Finalizada em: 06/03/2022

Capítulo Único

Eijiro tinha sono pesado e dificilmente levantava no meio da noite para qualquer coisa. Por isso, estar de pé às três da manhã era bastante raro considerando que ia dormir tarde com o corpo implorando por descanso. Conciliar as aulas com treinamento e patrulha ao lado de Suneater e Fat Gum exigia bastante de si, no fim do dia era apenas um bagaço exaurido. Com a desculpa de que precisava relaxar, encheu-se de refrigerante e salgadinhos ao lado de Bakugo, Kaminari e Mineta enquanto acompanhavam uma partida do campeonato regional de beisebol; ao final, sabia não ter sido uma boa ideia. Como justa consequência, os bons dois litros de refrigerante tinham tirado-o da cama implorando por uma ida ao banheiro. Quando voltou para o quarto, ainda lento pelo sono, uma fresta de cortina aberta o permitiu ver a lua brilhante no céu, envolvendo-o em uma estranha nostalgia das noites em que passou sentado no parapeito da janela do antigo quarto na casa dos pais imaginando o dia que teria seu nome reconhecido e poderia ajudar as pessoas com a Individualidade com a qual fora agraciado. Puxou as cortinas para ter ampla visão do luar sobre a floresta ao redor do dormitório, agradecendo por mais um dia que em breve se iniciaria.
O clarear da lua, porém, não era a única luz esbranquiçada por ali. Uma silhueta humana planava contra o céu estrelado. Um calafrio subiu pela espinha de Eijiro, o fazendo piscar repetidas vezes para ter certeza de que estava vendo corretamente; poderia ser seu cérebro sonolento lhe pregando uma peça, afinal.
Não, não era uma pegadinha.
Embora nunca tenha visto, estava certo de que se tratava de uma assombração.
Músculos super fortes e uma quirk poderosa não impediram Kirishima Eijiro de tremer na base aquela noite. Podia lutar contra o adversário que entrasse na sua frente, mas contra fantasmas era algo fora de cogitação. Embora sentisse medo, não conseguia parar de olhar. Escondeu-se atrás da cortina por poucos segundos para tomar fôlego e logo em seguida, retomou a observação silenciosa do vulto pairando por cima das árvores na escuridão da noite, flutuando tranquilamente entre as copas frondosas, dando cambalhotas despreocupadas, sequer ciente de que a cem metros de distância, no segundo andar do dormitório da 1-A, um certo aluno de cabelos vermelhos estava com os olhos esbugalhados. Apressadamente, Eijiro fechou o cortinado e se jogou no colchão, cobrindo até a cabeça com a manta fina que, naquele momento, era a única coisa no mundo capaz de protegê-lo da aparição que fizera seu corpo gelar.
“Dorme, cara. Sério, Eijiro, papo reto, dorme”, pensou.
“Olha que vergonha ficar se tremendo por causa de uma nuvem esquisita perdida no meio das árvores… é uma nuvem. Nu-vem. Você é o Red Riot, Eijiro. Red Riot não tem medo de nuvem. Hora de dormir.”, consolou-se. Com certa relutância, fechou os olhos e acalmou a respiração para aceitar a volta do estupor do sono.

•••

— Não estou ficando doido, Kami. Eu vi. E agora não consigo parar de pensar nesse negócio. — coçou a cabeça encarando o chão.
— Você estava cheio de sono, mais para lá do que para cá, mano. Coisa da sua cabeça, na certa.
Na manhã seguinte, caminhando pelos corredores da U.A. em direção à sala de aula, Eijiro contou a Kaminari, seu fiel confidente, o curioso episódio da noite anterior.
— E se não for? — insistiu.
— Qual a possibilidade de ter um fantasma na floresta? Alguém teria visto antes, não acha? E se tiver, Deus me defenda e me mantenha bem longe disso. Que esse troço nunca saiba quem é Kaminari Denki. — acenou como quem afasta algo de si.
Kirishima seguia com a ideia fixa de que alguma coisa estava mal explicada incomodando-o. Não queria levar o assunto muito à frente, mas Kaminari não estava ajudando; na realidade, o deixava ainda mais paranóico. Com quem mais teria de se abrir para que uma resposta concreta acalmasse aquele sentimento de alerta que não o abandonava?
— Kami, eu estou falando sério. Sei o que esses dois olhos aqui viram e tinha forma humana. — falavam baixo para que os alunos de outras turmas por quem passavam não os escutassem. — Não tem aquele canto da floresta que dá para ver do meu quarto? Perto do pé da montanha? Estava bem ali, flutuando por cima das árvores. Acredita em mim. Eram três horas da manhã. — desviou de um grupo de estudantes, esbarrando em uma aluna que subitamente parou entre o fluxo de pessoas. — Epa, foi mal. Tudo bem? — perguntou, garantindo que a garota não tinha se machucado com o choque. Contudo, não obteve resposta além de um aceno de cabeça apressado. — Tinha certinho a forma de uma pessoa, cara, só que branco, sei lá. — voltou ao assunto com o amigo, deixando para trás a menina encarando as pessoas ao redor de maneira um tanto perdida. — Não comenta com ninguém, tá?
— Você está ficando muito doido, Kirishima. Dormindo pouco, sei lá. É capaz que riam de mim se eu contar essa sua viagem. Vamos, está na hora da tortura. — parados em frente à porta da sala de aula, apertatram as mãos em um silencioso selar do segredo que compartilhavam antes de entrar.

