Finalizada em: 08/05/2021

Capítulo Único

não aguentava mais o próprio silêncio e em como a solitude parecia tão dolorida, e o fato de estar em plena pandemia não ajudava em nada. Ele até gostou da quietude do enorme apartamento no centro da cidade pelas primeiras duas horas, mas quando o relógio bateu às quatro horas, sentiu falta das crianças correndo atrás dele, porque já era hora de assistir algum desenho no Cartoon Network. E elas não se aquietavam até ele sentar no sofá e assistir também.
As horas pareciam passar mais devagar que o normal, mas o vinho parecia acabar bem rápido, já tinha aberto sua segunda garrafa e foi quando percebeu que já era sete da noite e seu celular ainda não tinha tocado. não estava ligando para avisar que iria ficar mais tempo no hospital, que precisou pegar um plantão ou até mesmo para avisar que já estava no caminho de volta para casa. Naquele momento, se deu conta que não ia ligar e sentiu uma dor que ainda não tinha experimentado.

era médica pediatra e intensivista, mas tinha escolhido se dedicar à pediatria. Mas quando a pandemia começou a assolar o estado de Fortaleza, foi realocada no hospital em que trabalhava para a UTI, já que existia uma grande demanda de pacientes e poucos profissionais com capacitação para atuarem na área. Então, aceitou mudar sua vida de cabeça para baixo, por um bem maior: a vida da população que estava sofrendo com a COVID-19.
E era por aquele motivo que ela tinha plantões cada vez mais intensos e longos, principalmente depois que foi contaminada logo no início da pandemia, e uma rotina quando chegava em casa. Ela morava em um apartamento na avenida Beira Mar com o marido e seus dois filhos, Alice e Caio, então, para evitar contaminação, entrava todo dia pela área de serviço, onde tinha um banheiro e que estava isolada do restante da casa. E só depois de se certificar que estava limpa, permitia-se abraçar os filhos e .
Mas naquela sexta feira, ela estava exausta. Tinha pegado um plantão de vinte horas e tinha perdido cinco pacientes. Cinco vidas, cinco amores de alguém. estava em pedaços, nunca iria se acostumar com aquele estado das coisas. A negra só queria chegar em casa e sentir o calor do abraço dos filhos gêmeos que estavam com cinco anos, Caio e Alice eram a bateria que ela precisava, assim como . Ela se sentia meio afastada do marido, que tanto amava, por conta da correria do seu dia a dia, mas ele ainda era o seu amor verdadeiro, o cara por quem tinha se apaixonado num bar assistindo ao jogo do Fortaleza depois de uma aula da faculdade.
Eles ainda eram e .
Os dois, por um milagre da vida, talvez, sempre conseguiram dividir a vida profissional com a criação dos filhos para que nenhum chegasse ao final do dia exausto. Como dono de empresa de construção, tinha seus horários muito flexíveis e sempre se adequava aos de , e as crianças estudavam pela manhã. Os dois eram a cumplicidade perfeita e desejada pela maioria dos casais. Mas não estava preparado para todas as mudanças que começaram a acontecer bruscamente.
Ele sempre foi muito ativo e era um pai presente, mas se ver trancado em casa fazendo home office, cuidando integralmente de duas crianças, ensinando-as matérias da escola, cozinhando e cuidando da limpeza da casa, já que tinham dispensado a funcionária de limpeza e babá, era uma rotina que ele ainda não tinha se acostumado.
E não estar se adaptando o deixava estressado.
Mais ainda naquela sexta, que ele não tinha conseguido parar por um minuto para focar no projeto da empresa, pois as crianças estavam mais agitadas que o normal, além de ser dia da limpeza dos cômodos. Era frustrante. E ele nem se importou delas estarem correndo pela casa sem ter tomado o terceiro e último banho do dia. Ele queria respirar um pouco.
— Mas que barulheira é essa, hein? — Escutou a voz de na cozinha e as crianças gritando “mamãe”.
“Ela ‘tá reclamando de gritos?”, pensou, mas não disse nada, apenas continuou sentado no sofá.
— Oi, amor! — Ela o cumprimentou com um beijo no topo da sua cabeça. — Você não deu banho neles? Alice ‘tá completamente…
— Oi, amor, como foi seu dia? — foi irônico. — Você conseguiu finalizar o projeto importante da empresa? Não?
, foi só uma pergunta e eu não estou…
— É sempre só uma pergunta, . — Levantou-se do sofá. — Alice, Caio... — chamou as crianças. — Banheiro!
— Mas, pai…
— Sem “mas, pai”, Alice. Banheiro. — E sem reclamarem, as crianças correram para o banheiro principal e foi logo atrás, sem nem olhar para .
Naquele momento, sentiu as lágrimas que tinha prendido durante o dia todo, escaparem.

