Capítulo Único
Carmen tinha olhos tristes. Outras pessoas notariam os lábios cheios, talvez a única covinha que tinha do lado esquerdo da face quando sorria, mas , possuidora de uma dor própria, inquietante e bastante secreta, notou a tristeza daqueles olhos de gato. Tudo em Carmen era exagerado: os sorrisos, as expressões, até mesmo a vermelhidão do batom, que tinha um tom aberto e chamativo. Na natureza, uma cor assim indicava perigo. Em Carmen, também. jamais havia visto alguém tão perdida dentro de si mesma e do pequeno mundo de mentiras que criara.
— Vamos embora, Carmen. — Ela chamou, preocupada.
Carmen já não agia como si mesma há dias. Girava pela pista de dança improvisada, dançando enquanto a saia subia, revelando as coxas desnudas e macias para o público. não gostava de quando Carmen perdia o controle ou a conta de quantas doses de tequila tinha bebido. Não gostava de ver uma amiga tão querida em um estado tão deplorável.
Carmen fez que não lhe ouviu, virando-se para o outro lado da sala e chamando um rapaz para dançar com ela. Ah, eles sempre caíam de quatro por ela.
— Carmen. — O tom autoritário fez a outra se virar, olhando-a com um sorriso enviesado nos lábios vermelhos.
— . — Ela imitou-a no tom, fazendo a mencionada moçoila soltar um suspiro e pousar a mão na têmpora.
— Carmen, vamos. — foi até a amiga bêbada, segurando-a pelo pulso delicadamente.
Carmen a olhou de esguelha e, por um momento, achou que ela fosse se debater e resistir. A morena era tão imprevisível bêbada quanto era sóbria. E como se lesse pensamentos, os lábios cor de sangue se abriram em um sorriso largo e maldoso.
— Não vou fazer uma cena, não precisa me olhar assim.
Carmen despediu-se de várias pessoas, conhecidas ou não, deixando para trás várias perguntas como “você tem mesmo que ir?” enquanto balançava os cachos loiros e sorria alegremente. Carmen era a alma da festa, sempre. Era incrível como sempre conseguia sair como a vilã da história quando dava a hora de ambas irem embora. Mais responsável do que a outra, era quem controlava a hora de sair e de voltar. As pessoas sempre a detestavam por levar Carmen embora.
As duas caminhavam de volta para casa em silêncio. arrastava um pouco os pés, exaurida por ficar a noite inteira tomando conta da melhor amiga, já Carmen saçaricava pelo caminho, inquieta mesmo quando estava cansada e bêbada. A dupla desceu as escadas para a estação do metrô, deserta àquela hora da noite.
Com as mãos enfiadas nos bolsos do moletom, observou a outra discretamente. Carmen estava exibindo esse tipo de comportamento descontrolado por duas semanas, agora. Ela estava preocupada, embora não soubesse, exatamente, como poderia ajudá-la: Carmen era mais fechada que as pernas de uma freira. Por mais que soubesse qual era o problema, abordar o assunto era difícil para ela também.
— L’appel du vide. — Carmen murmurou, observando o vão onde o metrô deveria parar.
— O que você disse? — piscou, um pouco desorientada. Detestava quando a garota, filha de uma mulher francesa, começava a falar a outra língua de repente.
— Você já pensou em se matar, ? — Carmen deu um passo para a frente, para mais perto da linha de segurança e se alarmou.
— Não. — Era mentira. não sabia contar quantas vezes o pensamento já tinha passado pela sua cabeça no ano passado. — Volte pra cá.
— Eu já. — Carmen deu outro passo para frente e então olhou para a amiga por cima do ombro. — Estou pensando em me jogar na frente do metrô agora. Algumas vezes eu me imagino caindo da varanda do seu apartamento e rachando minha cabeça no asfalto ou me jogando na frente de um ônibus. — Aqueles olhos azuis, grandes e felinos procuraram por alguma reação em .
Carmen tinha seus momentos, ela sabia. Costumava dizer que ninguém deveria querer ser como ela, mas jamais explicava muita coisa sobre a razão de se depreciar com tanta clareza. Claro que, naquela situação, sabia exatamente o que a afligia porque era sua cúmplice e parceira no crime. Então, o que fez foi puxar Carmen de volta sem muito esforço, passando um braço ao redor dos ombros da garota. Ela beijou os cabelos da menina, apoiando o queixo na cabeça dela por um momento. As duas não falaram mais nada. Mantiveram-se juntas até que o metrô chegasse e sentaram-se lado a lado em um banco, o vagão vazio e silencioso, as mãos dadas e os ombros juntos.
Quando chegou em casa, depois de caminhar com Carmen até a casa dela, acessou o serviço de tradução do Google. Ela clicou na entrada de fala e repetiu a frase – da melhor maneira que conseguiu –, procurando a tradução da estranha expressão em francês. Surpreendentemente, sua busca deu resultados. L’appel du vide significava, literalmente, o chamado do vazio. É aquele lapso autodestrutivo que passa pela sua cabeça por um segundo, aquela vontade de pular de um lugar alto ou de jogar o carro contra um muro. Agora, estava ainda mais preocupada com a amada amiga.
Ela se lembrou, deitada em sua cama, de como se conheceram. O dia em que viu Carmen, a primeira vez que a viu mesmo, não foi nada além de monótono. Não houve um grande evento, não houve ao menos uma conexão instantânea. Carmen nem ao menos lhe deu um segundo de atenção, ela sorriu, a cumprimentou e voltou os olhos para o rapaz com quem estava quase imediatamente, piscando seus longos cílios de forma sedutora. Na época, era quem estava uma bagunça. A separação dos pais tinha tirado dela o que tinha de melhor: a espontaneidade, a alegria de viver, a vontade de ser feliz. O litígio tinha sido árduo, os pais brigavam a todo momento e, quando ela escolheu ficar com a mãe, seu pai a deixou à sua própria sorte. Até hoje não mantinha contato com ele.
Naquela época, nada tinha para alegrá-la. Não tinha expectativas. Queria se mudar logo, fazer uma faculdade do outro lado do país e deixar tudo para trás. Talvez – e apenas talvez – cultivasse, naqueles dias cinzentos, uma pequena semente de esperança de que algo mudaria, um dia, para melhor; algo que lhe devolvesse a cor. E, assim, ela conheceu Carmen.
Não foi no dia que se viram pela primeira vez, nem na segunda e nem na terceira. Conheceram-se ao acaso, sem julgamentos, um laço formado por duas garotas extremamente bêbadas em um banheiro, conhecidas, que viam-se na escola há um ano, mas jamais tinham parado para conversar porque eram muito diferentes: era a aluna responsável, Carmen andava com os arruaceiros; não se falavam e nem se conheciam.
— Eu gosto do seu cabelo. — Carmen disse, olhando-se no espelho da casa de Sarah Rogers. nem tinha percebido outra pessoa entrar enquanto vomitava com o rosto enfiado no vaso.
Aquele momento tinha sido o mais baixo de sua vida. Estava bêbada demais, tinha ficado com um rapaz que nem conhecia porque se setia sozinha, estava se esforçando para agradar pessoas de quem nem ao menos gostava… Tudo porque estava sozinha. E, assim, tinha perdido as estribeiras.
— Obrigada. — Ela disse, olhando Carmen de esguelha, desconfiada da gentileza. — Eu gostei das suas botas.
— Quer levá-las para você? — A garota ofereceu, olhando a bota com desprezo e voltando a ela seus olhos de gato. Carmen sorria, simpática como apenas garotas bêbadas conseguiam ser com outras garotas.
— Não. Mas eu gostaria que você segurasse o meu cabelo, estou prestes a explodir de novo.
Naquela noite, Carmen e descobriram que desciam na mesma estação de metrô, conversaram durante a caminhada, pela noite adentro e trocaram mensagens pelo celular depois de chegarem em casa. A amizade entre as duas evoluiu rapidamente. Elas se equilibravam, apesar de diferentes.
Carmen costumava ser alegre, divertida, um tanto torta das ideias, mas uma ótima pessoa para se ter por perto quando tudo que queria era se afundar em autopiedade. Conhecer Carmen foi um golpe de sorte. Golpe de sorte porque não duraria sozinha, ainda mais com a pressão do pai para se mudar com ele. Ela era, obviamente, capaz de se virar. Podia cozinhar e cuidar da casa, era responsável e bastante estudiosa, mas isso não significava nada uma vez que ela se sentia só. E a solidão pode ser tão tóxica quanto o veneno para ratos que ela checava regularmente, esperando aquela coragem cega para dar um fim à própria existência. não tinha motivos ou coragem para continuar vivendo. Carmen a fez reencontrar seu rumo. E ela era grata. Era por isso que não podia permitir que sua melhor amiga definhasse.
— Acorda, vagabunda! — Carmen marchou pelo quarto adentro. Era cedo demais para se estar acordada em um domingo, mas Carmen parecia ignorar isso.
— Por que você não deita e dorme como toda pessoa normal?
— Porque ser normal é chato. — Carmen puxou-lhe a coberta e agarrou seu pé, arrastando-a para fora da cama, quase derrubando-a no chão. Era incrível a força que alguém tão pequena tinha naqueles braços finos.
— Eu odeio você. — ergueu-se da cama, abrindo os olhos apenas para ver Carmen rindo. — O que você fez?
Aquele sorriso era sempre o passaporte para alguma confusão. Em um ano, quase dois, de amizade, podia contar nos dedos de uma mão quantas vezes um sorriso como aquele não significou algo que as poria em encrenca.
— Shhh! Aqui não. Vista-se, vamos caminhar.
— Caminhar? Será que você não pode ter uma ressaca como uma pessoa normal?
— Você sabe que eu não tenho ressaca. — Ela atalhou, jogando peças de roupa em cima da amiga. — Anda logo!
A manhã estava fria, mas o sol, tímido, brilhava através de algumas nuvens. Sete da manhã. Sete da manhã de um domingo aparentemente normal, mas o mundo das duas viraria de cabeça para baixo.
Apesar da alegria e entusiamo inicial, Carmen caminhava em um silêncio perturbador. Qualquer pergunta era prontamente ignorada e à cabia apenas segui-la, bastante irritada, e esperar que Carmen não tivesse roubado um banco ou planejado um ataque ao presidente.
— Você se lembra de quando vimos aquela estrela cadente em Venice Beach? — Carmen perguntou de repente, virando a esquina no subúrbio onde morava com a mãe e o padrasto.
— Durante as férias de verão. — respondeu e Carmen anuiu.
— Você se lembra o que eu desejei? — não respondeu desta vez. Carmen continuou: — Eu desejei que meu padrasto morresse. Você lembra?
O arrepio que sentiu nada tinha a ver com o vento frio da manhã de outono. apertou o passo, mas isso não bastou. Ela correu até a casa de Carmen, no final da rua, abrindo a porta da frente descuidadamente. Ela passou pela sala de estar e pelo corredor, checou a cozinha e a sala de estar, sem encontrar nada fora do normal.
— A escada. — Carmen disse timidamente, agindo dessa forma pela primeira vez desde que a conhecia.
O corpo do padrasto de Carmen estava caído no pé da escada. encarou a cena muda de espanto. O choque de ver um corpo morto pela primeira vez a fez notar tudo: os olhos dele, abertos e fixos, sem brilho, encarando-a; o pescoço virado em um ângulo impossível, o braço quebrado… Ela não conseguia falar. E Carmen tampouco fazia barulho. Os olhos estavam negros à meia luz, duas poças de piche que encaravam , esperando sua reação.
— O que você fez? — A voz de era apenas um fiapo, seu coração batia forte demais e ela se sentia tonta. Estava hiperventilando.
— Nada! — Carmen apressou-se em negar. — Eu juro, ele caiu da escada sozinho!
— E então você pensou que era inteligente deixá-lo aqui assim?
— O que você queria que eu fizesse, que eu o arrastasse para a merda da garagem? — A garota rebateu.
— Espera, quando ele morreu? — Carmen mordeu o lábio inferior e notou as olheiras embaixo de seus olhos.
— Ontem à noite.
— Você esperou tudo isso para me falar? Por que você não me ligou? Ou, sei lá, por que não ligou pra porra da polícia?
— Ah, sério, como se isso fosse muito esperto.
— Você não é a melhor pessoa para julgar se algo é esperto ou não. — apontou o cadáver. — Você dormiu com um cadáver jogado na sua escada!
— Pra começo de conversa, ele está fora da escada e eu já estava lá em cima, não desceria por nada depois disso. — Carmen fez uma pausa. — Eu não sabia o que fazer. Ainda não sei.
As duas se encararam por um momento. , obviamente, conhecia o relacionamento complicado de Carmen com a mãe, uma mulher francesa e bastante tradicional, mas sobre o padrasto sabia apenas que era um homem controlador que insistia em criticar a enteada com palavras duras. Ela engoliu em seco, passando a mão pelo rabo de cavalo que fizera na pressa.
