Finalizada em: 20/12/15

Capítulo Único

378 dias.
378 longos dias que tudo tinha começado.
Uma semana que eu não tomava banho. Qualquer tipo de banho; em um rio, mar, lagoa, tanque. Ah, um chuveiro. Nem lembrava mais o que era tomar um banho quente em um banheiro. Ou, então, dormir em uma cama macia com um lençol limpinho. Mal sabia o que era dormir, os últimos meses passaram feito borrão diante dos meus olhos. Não podia me entregar demais ao sono senão corria o risco de ser roubada por algum grupo, ou, o pior, ser morta por um... Deles.
Fazia muito tempo que eu estava sozinha nessa jornada. Claro que fazia questão de contar os dias, era a única coisa normal que me restara. Quem diria, eu, a mais fraca do grupo de amigos, a tímida da escola, a que ninguém daria nada; uma sobrevivente.
No começo, eu mesma cheguei a duvidar quanto tempo eu duraria. Passaram várias coisas pela minha cabeça. Seria mais fácil desistir, não seria? Quer dizer, o que sobraria de bom nesse mundo? Pelo que eu deveria lutar? Por que eu deveria continuar existindo? Bom, muita gente tomou a decisão mais "fácil". Entre essas pessoas, muitos que eu amava. Mas não podia culpá-los por isso sendo que eu mesma já tinha tido essa ideia.
Os primeiros a "me largar" foram meus tios, que achavam "não ter mais idade pra esse tipo de coisa". Em seguida, meus avós, fracos pela má alimentação que passamos a ter. Depois de um tempo, minha mente estava fraca e, se não fosse por meus pais, teria enfraquecido ainda mais. No entanto, quando a comida ficou escassa e a água potável já era artigo de luxo, a única alternativa que sobrou foi cair na estrada. Naquela época, as ruas já estavam completamente desertas e assustadoras. Eu ainda nem tinha saído de casa depois do primeiro alerta. Nenhum de nós tinha saído. Nenhum de nós sabia o que nos esperava.
Eu tinha dois irmãos mais velhos, que ficaram responsáveis por cuidar de mim, mamãe, papai e Ana, a esposa do meu irmão do meio. Por sorte, nenhum dos meus irmãos tinha filhos. Não saberia o que esperar para uma criança naquele meio, naquela situação. Era como se não tivesse mais futuro, nada fosse passar do dia em que estávamos vivendo.
Quinze dias na estrada foi o que bastou para meus pais serem pegos. Eu, como caçula e totalmente apegada a eles, quis voltar e salvá-los, mesmo sabendo que não tinha volta. E, então, pouco tempo depois disso, em uma manhã qualquer, meu irmão mais velho, Philippe, já tinha ido. A única coisa que deixara para trás fora um bilhete dizendo que não aguentaria perder mais alguém, não aguentaria nos ver morrendo. E pediu que não o procurássemos, pois não queria que mudássemos a imagem que tínhamos dele. Foi difícil, entretanto, não vasculhar cada canto à procura de seu corpo, mas obedecemos sua vontade.