sentiu fome e lembrou que não tinha se alimentado durante o dia. Riu sozinho ao pensar no seu desleixo e que essa situação não iria acontecer se as crianças estivessem pela casa, ele nunca esquecia de fazer comida para elas comerem no horário certo e porque Caio sempre parecia estar faminto.
Pediu qualquer coisa no iFood e ao prestar atenção nas peças de lego amontadas próximas à mesa da sala, imediatamente lembrou do dia em que Caio caiu, Alice estava com febre e ainda não tinha chegado. Era uma quarta-feira e foi o dia que ele mais machucou a esposa. Naquela quarta, sentiu pela primeira vez o desejo de se separar.

— Eu quero mamãe. — Alice pediu manhosa ao subir no sofá e se jogar no colo do pai.
— Eu também quero mamãe. — Brincou e a abraçou.
sentiu sua cabeça começar a embaralhar quando percebeu Alice queimar em febre.
— Abraço, eu quero! — Caio gritou do corredor e antes que pudesse pedir pro filho não correr, Caio tropeçou nas peças de lego espalhadas pela sala e caiu, batendo a cabeça.
Logo começou a sangrar e se sentiu perdido.
Ele deitou Alice no sofá, que estava chorando por ver seu irmão sangrando, e carregou Caio, em prantos, direto para o banheiro. lavou o rosto do menor e parecia que só tinha mais sangue.
— Mamãe! Quero mamãe! — Caio pedia entre soluços e começava a duvidar do que estava fazendo.
— Papai ‘tá aqui, filho. Papai ‘tá aqui. — Repetia várias vezes para que o menino se sentisse mais seguro. Mas estava com medo de ser algo grave.
Depois que limpou, percebeu que o corte era fundo e sem nem pensar duas vezes, colocou uma toalha na cabeça do filho e o carregou para a sala. Antes que pudesse pegar Alice, ligou para , mas caiu direto na caixa-postal. praguejou em pensamento, pegou Alice com o braço livre e sem pensar duas vezes, levou-os até o carro. Ele iria para o hospital.
— A porra da máscara. — Xingou ao perceber que nem ele, nem as crianças, estavam com máscara.
“Mais uma coisa pra lista de coisas que não fiz”, pensou enraivecido.
abriu o porta-luvas e deu graças a Deus por estar cheio de máscaras. sempre colocava máscaras extras no carro.
colocou as máscaras infantis nas crianças e praticamente voou na avenida Abolição em direção ao Hospital Monte Klinikum.
Graças à benção da internet, Disney+ e televisão no banco de trás, as crianças tinham se aquietado e o choro tinha cessado. Mas Caio ainda fungava, enquanto segurava o pano na testa.
Ainda no carro, graças ao controle de voz, continuou a ligar para . Caiu duas vezes na caixa-postal, até que ela atendeu.
! ! — gritou. — Eu já falei que quando ligar mais de uma vez é coisa séria, não disse?
O que foi, ?
— Eu tô a dez minutos do hospital...
Hospital? , risco de COVID, eu tô saindo do plantão agora, tô super ocupada, o que pode ser tão urgente...
— Você não se preocupa nem com seus filhos? — disparou sem nem pensar. — Caio caiu, ‘tá com a testa aberta, Alice ‘tá com fervendo em febre. Eu tô chegando onde você trabalha. O que você faz com essa informação é problema seu. — desligou, frustrado e enraivecido.
Por sorte, o hospital ficava bem próximo de onde eles moravam e ainda era o local de trabalho de . chegou em pouco tempo e assim que entrou no lugar, o esperava, completamente paramentada e com os olhos vermelhos. a tinha machucado e não tinha o direito de ser tão duro com ela.

O interfone tocou, avisando que o pedido de já tinha chegado e ele pediu que o porteiro colocasse no elevador que ele pegava na porta. A facilidade de morar em condomínio com um apartamento por andar.
Mas nem chegou a comer. Sentiu seu corpo pesar e foi direto para o banheiro tomar um banho e enquanto a água batia em seu corpo, chorou ao lembrar daquela maldita quarta-feira. Foi quando tudo ali começou a desandar no casamento dos dois. sabia que fato de não saber lidar com sua nova realidade poderia ter colocado o seu casamento em risco. E, para além disso, que tinha machucado , o amor da sua vida.
saiu do banho e se jogou na cama, mas não conseguiu dormir. A cena do dia anterior, que eles falaram em separação e consequentemente, saiu de casa com as crianças, não saía da cabeça do engenheiro.