— O que aconteceu?
Inicialmente, Carmen manteve o silêncio. Seus olhos azuis se demoraram no cadáver, a expressão em seu rosto se endureceu. Ela se virou para e havia um brilho de determinação nas íris.
— Nós brigamos de madrugada. Ele me ouviu chegar e gritou comigo. Nós discutimos bastante e ele disse que mal podia esperar para eu ter dezoito anos e ele poder me jogar para fora de casa. Ele disse que eu era uma vagabunda e que eu podia me sustentar nas ruas assim. Acho que ele estava bêbado, eu vi a garrafa de uísque aberta na bancada da cozinha. — Carmen respirou fundo. — Eu não sinto pena dele.
— Ele escorregou?
— Tropeçou.
notou que ele estava descalço, o carpete da escada de Carmen era novo, não havia nada que ele pudesse ter tropeçado. Se Carmen percebeu que não acreditou na história, ela não disse nada. Continuou parada à porta do corredor, os ombros meio caídos, encarando a cena grotesca.
— Vamos pensar em alguma coisa. — disse, aparentando calma.
A verdade é que nunca tinha estado tão nervosa em toda a sua vida. Nunca antes tinha passado por nada assim. Ocultar um cadáver? Encobrir um possível homicídio? Esse tipo de coisa não deveria acontecer no subúrbio. As famílias se mudavam para lá justamente para ter paz e tranquilidade. As duas se sentaram para combinar uma história, mas não suportou e correu até o banheiro; vomitou, sinal de nervosismo.
— Você tem que se recuperar.
— Você tá falando sério? — gritou, limpando a boca com as costas da mão. — Eu acabei de ver um cadáver! Eu não sou uma droga de psicopata para fazer isso e não ficar nervosa!
— Eu vou ligar para a polícia. — Carmen ignorou o ataque. — E dizer que eu dormi na sua casa. Nós chegamos aqui e o vimos caído.
acenou, concordando. As duas falaram com os policiais, contaram a história que tinham combinado. A verdade estava envolvida em grande parte do que contaram à polícia: tinham saído com alguns amigos, bebido e Carmen acabou dormindo na casa da amiga porque a sua era longe demais da estação de metrô para ir até lá bêbada e sozinha. Quando perguntadas sobre o que tinha acontecido, as duas disseram que apenas tinham chegado em casa e visto o corpo do padrasto de Carmen no chão, correndo para ligar para a polícia; não sabiam de nada e não imaginavam o que podia ter acontecido.
O choque que os simpáticos policiais viam em era real. Ela não sabia como agir, apesar de ambas terem combinado tudo. Quando a polícia a questionou, ficou se perguntando se eles veriam a sua mentira tão obviamente, se eles notariam que algo estava errado. E se Carmen tivesse mesmo empurrado o homem pela escada?, pensou. Mas, então, como poderia culpá-la? Ela sabia, por alto, dos problemas domésticos, do histórico de abuso psicológico, de dominação e bebida. Se Carmen tivesse empurrado o padrasto da escada, sabia que não tinha como culpá-la.
Ligaram para a mãe de Carmen, explicando o que tinha acontecido. A pobre Amélie retornou mais cedo de sua viagem de negócios, planejou o enterro e cuidou da filha, que ela julgava estar abalada por ter descoberto um corpo em uma situação tão inesperada.
Ninguém suspeitou da verdade sórdida. Nenhum deles. O nível de álcool no sangue do homem serviu apenas para corroborar a teoria de que ele estava bêbado demais para tropeçar sozinho e quebrar o pescoço. E Amélie parecia secretamente aliviada.
Duas semanas atrás, Carmen e tinham chegado a um nível diferente de intimidade. Elas conheciam seus demônios. Elas tinham visto o pior uma da outra. E, agora, assistia Carmen se destruir, talvez por culpa, talvez para comemorar a morte de seu carrasco. De todo modo, ela sabia que não podia deixar Carmen se acabar.
(…)
— Você está um lixo. — Foi a vez de invadir o quarto de Carmen.
Carmen não tinha tirado a maquiagem da noite passada, quando confessou seus desejos suicidas: o batom vermelho estava borrado no travesseiro e no rosto bonito da garota. Ela xingou em francês, revirando-se e se negando a acordar, mas simplesmente deixou os cafés na cômoda e pulou na cama.
— Acorda logo, já é quase a hora do almoço! — Chacoalhou a amiga, o tom estridente propositalmente.
— Alegria falsa fica ridículo em você. Pior do que o seu vestido do baile de inverno do ano passado. — Mesmo com a voz abafada pelo travesseiro, Carmen ainda conseguia soar maldosa. a abraçou, apertando-a por cima da coberta.
— Eu trouxe café. Levanta logo.
— Se não for um macchiato de caramelo eu juro que vou cortar seu cabelo quando você dormir.
Seres humanos são animais complexos. Querem manter a imagem que construíram para os outros a todo e qualquer custo. Constroem fachadas e escondem seus sentimentos. E perdem uma parte importante de suas vidas fazendo isso: laços. Construímos laços através de nossas vulnerabilidades, ao nos abrir para as pessoas. Carmen tentava, a todo custo, sustentar a imagem de que nada tinha mudado. Ela se agarrava à sua eu do passado com unhas e dentes, mas algo estava diferente. Ela tinha enxergado seu próprio abismo. Carmen tinha visto uma versão de si mesma que ela jamais esqueceria.
queria ajudá-la. Queria levar a alegria de volta à amiga. As duas tomaram café juntas e tentaram. Elas tentaram evitar o assunto, mas um olhar para a escada relembrava o que tinha acontecido ali. Elas tentaram conversar como antes, mas havia aquilo no ar, uma sensação indefinida que misturava medo, ansiedade, curiosidade e uma necessidade excruciante de falar sobre o acidente. Elas tentaram ser como antes, mas já não havia jeito.
Se Carmen não estava bebendo, dançando ou mentindo para si mesma e para os que a rodeavam sobre estar bem, então ela não sabia como agir. Nunca antes alguém a tinha conhecido de forma tão íntima sem sequer tocar o seu corpo. Sua alma estava nua e ela estava desconfortável porque os olhos de pareciam enxergar através dela. Carmen preferia que seu corpo estivesse nu, talvez ela se sentisse melhor. Intimidade a assustava.
— Eu o empurrei. — Ela disse de repente, pegando de surpresa.
— Eu sei. — Depois de alguns segundos de silêncio, a respondeu. — Eu não sou burra.
As duas se encararam, mudas, mas a falta de barulho era reconfortante. Carmen ajeitou-se nos braços de , a cabeça encostada contra o seu peito, os braços dela firmemente seguros ao redor da cintura da outra. E alisou seu cabelo, sentindo-se imensamente confortável.
— , você acha que eu sou uma pessoa ruim?
— Não.
Carmen tinha matado alguém. Moralmente, legalmente e sob qualquer outro aspecto, isso era errado, mas isso não fazia dela uma pessoa ruim. Ela não falava muito sobre os conflitos dentro da família, mas eram ruins o suficiente a ponto de fazê-la chorar bêbada nos braços de mais de uma vez. Ela nunca dizia tudo em detalhes e achava que respeitava sua privacidade se nunca perguntasse. Mas ela sentia que havia dor demais ali para alguém tão jovem, principalmente se Carmen insistisse em carregar tudo sozinha.
— Você não tem que se sentir culpada por escolher a sua sobrevivência em vez da dele. — murmurou contra o cabelo dela, puxando Carmen para mais perto. Ela nunca tinha visto alguém tão perdida dentro de seu próprio quarto.
De imediato, Carmen não disse nada. Ela respirou fundo e seu corpo ficou tenso, o que fez apertar seus braços ao redor dela. O silêncio, a proximidade, tudo isso foi melhor do que aparentar normalidade. Levou duas semanas, mas e Carmen finalmente tinham aprendido que não havia como fingir que o incidente com o padrasto dela não tinha acontecido ou que não as tinha afetado.
— Você acha que há algo de errado comigo? — Carmen ergueu a cabeça e a olhou nos olhos. Aqueles olhos azuis sempre a atraíram, brilhando como gemas com lágrimas não derramadas.
— Sim, mas nós somos adolescentes, há algo de errado com todos nós.
Carmen sorriu tristemente, afastando-se em seguida. Ela se levantou bruscamente da cama, pegando o copo de café, o macchiato que ela tanto gostava, e dando um longo gole.
— Você me mima tanto, . — Ela sorriu e também. — Eu não posso mesmo ficar o dia inteiro na cama, preciso que você faça as minhas unhas porque eu tenho um encontro essa noite!
— Encontro? — repetiu, inclinando a cabeça de modo questionador.
— Sim, quer dizer… Eu ainda não tenho, mas vou marcar agora. Eu estava falando com esse cara gato do Tinder e…
Carmen pôs-se a falar sobre o seu futuro encontro. não deveria estar surpresa. Ela sabia muito bem como os garotos – e as garotas – caíam em cima de Carmen, como todos pareciam gostar dela e de sua personalidade efusiva, do sarcasmo, de como ela era crua.
— Você está saindo com esse cara só para se divertir? — Ela acabou perguntando, sentindo-se um tanto estranha. Ela sempre se sentia desconfortável quando Carmen saía com alguém ou encontrava alguém durante uma festa, só para se divertir.
— E quem é que sai com alguém para não se divertir? — Ela devolveu a pergunta com um sorriso matreiro.
— Você me entendeu.
Carmen suspirou e se jogou na cadeira giratória que ficava em frente a sua escrivaninha. Ela deu outro gole longo do café, apenas o som do canudo ocupando o ambiente. Quando ela voltou a falar, seu tom era cheio de humor:
— Eu não sei porque você está tão incomodada assim. Eu estou bem.
— Você não está bem, você acabou de se abrir pra mim e… — suspirou, passando a mão pelo cordão de ouro no pescoço de forma frustrada. As palavras seguintes saíram rápidas demais para que pudesse controlar. — Não acha melhor esperar um pouco antes de sair transando com a primeira pessoa que aparece na sua frente?
Carmen deu de ombros, sem se sentir ofendida pela escolha de palavras de . A própria , aliás, sentia-se uma babaca por falar assim tão bruscamente. Ela balançou a cabeça, levantando-se da cama.
— Não vi Amélie por aqui.
— Ela foi a São Francisco. — Carmen deu de ombros novamente.
Ela não convivia muito com a mãe, não eram muito próximas, apesar do laço de sangue que as ligava. Carmen passava dias sozinha em casa com o padrasto, já que sua mãe, advogada de uma multinacional, mal parava em casa.
— Quer que eu fique com você? — perguntou, preocupada que a outra fosse fazer algo estúpido durante a ausência da mãe.
Carmen não respondeu, mas fez um gesto de descaso, como se indicasse a que fizesse como bem entendesse.
— Você fica tão fofa quando fica toda preocupada comigo! — Carmen acercou-se da amiga, circundando o pescoço dela com seus braços pálidos. — Vai me seguir no meu encontro também?
— Só se você me pedir.
tinha um mau pressentimento. Ela não queria que Carmen fosse ao encontro. Óbvio que ela mostrou a melhor amiga as fotos do tal cara gato do Tinder, as conversas e até mesmo as nudes que o rapaz tinha enviado.
— Ele não é lindo? — Ela perguntou, ao que anuiu a cabeça sem muita animação. — O que é? Você não gostou dele?
— Ora, não importa se eu gosto dele ou não, ele vai em um encontro com você.
— Você não me deixa outra escolha, . — O tom de Carmen era cheio de falso pesar quando ela enfiou a mão no bolso da outra e pescou de lá o celular.
— O que você vai fazer?
Carmen instalou o Tinder no celular de , que via tudo atônita.
— Vamos lá… Dezessete anos, solteira, gosta de curtir a vida e virar uns shots de tequila. — Carmen digitava rapidamente, fazendo rir de desespero. — Essa selfie aqui no perfil porque seus peitos estão lindos… — Ela se virou para com as sobrancelhas franzidas. — Garotos, garotas ou os dois? — bufou. — Eu nunca vi você com outra garota, mas tampouco te vi beijando caras o suficiente para saber se é isso que você quer.
— Essa ideia é ridícula.
— Claro que é, é um encontro duplo. Vamos lá, gatas ou gatos?
— Coloque gatos.
Carmen riu, começando sua caça por um par adequado para a sua melhor amiga. achou melhor deixá-la em seu próprio mundinho e foi para a cozinha ajeitar algo rápido para as duas almoçarem. Quando a comida estava quase pronta, Carmen saltitou até a cozinha, rindo de uma orelha a outra.
— Então, tem esse cara… Eu estava conversando com ele e acho que ele é perfeito para você, olhe as fotos.
