Capítulo 1
– Hoje é seu dia de folga. – Gilbert comentou, bebericando o que quer fosse fumegante em sua caneca quando passou pela porta da minha sala.
Esgueirou-se pela porta entreaberta e aconchegou-se na cadeira de rodinhas ali, onde depositou todo seu peso, o que a fez ranger por alguns momentos.
O policial ganhara alguns quilinhos após ser transferido para o escritório. Tinha inúmeras histórias das cirurgias que foram necessárias após ser baleado enquanto protegia crianças mantidas em cativeiro para trabalho escravo. Em suas palavras, não se arrependia de um passo sequer, inclusive orgulhava-se fortemente.
– Acumulei trabalho demais. – Respondi automaticamente.
Não o olhei, mas os nossos anos de parceria fizeram com que ele percebesse que o real motivo era muito maior do que aquilo. Fazia anos que não tirava uma folga, porque fazia anos que eu ignorava a memória ruim e, consequentemente, a dor do vazio que estremecia-me.
– . – Bastou olhar-me com atenção.
Ele se lembrava de que dia era aquele.
– Aniversário dela.
Gilbert fora o responsável por comandar a investigação. Eu bem que tentei. Mas ver as fotos, as evidências, as teorias e, principalmente, as visitas ao necrotério resultaram em crises quase irreversíveis de estresse pós-traumático.
Não tínhamos um culpado. A cela do criminoso estava vazia. E só o que restou foram as sessões com o psicólogo todas as terças-feiras como condição pra que voltasse ao trabalho.
Naquele dia, ela estaria completando catorze anos. Uma criança porém, seguindo seu comportamento energético, ela, com certeza, me corrigiria, dizendo que estava tornando-se uma adolescente.
Uma década se passou e a saudade era a mesma. O tempo não curava nada. Estava cada vez pior.
– E Herman...? – Bert hesitou.
– Nos falamos há uns dois meses. Ele está bem. – Assegurei, deixando que uma linha se formasse em meus lábios na melhor forma de um sorriso.
– E você? Está bem?
Não respondi a sua pergunta porque não haveria resposta que agradasse.
Suspirei, indicando a pilha de pastas em minha mesa. Bert quis dizer mais alguma coisa, mas foi interrompido por um advogado que apressou-se, jogando de forma rude uma pasta fina em minha mesa. Encarei-o por alguns segundos, retomando minha pose, e cruzei as mãos, aguardando sua explicação.
– Solte meu cliente. – Arqueei minha sobrancelha, assistindo-o puxar a cadeira de frente à minha mesa para sentar-se.
– E quem é você?
– Richard Butler, prazer. Represento Carl Stevenson e confirmo que a droga encontrada em seu carro é de uso medicinal próprio. – Despejou de uma só vez, polido e certo de si.
Nem precisava de tamanha cena, o sujeito estava apenas sob custódia.
Folheei a pasta que tinha receitas médicas com as datas sobre todas as consultas de Carl Stevenson. No entanto, isso não bastava. Entreguei-a para Gilbert que saberia o que fazer: precisava ser checada, consulta por consulta, e principalmente o quão verdadeiro aquele médico era. Os jovens estavam cada vez mais meticulosos com as falsificações e isso levava a grandes esquemas de tráfico de drogas sofisticadas. Estas ganhavam fama pelas ruas e overdoses em cada esquina.
Não seria primeira vez que um caso como aquele chegaria às minhas mãos, assim como não era a primeira vez em que batia de frente com esquemas de gangues contrabandistas.
Também havia a primeira vez na qual não fui atenta o bastante.
Três anos atrás, após seis meses como detetive à frente da Inteligência, dei como arquivado um caso em que tivemos até mesmo um homem infiltrado mas que não resultou na apreensão de drogas que esperávamos durante os meses de disfarce. Era sobre uma gangue que investira todo o seu dinheiro sujo em uma nova área após ver o cabeça do esquema ser morto por invadir uma área já dominada por outra gangue. Queria medir influências. Nada parecia resolver. Armamos compra de drogas por outros policiais disfarçados, monitoramos as conversas com microcâmeras, implantamos plantões em que revezávamos para conseguir monitorar seus passos por vinte e quatro horas: nada.
Um mês se passou após arquivarmos o caso e as drogas chegaram às ruas. Batizada como PoorDope, ou PD, em homenagem ao departamento policial.
