- Eu disse que estaria lotado. - riu ladina para o acompanhante, ao abrir a porta e se deparar com um mar de pessoas. - Falei que deveríamos ir ao Temple Bar. - Deu de ombros.
- Aquele paraíso de turistas? Nunca. Meu bolso agradece. - respondeu e segurou a mão da moça, adentrando o local. ria da situação: Se havia algo que o namorado não gostava, eram lugares lotados, mas o orgulho dele conseguia superar o desconforto. Ou ao menos aparentar isso. Pelo menos 100 pessoas permeavam o bar que se propunha, em capacidade máxima, acolher 60. Dublin, durante os fins de ano, acolhia turistas do país todo, além dos internacionais, então os pubs ficavam superlotados, mesmo em quartas-feiras. O cheiro de cerveja preta era sutilmente diferente dos demais e incensava o ar, enquanto os dois atravessavam as numerosas pequenas aglomerações de pessoas a caminho do balcão.
- Duas. Com colarinho. - deixou os euros sobre a mesa. Rapidamente o barman recolheu o dinheiro e trouxe os dois copos exageradamente longos recheados de líquido escuro. Com um cumprimento de cabeça, o homem deixou o local com a namorada, seguindo para um sofá de canto, que tinha um espaço perfeito para os dois.
- Realmente, Guinness em Dublin é diferente. - falou, retirando o copo da boca. - Você sente o sabor do início ao fim, não existe aquele amargor na base da língua. Te disse, deve ter a ver com o transporte. - Riu, fazendo o companheiro balançar a cabeça em negação, não conseguindo reter um riso fraco.
- Não é gourmet, , é cerveja. - Beijou sua bochecha.
- Não é porque é cerveja que não se valha a análise. - Deu de ombros. A conversa seguiu simples e divertida até que, por volta das onze, o local estava simplesmente intransitável. A música se tornou ensurdecedora e as pessoas cada vez mais espremidas, as muitas línguas sendo faladas apenas intensificavam o sentimento máximo de claustrofobia. Depois de alguns minutos tentando relevar o que ocorria em seu entorno, o homem sentiu um casal de moças aos beijos cair sobre seu colo.
- Desculpa. - A loira riu escandalosamente, em seguida retornando a atenção à morena em sua frente, de volta agora ao seu lado do sofá.
- Enchi o saco. - Ele se levantou e estendeu a mão livre para a namorada. - Vamos lá fora, amor. Preciso realmente de um ar. - Ao sair do local pela porta lateral, a realidade os enfrentou com uma rajada de vento. Era inverno na Irlanda, o que implica em temperaturas negativas e brisas gélidas. engoliu em seco e lentamente se escorou no muro de tijolos vermelhos.
- Acho que foi o choque térmico. - riu, o abraçando.
- Obrigado. - Ele envolveu os dois com seu casaco, compartilhando calor. - Achei que o aquecimento global tinha atingido a capital, mas pelo visto ainda é muito frio por essas terras.
- Mamãe me disse que em Cork fizeram - 4°C ontem. Estamos melhor aqui. - Sorriu.
- Você acha que ela vai aceitar? - Falou em baixo tom, escutando apenas o longínquo barulho das ruas e das pessoas no prédio no qual se escorava.
- Acho que vai relutar um pouco, mas vai terminar cedendo. - Deitou a cabeça no peito do homem. - Foi exatamente assim quando Aoife decidiu casar.
- Mas você não vai só se casar comigo, . Aoife ainda mora duas ruas abaixo dela, e houve até festa de despedida. Nós vamos casar e nos mudar para outro condado. Cork fica a três horas de carro, a duas horas e meia de trem. É longe, amor, por menor que seja o país.
- Ela sabe que não consigo ascender na carreira trabalhando só online. Preciso estar aqui. - Suspirou. - Vamos falar de outra coisa? - Olhou pra cima, se perdendo por um segundo no brilho de seus olhos.
- O que achou da casa? Da vizinhança? - Colocou os cabelos, que insistiam em cair no rosto, por trás da orelha da moça.
- As casas são todas iguais, amor. - Riu. - Eu queria um lugar calmo assim. Apesar de Ballinteer ser Dublin 16, o que é bem longe da Main Street, eu achei sensacional. É perto do shopping, de hospitais, de escolas... - Sorriu brincalhona.