— Aham, que seja. — continuou cozinhando, mal olhando por um segundo para a tela do celular.
— Você não quer sair, é isso? — Carmen finalmente desistiu, bufando e olhando para ela enquanto se empertigava na bancada da cozinha.
— Não. — Carmen fez um beicinho. — E isso não funciona comigo.
— Claro que funciona, foi assim que eu fiz você ser a minha acompanhante para o baile de inverno. — segurou uma risada, adicionando um pouco de queijo ao molho da massa. — Você tá com algum problema?
— Eu? — Por um momento, olhou-a estupefata. — Claro que não! Era você que estava tendo uma crise existencial nos meus braços!
— Que já passou, muito obrigada. A sua, no entanto… O que é? Falta de sexo? Quer uma mãozinha?
— Não dá para discutir com você. — rolou os olhos, servindo dois pratos de macarrão com queijo.
Carmen pegou um dos pratos depois de descer da bancada, indo comer no quarto e longe da melhor amiga, irritada com porque ela não se soltava mais. simplesmente não entendia como ela podia fingir que tudo estava dando certo. Como ela podia mentir para si mesma e simplesmente tentar pôr de lado tudo aquilo. O pior era que sabia o quanto ela estava magoada, porque ela tinha mostrado isso, mesmo que por poucos minutos, mesmo que ela logo tivesse se arrependido e voltado a usar sua fachada durona.
almoçou, lavou a louça que tinha usado e foi até o quarto de Carmen, pegando a sua bolsa e seu celular.
— Eu vou voltar para casa. Se quiser, durmo com você amanhã e nós vamos para a escola juntas na segunda.
— Você quem sabe.
rolou os olhos, saindo sem dizer nada. Ela fechou a porta da frente depois de sair e andou os dois quarteirões que separavam suas casas. Não conseguia entender a lógica de Carmen, mas ela duvidava que alguém conseguisse. Que Carmen se divertisse com seus encontros, suas garotas, garotos, o que fosse. Se ela não se importava, também não se importaria.
Mas ela se importava. E isso ficou dolorosamente claro assim que Carmen não respondeu sua mensagem. Ela sempre se preocupava com os encontros de Carmen justamente porque a outra não se importava. Para ela, o mundo era um grande parque de diversões. E para , que sempre teve responsabilidades demais sobre os seus ombros, o mundo era um lugar assustador. Ela estava mordendo as laterais das unhas, incapaz de prestar atenção à lição de casa. Dez da noite e Carmen não tinha falado nada com ela. Ela sabia o protocolo dos encontros, por que ela não podia ser um pouco mais responsável e avisar que não tinha sido morta e enterrada em um terreno baldio?
Passava de meia-noite quando recebeu uma mensagem de Carmen. Àquele ponto, ela já estava descontando sua ansiedade em uma pilha de bombons. Quando o celular vibrou, ela leu a tela e franziu as sobrancelhas.
Abriu a porta do apartamento e lá estava Carmen, seu vestido de lantejoulas douradas grudado às curvas de seu corpo, a maquiagem bem-feita realçando seus olhos misteriosos e amendoados. Carmen parecia prestes a chorar e a deixou entrar sem se preocupar com o barulho, já que sua mãe só estaria de volta de manhã.
— Carmen? — Ao som da sua voz, a garota abraçou-a com força.
ficou parada, encarando o topo da cabeça de Carmen por alguns segundos antes de lentamente passar seus braços pelos ombros esguios da garota. Ela abraçou a amiga de volta em silêncio.
— Você não veio andando, veio? Está tarde.
— Eu peguei um Uber. — A voz dela estava meio abafada, já que ela tinha o rosto enfiado no moletom de .
— Ele foi babaca com você? — Carmen apenas balançou a cabeça. — Aconteceu alguma coisa? — Ela balançou a cabeça novamente.
— Eu posso dormir com você? — Ela ergueu a cabeça e pôde encarar seus olhos lindos e brilhantes de lágrimas. À meia luz, ela parecia ainda mais bonita e tão preocupantemente frágil.
— Claro que pode. Quer tomar um banho?
Por causa da diferença de altura das duas – era particularmente alta, puxando o lado paterno da família –, teve que buscar roupas de sua mãe para que Carmen vestisse. Ela ouviu o som do chuveiro enquanto arrumava a cama, tirando de lá seus livros e os cadernos. Quando terminou e trocou de roupa, viu Carmen parecendo ainda menor no pijama de sua mãe, coçando o olho esquerdo distraidamente.
As duas se deitaram em silêncio, lado a lado, como costumavam fazer tantas vezes. A mãe de era uma enfermeira, por vezes pegava o horário noturno e só voltava de manhã. A mãe de Carmen viajava bastante. Elas costumavam passar as noites juntas e suas mães até preferiam assim, era um modo de assegurar que ambas estavam bem e não precisavam se preocupar. Apesar do costume, algo parecia diferente.
Não porque Carmen deitou a cabeça em seu ombro e a abraçou pela cintura, mas havia algo no ar, um tipo de tensão desconhecida. demorou a pegar no sono e assim que a sonolência começou ficar mais forte, ela ouviu Carmen a chamando.
— Eu não consegui me divertir. — Ela sussurrou e abriu os olhos, virando-se ligeiramente para ela. — Eu não tenho conseguido me divertir há algum tempo. — Carmen confessou.
— Eu não sabia. — deveria ter sabido que era isso. Que ela bebia ainda mais e ficava com ainda mais pessoas para tentar se divertir, para tentar compensar essa apatia.
— Eu finjo bem. — Ela constatou sem arrogância. — Eu bebo bastante e se eu me esforçar eu posso agir como eu agia antes. É só que…
Ela ouviu um soluço e puxou Carmen ainda mais para perto. Queria confortá-la, fazê-la se sentir segura. Por que Carmen não tinha ninguém assim em sua vida, além dela? Por que ela tinha que ser tão sozinha? Para alguém com dezenas de amigos e milhares de seguidores nas redes sociais, Carmen era dolorosamente solitária.
— Eu o sinto por aqui. Não é idiota? — Ela riu, apesar de apostar que ela continuava chorando e que apenas não queria preocupá-la. — Eu sonho com ele.
— O que você sonha?
— Que ele me empurra da escada. — Ela fungou. — , eu juro que não queria…
— Eu sei, Carmen.
— Eu só… — Ela soluçou novamente e esfregou os ombros dela de forma carinhosa. — Eu surtei. Ele começou a me chamar de vagabunda, disse que devia me jogar na rua, que ia me jogar na rua assim que eu fizesse dezoito porque a vida deles seria melhor assim… E eu surtei. Eu não queria empurrá-lo da escada, eu só… Eu só o ouvi caindo, parece até que ouvi quando o pescoço dele quebrou. Eu nem ao menos me lembro de empurrá-lo.
— Carmen, está tudo bem. — Ela puxou o rosto da menina para perto do seu, encostando a testa na dela.
— Eu só queria que ele parasse de falar! — O tom lamurioso dela cortou o seu coração. sentiu os próprios olhos se encherem de lágrimas.
— Carmen, olhe para mim. — Ela acariciou a lateral do rosto da amiga com o polegar, esperando até que os olhos de Carmen se abrissem. Apesar da escuridão, agora que seus olhos tinham se acostumado à penumbra, ela podia vê-la melhor. — Ele não pode te machucar agora. Olhe pra mim! Ele está morto e você não está. Você não tem que sentir culpa por isso, foi um acidente.
— Tenho certeza que a polícia discordaria.
— Então que se dane a polícia. Você não precisa deles, eles não sabem de nada.
O coração de bateu com força contra as suas costelas quando ela percebeu o quão perto estavam uma da outra. Carmen parecia não se importar.
— Eu ainda arrastei você, eu sinto muito. Eu não conseguiria sozinha, , eu juro, eu…
— Chega, Carmen. Ouça bem o que eu vou te dizer, eu não vou repetir: eu mataria por você, eu te amo. Você é minha melhor amiga. — Carmen permaneceu em silêncio, os olhos fixos em seu próprio colo.
— Eu também amo você, . — Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes. sorriu para ela, ainda segurando seu rosto de forma tenra.
Os rostos estavam muito perto um do outro. podia sentir o cheiro de menta do hálito dela, de quando ela tinha escovado os dentes. Seus narizes quase podiam se tocar. Não sabia se ela tinha se inclinado ou Carmen, mas os lábios roçaram um contra o outro hesitantemente. Quando enfim se juntaram em um beijo longo e gentil, achava que seu coração podia explodir dentro do peito.
Parecia errado, já que eram amigas, mas, ao mesmo tempo, parecia tão certo. Ela estava confusa. Já tinha beijado alguns garotos, mas nunca antes tinha se sentido assim por um beijo tão simples. Sua pele inteira parecia arrepiada, os lábios macios de Carmen encaixavam-se bem aos seus. Quando as duas se afastaram, tinham a respiração ofegante, entreolhando-se cheias de expectativa.
Carmen não sabia o que esperar. Ao contrário de , ela já tinha beijado garotas. Ela sabia como era bom. Sua bissexualidade era declarada. Ela não conseguia saber se tinha gostado, não sabia se tinha sido bom para ela quanto tinha sido para si mesma. Era difícil ver claramente o rosto de na escuridão.
— ? — Ela chamou, incerta de como agir.
— Desculpe, eu não deveria ter feito isso. — também não sabia como se portar.
O que ela deveria fazer depois de partilhar um beijo tão maravilhoso não só com uma mulher, como com sua melhor amiga? sabia, do alto de seus dezessete anos, que admirava talvez um pouco demais outras mulheres, mas jamais tinha cogitado a ideia de se envolver com outra mulher. Era assustador. O preconceito, os olhares tortos, não poder expressar seu amor como outros casais heterossexuais, tudo isso a assustava.
Nos dias seguintes, Carmen parecia agir como se nada tivesse acontecido e também. Ela formulou uma teoria em sua cabeça onde ela tinha se sentido compelida a confortar Carmen e, por isso, acabou beijando-a. É claro, sua teoria não explicava porque ela tinha gostado tanto do beijo, mas tentava não pensar nisso.
Enquanto isso parecia resolvido, no final de semana Carmen retomou seu comportamento autodestrutivo. , que gostava tanto de uma festa quanto qualquer garota comum, teve que buscar Carmen do outro lado da cidade porque ela estava bêbada ou drogada demais para conseguir explicar ao motorista do táxi onde ela morava.
Carmen passava as noites em claro, sempre em festas, sempre entretendo todos ao seu redor, cantando, dançando, bebendo e acabando-se. Quando achava que ela estava melhorando, Carmen repetia tudo o que a fazia mal e isso magoava as duas por dentro. Ela dirigia de madrugada, Carmen adormecida no passageiro, perguntando-se como poderia ajudá-la.
— Carmen, vamos lá, você precisa me ajudar.
Carmen era leve e poderia carregá-la, mas não conseguiria chegar ao seu apartamento com ela no colo. Meio consciente, a garota apoiou um dos braços nos ombros de , a cabeça encostada em seu ombro, andando meio arrastada pelo saguão do prédio. Enquanto esperavam o elevador, olhou-a.
Ela era tão pequena, tão frágil, mas tão bonita em seu vestido vermelho, em seu batom da mesma cor. Ela se perguntava por que Carmen não conseguia seguir em frente. Por que ela tinha que se consumir com a culpa? Ela não era culpada. Carmen era uma vítima.
De forma miraculosa, ela levou Carmen até seu quarto, deitou-lhe na cama, tirou-lhe os saltos, os brincos, limpou a maquiagem dela com lenços umedecidos e encarou-a dormindo. Carmen tinha um corpo pequeno, curvas sinuosas, ombros estreitos, pernas longas para alguém tão baixa. Suas mãos eram pequenas e delicadas, Carmen as detestava porque dizia que se pareciam com as mãos de uma criança. Ela tinha um rosto bonito, redondo, seu lábio inferior era mais carnudo que o superior. Sentada ao seu lado na cama, a observou por inteiro. E seu coração doeu.
queria protegê-la do mundo, de si mesma, dos fantasmas que a perseguiam. Por que ela não conseguia fazer isso? Carmen mexeu-se na cama preguiçosamente, o que a fez se sobressaltar. Ela abriu um dos olhos, encarando . Sorrindo, ela se levantou um pouco.
— Mon amour, je sais que tu m'aimes aussi. — Ela murmurou, ainda bêbada demais para fazer sentido. não sabia falar uma palavra sequer em francês e apenas observou em silêncio. Carmen pousou a cabeça em seu colo com um sorriso largo nos lábios ainda meio machados de batom vermelho.
Embora não soubesse o que aquela frase significava, intuía algo de bom.
A manhã seguinte veio rápido. se revirou na cama durante horas, sem que conseguisse adormecer totalmente. Quando finalmente pegou no sono, o sol já estava nascendo. Carmen acordou primeiro. Tomou café com a mãe de , conversaram por um momento e ela retornou ao quarto, procurando acordar a melhor amiga.
