham olhado um para o outro por uma eternidade — ou apenas segundos verdadeiramente duradouros — e ninguém dissera uma só palavra por um longo tempo, até murmurar “Obrigada”, assentir e ela descer do carro, olhando para trás uma vez antes de entrar em casa.
Tanta coisa a ser dita...
A campainha toca.
É muito provável que seja a vizinha da frente pedindo açúcar outra vez.
abre a porta sem sequer olhar pelo olho mágico.
E, quando vê quem está lá, ela se arrepende de não ter se preparado para isso.
, com as mãos nos bolsos dos jeans, sorri para ela.
— Oi. — ele diz, encarando-a hesitantemente.
Tanta coisa a ser dita...
sorri de volta para ele, antes de encurtar a distância entre eles, selando seus lábios aos dele.
a envolve em um abraço, aceitando o beijo sem titubear.
Tanta coisa a ser dita...
Mas não ainda. Não agora.
Tudo que precisa ser dito o será. Depois.
Agora, só consegue pensar em como estivera perdida. E em como se encontrou. Novamente. Com .
Known the way and still so lost?
Another night waiting for someone
To take me home
Have you ever been so lost?
Have you ever been so lost?
fecha a porta do apartamento atrás de si.
Está exausta.
Teve um dia tão cansativo que só consegue pensar em um banho quente, pijama, qualquer comida congelada que encontrar e, logo em seguida, cama.
É claro que ela sabe que dia é.
Matthew está fazendo um ano.
É claro que ela gostaria de estar lá. Afinal de contas, é o aniversário de seu filho.
Isso não é uma coisa de que se esquece., ela pensa, enquanto pendura seu casaco no cabideiro.
Pega o celular no bolso, e dá uma olhada na foto de perfil do contato de Mary.
Matthew está muito mais crescido. Os cabelos escureceram um pouco, e seu olhar para a foto é mais direto.
É inegável que, a cada dia que se passa, ele se parece mais com . Tudo por causa dos olhos.
também sente falta dele. De .
Passaram mais tempo separados do que juntos, mas também não é algo que seja capaz de se esquecer.
Porque o ama.
Ela o ama tanto que, às vezes, tem vontade de sair correndo, bater à porta dele e dizer tudo que sente.
Dizer o quanto o ama, o quanto é feliz e orgulhosa por ser mãe de um filho dele, ainda que Matthew não seja, de fato, seu.
Dizer que, da mesma maneira como nunca conseguirá esquecer o bebê, também nunca será capaz de esquecê-lo.
Ela, de repente, se pega lembrando de quando se despediram depois que conhecera o filho.
Ele a deixara em frente à casa dos pais dela. Os dois tinham olhado um para o outro por uma eternidade — ou apenas segundos verdadeiramente duradouros — e ninguém dissera uma só palavra por um longo tempo, até murmurar “Obrigada”, assentir e ela descer do carro, olhando para trás uma vez antes de entrar em casa.
Tanta coisa a ser dita...
A campainha toca.
É muito provável que seja a vizinha da frente pedindo açúcar outra vez.
abre a porta sem sequer olhar pelo olho mágico.
E, quando vê quem está lá, ela se arrepende de não ter se preparado para isso.
, com as mãos nos bolsos dos jeans, sorri para ela.
— Oi. — ele diz, encarando-a hesitantemente.
Tanta coisa a ser dita...
sorri de volta para ele, antes de encurtar a distância entre eles, selando seus lábios aos dele.
a envolve em um abraço, aceitando o beijo sem titubear.
Tanta coisa a ser dita...
Mas não ainda. Não agora.
Tudo que precisa ser dito o será. Depois.
Agora, só consegue pensar em como estivera perdida. E em como se encontrou. Novamente. Com .