•••

Patrulhar as ruas era divertido ao lado de Fat Gum e Amajiki Tamaki, o Suneater. Confiava no mentor e no colega para aprender a ser um herói digno de todo o simbolismo por trás do nome e da roupa que escolhera para si. Daria orgulho ao legado de Crimson Riot, seu exemplo de integridade e masculinidade, e faria de Fat um mestre orgulhoso do garoto que recebera como estagiário em sua agência. A cada dia que passava ao lado deles, fosse combatendo pequenos crimes ou apenas dividindo takoyakis ao final de uma série pesada de treinamento, Kirishima sentia-se mais próximo do homem que almejava ser. Por confiar nos dois, sentado no muro de um parque na zona central da cidade, Eijiro dividiu o que o incomodava.
— Não é impossível, tem de tudo nesse mundo. — Fat Gum comentou enquanto se deliciava com uma bandeja de mandus.
— Pode ser um aluno… — Amajiki opinou em tom tão baixo que apenas o rapaz de cabelo vermelho ao seu lado pôde escutar.
— Treinando na floresta no meio da madrugada! — Eijiro completou o pensamento do colega de time com empolgação que jamais veria em Tamaki mesmo após uma conclusão inteligente como a que tivera. — Fat, você sabe de alguma quirk desse tipo na U.A.?
— Sei não, você tem mais contato com os outros alunos do que eu, Red Riot. Tamaki, há possibilidade de ser alguém do terceiro ano?
Em silêncio, Amajiki acenou que não. Conhecia os alunos de seu ano e nunca vira um herói entre eles que pudesse ser fantasma. Nem mesmo a quirk de Ectoplasma, o professor de matemática, funcionava desta forma.
— É, também não é do primeiro ano ou eu conheceria. Que droga. Talvez do segundo ano? — indagou. — De qualquer maneira, não tem uma regra de que não pode treinar até muito tarde, Fat?
— Pelo que me lembro, não é permitido treinar fora das dependências destinadas para isso sem a presença de um professor. Sinceramente, acho que ninguém além do Eraser Head estaria acordado nesse horário que você descreveu inspecionando um aluno. Se for um estudante mesmo, está infringindo o regulamento.
— Ou é um invasor. — Tamaki lançou entre os três.
— Também cogitei essa possibilidade, senpai. — Kirishima coçou o queixo pensativo. — Mas por que estaria dando só umas cambalhotas ao invés de tentar se aproximar? Como será que passou pelo sistema de segurança? Aish, não queria ficar encucado com mais um possível problema.
— Ótima lição, crianças. Um bom herói deve sempre suspeitar das situações ao seu redor. — Fat Gum ergueu o dedo, assumindo a postura responsável de um velho mestre que educa seus pupilos para seguirem o caminho da luz.
— Isso significa que devemos investigar? — Eijiro pôs-se em alerta.
— É… não! — o mentor se corrigiu de maneira firme. Por vezes esquecia estar trabalhando com heróis que ainda não eram profissionais. — Deixe isso para os professores, fale com um deles e pronto. É perigoso.
— Nem se for com o Amajiki-senpai? Ele é um dos Big Three, vou estar bem acompanhado, não é?
— A-Amajiki tem que fazer coisas d-de outras… Eh, n-não pode s-... — Suneater afastou-se murmurando palavras incompreensíveis com a voz trêmula, deixando para trás a caixa de croquetes de lula que comia.
— Tamaki, volte aqui. — Fat Gum chamou. — Seus croquetes!
O rapaz de pele pálida manifestou um tentáculo da ponta de um dos dedos e usou-o para alcançar a comida que esquecera, mantendo distância dos outros dois que queriam pôr sua paz e segurança em jogo. Para quê foi levantar a hipótese de ser um invasor? Devia ter mantido a boca calada para seu próprio bem. Repreendeu-se mentalmente e apressou o passo antes que Fat Gum e Red Riot o alcançassem. Queria voltar logo para casa.
No caminho até as instalações da U.A., o pro-hero e seus alunos pararam brevemente em uma pequena loja de beira de rua para que Fat Gum comprasse bolinhos de feijão-doce. Percebendo que Eijiro seguiu por todo o percurso quieto demais para alguém que frequentemente falava alto e estridentemente quando animado, o herói preferiu assegurar que ideias perigosas não tinham sido plantadas na cabeça do jovem. Já tivera a mesma idade de Kirishima e sabia o quão irresponsável os adolescentes poderiam ser quando movidos pela curiosidade e por um senso de justiça que nem sempre fazia juz à realidade.
— Eijiro. — chamou o garoto num canto próximo ao caixa enquanto Amajiki recebia os bolinhos que havia comprado para os alunos. — Sobre aquele assunto, não tome decisões precipitadas, ok? Consulte um professor antes de qualquer coisa, não se coloque em risco por questões que podem render em nada. Você pode se machucar ou acabar se metendo em confusão à toa. Confie na U.A. e em toda a segurança que é colocada à disposição de vocês.
— Não vou me meter na floresta sem ter um bom motivo para isso, Fat. Pode deixar
— Reformule a frase. Diga: “não vou me meter na floresta sob hipótese alguma para investigar fantasmas que podem ser qualquer outra coisa, menos assombração.” — o corrigiu.
— Tem que ser isso tudo mesmo? Já esqueci a metade.
— E não esqueça da parte mais importante: “amo o Fat Gum, ele é o melhor mentor de todos os tempos. Beijos para os fãs.” — o homem alto de trajes amarelos sorriu abertamente orgulhoso de si mesmo por cuidar bem de Kirishima e Amajiki. — Vamos, Eijiro. Repita comigo.
— Não vou entrar na floresta, Fat. Prometo. E você é o melhor de todos. Valeu pelos bolinhos. — completou já com a sobremesa na boca, mandando um flying kiss desajeitado para os “fãs”.
Era óbvio que quase todas — ou todas — as pessoas ali presentes sabiam quem era o cara gigante de roupa amarela e algumas reconheciam Suneater em seu traje característico, porém apenas um par de olhos fixou-se em Kirishima com o abdômen definido exposto pela roupa de herói trazia à vida a persona do Red Riot. Na mesa mais próxima à vitrine da loja, uma garota de cabelos castanhos com mechas coloridas prestava atenção em cada palavra dita por Eijiro e Fat Gum. Ela se encolheu contra a cadeira quando os três heróis aproximaram-se da porta para deixar o estabelecimento, certa de ter passado despercebida, até que, já um tanto longe, o rapaz de fios vermelhos espetados acenou em sua direção. Quem sabe tivesse mantido o olhar preso a ele por tempo demais, talvez acompanhado todos os passos dados, quiçá memorizado o ritmo da respiração dele enquanto prendia a sua.