***


Se alguém que eu não conhecesse me parasse no meio da rua, antigamente, pra conversar ou pedir alguma informação, eu ficaria com medo a princípio. Porque o mundo nunca fora um lugar seguro, e como eu era sempre protegida por meu pai e meus irmãos, era difícil não pensar que qualquer um podia ser uma ameaça. Mas, então, o mundo mudou e "estranhos" se tornaram ainda mais perigosos. Eu torcia pra encontrarmos zumbis a vivos. Era assim. Por isso que, quando eu, Ana, Henry e Phillipe estávamos atravessando mais uma cidade fantasma, passeando entre os carros, nos assustamos ao ouvir passos atrás de nós. Mas não eram passos dos coisas, dos zumbis. Eram passos humanos, e se aproximavam em uma velocidade preocupante. Henry e Phillipe, percebendo o perigo, procuraram o primeiro estabelecimento com as portas destrancadas e nos acomodaram lá. Normalmente, quando entrávamos em um lugar novo, a primeira coisa que fazíamos era eliminar qualquer zumbi que pudesse ter lá dentro, porém, com a adrenalina do momento, deixamos isso passar. O que foi um grande erro. Enquanto meus irmãos tentavam avaliar o nível de ameaça que sofríamos, Ana e eu nos escondemos atrás de um balcão. Acabou que o lugar que nos escondemos foi um bar. Ana agachou-se ao meu lado, conferindo o tanto de munição que tinha e destravando sua arma. Henry jogou o rifle - que tínhamos encontrado em um carro abandonado - sobre o balcão para que eu pegasse. Tentei não entrar em pânico por ter apenas uma vaga ideia de como manusear aquela arma, ainda estava aprendendo. Então, como se não fosse o bastante, como se já não estivéssemos sendo consumidos pelo medo de estarmos sendo seguidos, Ana gritou enquanto eu conferia a munição que tinha. Levantei rapidamente o olhar para ver o que acontecia, me deparando com um zumbi puxando-a pelos cabelos. Por estar imprensado no armário atrás de nós, ele só conseguia colocar o braço para fora, mas logo quebraria a trava da porta e se libertaria. Meu coração parecia prestes a sair pela boca, minha adrenalina estava tão alta que não conseguia parar de tremer e colocar de novo as balas no rifle. E quanto mais Ana gritava, tentando se livrar do zumbi, maior era o meu desespero. Vi que ela tinha deixado sua arma cair e tentava pegá-la com o pé. Enfim, com a arma já engatilhada, a posicionei para ter o ângulo certo da cabeça do zumbi. Entretanto, antes de puxar o gatilho, senti uma mão agarrando meu ombro, me desequilibrando e me derrubando. O grunhido veio logo em seguida, mostrando que não estávamos mesmo sozinhas. Da porta dupla ao meu lado esquerdo começou a vir um grupo de zumbis. Gritei o nome dos meus irmãos o mais alto que pude, procurando pela primeira coisa que poderia usar como arma. O zumbi tinha se arrastado pra cima de mim, e eu o afastava com meus braços. Logo abaixo do balcão, vi uma garrafa de cerveja quebrada, e tive que pegá-la. Sem pensar duas vezes, a afundei no olho direito do homem que tentava me morder a qualquer custo. Em momentos como aqueles, eu tentava não pensar que aqueles transformados já tinham sido humanos, que ainda tinham corpo humano. Porque eles eram qualquer coisa, menos humanos.
Retirei o peso de cima de mim, me arrastando para perto do rifle e pegando-o. Ana ainda tentava pegar sua arma, ao mesmo tempo que tentava não ser mordida pela senhora que segurava seus cabelos. Mesmo sabendo que mais de três zumbis se aproximavam de mim, mirei na cabeça do zumbi que segurava Ana, atirando sem piedade. O barulho do tiro ecoou por todo o lugar, me deixando tonta e surda por um momento. Quando fui virar o rifle para o bando que chegava perto de mim, eles já tinham me alcançado. Como estava sentada no chão, perto do balcão, tentei me arrastar pro lado para ter uma mira melhor. Não obtendo sucesso, impulsionei meu corpo para cima com toda a força que me restava. Antes de estar completamente em pé, senti uma dor aguda, primeiro no braço esquerdo, depois na cabeça. Com isso, fui jogada no chão novamente, com a mesma força que tinha usado pra me levantar. Minha visão ficou turva e a última coisa que vi foi uma criança vindo até mim. Uma criança transformada.