- Escolas? - Ergueu uma sobrancelha, divertidamente. - Eu te amo, mas não é um pouco cedo?
- Planos a longo prazo nunca mataram ninguém. - Gargalhou, enquanto ele fazia cócegas em seu pescoço com o nariz. - Para! - Ambos estavam tão felizes que a cena era algo lindo de se ver. Então, como se faltasse algum elemento mágico, a neve decidiu cair. Começou fraca e inconstante, mas engrossou na medida que o tempo passava, até que os dois se viram completamente cobertos de branco, assim como o chão daquele beco.
- Acho que devíamos entrar ou vamos congelar aqui. - Retirou alguns flocos do cabelo da moça. - A não ser que... - Aproximou a boca dos lábios à sua frente, com um olhar bem conhecido pela moça.
- Vai sonhando. - Deu dois tapinhas no peito dele e entrou novamente na construção, sorrindo.
- Ainda não entendo seu problema com beijos em público. - A seguiu, sorrindo ladino, adentrando o bar e andando em direção à uma mesa.
- Não tenho problemas com beijos em público. - Tocou seus lábios rapidamente, prosseguindo com sua caminhada. - Meu problema é com gente se agarrando em público, totalmente diferente. - Sentou-se na mesa de canto. - E eu tenho certeza que aquilo não era só um beijo. - Piscou.
- Culpado. - Ergueu os braços em um sorriso, sentando de frente à ela. - Duas. - Chamou novamente o garçom, que momentos depois trouxe os dois copos cheios, recolhendo os vazios e o dinheiro.
- Melhor comer algo antes que o pior aconteça. - riu, apontando para o quarto copo do rapaz. - Irlandês ou não, álcool ainda é álcool.
- Você ainda não está embaçada, então estou bem. - Brindou com ela, arrancando um sorriso da mesma.
- Amor... - Deitou a cabeça no próprio ombro.
- Certo, certo. - Segurou a mão dela. - Como é o nome da batata sorriso?
- Noisette. - Riu. O homem chamou o garçom e, orgulhosamente, pronunciou a palavra. "Noisette". O local agora estava lotado de indivíduos fugindo do frio externo, todos em busca de bebidas que aquecem o corpo e o máximo de calor humano possível. Distintos sotaques permeavam as mesas e, de vez em quando, turistas não entendiam bem o que estava sendo falado. Às vezes, nem os próprios cidadãos de Dublin entendiam o sotaque do casal, apesar de Cork ser o maior condado do país. - Preciso ir ao banheiro. - Avisou. No momento que levantou, pôde sentir uma mão firme segurando seu antebraço.
- Quanto tempo, doçura. - Ao se virar, a garota notou quem era o locutor da frase. já havia entrado em posição de alerta, mas permaneceu sentado devido ao leve movimento de mão que recebeu da namorada.
- Oi, Flynn. - De modo calmo, retirou a mão do homem de si e esbanjou um sorriso, tentando fazer média da situação.
- Não sabia que estava em Dublin. - Riu debochado. O cheiro de álcool era intenso, e claramente ele vinha bebendo desde cedo. O aspecto dele era mais do que desagradável ou sujo, era nauseante. - Mas estou feliz que está. - Agarrou os dois braços da garota, a puxando para perto. se levantou e se aproximou da cena em um instante, intervindo no contato. Flynn era o ex namorado de , o primeiro, os dois fizeram, inclusive, faculdade juntos. Ele sempre foi agressivo, e a moça não tinha um temperamento muito fraco, então brigas eram diárias, mas o comportamento dócil e amoroso dele no dia seguinte fazia com que a garota ignorasse os ocorridos. Flores, cartões, chocolates, declaração, tudo. Até que ele apareceu drogado e ela apanhou. Realmente apanhou. Depois disso o relacionamento acabou, mas queixas nunca foram prestadas, apesar de que deveriam. Sabe-se lá quantas garotas sofreram na mão dele? Quando Flynn finalmente se mudou para Dublin, a trabalho, as coisas se acalmaram. Dois anos atrás, conheceu , e ele era realmente diferente. Ele fazia a frase "Depois de um furacão, vem um arco-íris" fazer sentido, por mais piegas que isso soe. Não que ele fosse perfeito, longe disso, mas eles se encaixavam.
- Acho que ela não deixou você fazer isso. - disse, em tom forte, retirando as mãos do homem dela.