— Acorda, bela adormecida! — Cantarolou, chacoalhando .
— Não. — Respondeu em tom seco, cobrindo a cabeça.
Carmen deitou-se ao lado dela, deixando-a dormir. Tinha uma leve lembrança de como tinha ido parar no quarto da melhor amiga e de como ela tinha cuidado tão bem dela. era uma amiga preciosa, embora Carmen às vezes desejasse que fosse mais que isso. Mas, então, ela se lembrava de que não tinha jeito para relacionamentos. Acabaria machucando e isso a assustava. Amava com todo o seu coração, não queria ser a razão de um coração quebrado para alguém como ela.
Além do mais, ela pensava, jamais tinha demonstrado interesse em garotas. Carmen estava apenas procurando mais motivos para se machucar, ela achava, punindo-se por tudo. Ela acabou adormecendo novamente. Acordou horas depois com se levantando e fez o mesmo, coçando os olhos.
— Eu nem acredito que você me deixou dormir.
— Eu deixo você fazer o que você quiser. — riu pelo nariz.
— Certo, aham. Vai nessa.
As duas riram, levantando-se da cama e indo para a cozinha. cozinhava bem e gostava de fazer isso. Ela não se importava de ter que preparar as refeições da casa e Carmen geralmente a ajudava quando estava ali. As duas conversaram sobre a noite passada.
— Então, o que aconteceu ontem? — Ela perguntou e Carmen ergueu as sobrancelhas.
— Ontem? — Fez-se de sonsa, como sempre.
— Você teve sorte, sabia? O motorista do táxi poderia tê-la levado para algum lugar e feito deus sabe o que com você. — Carmen franziu os lábios. — Pelo menos você sabia onde estava…
— De que adianta você me passar um sermão como esse se sabe que eu vou fazer tudo de novo? — Carmen perguntou, cheia de cinismo e amargura. — Desiste, .
— Eu não vou desistir de você. — Ela ouviu dizer e ergueu os olhos para ela. — Eu te amo, você sabe.
O coração de Carmen martelou dolorosamente dentro do peito. Ouvir um “eu te amo” de e logo depois ouvir que era por sua amizade doía. Doía mais do que estava disposta a admitir. Carmen se levantou, irritada consigo mesma. Estava sendo estúpida.
— Você tem que parar com isso, Carmen. Eu estou falando sério. Qualquer dia vão me ligar para reconhecer o seu corpo no necrotério.
— Você está sendo dramática. — Carmen desviou-se do assunto, mas a outra persistiu.
— Será que você não está vendo como isso tudo me afeta também? Você acha que eu não me magoo vendo você se acabar? Carmen, nós temos dezessete anos.
— Bom, nem tudo é sobre você, . — Rebateu, irritada. — Eu não estou me acabando, eu estou me divertindo. Tem uma diferença muito grande.
— Você sabe que não está se divertindo.
— Quem é você para me dizer o que eu estou sentindo ou não? — A voz de Carmen se alterou, aumentando várias oitavas, fazendo com que a encarasse sem reação. — Você não entende nada, . Viva aqui dentro do seu mundinho hipócrita, que é o que você quer.
— Hipócrita?
— O beijo? — Carmen riu, vendo a outra corar e dar um passo para trás. — Ah, sim. É melhor fingirmos que nada aconteceu, não é assim que eu e você lidamos com as coisas? Então vamos fingir que essa briga também não aconteceu.
Carmen levantou-se de súbito, pegando sua bolsa e seus sapatos e saindo de qualquer maneira do apartamento. suspirou. Toda semana Carmen tinha alguém diferente, uma festa diferente, uma situação diferente para lidar. estava cansada. O stress lhe deu dor de cabeça e ela não conseguia pensar direito.
faria qualquer coisa para aplacar a dor dela. Para fazê-la perceber que não precisava se punir. A mãe dela saiu do quarto na hora do almoço, encarando a mesa posta e a ausência de Carmen.
— Ela não quis ficar para comer? — Sua mãe perguntou, sentando-se na mesa e se servindo da torta de carne.
— Nós brigamos. — respondeu de mau humor, sua mãe ergueu as sobrancelhas.
— Por quê?
— Você não percebeu? Ela está se acabando aos poucos. Não se importa com nada e nem com ninguém, eu já disse a ela que fico preocupada e ela só… — grunhiu, frustrada, enfiando uma enorme garfada de comida na boca. A mãe dela riu.
— Você falou com ela de verdade ou só usou aquele papo de mãe para cima dela como você faz comigo? — Sua mãe tinha uma risada jovial, ver sua filha tão preocupada e tão responsável às vezes a deixava com a sensação de que não estava aproveitando sua adolescência como devia, mas ela era grata. Houve um tempo em que sequer parecia consigo mesma, sempre cabisbaixa ou bêbada demais, e isso a assustava. — , pode ser um choque pra você, mas, às vezes, parece que você está simplesmente criticando as pessoas do alto do seu pedestal de cristal. Converse com ela de verdade, diga tudo o que sente e eu tenho certeza que ela vai entender.
Dizer tudo o que sentia era o problema. não sabia direito o que sentia. Ela odiava ver Carmen com outra pessoa e sempre que a via com um rapaz ou uma garota, seu peito doía tanto que ela precisava sair de perto. Doía tanto ver Carmen bebendo e se desdobrando para agradar todas aquelas pessoas. Também doeu quando Carmen falou sobre o beijo, chamando-a de hipócrita e ela sabia que era, mas não era capaz de descobrir o que eram esses sentimentos. Era diferente do começo da amizade, disso ela sabia. Ela se importava demais com quem Carmen saía ou deixava de sair. E isso não podia ser algo normal para apenas uma amizade.
(…)
— Eu sei que você está aí. — bateu de novo na porta da frente da casa suburbana. — Vamos lá, eu quero conversar com você. — Nada. Silêncio. — Se você me deixar entrar, pago uma pizza para você.
Alguns segundos depois, Carmen abriu a porta, os braços cruzados em cima do peito. Ela parecia mal humorada e seu cabelo ainda estava meio úmido. Em vez de dar espaço à outra para entrar, a loira simplesmente se manteve na porta, olhando para ainda emburrada.
— Eu não vou poder entrar? — rolou os olhos quando Carmen negou.
— Eu não estou sozinha. — Carmen disse simplesmente. sentiu a bile na boca, mas controlou-se.
— Certo. Eu devia ter avisado.
Carmen a observou cabisbaixa e então começou a rir.
— É mentira, eu só queria te ver sofrer.
— Você é uma filha da puta. — entrou na casa, rindo, aliviada. Aliviada por Carmen não estar com ninguém.
As duas sentaram-se no sofá, um pouco estranhas com a tensão. Carmen não se arrependia de nada que tinha falado, mas sim. Ela sabia que podia parecer arrogante, vez ou outra.
— Eu percebi, depois que você foi embora, que eu tenho te pedido para se abrir comigo, mas eu não me abro com você. — Carmen rolou os olhos.
— Não me diga…
— Sem gracinhas, eu vou falar coisas sérias aqui. — suspirou, mas Carmen deu de ombros e sentou-se sobre os joelhos, perscrutando-a com seus grandes olhos azuis. — No metrô, você perguntou se alguma vez eu já pensei em me matar e eu disse que não. Eu menti. Eu já pensei em me matar.
Houve um silêncio incômodo. Carmen não sabia reagir. Ela se levantou do sofá, mas a puxou de volta.
— Não, você vai ficar aqui e ouvir tudo!
— Eu não quero ouvir tudo.
— Eu quero que você ouça! — não costumava gritar, o que surpreendeu as duas. — Eu conheço cada pedaço da sua alma, cada partezinha obscura, Carmen, mas não é justo você não saber nada sobre a minha!
— Tá, fale.
Ela se sentou de má vontade, o coração ribombando. não podia fazer isso. Não podia esperar que jogaria um monte de sentimentos nela e Carmen seria capaz de assimilar todos eles sem sequer entender quais eram os seus sentimentos em relação a tudo aquilo.
— Eu pensei em me matar várias vezes no ano passado. Antes de te conhecer. Meus pais estavam se separando, eles me arrastaram para a briga e a depressão finalmente tomou conta de mim. Eu não tinha vontade de fazer mais nada. Eu queria morrer, mas nunca tive coragem. E então você apareceu. — respirou fundo. — Eu fiz, e ainda faço, a terapia com os antidepressivos, mas você não sabe o quando me ajudou, Carmen. Não sabe como você foi importante pra mim nesse período.
Carmen, realmente, não sabia. Ela tinha percebido as mudanças em , mas jamais tinham conversado sobre aquilo. Elas conversavam tanto, mas nunca sobre si mesmas, nunca sobre seus problemas… Elas não sabiam lidar com seus sentimentos. Elas nem queriam aprender.
— A coisa toda com o seu padrasto me deixou abalada, também. — Carmen preferiu não olhar para , envergonhada demais para falar de algo assim. — Não por ele, porque não vou sentir falta daquele desperdício de ser humano, mas pelo que tudo isso causou em você. Carmen, eu não quero que você se puna por ele.
— Eu não estou fazendo isso. — ergueu a sobrancelha, mas continuou o seu monólogo.
— E sobre preferir garotos ou garotas… — mordeu a unha do dedão, ansiosa. Carmen, inconscientemente, inclinou-se para a frente. — Eu não sei. Eu acho que gosto de garotos, mas… — As bochechas de coraram profusamente. — Mas eu nunca senti nada em um beijo como eu senti no nosso. Eu não sei, talvez eu não goste de garotos tanto assim.
Carmen desviou o olhar, esfregando as mãos nervosamente. Ela nunca ficava nervosa quando se declaravam para ela. Aquela era a primeira vez. Talvez porque fosse . Talvez porque ela tinha alimentado esse sentimento por tempo demais. E Carmen, a despeito de tudo, tinha medo. Ela tinha medo porque sempre tinha brincado com os sentimentos dos outros, mas nunca tinha aberto o seu coração a ninguém. Ela não conseguia, ainda mais porque desde que conheceu , ela ocupava todo o seu coração.
— , você tem que entender. — achou que seria rejeitada, mas ela ainda prestou atenção no tom sério de Carmen. — Você não pode se declarar para mim e se cansar de mim depois. Você não pode mais me abandonar. — Havia tanta emoção ali que não conseguiu reagir. — Seria uma covardia enorme se você… — Carmen soluçou.
Aquele lado de Carmen a tocou tanto que ela simplesmente a abraçou. Puxou o corpo pequeno e frágil de Carmen para os seus braços e sentiu o calor da pele dela, o ritmo cardíaco dela, a respiração dela.
— Eu sofri tanto vendo você se punir. Vendo você mentir para si mesma, vendo-a se entregar para qualquer um por um pouco de amor. Carmen, eu… — Ela respirou fundo. — Tu as besoin de moi. Tu as besoin de moi dans ta vie. Tu ne peux plus vivre sans moi. Et je mourrais sans toi. Je tuerais pour toi.
— Isso foi… A pior pronúncia de francês que eu já ouvi na vida. — riu, envergonhada e Carmen a beijou.
— Eu te amo. — Ela repetiu. — Eu nunca amei ninguém assim. Eu nunca senti nada com ninguém, não como senti com você. Nós nos beijamos uma vez e foi tudo tão certo que eu não sei como passei a minha vida inteira sem isso.
— , parece que você está recitando um livro do Nicholas Sparks.
— Não. Eu sei do que eu estou falando.
— Sabe mesmo? Sabe o que nós duas vamos enfrentar se resolvermos assumir isso aqui? — Carmen a olhou nos olhos.
— Sei. Eu não ligo. — Carmen suspirou.
— Isso é perigoso.
— O quê? Duas mulheres juntas? — piscou, confusa.
— Não, finalmente ter alguém que eu não gostaria de perder.
— Você não vai me perder. — a abraçou novamente e Carmen derreteu-se em seu aperto. — E eu não quero perder você. Me prometa que irá ter mais cuidado com todas essas festas.
— Eu prometo. — Carmen a puxou para um beijo apaixonado e mais intenso que os anteriores.
— E prometa que vai me beijar sempre assim.
As duas sorriram e se beijaram novamente. Carmen finalmente podia parar de mentir para si mesma, podia parar de se torturar, porque tinha ao seu lado alguém para lhe apoiar. seria o seu porto seguro enquanto ela não pudesse superar tudo aquilo sozinha. E mesmo quando Carmen fosse forte o suficiente, esperava ainda poder apoiá-la no caminho. Sabiam que nada seria fácil, mas não se importavam. No final de tudo, elas sempre tinham uma a outra.
— Vamos embora, Carmen. — Ela chamou, preocupada.