•••

02:32
Quando acordou de supetão de um sono especialmente leve, Eijiro checou o horário mostrado no relógio digital que mantinha na mesa de cabeceira. Sentiu certo alívio ao ver que não eram três da manhã de novo, considerando que o susto da noite anterior tinha sido o suficiente; tampouco estava na hora de acordar para a aula. Só tinha de virar para o lado outra vez e retomar o sono de onde tinha parado.

02:47
Kirishima ficou preocupado por despertar mais uma vez antes do alarme ressoar pelo quarto. Estava certo de que tinham-se passado horas desde a última vez que olhou o relógio e teria de tomar cuidado para não cair em um sono pesado demais que o fizesse se atrasar. Quando visualizou os números em vermelho no display, mal acreditou que o esforço que tinha feito para voltar a dormir renderam meros quinze minutos de sono.

02:51
— De novo? — questionou mais ao Universo do que a si mesmo.
O cérebro parecia desligar, mas o resultado efetivo era praticamente nulo. Os minutos não passavam e cada vez mais aproximava-se das três horas. Virou de bruços e cobriu a cabeça com o travesseiro para que não sofresse interferências externas em outra tentativa de adormecer por mais de cinco minutos.

02:55
— Dorme Eijirinho do coração, não tenha medo da nuvem voadora das três da manhã… — o rapaz ninava a si mesmo em uma tentativa desesperada de adormecer, inventando músicas que o acalentassem e pudessem convencê-lo a não abrir a cortina para dar uma espiada no céu escuro.

02:58
— Ah, isso é sacanagem! — bradou. — Não adianta vir dizer que eu fiquei procurando chifre na cabeça de piolho, parece que até Deus quer que eu olhe. — jogou a manta sobre a cabeça — Não vou olhar! Não vou.

02:59
— Não vou olhaaaaar! — se debateu na cama.

03:00
— Será que é assim que o Deku se sente quando vem aquela urgência de fazer um negócio que pode dar merda primeiro e salvar o mundo depois? — indagou-se ao puxar o cortinado da mesma cor de seus cabelos com os olhos apertados, com receio de enxergar o que fosse aparecer na sua frente. A noite, ao contrário do que esperava, era silenciosa e o céu, limpo. A única presença brilhante era a lua que dava os primeiros sinais de minguar. — Está vendo, Eijiro? Não tem nada. Nadinha. Sossega e vai dormir. Era uma nuvem.
Kirishima fechou as cortinas com força e, para quem o conhecesse bem, sinais de contida frustração. Se jogou na cama e trouxe o cobertor todo para si, abraçando o emaranhado de tecido até que pudesse acalmar os pensamentos agitados e, finalmente, dormir.