- Eu só quero um beijo. - Piscou. estava sem ação, achava que havia superado o trauma, mas ele estava bem ali, a segurando. Entretanto, esse era o momento de mostrar que ela tinha força, que ele não era ninguém.
- Eu não posso, me desculpe. - Ergueu a mão direita, calmamente. Sem demonstrar terror, medo ou até nervosismo. - Eu tenho um noivo. - Nesse momento, os olhos do brutamontes ficaram vermelhos de sangue e seu maxilar ficou altamente cerrado. Ele apertou os braços da moça, que tentou não esboçar reação, por maior que fosse a dor. Até que o inesperado aconteceu.
- TODO MUNDO NO CHÃO! - Flynn largou e, em um ágil movimento, retirou uma pistola do pesado casaco, a apontando para o teto. O pânico foi imediato. - EM SILÊNCIO! - Aos poucos, as fichas das pessoas foram caindo e algumas inclusive começaram a chorar.
- Flynn... - pediu, já ajoelhada e, instintivamente, com as mãos atrás da cabeça.
- Cala a boca, vadia. - Apontou a arma para ela enquanto retirava um saco plástico enorme do bolso da calça. - DINHEIRO, JÓIAS, RELÓGIOS, CELULARES E TUDO MAIS QUE É DE VALOR AQUI DENTRO. - Jogou o saco em uma mulher com cerca de 50 anos. - SE TIVEREM MENOS DE CINCO MIL EUROS EM DINHEIRO, EU ESTOURO A CABEÇA DESSA PROSTITUTA AQUI. - Balançava a arma em direção à , colando-a na testa dela. - DEPOIS ESCOLHO OUTRA PESSOA E O PREÇO SOBE. - não via a vida passar diante dos seus olhos naquele momento, como em um filme ruim, ela só conseguia pensar em uma coisa. Uma coisa extremamente banal, mas que não dava espaço algum para memórias de infância ou sucessos pessoais. Por algum motivo, o par de sapatos laranja de , por mais terrivelmente feio que fosse,ocupava toda a mente da garota, e isso de certa forma a acalmava. Tantas coisas a se comprar, tantos passeios a se fazer, tantas viajens a se embarcar e tantas partidas a se assistir, por que ele havia gasto metade de seu salário naquele apetrecho medonho que só usava uma vez ao mês?
- Flynn, você não precisa fazer isso. - sussurrou e fez a garota voltar à realidade. O que ele estava fazendo?
- Não preciso? Quem porras é você pra dizer que não preciso? - A arma agora estava na cabeça do homem.
- Flynn... - sussurrou, em uma súplica por piedade.
- Você é burra ou quer morrer? - A arma voltara à testa dela e algumas pessoas um pouco atrás começaram a chorar de angústia. - Ah... - O homem armado parou por alguns instantes e riu, obviamente transtornado. - Ele é o coitado que quer casar com você? - não respondeu, só engoliu em seco, torcendo para que o saco voltasse cheio e esse pesadelo logo acabasse. Porém isso estava longe de acontecer. Menos de um milésimo de segundo após o suspiro da garota, o criminoso chutou fortemente o estômago de , o fazendo cair no chão. Alguns gritos foram ouvidos, de pânico ou talvez apenas de susto. - ENCHAM A MERDA DA SACOLA!
- Flynn... - Ela chorava, reprimindo a duras penas os soluços que forçavam seus caminhos pela garganta.
- Qual é a sua tara com meu nome, hein? "Flynn, Flynn, Flynn..." e nada mais. - Se agachou de frente à moça. - Eu te dei tudo, e você me abandonou. Tudo, doçura. Eu não te devo nada, mas você sim. Me deve tudo o que eu quiser... - Passou a arma no maxilar dela. - Eu realmente não esperava a sua presença aqui, mas tenho que assumir que deixa tudo melhor. Foi um golpe de muita sorte, entretanto, não é justo você que vá me impedir de fazer algo. Eu faço o que eu quiser, . O que eu quiser. - Seus semblante agora carregava ódio, ódio esse que foi externado com uma coronhada na base do pescoço do homem já deitado no chão. O choro da garota se transformou em gritos desesperados enquanto tentava se aproximar do corpo inconsciente. - Fica quietinha ou eu mato todo mundo aqui dentro. - Falou, extremamente calmo, e ela obedeceu. - Se eu soubesse que te bater te deixaria tão obediente, teria começado antes. - Riu, ficando de pé novamente. O saco rapidamente voltou às suas mãos e a contagem das notas durou minutos excruciantes. - Seis mil trezentos e oitenta e quatro euros. - Sorriu ladino, colocando novamente tudo dentro da sacola e a amarrando. Andou mais uma vez até o casal e sorriu. - Considere isso como um favor, "".