O dia seguinte foi bem mágico, e doloroso. Tinha certeza de que tinha sido mordida, mastigada e infectada por aqueles zumbis. Por aquela criança. Só que zumbis não tinham memória, certo?! Não queria nem saber.
Logo três cabeças apareceram em meu campo de visão, e eu soltei um grito de susto. Ana deu uma gargalhada, sendo calada pela mão de Henry. Phillipe parecia o único sério ali.
"Caramba, , que susto você deu na gente!" Ele passou as mãos pelo rosto, soltando um suspiro frustrado.
"O que aconteceu?" senti minha garganta arranhar, seca. Olhei ao meu redor, percebendo que estávamos dentro de um trailer.
O sorriso de Ana apagou no mesmo instante, e ela respirou fundo. "Quando eu consegui recuperar minha arma, você tentou levantar bem na hora. Desculpe pelo seu braço", ela levantou os ombros, demonstrando culpa. "E bateu a cabeça na gaveta da caixa registradora, que estava aberta", ela levantou os braços pra cima. "Sério, quem pensa em roubar dinheiro quando o mundo está assim?"
Ri um pouco, vendo que ela tinha razão. Era um pouco sem lógica, se fosse parar pra pensar. Onde que as pessoas usariam dinheiro? "E depois?" Engoli em seco, lembrando que só entramos naquele bar porque alguém estava nos seguindo.
Phillipe saiu do trailer, irritado.
"Quem quer que estivesse atrás da gente, ouviu os tiros e cercou completamente a rua. Nós tivemos que limpar o bar, sabe, acabar com todos os zumbis que estavam nos fundos pra podermos ter uma chance de escapar. Carregamos você pelo beco de trás e tivemos que nos esconder em uma caçamba pela noite inteira", Henry explicou, rindo um pouco.
Só que a culpa ainda fez seu caminho nos meus pensamentos. Se eu não tivesse sido ferida, demorado com o rifle, se eu tivesse feito qualquer coisa diferente, eles teriam um peso a menos pra cuidar. "Sinto muito, gente..."
"Cala essa boca, ." Ana riu, dando um leve tapa no meu braço. Quando eu estremeci, ela se tocou de que tinha atingido meu braço machucado. "Oh, me desculpe!" Ela arregalou os olhos.
"Você quer porque quer ferir minha irmã, ein, amor", Henry deixou uma risada alta escapar. Por um momento, Ana ficou emburrada, mas, em seguida, todos nós estávamos rindo.
Durante o jantar, Phillipe não disse uma palavra, o que era estranho já que ele era sempre o que tentava nos fazer lembrar da parte boa do dia. Ele era nossa figura paterna depois de tudo. Mas quando ele foi fazer sua ronda, à noite, e sequer disse um até logo, foi quando eu soube que tinha algo errado. Antes de dormir, fui procurá-lo. O encontrei no teto do trailer.
"Hey, big bro, tudo certo?" Subi pela escada que ficava na traseira do trailer.
"É, uhum." Ele continuou olhando para frente, travando e destravando sua arma.
"Ok... Desembucha, o que foi?" sentei ao seu lado, pegando sua faca que estava ali perto. Antes só Henry e Phillipe tinham armas E facas, mas depois do que aconteceu no bar, Henry insistiu para que todos andássemos com ambos. Seria mais seguro. Se eu e Ana estivéssemos com facas, naquele momento, poderíamos ter nos livrado muito antes daquela situação.
"Eu falhei, ." Esfregando o rosto mais uma vez, ele olhou em meus olhos, parecendo ferido. "Falhei em te proteger, . A única coisa que eu tinha que fazer era cuidar de você e não deixar que nada te acontecesse".
Engoli o nó que se formou na minha garganta. "Phillipe, eu estou bem. Você fez tudo que estava ao seu alcance para me proteger. E, olha ao seu redor, Phillipe, você não tem como evitar que algo ruim aconteça comigo." Coloquei minha mão em seu ombro, tentando acalmá-lo. Doía em mim vê-lo daquela forma.
"É apenas o que eu sinto, ..." Phillipe depositou um beijo em minha cabeça. "Nunca se esqueça que eu te amo muito e que me importo com você. Agora, você precisa descansar".
"Também te amo, big bro."
Olhei uma última vez para ele, sentindo algo estranho, como se alguma coisa estivesse fora do lugar.
E só fui descobrir o que era na manhã seguinte, quando encontramos o bilhete de despedida de Phillipe.

***




E então só sobrara eu, Ana e Henry. Logo, eu e Ana. Depois, apenas eu. Confesso que, quando Ana se feriu em uma tentativa de pegar água em um caminhão suspenso em uma ponte, e sangrou até ficar inconsciente, pensei em desistir. Queria largar tudo o que restara e ir embora, como minha família havia feito. Por que eles podiam e eu não? Mas, quando peguei a arma de Henry e a posicionei na minha têmpora direita, Ana acordou brevemente e sussurrou: "As coisas vão melhorar, vão ficar bem. Apenas leve seu tempo. Todo mundo se sente pra baixo, às vezes. Você só precisa encontrar alguma cor nesse mundo preto e branco". Dois dias depois, ela morreu. E eu fiquei sozinha tendo que lidar com a responsabilidade de cuidar de mim mesma, de apertar o gatilho quando a ameaça fosse grande, de procurar comida e encontrar um lugar seguro pra dormir, noite após noite. Não foi fácil, eu sentia que sobrevivia só por sobreviver. Comia porque tinha que comer. Procurava abrigo porque precisa me manter segura. Em nenhum momento senti vontade de fazer isso porque queria, era sempre porque precisava. E quando a vontade de desistir surgia, lembrava-me de Ana. Eu só tinha que continuar mais um pouco e achar o meu motivo pra sorrir.