Carmen já não agia como si mesma há dias. Girava pela pista de dança improvisada, dançando enquanto a saia subia, revelando as coxas desnudas e macias para o público. não gostava de quando Carmen perdia o controle ou a conta de quantas doses de tequila tinha bebido. Não gostava de ver uma amiga tão querida em um estado tão deplorável.
Carmen fez que não lhe ouviu, virando-se para o outro lado da sala e chamando um rapaz para dançar com ela. Ah, eles sempre caíam de quatro por ela.
— Carmen. — O tom autoritário fez a outra se virar, olhando-a com um sorriso enviesado nos lábios vermelhos.
— . — Ela imitou-a no tom, fazendo a mencionada moçoila soltar um suspiro e pousar a mão na têmpora.
— Carmen, vamos. — foi até a amiga bêbada, segurando-a pelo pulso delicadamente.
Carmen a olhou de esguelha e, por um momento, achou que ela fosse se debater e resistir. A morena era tão imprevisível bêbada quanto era sóbria. E como se lesse pensamentos, os lábios cor de sangue se abriram em um sorriso largo e maldoso.
— Não vou fazer uma cena, não precisa me olhar assim.
Carmen despediu-se de várias pessoas, conhecidas ou não, deixando para trás várias perguntas como “você tem mesmo que ir?” enquanto balançava os cachos loiros e sorria alegremente. Carmen era a alma da festa, sempre. Era incrível como sempre conseguia sair como a vilã da história quando dava a hora de ambas irem embora. Mais responsável do que a outra, era quem controlava a hora de sair e de voltar. As pessoas sempre a detestavam por levar Carmen embora.
As duas caminhavam de volta para casa em silêncio. arrastava um pouco os pés, exaurida por ficar a noite inteira tomando conta da melhor amiga, já Carmen saçaricava pelo caminho, inquieta mesmo quando estava cansada e bêbada. A dupla desceu as escadas para a estação do metrô, deserta àquela hora da noite.
Com as mãos enfiadas nos bolsos do moletom, observou a outra discretamente. Carmen estava exibindo esse tipo de comportamento descontrolado por duas semanas, agora. Ela estava preocupada, embora não soubesse, exatamente, como poderia ajudá-la: Carmen era mais fechada que as pernas de uma freira. Por mais que soubesse qual era o problema, abordar o assunto era difícil para ela também.
— L’appel du vide. — Carmen murmurou, observando o vão onde o metrô deveria parar.
— O que você disse? — piscou, um pouco desorientada. Detestava quando a garota, filha de uma mulher francesa, começava a falar a outra língua de repente.
— Você já pensou em se matar, ? — Carmen deu um passo para a frente, para mais perto da linha de segurança e se alarmou.
— Não. — Era mentira. não sabia contar quantas vezes o pensamento já tinha passado pela sua cabeça no ano passado. — Volte pra cá.
— Eu já. — Carmen deu outro passo para frente e então olhou para a amiga por cima do ombro. — Estou pensando em me jogar na frente do metrô agora. Algumas vezes eu me imagino caindo da varanda do seu apartamento e rachando minha cabeça no asfalto ou me jogando na frente de um ônibus. — Aqueles olhos azuis, grandes e felinos procuraram por alguma reação em .
Carmen tinha seus momentos, ela sabia. Costumava dizer que ninguém deveria querer ser como ela, mas jamais explicava muita coisa sobre a razão de se depreciar com tanta clareza. Claro que, naquela situação, sabia exatamente o que a afligia porque era sua cúmplice e parceira no crime. Então, o que fez foi puxar Carmen de volta sem muito esforço, passando um braço ao redor dos ombros da garota. Ela beijou os cabelos da menina, apoiando o queixo na cabeça dela por um momento. As duas não falaram mais nada. Mantiveram-se juntas até que o metrô chegasse e sentaram-se lado a lado em um banco, o vagão vazio e silencioso, as mãos dadas e os ombros juntos.
Quando chegou em casa, depois de caminhar com Carmen até a casa dela, acessou o serviço de tradução do Google. Ela clicou na entrada de fala e repetiu a frase – da melhor maneira que conseguiu –, procurando a tradução da estranha expressão em francês. Surpreendentemente, sua busca deu resultados. L’appel du vide significava, literalmente, o chamado do vazio. É aquele lapso autodestrutivo que passa pela sua cabeça por um segundo, aquela vontade de pular de um lugar alto ou de jogar o carro contra um muro. Agora, estava ainda mais preocupada com a amada amiga.
Ela se lembrou, deitada em sua cama, de como se conheceram. O dia em que viu Carmen, a primeira vez que a viu mesmo, não foi nada além de monótono. Não houve um grande evento, não houve ao menos uma conexão instantânea. Carmen nem ao menos lhe deu um segundo de atenção, ela sorriu, a cumprimentou e voltou os olhos para o rapaz com quem estava quase imediatamente, piscando seus longos cílios de forma sedutora. Na época, era quem estava uma bagunça. A separação dos pais tinha tirado dela o que tinha de melhor: a espontaneidade, a alegria de viver, a vontade de ser feliz. O litígio tinha sido árduo, os pais brigavam a todo momento e, quando ela escolheu ficar com a mãe, seu pai a deixou à sua própria sorte. Até hoje não mantinha contato com ele.
Naquela época, nada tinha para alegrá-la. Não tinha expectativas. Queria se mudar logo, fazer uma faculdade do outro lado do país e deixar tudo para trás. Talvez – e apenas talvez – cultivasse, naqueles dias cinzentos, uma pequena semente de esperança de que algo mudaria, um dia, para melhor; algo que lhe devolvesse a cor. E, assim, ela conheceu Carmen.
Não foi no dia que se viram pela primeira vez, nem na segunda e nem na terceira. Conheceram-se ao acaso, sem julgamentos, um laço formado por duas garotas extremamente bêbadas em um banheiro, conhecidas, que viam-se na escola há um ano, mas jamais tinham parado para conversar porque eram muito diferentes: era a aluna responsável, Carmen andava com os arruaceiros; não se falavam e nem se conheciam.
— Eu gosto do seu cabelo. — Carmen disse, olhando-se no espelho da casa de Sarah Rogers. nem tinha percebido outra pessoa entrar enquanto vomitava com o rosto enfiado no vaso.
Aquele momento tinha sido o mais baixo de sua vida. Estava bêbada demais, tinha ficado com um rapaz que nem conhecia porque se setia sozinha, estava se esforçando para agradar pessoas de quem nem ao menos gostava… Tudo porque estava sozinha. E, assim, tinha perdido as estribeiras.
— Obrigada. — Ela disse, olhando Carmen de esguelha, desconfiada da gentileza. — Eu gostei das suas botas.
— Quer levá-las para você? — A garota ofereceu, olhando a bota com desprezo e voltando a ela seus olhos de gato. Carmen sorria, simpática como apenas garotas bêbadas conseguiam ser com outras garotas.
— Não. Mas eu gostaria que você segurasse o meu cabelo, estou prestes a explodir de novo.
Naquela noite, Carmen e descobriram que desciam na mesma estação de metrô, conversaram durante a caminhada, pela noite adentro e trocaram mensagens pelo celular depois de chegarem em casa. A amizade entre as duas evoluiu rapidamente. Elas se equilibravam, apesar de diferentes.
Carmen costumava ser alegre, divertida, um tanto torta das ideias, mas uma ótima pessoa para se ter por perto quando tudo que queria era se afundar em autopiedade. Conhecer Carmen foi um golpe de sorte. Golpe de sorte porque não duraria sozinha, ainda mais com a pressão do pai para se mudar com ele. Ela era, obviamente, capaz de se virar. Podia cozinhar e cuidar da casa, era responsável e bastante estudiosa, mas isso não significava nada uma vez que ela se sentia só. E a solidão pode ser tão tóxica quanto o veneno para ratos que ela checava regularmente, esperando aquela coragem cega para dar um fim à própria existência. não tinha motivos ou coragem para continuar vivendo. Carmen a fez reencontrar seu rumo. E ela era grata. Era por isso que não podia permitir que sua melhor amiga definhasse.
— Acorda, vagabunda! — Carmen marchou pelo quarto adentro. Era cedo demais para se estar acordada em um domingo, mas Carmen parecia ignorar isso.
— Por que você não deita e dorme como toda pessoa normal?
— Porque ser normal é chato. — Carmen puxou-lhe a coberta e agarrou seu pé, arrastando-a para fora da cama, quase derrubando-a no chão. Era incrível a força que alguém tão pequena tinha naqueles braços finos.
— Eu odeio você. — ergueu-se da cama, abrindo os olhos apenas para ver Carmen rindo. — O que você fez?
Aquele sorriso era sempre o passaporte para alguma confusão. Em um ano, quase dois, de amizade, podia contar nos dedos de uma mão quantas vezes um sorriso como aquele não significou algo que as poria em encrenca.
— Shhh! Aqui não. Vista-se, vamos caminhar.
— Caminhar? Será que você não pode ter uma ressaca como uma pessoa normal?
— Você sabe que eu não tenho ressaca. — Ela atalhou, jogando peças de roupa em cima da amiga. — Anda logo!
A manhã estava fria, mas o sol, tímido, brilhava através de algumas nuvens. Sete da manhã. Sete da manhã de um domingo aparentemente normal, mas o mundo das duas viraria de cabeça para baixo.
Apesar da alegria e entusiamo inicial, Carmen caminhava em um silêncio perturbador. Qualquer pergunta era prontamente ignorada e à cabia apenas segui-la, bastante irritada, e esperar que Carmen não tivesse roubado um banco ou planejado um ataque ao presidente.
— Você se lembra de quando vimos aquela estrela cadente em Venice Beach? — Carmen perguntou de repente, virando a esquina no subúrbio onde morava com a mãe e o padrasto.
— Durante as férias de verão. — respondeu e Carmen anuiu.
— Você se lembra o que eu desejei? — não respondeu desta vez. Carmen continuou: — Eu desejei que meu padrasto morresse. Você lembra?
O arrepio que sentiu nada tinha a ver com o vento frio da manhã de outono. apertou o passo, mas isso não bastou. Ela correu até a casa de Carmen, no final da rua, abrindo a porta da frente descuidadamente. Ela passou pela sala de estar e pelo corredor, checou a cozinha e a sala de estar, sem encontrar nada fora do normal.
— A escada. — Carmen disse timidamente, agindo dessa forma pela primeira vez desde que a conhecia.
O corpo do padrasto de Carmen estava caído no pé da escada. encarou a cena muda de espanto. O choque de ver um corpo morto pela primeira vez a fez notar tudo: os olhos dele, abertos e fixos, sem brilho, encarando-a; o pescoço virado em um ângulo impossível, o braço quebrado… Ela não conseguia falar. E Carmen tampouco fazia barulho. Os olhos estavam negros à meia luz, duas poças de piche que encaravam , esperando sua reação.
— O que você fez? — A voz de era apenas um fiapo, seu coração batia forte demais e ela se sentia tonta. Estava hiperventilando.
— Nada! — Carmen apressou-se em negar. — Eu juro, ele caiu da escada sozinho!
— E então você pensou que era inteligente deixá-lo aqui assim?
— O que você queria que eu fizesse, que eu o arrastasse para a merda da garagem? — A garota rebateu.
— Espera, quando ele morreu? — Carmen mordeu o lábio inferior e notou as olheiras embaixo de seus olhos.
— Ontem à noite.
— Você esperou tudo isso para me falar? Por que você não me ligou? Ou, sei lá, por que não ligou pra porra da polícia?
— Ah, sério, como se isso fosse muito esperto.
— Você não é a melhor pessoa para julgar se algo é esperto ou não. — apontou o cadáver. — Você dormiu com um cadáver jogado na sua escada!
— Pra começo de conversa, ele está fora da escada e eu já estava lá em cima, não desceria por nada depois disso. — Carmen fez uma pausa. — Eu não sabia o que fazer. Ainda não sei.
As duas se encararam por um momento. , obviamente, conhecia o relacionamento complicado de Carmen com a mãe, uma mulher francesa e bastante tradicional, mas sobre o padrasto sabia apenas que era um homem controlador que insistia em criticar a enteada com palavras duras. Ela engoliu em seco, passando a mão pelo rabo de cavalo que fizera na pressa.
— O que aconteceu?
Inicialmente, Carmen manteve o silêncio. Seus olhos azuis se demoraram no cadáver, a expressão em seu rosto se endureceu. Ela se virou para e havia um brilho de determinação nas íris.
— Nós brigamos de madrugada. Ele me ouviu chegar e gritou comigo. Nós discutimos bastante e ele disse que mal podia esperar para eu ter dezoito anos e ele poder me jogar para fora de casa. Ele disse que eu era uma vagabunda e que eu podia me sustentar nas ruas assim. Acho que ele estava bêbado, eu vi a garrafa de uísque aberta na bancada da cozinha. — Carmen respirou fundo. — Eu não sinto pena dele.