E foi isso. Um único tiro. O mundo parecia estar em câmera lenta e uma ânsia de vômito dava sinais na garganta de . Ela observou, parada, Flynn sair pela porta. Observou, parada, o sangue escorrer pelas costas do homem que amava, logo ao seu lado. Observou, parada, diversas pessoas tentando estancar o ferimento, chamar uma ambulância ou apenas manter ele ventilado. Só observou, parada. Os gritos estavam presos no pulmão e nenhuma lágrimas saía, nem se forçada. Agora sim, a vida dela passava em frente a seus olhos, completamente fora de ordem. O pedido de casamento, o dia em que se conheceram, os olhos do Flynn quando a deu o primeiro soco, o pudim de chocolate da sua tia, a casa em Ballinteer, o maldito sapato laranja, o sorriso e a voz de quando diziam "Eu te amo", o primeiro jantar que ele cozinhou para ela, os nomes de filhos que eles haviam escolhido só por brincadeira, as batatas sorriso... Tudo. Tudo destruído em um breve instante. Toda a impotência e indireta culpa a sufocava, pressionava seu peito e silenciava tudo. Era dor. Dor sem choro, sem gritos, sem brigas, era pura e fria dor. O brilho azul e vermelho das sirenes era um vulto na visão da garota, que permanecia em choque. Pessoas balançavam as mãos em frente ao seu rosto, mas ela não encontrava forças para reagir. Sentiu seu corpo ser erguido e transportado para um veículo, viu médicos e enfermeiros, viu luzes, mas tudo em silêncio. Um intransponível e, de certa forma, inquebrável silêncio. Na cabeça dela, milhares de conjecturas se interpolavam: Qual seria o final de tudo se ela tivesse dado queixa três anos atrás? Se eles não fossem para Dublin? Se não saíssem do hotel naquela noite? Se fossem para o Temple Bar? Se tivessem desistido do bar lotado? Se tivessem ficado na neve? Se ela não fosse ao banheiro? Será que eles teriam filhos? Será que a mãe dela aceitaria a mudança? Será que as crianças puxariam os olhos apaixonantes do pai? Será que eles envelheceriam juntos? Será que eles se amariam para sempre?
Eu suponho que não saiba.
FIM
Nota da autora: Não é só um tapa, não é só um apertão, não é só um empurrão ou soco. É violência. Caso conheça alguém que esteja ou esteja passando você mesma por um caso de violência contra a mulher, denúncie. É fácil, é justo, proteje você e outras pessoas. Um crime é um crime. Disque 180.
Essa história ficou BEM curta, mas foi por dois motivos: Inicialmente, pensei em fazer resumida porque eu, particularmente, não gosto muito de fanfics longas onde no final de tudo alguém morre, e essa é a minha primeira. Em segunda instância, estou num preparatório para uma cirurgia, então tempo para produzir não é muito extenso ou de qualidade, fora que fim de ano já é uma loucura por si só. De todo modo, acho que atingi o propósito inicial que tive quando decidi fazer um pequeno conto, a primeira vista alegre, que possuísse um final meio trágico e um traço de conscientização, por mais que essa não seja nenhuma obra de arte kkkkk Tenho mais algumas obras no site, todas shorts, que vão estar aqui embaixo.
Obrigada por ter lido!
Outras Fanfics:
13. Let Me In (Ficstape do Olly Murs, #60)
13. Dreams (Ficstape da Dua Lipa)
Figure out how to love (Outros)
Cornerstone (Outros).
Nota da beta: MEU DEUS DO CÉU, NÃO! MARIANA DO CÉU! Eu to chocada. Sem palavras.
Eu senti o impacto, Mariana, meus parabéns. Violência realmente não é coisa à toa e, independente de quem venha, tem de ser denunciada sim!
Agora vou absorver melhor esse impacto, com licença.
Nota da beta: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar
AQUI.
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.