tinha acabado de sair de um plantão de trinta e oito horas, perdeu dez pacientes e estava cansada. Mas estava enfrentando outra batalha: a de não deixar o casamento ruir. amava , ele era o amor de toda sua vida, mas parecia que a única coisa que os dois faziam era se machucar. Nem conversar eles conversavam mais. Era dolorido, triste e frustrante.
E era por falta de diálogo que eles estavam brigando mais uma vez. Os dois sempre tiveram tanta sintonia e parceria, e era as únicas coisas que não estavam tendo.
— Você que está se dizendo destruído, mas eu que preciso de ajuda. — foi sincera. — Eu tô tão cansada, , e é como se eu não pudesse parar nunca. Você não sabe como é desgastante e frustrante estar na ala de UTI de COVID. Parece que eu só perco paciente, é jovem, idoso, todo dia, todo dia é esse cenário. É frustrante não poder dar uma notícia boa para os familiares dessas pessoas. E é todo dia. Eu só quero chegar em casa e sentir o cheiro dos meus filhos, a risada deles, toque, porque isso me lembra que eu tenho algo e que eu preciso fazer a coisa certa. Lutar para salvar o máximo de gente que eu conseguir, pra que meus filhos tenham orgulho de mim um dia. Antes, eu pensar em voltar para casa era meu ponto de paz, porque eu ia ter Caio, Alice e você. Eu ia ter você aqui, me esperando. Arrumando um jeito de tudo dar certo também. E agora chegar aqui é um pesadelo, . Eu realmente não sei como chegamos aqui, porque eu te amo tanto, tanto, que me dói. Me dói muito te amar nesse momento, porque eu ainda me pergunto qual minha parcela de culpa para que chegássemos até aqui, falando em separação. Eu sei que é difícil pra você ter que ficar só em casa, longe da empresa, sei o quão é difícil ter que se dividir em quatro pra cozinhar, lavar, arrumar a casa, cuidar das crianças, ensinar o dever de casa e, ainda assim, focar no trabalho. Mesmo eu não passando por nada disso, eu sei que é difícil para você. Mas queria que você entendesse que é difícil pra mim. ‘Tá difícil pra todo mundo, .
...
— Não, por favor, não fala nada. Eu vou pegar as crianças e levar pra casa da minha mãe. Vou ficar esse final de semana por lá e você pensa em tudo. Você disse que ‘tá exausto, então vou levar eles para a minha mãe e depois de amanhã passo para pegar minhas coisas.
não deixou falar. E em poucos minutos a casa estava vazia, como nunca esteve.

não conseguiu dormir.
Ele sabia que tinha errado em não entender toda a situação e se sentiu mesquinho por ter pensado só em si. Mas também sabia que a pandemia tinha deixado as pessoas diferentes, todo mundo estava lidando com algo totalmente novo e batalhas que nunca tinham sido travadas antes.
também sabia de uma coisa, que amava com todo seu coração e mente, e não podia viver sem a negra. E ele ia fazer de tudo para reconstruir o que tinha sido machucado.

foi para a sala e sabia que a qualquer momento ela ia aparecer. E depois de duas horas, que pareciam ser uma eternidade, apareceu. Naquele momento, ao vê-la entrando com Alice e Caio, sentiu seu corpo se aquecer. Existia algo no jeito que se mexia, que o fazia sentir que não poderia viver sem ela.
— Papai! — As crianças gritaram e correram em direção ao engenheiro, que as abraçou e perdeu a noção de quanto tempo ficou ali, sentindo cada pedacinho e cheiro deles.
Eles eram a sua mais pura forma de amor.
— ‘Tá liberado ir pro quarto do papai ver desenho. — Alice e Caio se entreolharam e como se fosse mágica, não estavam mais na sala.
e ficaram em silêncio por um tempo, mas logo quebrou.
, eu, hoje, tenho plena consciência que eu não deveria ter falado todas aquelas coisas que te machucaram e agido feito um babaca. Eu só pensei em mim e como as coisas estavam complicadas. E é nítido que não consigo viver sem você. A gente mal passou quarenta e oito horas separados que eu passei essas quarenta e oito horas pensando em tudo que te fiz e nas dores que te causei. Eu disse que estava destruído e cansado, mas você é quem precisava ser salva e cuidada. E eu não fiz isso. Mas eu quero que você fique. Que você fique pra sempre, .
não conseguiu responder, apenas fez o que não fazia há meses: abraçou fortemente e o beijou, tendo de volta a certeza que não iria para nenhum lugar. Iria ficar, seu lugar era ali.



FIM!



Nota da autora: Sem nota.

O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer.
Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


CAIXINHA DE COMENTARIOS:

O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.


comments powered by Disqus