•••

Eijiro acendeu o abajur e encarou os traços cansados de seu rosto no espelho de mão que usava para fazer a barba falha que despontava do queixo todas as manhãs, as bolsas arroxeadas que começavam a se formar sob os olhos por noites mal dormidas eram perceptíveis até aos mais distraídos. Cogitou ir à enfermaria no dia seguinte pedir um elixir para ajudá-lo a sustentar o sono que se tornava cada vez mais frágil, embora não soubesse como explicar à Recovery Girl o que vinha tirando sua paz. Seis dias seguidos despertando no meio da madrugada, incapaz de pregar os olhos até que passasse das três da manhã somente para garantir que ao abrir as cortinas não encontraria nada diferente da floresta escura e do breu da noite. Estava mentalmente exausto. Seu cérebro tirava sarro de uma preocupação descabida o tempo todo, afastando-o do tão almejado repouso.
Naquela madrugada em específico, estendera a vigília para além das quatro horas da manhã. Já tinha conferido a janela, estava tudo em ordem do lado de fora; ainda assim, o que o impedia de relaxar e dormir? Algo o incomodava, tal como tudo relacionado àquele acontecimento vinha fazendo, mas não conseguia definir do que se tratava. Por desencargo de consciência, optou por dar uma última olhadela na janela, apenas por garantia de que a paranóia que o perseguia não era nada além disso: paranóia. Desenvolveu memória muscular do movimento de agarrar o tecido vermelho e puxá-lo para lados opostos com força contida, de modo a não fazer barulho que pudesse, por ventura, enxotar o que veria do outro lado do vidro. Tinha uma série de frases de auto-consolo gravadas que vinha utilizando para compensar o inusitado mix de frustração, alívio e raiva que o acometia quando deparava-se única e exclusivamente com as corujas mirando-o de volta dos galhos mais baixos das árvores próximas. Estava absolutamente certo de que, uma vez mais, aquela insistente vigilância daria em nada.
Estava errado.
Por cima das copas de árvores distantes, um vulto brilhante flutuava e ensaiava acrobacias despreocupadas sob a escuridão da lua nova. Girava, corria, dava cambalhotas e rolava por alguns instantes antes de enfraquecer e sumir. Pouco depois, aparecia novamente e continuava de onde havia parado.
Eijiro sabia que precisava fazer algo a respeito, a hipótese de tratar-se de uma nuvem perdida estava totalmente fora de cogitação naquele ponto. O rapaz andava agitado ao redor do quarto, ir verificar do que se tratava era quase uma obrigação depois de tantos dias de plantão noturno não-requisitado; contudo, estava ciente de que poderia arranjar confusão por ignorar o aviso que Fat Gum dera. Respirou fundo e acendeu a convicção que o levara até ali e que, certamente, o guiaria pelo árduo caminho para ser um herói exemplar. Se não fosse ele, Kirishima Eijiro, a fazê-lo, quem mais seria?
— Foi mal, Fat. — murmurou.
Abriu a janela com o máximo de cuidado que a euforia o permitia, endureceu os músculos e pulou do parapeito até o chão. Sair pela porta era impossível naquele horário sem que o alarme de segurança tocasse e Eraser Head fosse enviado para averiguar a possível “fuga”, logo, a janela era a opção que restara. Já vira Midoriya fazê-lo quando saía antes do amanhecer para treinar ao lado do dormitório diversas vezes, não seria escorraçado por usar do mesmo artifício uma única vez.
Estava sem tempo para prestar atenção na dor causada pela queda, ajeitou minimamente as roupas, encaixou os chinelos nos pés e correu como se sua vida dependesse disso em direção norte, de onde vinha a luz do “fantasma”. Estimara cem metros entre o dormitório e a linha de chegada da corrida que travava contra si mesmo. O estômago embrulhado e os pêlos eriçados mostravam que a adrenalina começava a tomar seus neurônios, colocando-o em modo de luta, fuga ou o que mais fosse preciso fazer. Poderia ser um espírito, um aluno ou um invasor. Todas as três alternativas levariam ao término em confronto físico, a depender de como seria recebido pelo misterioso ser. Conforme acreditava estar próximo ao alvo, esforçou-se para ficar o mais quieto possível a fim de passar despercebido.
Correr por entre as árvores era particularmente difícil naquela noite sem luar, esbarrava e tropeçava em troncos a torto e a direito, acumulando arranhões nos braços desnudos e no rosto. Calça de moletom, camiseta e chinelos não o protegiam como o uniforme da U.A. fazia, teria sorte de voltar para o dormitório sem uma segunda cicatriz para marcar a face.