— Ele escorregou?
— Tropeçou.
notou que ele estava descalço, o carpete da escada de Carmen era novo, não havia nada que ele pudesse ter tropeçado. Se Carmen percebeu que não acreditou na história, ela não disse nada. Continuou parada à porta do corredor, os ombros meio caídos, encarando a cena grotesca.
— Vamos pensar em alguma coisa. — disse, aparentando calma.
A verdade é que nunca tinha estado tão nervosa em toda a sua vida. Nunca antes tinha passado por nada assim. Ocultar um cadáver? Encobrir um possível homicídio? Esse tipo de coisa não deveria acontecer no subúrbio. As famílias se mudavam para lá justamente para ter paz e tranquilidade. As duas se sentaram para combinar uma história, mas não suportou e correu até o banheiro; vomitou, sinal de nervosismo.
— Você tem que se recuperar.
— Você tá falando sério? — gritou, limpando a boca com as costas da mão. — Eu acabei de ver um cadáver! Eu não sou uma droga de psicopata para fazer isso e não ficar nervosa!
— Eu vou ligar para a polícia. — Carmen ignorou o ataque. — E dizer que eu dormi na sua casa. Nós chegamos aqui e o vimos caído.
acenou, concordando. As duas falaram com os policiais, contaram a história que tinham combinado. A verdade estava envolvida em grande parte do que contaram à polícia: tinham saído com alguns amigos, bebido e Carmen acabou dormindo na casa da amiga porque a sua era longe demais da estação de metrô para ir até lá bêbada e sozinha. Quando perguntadas sobre o que tinha acontecido, as duas disseram que apenas tinham chegado em casa e visto o corpo do padrasto de Carmen no chão, correndo para ligar para a polícia; não sabiam de nada e não imaginavam o que podia ter acontecido.
O choque que os simpáticos policiais viam em era real. Ela não sabia como agir, apesar de ambas terem combinado tudo. Quando a polícia a questionou, ficou se perguntando se eles veriam a sua mentira tão obviamente, se eles notariam que algo estava errado. E se Carmen tivesse mesmo empurrado o homem pela escada?, pensou. Mas, então, como poderia culpá-la? Ela sabia, por alto, dos problemas domésticos, do histórico de abuso psicológico, de dominação e bebida. Se Carmen tivesse empurrado o padrasto da escada, sabia que não tinha como culpá-la.
Ligaram para a mãe de Carmen, explicando o que tinha acontecido. A pobre Amélie retornou mais cedo de sua viagem de negócios, planejou o enterro e cuidou da filha, que ela julgava estar abalada por ter descoberto um corpo em uma situação tão inesperada.
Ninguém suspeitou da verdade sórdida. Nenhum deles. O nível de álcool no sangue do homem serviu apenas para corroborar a teoria de que ele estava bêbado demais para tropeçar sozinho e quebrar o pescoço. E Amélie parecia secretamente aliviada.
Duas semanas atrás, Carmen e tinham chegado a um nível diferente de intimidade. Elas conheciam seus demônios. Elas tinham visto o pior uma da outra. E, agora, assistia Carmen se destruir, talvez por culpa, talvez para comemorar a morte de seu carrasco. De todo modo, ela sabia que não podia deixar Carmen se acabar.
— Você está um lixo. — Foi a vez de invadir o quarto de Carmen.
Carmen não tinha tirado a maquiagem da noite passada, quando confessou seus desejos suicidas: o batom vermelho estava borrado no travesseiro e no rosto bonito da garota. Ela xingou em francês, revirando-se e se negando a acordar, mas simplesmente deixou os cafés na cômoda e pulou na cama.
— Acorda logo, já é quase a hora do almoço! — Chacoalhou a amiga, o tom estridente propositalmente.
— Alegria falsa fica ridículo em você. Pior do que o seu vestido do baile de inverno do ano passado. — Mesmo com a voz abafada pelo travesseiro, Carmen ainda conseguia soar maldosa. a abraçou, apertando-a por cima da coberta.
— Eu trouxe café. Levanta logo.
— Se não for um macchiato de caramelo eu juro que vou cortar seu cabelo quando você dormir.
Seres humanos são animais complexos. Querem manter a imagem que construíram para os outros a todo e qualquer custo. Constroem fachadas e escondem seus sentimentos. E perdem uma parte importante de suas vidas fazendo isso: laços. Construímos laços através de nossas vulnerabilidades, ao nos abrir para as pessoas. Carmen tentava, a todo custo, sustentar a imagem de que nada tinha mudado. Ela se agarrava à sua eu do passado com unhas e dentes, mas algo estava diferente. Ela tinha enxergado seu próprio abismo. Carmen tinha visto uma versão de si mesma que ela jamais esqueceria.
queria ajudá-la. Queria levar a alegria de volta à amiga. As duas tomaram café juntas e tentaram. Elas tentaram evitar o assunto, mas um olhar para a escada relembrava o que tinha acontecido ali. Elas tentaram conversar como antes, mas havia aquilo no ar, uma sensação indefinida que misturava medo, ansiedade, curiosidade e uma necessidade excruciante de falar sobre o acidente. Elas tentaram ser como antes, mas já não havia jeito.
Se Carmen não estava bebendo, dançando ou mentindo para si mesma e para os que a rodeavam sobre estar bem, então ela não sabia como agir. Nunca antes alguém a tinha conhecido de forma tão íntima sem sequer tocar o seu corpo. Sua alma estava nua e ela estava desconfortável porque os olhos de pareciam enxergar através dela. Carmen preferia que seu corpo estivesse nu, talvez ela se sentisse melhor. Intimidade a assustava.
— Eu o empurrei. — Ela disse de repente, pegando de surpresa.
— Eu sei. — Depois de alguns segundos de silêncio, a respondeu. — Eu não sou burra.
As duas se encararam, mudas, mas a falta de barulho era reconfortante. Carmen ajeitou-se nos braços de , a cabeça encostada contra o seu peito, os braços dela firmemente seguros ao redor da cintura da outra. E alisou seu cabelo, sentindo-se imensamente confortável.
— , você acha que eu sou uma pessoa ruim?
— Não.
Carmen tinha matado alguém. Moralmente, legalmente e sob qualquer outro aspecto, isso era errado, mas isso não fazia dela uma pessoa ruim. Ela não falava muito sobre os conflitos dentro da família, mas eram ruins o suficiente a ponto de fazê-la chorar bêbada nos braços de mais de uma vez. Ela nunca dizia tudo em detalhes e achava que respeitava sua privacidade se nunca perguntasse. Mas ela sentia que havia dor demais ali para alguém tão jovem, principalmente se Carmen insistisse em carregar tudo sozinha.
— Você não tem que se sentir culpada por escolher a sua sobrevivência em vez da dele. — murmurou contra o cabelo dela, puxando Carmen para mais perto. Ela nunca tinha visto alguém tão perdida dentro de seu próprio quarto.
De imediato, Carmen não disse nada. Ela respirou fundo e seu corpo ficou tenso, o que fez apertar seus braços ao redor dela. O silêncio, a proximidade, tudo isso foi melhor do que aparentar normalidade. Levou duas semanas, mas e Carmen finalmente tinham aprendido que não havia como fingir que o incidente com o padrasto dela não tinha acontecido ou que não as tinha afetado.
— Você acha que há algo de errado comigo? — Carmen ergueu a cabeça e a olhou nos olhos. Aqueles olhos azuis sempre a atraíram, brilhando como gemas com lágrimas não derramadas.
— Sim, mas nós somos adolescentes, há algo de errado com todos nós.
Carmen sorriu tristemente, afastando-se em seguida. Ela se levantou bruscamente da cama, pegando o copo de café, o macchiato que ela tanto gostava, e dando um longo gole.
— Você me mima tanto, . — Ela sorriu e também. — Eu não posso mesmo ficar o dia inteiro na cama, preciso que você faça as minhas unhas porque eu tenho um encontro essa noite!
— Encontro? — repetiu, inclinando a cabeça de modo questionador.
— Sim, quer dizer… Eu ainda não tenho, mas vou marcar agora. Eu estava falando com esse cara gato do Tinder e…
Carmen pôs-se a falar sobre o seu futuro encontro. não deveria estar surpresa. Ela sabia muito bem como os garotos – e as garotas – caíam em cima de Carmen, como todos pareciam gostar dela e de sua personalidade efusiva, do sarcasmo, de como ela era crua.
— Você está saindo com esse cara só para se divertir? — Ela acabou perguntando, sentindo-se um tanto estranha. Ela sempre se sentia desconfortável quando Carmen saía com alguém ou encontrava alguém durante uma festa, só para se divertir.
— E quem é que sai com alguém para não se divertir? — Ela devolveu a pergunta com um sorriso matreiro.
— Você me entendeu.
Carmen suspirou e se jogou na cadeira giratória que ficava em frente a sua escrivaninha. Ela deu outro gole longo do café, apenas o som do canudo ocupando o ambiente. Quando ela voltou a falar, seu tom era cheio de humor:
— Eu não sei porque você está tão incomodada assim. Eu estou bem.
— Você não está bem, você acabou de se abrir pra mim e… — suspirou, passando a mão pelo cordão de ouro no pescoço de forma frustrada. As palavras seguintes saíram rápidas demais para que pudesse controlar. — Não acha melhor esperar um pouco antes de sair transando com a primeira pessoa que aparece na sua frente?
Carmen deu de ombros, sem se sentir ofendida pela escolha de palavras de . A própria , aliás, sentia-se uma babaca por falar assim tão bruscamente. Ela balançou a cabeça, levantando-se da cama.
— Não vi Amélie por aqui.
— Ela foi a São Francisco. — Carmen deu de ombros novamente.
Ela não convivia muito com a mãe, não eram muito próximas, apesar do laço de sangue que as ligava. Carmen passava dias sozinha em casa com o padrasto, já que sua mãe, advogada de uma multinacional, mal parava em casa.
— Quer que eu fique com você? — perguntou, preocupada que a outra fosse fazer algo estúpido durante a ausência da mãe.
Carmen não respondeu, mas fez um gesto de descaso, como se indicasse a que fizesse como bem entendesse.
— Você fica tão fofa quando fica toda preocupada comigo! — Carmen acercou-se da amiga, circundando o pescoço dela com seus braços pálidos. — Vai me seguir no meu encontro também?
— Só se você me pedir.
tinha um mau pressentimento. Ela não queria que Carmen fosse ao encontro. Óbvio que ela mostrou a melhor amiga as fotos do tal cara gato do Tinder, as conversas e até mesmo as nudes que o rapaz tinha enviado.
— Ele não é lindo? — Ela perguntou, ao que anuiu a cabeça sem muita animação. — O que é? Você não gostou dele?
— Ora, não importa se eu gosto dele ou não, ele vai em um encontro com você.
— Você não me deixa outra escolha, . — O tom de Carmen era cheio de falso pesar quando ela enfiou a mão no bolso da outra e pescou de lá o celular.
— O que você vai fazer?
Carmen instalou o Tinder no celular de , que via tudo atônita.
— Vamos lá… Dezessete anos, solteira, gosta de curtir a vida e virar uns shots de tequila. — Carmen digitava rapidamente, fazendo rir de desespero. — Essa selfie aqui no perfil porque seus peitos estão lindos… — Ela se virou para com as sobrancelhas franzidas. — Garotos, garotas ou os dois? — bufou. — Eu nunca vi você com outra garota, mas tampouco te vi beijando caras o suficiente para saber se é isso que você quer.
— Essa ideia é ridícula.
— Claro que é, é um encontro duplo. Vamos lá, gatas ou gatos?
— Coloque gatos.
Carmen riu, começando sua caça por um par adequado para a sua melhor amiga. achou melhor deixá-la em seu próprio mundinho e foi para a cozinha ajeitar algo rápido para as duas almoçarem. Quando a comida estava quase pronta, Carmen saltitou até a cozinha, rindo de uma orelha a outra.
— Então, tem esse cara… Eu estava conversando com ele e acho que ele é perfeito para você, olhe as fotos.
— Aham, que seja. — continuou cozinhando, mal olhando por um segundo para a tela do celular.
— Você não quer sair, é isso? — Carmen finalmente desistiu, bufando e olhando para ela enquanto se empertigava na bancada da cozinha.
— Não. — Carmen fez um beicinho. — E isso não funciona comigo.
— Claro que funciona, foi assim que eu fiz você ser a minha acompanhante para o baile de inverno. — segurou uma risada, adicionando um pouco de queijo ao molho da massa. — Você tá com algum problema?
— Eu? — Por um momento, olhou-a estupefata. — Claro que não! Era você que estava tendo uma crise existencial nos meus braços!
— Que já passou, muito obrigada. A sua, no entanto… O que é? Falta de sexo? Quer uma mãozinha?