Nos filmes, chamavam isso de apocalipse zumbi. Eu não tinha certeza se deveria classificar de tal forma, ou se tinha que classificar de alguma maneira. Mas tinha um certo alivio em saber o que aquilo podia ser, já que o governo decidiu esconder da população até não ter mais jeito. Àquela altura, no dia 378, eu já nem sabia mais em que cidade, estado, ou até país, eu estava. Procurava ignorar placas que sinalizavam os lugares, só me deixariam mais triste por saber o quão longe de casa eu estava. Mas as placas que diziam ter abrigo por perto, essas eu lia, pra poder saber que não deveria evitar passar perto. Pra alguma coisa aqueles filmes e séries serviram, pra me ensinar quais lugares evitar caso um apocalipse acontecesse. Abrigos eram os lugares mais perigosos, não por, talvez, todos os abrigados virarem zumbi, não só isso. Abrigos eram os lugares mais procurados por grupos - ou gangues, como eu preferia chamar. Eles não ligavam se você era novo ou velho, mulher ou homem, se não tivesse como se virar e segurar uma arma pra matar o primeiro intruso que aparecesse, você não prestava. E eu não me submeteria a isso. Mal tinha coragem pra matar um zumbi; um ser já morto.
Bom, foi uma longa e exaustiva jornada. Toda vez que eu escutava um barulho dos zumbis por perto - um grunhido agonizante - ou sentia o cheiro podre que vinha deles, tinha vontade de fechar os olhos e acordar na minha cama, enrolada nas minhas cobertas, percebendo que tudo não passara de um terrível pesadelo. Ah, como eu queria que fosse só um grande pesadelo. Mas era minha realidade naquele momento. Enquanto caminhava pelo meio de florestas e estradas, me concentrava nas lembranças boas da infância, dos feriados em família, das comidas deliciosas que papai fazia aos domingos. Só não cantava por medo de atrair os zumbis, mas sentia falta disso, era uma das minhas atividades favoritas. Tentava imaginar o que podia estar fazendo em uma realidade paralela; sentada ao lado da lareira, assistindo um filme qualquer enquanto meu irmão me importunava pra mudar de canal. Daria qualquer coisa pra mais um dia de normalidade, onde minha maior preocupação seria estudar pra prova da semana seguinte. Aquilo já parecia tão distante, como se fosse um sonho ao invés de algo que realmente acontecia na minha vida. Normalidade, rotina, era tudo questão de perspectiva. Naquele ponto da minha vida, rotina era atirar em quatro ou cinco zumbis que cruzavam meu caminho, procurar abrigo e dormir - muito mal - por umas quatro horas.
Com dezenove anos, eu já tinha desistido da grande ideia de encontrar alguém, casar e ter filhos. Pra quê? Pra dar uma vida miserável a outra pessoa? Pra criar uma criança, ensinando-a que cada dia poderia ser o seu último? Já tinha perdido a esperança na humanidade.
E, então, em um dia ensolarado, morrendo de sede e fome, sem tomar banho há uma semana, quando me aproximei de um condomínio fechado, com muros altíssimos, e ouvi risadas de crianças, achei estar alucinado. Insolação, só podia ser. Mas, quanto mais eu me aproximava dos imensos portões, mais altas as risadas ficavam. Até ouvi alguém gritar um "uma viva" do lado de dentro. E, de repente, os portões se abriram. Um grupo de pessoas me encarava fixamente, com armas apontadas para mim. Senti um medo correr pelo meu corpo, passando por cada veia. Uma voz na minha cabeça insistia em dizer "você deveria ter passado longe, agora vai morrer. 378 dias pra nada." Mas, quando já estava quase desmaiando, de medo e fraqueza, uma senhora, talvez em seus setenta anos, passou por entre o grupo e veio na minha direção. Ela colocou as mãos nas minhas bochechas, olhando nos meus olhos.
"Oh, querida. Desculpe os modos desses daí, eles perderem a fé na humanidade, acham que todos são maus. Mas consigo ver a bondade em você." Ela largou minhas bochechas e passou o braço ao meu redor, me encaminhando para dentro. Por um momento, meu corpo ficou rígido, afinal, eu não sabia mais como era interagir com outro ser humano, quem diria tocar em um. Porém, a senhora ao meu lado voltou a falar, me distraindo dos meus pensamentos. "Como é o seu nome, querida? Fiquei tão empolgada que nem te deixei falar."
Olhei ao meu redor, vendo vários rostos diferentes me analisando. E então sussurrei: "". E me permiti sorrir minimamente, pois um pensamento não deixava minha mente.
Talvez eu tivesse encontrado um pouco de cor naquele mundo preto e branco.


Fim...?



Nota da autora: Oi, pessoal! A mais nova viciada de The Walking Dead chegou. Eu sei, EU SEI! Ficou ruim hahahahha mas me deem um desconto porque nunca escrevi nada assim antes. Mas adorei e pretendo escrever algum tipo de continuação. (Palavra chave: pretendo). Obrigada por ter lido, deixe um comentário lindo aqui embaixo e leia as outras fics desse ficstape lindo! Beijos e até a próxima. <3



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