Em uma clareira pequena, um singelo espaço onde três ou quatro árvores poderiam estar, encontrou uma mochila cor-de-rosa e ninguém por perto. Pelo que tinha observado, seguramente pertenceria a quem procurava que, no momento, flutuava céu acima. Escondeu-se na penumbra entre os troncos antigos, protegido por trás de uma moita de onde pudesse enxergar bem e aguardou. Não demoraria para que a pessoa voltasse, não conseguia manter-se volitando por muito tempo. Enquanto vigiava, arriscou-se a dar uma volta pela clareira da forma mais silenciosa que pudesse, sabia que cada segundo era precioso. Ocultar a respiração ofegante era trabalhoso, mas controlar a curiosidade era duas vezes mais custoso para Kirishima. Um instante bastou, próximo de alcançar o outro extremo do local de onde partira, para que um flash branco explodisse, lançando ao chão um corpo feminino. De início, os contornos não eram claros, mas logo viu-se a silhueta de cabelos compridos tomar forma com o rosto voltado para o chão. Eijiro afastou-se do possível campo de visão dela, mantendo-se quieto embora quisesse comemorar em alto e bom som estar certo em sua hipótese. Ela estava ofegante, desalinhada e aparentemente tonta. Queria ver suas feições, porém ela fundiu-se ao tronco da árvore mais próxima mais rápido do que Kirishima esperava, deixando para trás a clareira escura. O brilho, então, passou a pairar no céu. Tinha subido outra vez.
Os intervalos entre seja lá o que ela estivesse fazendo encurtaram a cada nova tentativa. Em alguns momentos, Eijiro pôde enxergar mais detalhes do corpo espectral iluminado, quando ela aproximava-se dos galhos mais baixos e tentava agarrar-se a eles antes de tombar no chão novamente com um resmungo de dor. Queria entender como ela podia se misturar à madeira da árvore, de onde surgia a corda prateada que ficava como rastro de sua presença quando alçava aos céus, por que se machucava quando caía no chão, e, acima de tudo, quem ela era. Não sabia há quanto tempo estava ali, apenas percebeu que a noite parecia dar lugar ao dia rapidamente, os primeiros indícios de sol coloriam as nuvens de lilás; o amanhecer logo viria. Tinha de ir embora ou os colegas de turma dariam falta de sua presença, talvez encontrasse Deku treinando quando se esgueirasse de volta para o quarto; não fazia sequer ideia de como entraria sem fazer alarde, se jogar da janela era mais fácil que escalá-la de volta. Sairia de fininho tal como chegou à clareira e buscaria por mais respostas para aquele mistério em uma ocasião próxima, contanto que controlasse a curiosidade sufocante até lá.
— Até mais, Kirishima Eijiro.
Uma brisa leve foi soprada em seu ouvido e Eijiro podia jurar ter ouvido uma voz tão suave quanto o vento falar seu nome. Imediatamente endureceu os músculos e lançou-se para o meio da clareira; seria mais fácil localizar de onde vinha a voz estando em campo aberto do que no emaranhado de árvores. Ao que parecia, ela sabia que o garoto estava ali, logo, não tinha muitos motivos para se manter oculto pela escuridão que rareava com o passar dos minutos.
— Quem é você? — direcionou a pergunta ao alto. — Apareça!
— Estou aqui, ao seu lado. — disse, fazendo-o girar o pescoço para ambos os lados para procurá-la.
— Apareça, não seja covarde. — os caninos pontiagudos de Eijiro despontaram nas vistas da garota desconhecida, que não conteve um sorriso satisfeito. — Só quero conversar, não vou te machucar.
— Desative sua quirk e eu posso pensar em acreditar no que diz. — o “vento” respondeu.
— Para você me atacar? — Kirishima passou a língua pelos lábios ressecados pela tensão.
— Sabe que estou cansada demais para isso. — suspirou. — Você vem me observando há algum tempo, Kirishima, e eu também.
A respiração estava pesada; a visão, turva; estava incerta sobre quanto mais suportaria antes de colapsar. Era uma questão de segundos, apostou. Nunca tinha sustentado a quirk por tanto tempo na forma dispersa, sem poder voltar para o corpo com segurança.
— Quem é você? Diga seu nome. — Eijiro insistiu. — Você é da U.A.? Por que ninguém te conhece? Como funciona sua quirk?
A pouca proteção que tinha vinha da árvore a qual parasitava, roubando energia e vitalidade para estabilizar-se minimamente, mas até para isso havia um limite seguro. Não sabia o que viria a acontecer caso o ultrapassasse. Por que ele fazia tantas perguntas?
— Não tem medo de se machucar? — estalou os nós dos dedos — Não se faça de difícil. Você sabia que eu viria, não é?
Ela precisava desacoplar da árvore ou sucumbiria à exaustão e deixaria para trás o perispírito como átomos vagando pela imensidão. Mal se orientava espacialmente, era incapaz de apontar para que lado estava seu corpo físico. Era o fim.
— Estava te esperando, Eijiro. — pela primeira vez a voz que o chamava parecia real e não somente uma lufada de ar. A forma como pronunciava seu nome era íntima, trazia certo desconforto ao mesmo tempo que o aquecia.
O corpo pálido que surgia em terra por segundos antes de retornar às cambalhotas aéreas tombou ao seu lado, saído da árvore mais próxima. Pelos reflexos treinados, o rapaz tentou aparar a queda, no entanto, o espectro passou diretamente por sua carne, afundando no chão aos seus pés. O brilho branco característico tinha dado lugar a uma oscilação luminosa inconstante, tal qual uma lâmpada prestes a queimar. Os olhos esbugalhados de Kirishima acompanharam em câmera lenta a queda e o emergir de um braço fino do exato ponto onde o chão absorvera o vulto. O membro tateava o solo ao redor debilmente como um afogado que pede socorro. Sem hesitação, Kirishima pôs-se a cavar; o corpo daquele “fantasma” estava enterrado ali.