— Não dá para discutir com você. — rolou os olhos, servindo dois pratos de macarrão com queijo.
Carmen pegou um dos pratos depois de descer da bancada, indo comer no quarto e longe da melhor amiga, irritada com porque ela não se soltava mais. simplesmente não entendia como ela podia fingir que tudo estava dando certo. Como ela podia mentir para si mesma e simplesmente tentar pôr de lado tudo aquilo. O pior era que sabia o quanto ela estava magoada, porque ela tinha mostrado isso, mesmo que por poucos minutos, mesmo que ela logo tivesse se arrependido e voltado a usar sua fachada durona.
almoçou, lavou a louça que tinha usado e foi até o quarto de Carmen, pegando a sua bolsa e seu celular.
— Eu vou voltar para casa. Se quiser, durmo com você amanhã e nós vamos para a escola juntas na segunda.
— Você quem sabe.
rolou os olhos, saindo sem dizer nada. Ela fechou a porta da frente depois de sair e andou os dois quarteirões que separavam suas casas. Não conseguia entender a lógica de Carmen, mas ela duvidava que alguém conseguisse. Que Carmen se divertisse com seus encontros, suas garotas, garotos, o que fosse. Se ela não se importava, também não se importaria.
Mas ela se importava. E isso ficou dolorosamente claro assim que Carmen não respondeu sua mensagem. Ela sempre se preocupava com os encontros de Carmen justamente porque a outra não se importava. Para ela, o mundo era um grande parque de diversões. E para , que sempre teve responsabilidades demais sobre os seus ombros, o mundo era um lugar assustador. Ela estava mordendo as laterais das unhas, incapaz de prestar atenção à lição de casa. Dez da noite e Carmen não tinha falado nada com ela. Ela sabia o protocolo dos encontros, por que ela não podia ser um pouco mais responsável e avisar que não tinha sido morta e enterrada em um terreno baldio?
Passava de meia-noite quando recebeu uma mensagem de Carmen. Àquele ponto, ela já estava descontando sua ansiedade em uma pilha de bombons. Quando o celular vibrou, ela leu a tela e franziu as sobrancelhas.
Abriu a porta do apartamento e lá estava Carmen, seu vestido de lantejoulas douradas grudado às curvas de seu corpo, a maquiagem bem-feita realçando seus olhos misteriosos e amendoados. Carmen parecia prestes a chorar e a deixou entrar sem se preocupar com o barulho, já que sua mãe só estaria de volta de manhã.
— Carmen? — Ao som da sua voz, a garota abraçou-a com força.
ficou parada, encarando o topo da cabeça de Carmen por alguns segundos antes de lentamente passar seus braços pelos ombros esguios da garota. Ela abraçou a amiga de volta em silêncio.
— Você não veio andando, veio? Está tarde.
— Eu peguei um Uber. — A voz dela estava meio abafada, já que ela tinha o rosto enfiado no moletom de .
— Ele foi babaca com você? — Carmen apenas balançou a cabeça. — Aconteceu alguma coisa? — Ela balançou a cabeça novamente.
— Eu posso dormir com você? — Ela ergueu a cabeça e pôde encarar seus olhos lindos e brilhantes de lágrimas. À meia luz, ela parecia ainda mais bonita e tão preocupantemente frágil.
— Claro que pode. Quer tomar um banho?
Por causa da diferença de altura das duas – era particularmente alta, puxando o lado paterno da família –, teve que buscar roupas de sua mãe para que Carmen vestisse. Ela ouviu o som do chuveiro enquanto arrumava a cama, tirando de lá seus livros e os cadernos. Quando terminou e trocou de roupa, viu Carmen parecendo ainda menor no pijama de sua mãe, coçando o olho esquerdo distraidamente.
As duas se deitaram em silêncio, lado a lado, como costumavam fazer tantas vezes. A mãe de era uma enfermeira, por vezes pegava o horário noturno e só voltava de manhã. A mãe de Carmen viajava bastante. Elas costumavam passar as noites juntas e suas mães até preferiam assim, era um modo de assegurar que ambas estavam bem e não precisavam se preocupar. Apesar do costume, algo parecia diferente.
Não porque Carmen deitou a cabeça em seu ombro e a abraçou pela cintura, mas havia algo no ar, um tipo de tensão desconhecida. demorou a pegar no sono e assim que a sonolência começou ficar mais forte, ela ouviu Carmen a chamando.
— Eu não consegui me divertir. — Ela sussurrou e abriu os olhos, virando-se ligeiramente para ela. — Eu não tenho conseguido me divertir há algum tempo. — Carmen confessou.
— Eu não sabia. — deveria ter sabido que era isso. Que ela bebia ainda mais e ficava com ainda mais pessoas para tentar se divertir, para tentar compensar essa apatia.
— Eu finjo bem. — Ela constatou sem arrogância. — Eu bebo bastante e se eu me esforçar eu posso agir como eu agia antes. É só que…
Ela ouviu um soluço e puxou Carmen ainda mais para perto. Queria confortá-la, fazê-la se sentir segura. Por que Carmen não tinha ninguém assim em sua vida, além dela? Por que ela tinha que ser tão sozinha? Para alguém com dezenas de amigos e milhares de seguidores nas redes sociais, Carmen era dolorosamente solitária.
— Eu o sinto por aqui. Não é idiota? — Ela riu, apesar de apostar que ela continuava chorando e que apenas não queria preocupá-la. — Eu sonho com ele.
— O que você sonha?
— Que ele me empurra da escada. — Ela fungou. — , eu juro que não queria…
— Eu sei, Carmen.
— Eu só… — Ela soluçou novamente e esfregou os ombros dela de forma carinhosa. — Eu surtei. Ele começou a me chamar de vagabunda, disse que devia me jogar na rua, que ia me jogar na rua assim que eu fizesse dezoito porque a vida deles seria melhor assim… E eu surtei. Eu não queria empurrá-lo da escada, eu só… Eu só o ouvi caindo, parece até que ouvi quando o pescoço dele quebrou. Eu nem ao menos me lembro de empurrá-lo.
— Carmen, está tudo bem. — Ela puxou o rosto da menina para perto do seu, encostando a testa na dela.
— Eu só queria que ele parasse de falar! — O tom lamurioso dela cortou o seu coração. sentiu os próprios olhos se encherem de lágrimas.
— Carmen, olhe para mim. — Ela acariciou a lateral do rosto da amiga com o polegar, esperando até que os olhos de Carmen se abrissem. Apesar da escuridão, agora que seus olhos tinham se acostumado à penumbra, ela podia vê-la melhor. — Ele não pode te machucar agora. Olhe pra mim! Ele está morto e você não está. Você não tem que sentir culpa por isso, foi um acidente.
— Tenho certeza que a polícia discordaria.
— Então que se dane a polícia. Você não precisa deles, eles não sabem de nada.
O coração de bateu com força contra as suas costelas quando ela percebeu o quão perto estavam uma da outra. Carmen parecia não se importar.
— Eu ainda arrastei você, eu sinto muito. Eu não conseguiria sozinha, , eu juro, eu…
— Chega, Carmen. Ouça bem o que eu vou te dizer, eu não vou repetir: eu mataria por você, eu te amo. Você é minha melhor amiga. — Carmen permaneceu em silêncio, os olhos fixos em seu próprio colo.
— Eu também amo você, . — Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes. sorriu para ela, ainda segurando seu rosto de forma tenra.
Os rostos estavam muito perto um do outro. podia sentir o cheiro de menta do hálito dela, de quando ela tinha escovado os dentes. Seus narizes quase podiam se tocar. Não sabia se ela tinha se inclinado ou Carmen, mas os lábios roçaram um contra o outro hesitantemente. Quando enfim se juntaram em um beijo longo e gentil, achava que seu coração podia explodir dentro do peito.
Parecia errado, já que eram amigas, mas, ao mesmo tempo, parecia tão certo. Ela estava confusa. Já tinha beijado alguns garotos, mas nunca antes tinha se sentido assim por um beijo tão simples. Sua pele inteira parecia arrepiada, os lábios macios de Carmen encaixavam-se bem aos seus. Quando as duas se afastaram, tinham a respiração ofegante, entreolhando-se cheias de expectativa.
Carmen não sabia o que esperar. Ao contrário de , ela já tinha beijado garotas. Ela sabia como era bom. Sua bissexualidade era declarada. Ela não conseguia saber se tinha gostado, não sabia se tinha sido bom para ela quanto tinha sido para si mesma. Era difícil ver claramente o rosto de na escuridão.
— ? — Ela chamou, incerta de como agir.
— Desculpe, eu não deveria ter feito isso. — também não sabia como se portar.
O que ela deveria fazer depois de partilhar um beijo tão maravilhoso não só com uma mulher, como com sua melhor amiga? sabia, do alto de seus dezessete anos, que admirava talvez um pouco demais outras mulheres, mas jamais tinha cogitado a ideia de se envolver com outra mulher. Era assustador. O preconceito, os olhares tortos, não poder expressar seu amor como outros casais heterossexuais, tudo isso a assustava.
Nos dias seguintes, Carmen parecia agir como se nada tivesse acontecido e também. Ela formulou uma teoria em sua cabeça onde ela tinha se sentido compelida a confortar Carmen e, por isso, acabou beijando-a. É claro, sua teoria não explicava porque ela tinha gostado tanto do beijo, mas tentava não pensar nisso.
Enquanto isso parecia resolvido, no final de semana Carmen retomou seu comportamento autodestrutivo. , que gostava tanto de uma festa quanto qualquer garota comum, teve que buscar Carmen do outro lado da cidade porque ela estava bêbada ou drogada demais para conseguir explicar ao motorista do táxi onde ela morava.
Carmen passava as noites em claro, sempre em festas, sempre entretendo todos ao seu redor, cantando, dançando, bebendo e acabando-se. Quando achava que ela estava melhorando, Carmen repetia tudo o que a fazia mal e isso magoava as duas por dentro. Ela dirigia de madrugada, Carmen adormecida no passageiro, perguntando-se como poderia ajudá-la.
— Carmen, vamos lá, você precisa me ajudar.
Carmen era leve e poderia carregá-la, mas não conseguiria chegar ao seu apartamento com ela no colo. Meio consciente, a garota apoiou um dos braços nos ombros de , a cabeça encostada em seu ombro, andando meio arrastada pelo saguão do prédio. Enquanto esperavam o elevador, olhou-a.
Ela era tão pequena, tão frágil, mas tão bonita em seu vestido vermelho, em seu batom da mesma cor. Ela se perguntava por que Carmen não conseguia seguir em frente. Por que ela tinha que se consumir com a culpa? Ela não era culpada. Carmen era uma vítima.
De forma miraculosa, ela levou Carmen até seu quarto, deitou-lhe na cama, tirou-lhe os saltos, os brincos, limpou a maquiagem dela com lenços umedecidos e encarou-a dormindo. Carmen tinha um corpo pequeno, curvas sinuosas, ombros estreitos, pernas longas para alguém tão baixa. Suas mãos eram pequenas e delicadas, Carmen as detestava porque dizia que se pareciam com as mãos de uma criança. Ela tinha um rosto bonito, redondo, seu lábio inferior era mais carnudo que o superior. Sentada ao seu lado na cama, a observou por inteiro. E seu coração doeu.
queria protegê-la do mundo, de si mesma, dos fantasmas que a perseguiam. Por que ela não conseguia fazer isso? Carmen mexeu-se na cama preguiçosamente, o que a fez se sobressaltar. Ela abriu um dos olhos, encarando . Sorrindo, ela se levantou um pouco.
— Mon amour, je sais que tu m'aimes aussi. — Ela murmurou, ainda bêbada demais para fazer sentido. não sabia falar uma palavra sequer em francês e apenas observou em silêncio. Carmen pousou a cabeça em seu colo com um sorriso largo nos lábios ainda meio machados de batom vermelho.
Embora não soubesse o que aquela frase significava, intuía algo de bom.
A manhã seguinte veio rápido. se revirou na cama durante horas, sem que conseguisse adormecer totalmente. Quando finalmente pegou no sono, o sol já estava nascendo. Carmen acordou primeiro. Tomou café com a mãe de , conversaram por um momento e ela retornou ao quarto, procurando acordar a melhor amiga.
— Acorda, bela adormecida! — Cantarolou, chacoalhando .
— Não. — Respondeu em tom seco, cobrindo a cabeça.
Carmen deitou-se ao lado dela, deixando-a dormir. Tinha uma leve lembrança de como tinha ido parar no quarto da melhor amiga e de como ela tinha cuidado tão bem dela. era uma amiga preciosa, embora Carmen às vezes desejasse que fosse mais que isso. Mas, então, ela se lembrava de que não tinha jeito para relacionamentos. Acabaria machucando e isso a assustava. Amava com todo o seu coração, não queria ser a razão de um coração quebrado para alguém como ela.