•••

— Volte para a aula, querido. Peço para alguém te avisar caso ela acorde.
— Ah, dá para esperar aqui mais um pouquinho. É aula do Cementoss, ele alivia nossos atrasos quando são por um bom motivo.
— E o seu motivo é bom, meu jovem?
— É sim, Recovery Girl.
Recovery Girl.
Como tinha ido parar na enfermaria? A última coisa de que se lembrava eram íris vermelhas encarando-a de cima antes de tudo escurecer.
Kirishima Eijiro.
Ele estava ali, sua voz era inconfundível com a vibe cool que lhe era característica. Estava pronta para o interrogatório que viria tão logo quanto soubessem que tinha despertado? Precisava decidir entre fingir que continuava inconsciente ou assumir que estava acordada e esclarecer coisas para as quais talvez não houvesse explicação crível.
Desde quando pisou naquela escola tinha jurado ser sincera consigo mesma e com os demais, pois uma pessoa amada que há muito a deixara lhe ensinou que o que se tem de mais valioso é a palavra e a honra. O fim justificaria os meios que percorreu para chegar até ali. Desta maneira, firmou os membros ainda trêmulos e se sentou no leito da enfermaria.
— Eijiro? — chamou com a voz vacilante. Ele poderia receber mal a estreiteza de laços com alguém que não conhecia e repreendê-la por isso, todavia era muito difícil para ela desapegar do tom carinhoso com que as sílabas saíam de seus lábios.
Manteve a cabeça ligeiramente baixa demonstrando respeito, mas sem privar-se de mirar as orbes vermelhas do rapaz que se aproximava a passos largos.
— Como se sente, meu bem? — Recovery Girl se adiantou, verificando a temperatura de sua testa e batendo em seu cotovelo com um martelinho para avaliar os reflexos.
— Normal. Um pouco tonta apenas. Estou aqui há muito tempo?
— Kirishima a trouxe cedo-
— Há cinco horas. — o rapaz de cabelos espetados interrompeu a idosa. — Desde as seis da manhã.
— Então são onze horas?
— Uhum. — confirmou.
— Nossa… — passou a mão pelo cabelo amassado pelo travesseiro, puxando-o para trás.
— Maneiro esse arco-íris. — Kirishima tocou a ponta das mechas coloridas com as sete cores que cruzavam os céus no meio dos fios castanhos claros.
— É a marca de uma promessa. — respondeu ao elogio com um quê de tristeza, buscando no olhar fixo do rapaz sinais de reconhecimento.
— Vou dar espaço para que vocês conversem; me chamem caso precisem de algo, crianças. Falei com o professor responsável pela turma 1-D, , pode ficar aqui o tempo que achar necessário.
— Obrigada. — agradeceu.
Assim que Recovery Girl saiu de perto, Kirishima puxou o cortinado ao lado do leito, isolando-os do restante da enfermaria. Embora aparentemente tranquilo, sua expressão carregava tensão, os cantos dos lábios travados davam indícios de que ele tinha muito o que dizer.
— Vamos lá, não sei nem por onde começar. Cara, que confusão! — passou a mão pelo rosto — Você é aluna de estudos gerais, então? 1-D. Beleza. Seu nome? o quê?
.
— Espera. — concentrou-se para buscar alguma coisa — Você é a menina do corredor! E a da loja de bolinhos! Meu Deus, você tá me perseguindo? — apoiou os braços no colchão, aproximando seu rosto do de .
— Eijiro. — o chamou suavemente, lembrando ao garoto de como o “vento” tinha se dirigido a ele. — É uma história complicada.
— E muito doida. O lado bom é que você não é um fantasma, o lado ruim é que você é uma stalker.
— Não sou stalker. Nos conhecemos há muito, muito tempo, você só não lembra.
— Eu me lembraria de uma quirk que nem a sua, não é uma coisa que se vê todo dia. Você faz o quê? Sai do corpo? Dá para possuir outras pessoas? Esse negócio de dar cambalhota no céu tem um propósito ou é pura zoação? Se você sabia que eu estava na clareira o tempo todo, por que deixou para falar comigo quando eu estava indo embora? Não tinha uma forma mais relax de fazer isso? — ele mal respirava, atirava perguntas no colo da menina como uma metralhadora. — Se nos conhecemos, por que veio falar comigo só agora?
— Imagino que tenha muito o que perguntar, mas preciso ir embora. — se levantou do leito com certa dificuldade, apoiou as mãos na cabeceira para dar sustentação às pernas enfraquecidas e jogou sobre os ombros a mochila deixada de lado. A enfermaria não era o lugar certo para aquela conversa. — Obrigada por ter me trago até aqui em segurança.
— Como assim?! — Kirishima soou quase revoltado. — Não pode simplesmente fugir desse jeito, !
— Nada do que eu disser agora fará sentido se não tiver como provar. Se quer saber mais sobre mim e sobre nós — frisou —, me encontre mais tarde no parque de diversões desativado perto da praia de Takoba.
Eijiro refletiu em silêncio sobre as muitas possibilidades englobadas naquela oferta, inclusive de ser uma armadilha.
— Que horas? — arriscou.
— Depois do estágio com Fat Gum. Venha para a escola primeiro e saia logo em seguida, entendido? Não aja de forma suspeita.
— E se eu não for?
— Neste caso, vai passar as próximas noites em claro porque o seu maior pecado é ser curioso demais, Eijiro. Não vai ter paz enquanto não vier falar comigo. — a maneira como ela era certeira e firme em cada palavra que proferia deixou Eijiro um pouco desconcertado.
— Vou pensar…
— Pode me acompanhar até a saída? — perguntou quase inocentemente.
Aliás, inocente era uma característica deveras condizente com a imagem que passava. Alguma coisa dizia a Kirishima que não era seguro tomar esta primeira impressão como sendo a realidade. Recordou-se claramente de Fat Gum dizendo que um bom herói suspeitava das situações ao redor e, bem, aquele papo era suspeito o suficiente para acender as luzes de emergência do seu cérebro.
— Ahn… tá. — concordou mesmo assim.
— Recovery Girl, obrigada pelos cuidados. — curvou-se brevemente frente à senhora.
— Tão cedo, querida?
— Preciso ir andando para estudar, sabe como são as provas. — sorriu simpática.
— Sente-se bem? — checou.
— Sim, sim. Estou ótima. Antes, poderia dar uma olhada na minha barriga um instante? Estou com um formigamento engraçado perto do umbigo.
— Claro. Kirishima, vire de costas para ficar confortável, por favor.
— Não precisa. — sempre soando agradável, a garota de mechas coloridas prosseguiu. — Somos próximos, não é, Eijiro? — a força contida nos olhos cor-de-rosa deixava claro que não esperava receber uma resposta negativa.
— Sim. — murmurou.
— Pensei que tivesse dito mais cedo que não a conhecia, Kirishima. — a idosa baixinha pontuou.
— Ele gosta de se fazer de difícil. — a garota retrucou.
ergueu centímetros da barra da blusa ainda suja de terra que vestia, revelando a pele clara com placas avermelhadas por toda parte e hematomas pontuais. O que prendeu a atenção de Kirishima, no entanto, foi a corda prateada que saía do umbigo, a mesma que avistara quando a observava na clareira. Eram poucos centímetros que se projetavam para fora, não mais que cinco ou seis, e surpreendentemente, Recovery Girl parecia não enxergar nada daquilo.
— Tudo em ordem por aqui, querida. Caso queira fazer uns exames complementares, podemos marcar para mais tarde, que tal? Aparentemente você está em perfeito estado.
— Que ótimo. Tenho um compromisso importante mais tarde, tem problema se eu voltar amanhã para esses exames?
— Pode ser, avise seu professor e venha no intervalo das aulas.
— Obrigada. Você vem, Eijiro?
— Pode ir na frente. Vou ao banheiro. — respondeu ainda estupefato.
— Certo. Te vejo mais tarde.
deixou o local em uma batalha interna entre o triunfo e o receio das consequências de abrir a Caixa de Pandora.

•••

O pôr-do-sol alaranjado era particularmente bonito de se observar à beira da praia. Sem barulhos ao redor, apenas os brinquedos vazios há muito abandonados e o som das pequenas ondas quebrando na areia próxima. Qualquer palavra era desnecessária e poderia perturbar a quietude em que sua mente estava desde que chegara ao local, embora fosse durar muito pouco. Sentado ao seu lado no banco de madeira gasta, Kirishima folheava um álbum de fotos em preto e branco com várias perguntas pululando na mente enquanto permanecia em silêncio completo. As sinapses aceleradas entre os neurônios eram quase visíveis para , o cérebro dele estava fritando.
— Pode falar, Eijiro. Vai acabar explodindo de tanto engolir a seco.
— Não entendo. Onde essas fotos foram tiradas? — questionou sem tirar os olhos das fotografias.
— Aqui, neste exato lugar.
— Impossível, o parque está desativado há uns vinte e cinco anos.
— Olhe ao redor e tire suas próprias conclusões. — indicou com a mão esquerda as instalações condizentes com os retratos.
— Não… não dá. Aqui no verso diz que essa foto é de 1960, cara. Estamos em 2034!
— Sim, está certo.
Quando chegou ao local marcado, Eijiro sentia que carregava cinco quilos de pedras em cada bolso. Deixou todos os pertences no dormitório, indo ao encontro de , a garota cheia de mistérios que teimava em perturbá-lo, apenas com o celular e a carteira no bolso. Trocara o traje de herói por roupas simples, não tinha motivos para se arrumar além disso, mal sabia o porquê de ter topado aquela ideia quase suicida de encontrá-la em um lugar deserto e afastado da cidade. Ela sabia lê-lo, conseguiu atraí-lo aguçando sua curiosidade, era arriscado ficar perto mais que o necessário. O tempo todo queria sair correndo, mas a forma carinhosa como ela falava seu nome parecia realmente familiar e o fazia querer dar uma chance à história que ela tinha para contar, embora as peças não se encaixassem na narrativa que construía. Era óbvio que ela estava mentindo, não havia maneira daquilo ser realidade. Uma montagem, provavelmente. Retirou a fotografia do plástico que a protegia e tateou as bordas gastas do papel. Era antigo de verdade. Seus olhos estariam enganando-o?
— Quem é esse cara? — apontou para o rapaz de cabelos escuros caindo sobre a testa. — Não é possível. — negou com a cabeça. — Qual o nome dele?
— Kirishima Eijiro. — respondeu pausada e tranquilamente.
— Fala sério, cara. Sem brincadeira.
— Pareço estar brincando?
Kirishima mirou-a no fundo dos olhos rosados em busca das respostas que ansiava.
Não era brincadeira.
Os traços do homem eram muito similares aos seus, quiçá idênticos, embora a pessoa da foto fosse ligeiramente mais velha. Trajando uniforme de bombeiro, Kirishima Eijiro sorria de pé em frente ao banco em que Kirishima Eijiro estava sentado.
— O que-... Deus do céu. Por tudo que há de mais sagrado, pela sua quirk, pela sua família, sei lá o que é importante para você, me diga a verdade. Quem é esse cara e por que ele se parece tanto comigo?
Silêncio.
— Diga, ! — pressionou-a. — Você me chama até aqui depois de me perturbar tanto para despejar um caminhão de bosta em mim e ficar quieta?
— Esse é Kirishima Eijiro, o meu avô. E ele se parece contigo porque vocês dois são a mesma pessoa.
— Ótima piada. Dê os meus parabéns a quem fez essa montagem para você, ficou perfeita. — devolveu a foto à capa plástica.
— Você acha que tudo que é incapaz de compreender é brincadeira? Que inferno. — bufou.
— Não há explicação racional para isso! Estou sendo feito de besta.
— Eijiro, você está ignorando uma série de fatores que corroboram para validar que estou te dizendo.
— O quê? — indignou-se. — Não me venha com palavras rebuscadas.
— Continue vendo as fotos. Vamos, desemburre essa cara e passe as páginas.
Nas imagens seguintes, o Eijiro bombeiro sorria abertamente enquanto olhava para o carrossel iluminado, o mesmo cujos cavalos desbotados repousavam em descanso eterno atrás do Eijiro herói. Os caninos pontiagudos eram os mesmos, o corte de cabelo era o mesmo, o jeito de parar com as mãos nos bolsos era o mesmo. Na última fotografia do álbum, ele carregava nos braços uma mulher com os exatos traços da garota com quem o jovem Kirishima dividia o banco.
— Mas que-
Akemi, minha avó. — respondeu à pergunta que pairava entre os dois, estampada na expressão congelada de Kirishima. — Antes que você diga qualquer coisa, por favor, por favor, Eijiro, leia essa carta. — retirou um envelope da bolsa, entregando-o ao rapaz.
— Em voz alta? — embora desacreditado, o rapaz precisava de respostas. abrira uma porta que ele sequer imaginava como viria a fechar.
— Como preferir.
— Para minha amada Akemi… — começou titubeante. A caligrafia era bagunçada e espaçosa como a sua, não sabia o que pensar daquilo. Gostaria, por um minuto apenas, de não ter sido alfabetizado. O que aquela carta continha talvez causasse danos à sua sanidade.

Para minha amada Akemi,

Desde o momento em que pus meus olhos em você, soube que tinha encontrado a mulher com quem dividiria todos os amanheceres e anoiteceres até o fim dos meus dias. Linda e delicada como uma flor desabrochando, ao mesmo tempo que carrega a força de uma tigresa nas veias. Posso sorrir abertamente mesmo quando você é malvada comigo pois sua presença me traz alegria. É esse o tal encanto que as mulheres têm, capaz de amolecer o mais resistente dos homens?
Vou declarar meu amor por você até que me faltem palavras e, quando isso acontecer, arranjarei outra maneira de aplacar o incessante desejo do meu coração por completá-la de corpo e alma. Usarei as roupas que você gosta que eu vista, chamarei um carro como os dos ricos para levá-la até o palácio das deusas do céu infinito, de onde sua perfeição veio.
Minhas bochechas estão esquentando enquanto escrevo isso no intervalo de descanso de mais uma noite protegendo a cidade. Anseio pelo momento que voltarei para nossa casa e colocarei-a em meus braços, ouvirei sua risada e criaremos mais e mais memórias do nosso jovem e refrescante amor. Que o nosso final feliz seja todo dia.
Guardo como um tesouro o retrato que tiramos em frente ao carrossel do novo parque. Você está estonteante, sua beleza contagia os arredores, Akemi. Até eu pareço bonito quando estou ao seu lado.
Como no carrossel iluminado, onde estiver, meu coração vai de encontro ao seu, dona dos meus pensamentos. Espere por mim, estou voltando para você.

Eternamente seu,
Eijiro.