Além do mais, ela pensava, jamais tinha demonstrado interesse em garotas. Carmen estava apenas procurando mais motivos para se machucar, ela achava, punindo-se por tudo. Ela acabou adormecendo novamente. Acordou horas depois com se levantando e fez o mesmo, coçando os olhos.
— Eu nem acredito que você me deixou dormir.
— Eu deixo você fazer o que você quiser. — riu pelo nariz.
— Certo, aham. Vai nessa.
As duas riram, levantando-se da cama e indo para a cozinha. cozinhava bem e gostava de fazer isso. Ela não se importava de ter que preparar as refeições da casa e Carmen geralmente a ajudava quando estava ali. As duas conversaram sobre a noite passada.
— Então, o que aconteceu ontem? — Ela perguntou e Carmen ergueu as sobrancelhas.
— Ontem? — Fez-se de sonsa, como sempre.
— Você teve sorte, sabia? O motorista do táxi poderia tê-la levado para algum lugar e feito deus sabe o que com você. — Carmen franziu os lábios. — Pelo menos você sabia onde estava…
— De que adianta você me passar um sermão como esse se sabe que eu vou fazer tudo de novo? — Carmen perguntou, cheia de cinismo e amargura. — Desiste, .
— Eu não vou desistir de você. — Ela ouviu dizer e ergueu os olhos para ela. — Eu te amo, você sabe.
O coração de Carmen martelou dolorosamente dentro do peito. Ouvir um “eu te amo” de e logo depois ouvir que era por sua amizade doía. Doía mais do que estava disposta a admitir. Carmen se levantou, irritada consigo mesma. Estava sendo estúpida.
— Você tem que parar com isso, Carmen. Eu estou falando sério. Qualquer dia vão me ligar para reconhecer o seu corpo no necrotério.
— Você está sendo dramática. — Carmen desviou-se do assunto, mas a outra persistiu.
— Será que você não está vendo como isso tudo me afeta também? Você acha que eu não me magoo vendo você se acabar? Carmen, nós temos dezessete anos.
— Bom, nem tudo é sobre você, . — Rebateu, irritada. — Eu não estou me acabando, eu estou me divertindo. Tem uma diferença muito grande.
— Você sabe que não está se divertindo.
— Quem é você para me dizer o que eu estou sentindo ou não? — A voz de Carmen se alterou, aumentando várias oitavas, fazendo com que a encarasse sem reação. — Você não entende nada, . Viva aqui dentro do seu mundinho hipócrita, que é o que você quer.
— Hipócrita?
— O beijo? — Carmen riu, vendo a outra corar e dar um passo para trás. — Ah, sim. É melhor fingirmos que nada aconteceu, não é assim que eu e você lidamos com as coisas? Então vamos fingir que essa briga também não aconteceu.
Carmen levantou-se de súbito, pegando sua bolsa e seus sapatos e saindo de qualquer maneira do apartamento. suspirou. Toda semana Carmen tinha alguém diferente, uma festa diferente, uma situação diferente para lidar. estava cansada. O stress lhe deu dor de cabeça e ela não conseguia pensar direito.
faria qualquer coisa para aplacar a dor dela. Para fazê-la perceber que não precisava se punir. A mãe dela saiu do quarto na hora do almoço, encarando a mesa posta e a ausência de Carmen.
— Ela não quis ficar para comer? — Sua mãe perguntou, sentando-se na mesa e se servindo da torta de carne.
— Nós brigamos. — respondeu de mau humor, sua mãe ergueu as sobrancelhas.
— Por quê?
— Você não percebeu? Ela está se acabando aos poucos. Não se importa com nada e nem com ninguém, eu já disse a ela que fico preocupada e ela só… — grunhiu, frustrada, enfiando uma enorme garfada de comida na boca. A mãe dela riu.
— Você falou com ela de verdade ou só usou aquele papo de mãe para cima dela como você faz comigo? — Sua mãe tinha uma risada jovial, ver sua filha tão preocupada e tão responsável às vezes a deixava com a sensação de que não estava aproveitando sua adolescência como devia, mas ela era grata. Houve um tempo em que sequer parecia consigo mesma, sempre cabisbaixa ou bêbada demais, e isso a assustava. — , pode ser um choque pra você, mas, às vezes, parece que você está simplesmente criticando as pessoas do alto do seu pedestal de cristal. Converse com ela de verdade, diga tudo o que sente e eu tenho certeza que ela vai entender.
Dizer tudo o que sentia era o problema. não sabia direito o que sentia. Ela odiava ver Carmen com outra pessoa e sempre que a via com um rapaz ou uma garota, seu peito doía tanto que ela precisava sair de perto. Doía tanto ver Carmen bebendo e se desdobrando para agradar todas aquelas pessoas. Também doeu quando Carmen falou sobre o beijo, chamando-a de hipócrita e ela sabia que era, mas não era capaz de descobrir o que eram esses sentimentos. Era diferente do começo da amizade, disso ela sabia. Ela se importava demais com quem Carmen saía ou deixava de sair. E isso não podia ser algo normal para apenas uma amizade.
— Eu sei que você está aí. — bateu de novo na porta da frente da casa suburbana. — Vamos lá, eu quero conversar com você. — Nada. Silêncio. — Se você me deixar entrar, pago uma pizza para você.
Alguns segundos depois, Carmen abriu a porta, os braços cruzados em cima do peito. Ela parecia mal humorada e seu cabelo ainda estava meio úmido. Em vez de dar espaço à outra para entrar, a loira simplesmente se manteve na porta, olhando para ainda emburrada.
— Eu não vou poder entrar? — rolou os olhos quando Carmen negou.
— Eu não estou sozinha. — Carmen disse simplesmente. sentiu a bile na boca, mas controlou-se.
— Certo. Eu devia ter avisado.
Carmen a observou cabisbaixa e então começou a rir.
— É mentira, eu só queria te ver sofrer.
— Você é uma filha da puta. — entrou na casa, rindo, aliviada. Aliviada por Carmen não estar com ninguém.
As duas sentaram-se no sofá, um pouco estranhas com a tensão. Carmen não se arrependia de nada que tinha falado, mas sim. Ela sabia que podia parecer arrogante, vez ou outra.
— Eu percebi, depois que você foi embora, que eu tenho te pedido para se abrir comigo, mas eu não me abro com você. — Carmen rolou os olhos.
— Não me diga…
— Sem gracinhas, eu vou falar coisas sérias aqui. — suspirou, mas Carmen deu de ombros e sentou-se sobre os joelhos, perscrutando-a com seus grandes olhos azuis. — No metrô, você perguntou se alguma vez eu já pensei em me matar e eu disse que não. Eu menti. Eu já pensei em me matar.
Houve um silêncio incômodo. Carmen não sabia reagir. Ela se levantou do sofá, mas a puxou de volta.
— Não, você vai ficar aqui e ouvir tudo!
— Eu não quero ouvir tudo.
— Eu quero que você ouça! — não costumava gritar, o que surpreendeu as duas. — Eu conheço cada pedaço da sua alma, cada partezinha obscura, Carmen, mas não é justo você não saber nada sobre a minha!
— Tá, fale.
Ela se sentou de má vontade, o coração ribombando. não podia fazer isso. Não podia esperar que jogaria um monte de sentimentos nela e Carmen seria capaz de assimilar todos eles sem sequer entender quais eram os seus sentimentos em relação a tudo aquilo.
— Eu pensei em me matar várias vezes no ano passado. Antes de te conhecer. Meus pais estavam se separando, eles me arrastaram para a briga e a depressão finalmente tomou conta de mim. Eu não tinha vontade de fazer mais nada. Eu queria morrer, mas nunca tive coragem. E então você apareceu. — respirou fundo. — Eu fiz, e ainda faço, a terapia com os antidepressivos, mas você não sabe o quando me ajudou, Carmen. Não sabe como você foi importante pra mim nesse período.
Carmen, realmente, não sabia. Ela tinha percebido as mudanças em , mas jamais tinham conversado sobre aquilo. Elas conversavam tanto, mas nunca sobre si mesmas, nunca sobre seus problemas… Elas não sabiam lidar com seus sentimentos. Elas nem queriam aprender.
— A coisa toda com o seu padrasto me deixou abalada, também. — Carmen preferiu não olhar para , envergonhada demais para falar de algo assim. — Não por ele, porque não vou sentir falta daquele desperdício de ser humano, mas pelo que tudo isso causou em você. Carmen, eu não quero que você se puna por ele.
— Eu não estou fazendo isso. — ergueu a sobrancelha, mas continuou o seu monólogo.
— E sobre preferir garotos ou garotas… — mordeu a unha do dedão, ansiosa. Carmen, inconscientemente, inclinou-se para a frente. — Eu não sei. Eu acho que gosto de garotos, mas… — As bochechas de coraram profusamente. — Mas eu nunca senti nada em um beijo como eu senti no nosso. Eu não sei, talvez eu não goste de garotos tanto assim.
Carmen desviou o olhar, esfregando as mãos nervosamente. Ela nunca ficava nervosa quando se declaravam para ela. Aquela era a primeira vez. Talvez porque fosse . Talvez porque ela tinha alimentado esse sentimento por tempo demais. E Carmen, a despeito de tudo, tinha medo. Ela tinha medo porque sempre tinha brincado com os sentimentos dos outros, mas nunca tinha aberto o seu coração a ninguém. Ela não conseguia, ainda mais porque desde que conheceu , ela ocupava todo o seu coração.
— , você tem que entender. — achou que seria rejeitada, mas ela ainda prestou atenção no tom sério de Carmen. — Você não pode se declarar para mim e se cansar de mim depois. Você não pode mais me abandonar. — Havia tanta emoção ali que não conseguiu reagir. — Seria uma covardia enorme se você… — Carmen soluçou.
Aquele lado de Carmen a tocou tanto que ela simplesmente a abraçou. Puxou o corpo pequeno e frágil de Carmen para os seus braços e sentiu o calor da pele dela, o ritmo cardíaco dela, a respiração dela.
— Eu sofri tanto vendo você se punir. Vendo você mentir para si mesma, vendo-a se entregar para qualquer um por um pouco de amor. Carmen, eu… — Ela respirou fundo. — Tu as besoin de moi. Tu as besoin de moi dans ta vie. Tu ne peux plus vivre sans moi. Et je mourrais sans toi. Je tuerais pour toi.
— Isso foi… A pior pronúncia de francês que eu já ouvi na vida. — riu, envergonhada e Carmen a beijou.
— Eu te amo. — Ela repetiu. — Eu nunca amei ninguém assim. Eu nunca senti nada com ninguém, não como senti com você. Nós nos beijamos uma vez e foi tudo tão certo que eu não sei como passei a minha vida inteira sem isso.
— , parece que você está recitando um livro do Nicholas Sparks.
— Não. Eu sei do que eu estou falando.
— Sabe mesmo? Sabe o que nós duas vamos enfrentar se resolvermos assumir isso aqui? — Carmen a olhou nos olhos.
— Sei. Eu não ligo. — Carmen suspirou.
— Isso é perigoso.
— O quê? Duas mulheres juntas? — piscou, confusa.
— Não, finalmente ter alguém que eu não gostaria de perder.
— Você não vai me perder. — a abraçou novamente e Carmen derreteu-se em seu aperto. — E eu não quero perder você. Me prometa que irá ter mais cuidado com todas essas festas.
— Eu prometo. — Carmen a puxou para um beijo apaixonado e mais intenso que os anteriores.
— E prometa que vai me beijar sempre assim.
As duas sorriram e se beijaram novamente. Carmen finalmente podia parar de mentir para si mesma, podia parar de se torturar, porque tinha ao seu lado alguém para lhe apoiar. seria o seu porto seguro enquanto ela não pudesse superar tudo aquilo sozinha. E mesmo quando Carmen fosse forte o suficiente, esperava ainda poder apoiá-la no caminho. Sabiam que nada seria fácil, mas não se importavam. No final de tudo, elas sempre tinham uma a outra.
Fim
Nota da autora: Eu sou péssima para romances! Mesmo assim, me diverti bastante escrevendo sobre o relacionamento, sobre Carmen, sobre um relacionamento entre duas mulheres que vai além de apenas um amor romântico, mas também se baseia em companheirismo e amizade. Espero que tenham se divertido e chequem também 12. This Is What Makes Us Girls, minha outra fanfic nesse ficstape! Um beijão!
Outras Fanfics:
Fortune Teller (Outros - Finalizada)
The Swan Dive (Restrita - Outros - Em Andamento)
Mixtape: Coisas Que Eu Sei (Awesome Mix: Vol 6 “Brasil 2000’s” – Finalizada)
09. Thunder (Ficstape EVOLVE)
11. Not Coming Home (Ficstape Songs About Jane)
12. This Is What Makes Us Girls (Ficstape Born to Die)
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