Ao final da leitura, a voz de Kirishima era nada além de um sussurro.
— Ele morreu na noite em que escreveu isso, preso sob a viga-mestra de uma casa em chamas. Minha avó estava grávida de poucas semanas, sequer teve tempo de contar a ele. — cada palavra dita machucava-a como um soco no estômago. Leu aquela carta muitas vezes, mas ouvi-la na voz dele fazia emergir uma dor quase insuportável cuja fonte não sabia especificar.
— Sinto muito. — Eijiro pôs uma mão delicadamente sobre o ombro dela, oferecendo conforto como podia embora fosse uma situação em que o próprio se via pisando em brasas.
— Ela faleceu menos de um ano depois. Dizem que foi de saudade.
, eu-
. Pode me chamar de . — cortou-o.
— Beleza. — recomeçou — , isso é uma grande loucura. Você acha que…
— Tenho certeza.
— É impossível.
— A vida é feita de ciclos, Eijiro. — mirou as ondas indo e voltando de encontro à areia. — Os encontros acontecem repetidas vezes.
— É uma coincidência, só isso.
— Não acredito em coincidências.
— Sua quirk… Como funciona? — perguntou enquanto tinha a oportunidade de fazê-lo. Ganharia tempo para processar a revoada de pensamentos que o tomava.
— Quando manifestei ela pela primeira vez, minha mãe me levou a uma xamã, não a um médico. Entregou o coto seco do meu cordão umbilical a ela, que colocou um feitiço nele.
— Para quê?
— Não sei, imagino que tenha ficado assustada em ver o corpo da filha “morrer” e ressuscitar pouco depois. — deu de ombros.
— Ué, mas a corda prateada que-
— Ela não vê. Ninguém vê o cordão de prata, Eijiro. Nem meu perispírito é visível quando deixo o corpo.
— Por que eu vejo? — indagou. Tinha vergonha nenhuma de parecer burro fazendo tantas perguntas, ouvira tantas coisas inacreditáveis que aceitaria as explicações mais insólitas para evitar o derretimento dos seus neurônios.
— Ela, a xamã, fez uma profecia com esse feitiço, alguma coisa sobre o destino da minha família depender do encontro daqueles que foram separados pelas circunstâncias do destino. Essas almas não tiveram direito ao descanso eterno e voltaram ao plano terreno para viverem juntas novamente.
— Tá, mas por que eu vejo o que os outros não veem?
— Porém esse feitiço tem um revés dito pela profecia. Caso as almas não se encontrem, elas cairão em sofrimento e voltarão ao mundo espiritual. Acredito que tenha visto as manchas pelo meu corpo na enfermaria.
, responda à minha pergunta.
— O tempo que passei na floresta serviu para duas coisas. Primeiro, para chamar sua atenção porque você é muito curioso e não se aguenta, teria de vir até mim de um jeito ou de outro. Segundo, para aprimorar meu controle sobre a quirk por tempo suficiente para fazer o que precisa ser feito.
! — levantou-se.
— Meus órgãos estão adoecendo pouco a pouco, Eijiro. Minha passagem por este corpo é breve.
! — repetiu o nome da castanha, dessa vez mais próximo a um rosnado. Estava perdendo a paciência. — O que tenho a ver com essa loucura toda?
— Demorei para te encontrar, demorei mais ainda para controlar o feitiço. Não posso perder a oportunidade. — ficou de pé e ergueu a blusa pela segunda vez no dia, expondo o umbigo. Kirishima observou o cordão de prata projetar-se para fora da pele dela tão fixamente que percebeu o quão próxima ela estava de si somente quando a mão pequena puxou sua camisa para cima. — Você tinha razão. De certa forma, eu sou um fantasma. E você também.
— O que está fazendo?!
Os dedos frios de roçaram seu abdômen. Do umbigo de Kirishima surgiu um cordão de prata tal como o de . Tudo gelou, a respiração do rapaz falhou e o corpo não respondia mais aos seus comandos.
— Você é a outra metade da profecia. Desculpa, Eijiro. — fechou os olhos e o arco-íris presente nas mechas do cabelo dela apareceu no céu. Mesmo que tentasse, Eijiro não conseguia se mexer tampouco ativar sua quirk. Qualquer plano de fuga era inviável.
Os cordões de prata tornaram-se mais longos conforme sussurrava palavras que Kirishima não compreendia e circundaram os troncos de ambos, prendendo-os juntos.
Como no carrossel iluminado, onde estiver, meu coração vai de encontro ao seu, dona dos meus pensamentos. — os lábios de Eijiro proferiram, sem seu consentimento, as palavras que lera na carta minutos antes. Era um mero fantoche de .
Os cordões fundiram-se em um só e a luz prateada passou a brilhar vermelha como sangue.
O arco-íris que pairava sobre eles se desfez, sumindo no horizonte juntamente com a consciência de ambos.
No fim da noite, início de madrugada, um grupo de pessoas que passava nas proximidades da praia de Takoba relatou à polícia que, pela primeira vez em vinte e cinco anos, o carrossel do velho parque de diversões girava com as luzes acesas e música tocando. Ao lado dele, os policiais encontraram dois adolescentes desacordados.



FIM!



Nota da autora: Oi, que bom que você chegou até aqui!
Ficamos com gosto de “quero mais”? Ficamos, graças a Deus. A história de Kirishima e Hikari tem alguns pontos que precisam de respostas, afinal, que rolê foi esse! Logo, tenham certeza que teremos continuação entrando no site em algum outro ficstape, como uma fic nova, não sei ainda. Mas tem que ter continuação senão a autora morre. Fiquem ligados.
Aguardo palpites, apostas, fofocas e hipóteses para solucionar esse mistério nos comentários <3

P.S.: Kiri, Tamaki e Fat Gum são meus personagens favoritos de BNHA, é uma delíiiicia escrever com eles!
P.S. 2.: Não escrevo uma fanfic de anime há doze anos, socorro Deus.

Sempre sua,
Nimuë.



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