As manchetes saíram e eram cruéis.
“Qual PD matava mais?”
“O domínio que falta em um PD sobra em outro.”
“Guerra entre PD’s”.
“A saga do sangue derramado em nome da PD.”
O tráfico de PD foi fechado, mas precisou que a Narcóticos assumisse o caso.
E eu nunca mais fui a mesma.
O distintivo preso em meu pescoço ganhara um peso maior que o seu habitual durante um longo tempo. As cobranças que eu me fazia eram muito maiores. E não era todo dia que eu conseguia fechar os olhos e dormir com a tranquilidade de uma missão cumprida.
Salvar vidas era um sonho que carregava desde pequena, eu só não sabia que causaria pesadelos.
Gilbert retornou e assentiu, confirmando-me que as informações eram reais. Ao fundo, pude ver um oficial retirar as algemas e conduzir o jovem até seu advogado. Logo, ambos assinaram o termo de soltura.
– Senhor Butler? – Eu o vi virar-se para mim enquanto acompanhava-os até a porta da minha sala. – Sugiro que controle o tom se precisar voltar aqui. Tenha um bom dia.
Sua cara de poucos amigos não me intimidou, até porque esta era a nossa primeira lição quando ingressávamos na academia. Eu sempre fui aluna nota A.
Uma ameaça de bomba em uma escola infantil no centro da cidade nos serviu como combustível para manter a equipe atenta após não respondermos nada além de chamados de patrulha durante a manhã.
A ameaça era falsa, felizmente. Contudo, os casos de falsos-chamados eram quase inexistentes no estado, quiçá na cidade. Aumentava a teoria que rondava minha mente: aquilo foi só uma distração. Em cada ano durante os últimos quatro, os estados vizinhos receberam ameaças semelhantes e, quando estudamos as coincidências, acabou que as datas também eram extremamente próximas.
O estado do Illinois declarara emergência entre todas as suas divisões e autoridades policiais. Isso queria dizer que não criaríamos pânico, não haveria comunicado público, mas as unidades estavam em vigilância.
Para isto, um novo programa fora lançado. Recrutas que presenciaram a ameaça em seus estados desviariam a atenção de suas especialidades para Illinois e fariam de tudo para manter a população intacta.
O departamento policial estava quase do avesso. Telefones não paravam um segundo, equipes de diversas unidades se esbarravam, apressadas, pelos corredores, os chamados triplicaram nas ruas e precisávamos responder a todos. Algum destes poderia ser real, certo? Errado.
Automaticamente, a população se tornou alarmada, então era questão de tempo até que as redes de televisão cobrassem pronunciamentos.
A verdade era que sabíamos tanto quanto os cidadãos. Sabíamos que algo estava acontecendo, mas não saberíamos responder o porquê, por quem, muito menos quando.
Aquilo era, de fato, um atentado.
As distrações eram perfeitas porque colocavam diversos oficiais nas ruas, tornando o grupo de planejamento cada vez mais escasso.
O estado inteiro estava sob ameaça.
Precisamos pensar tão grande quanto e ter um esquadrão que estivesse certo da responsabilidade de manter o controle.
Eu me certificaria disso.
Alguns olhares tortos me encurralaram quando eu me prontifiquei a treinar os recrutas do lado norte do país.
Eles estavam na minha área, minha cidade, meu distrito, e ninguém enxergava Chicago como eu.
Minha infância foi correr por aqueles bairros. A adolescência, conhecer alguns esquemas e, de quebra, fazer uma das decisões mais difíceis, que mudaria a vida por completo. Tinha muitas cartas na manga que conhecer aquelas ruas proporcionou. A mais marcante delas tinha nome e sobrenome: Herman Clifford.
Herman, meu amor de colegial, era de família estritamente religiosa, mas deixava isso de lado quando anoitecia e sua máscara de bom moço caía. O rapaz protagonizara muitas das minhas primeiras vezes durante o período do final da adolescência até o começo da vida adulta – de um jeito torto, mas estava lá. Durante diversas madrugadas, fomos acordados pelas inúmeras ligações de seus pais quando ele estava chapado demais para atender.
Em uma dessas madrugadas, descobrimos Leanne, que foi o nome que demos a ela assim que descobrimos a gravidez.
Os primeiros meses de gestação foram confusos e longos. Herman logo arranjou um emprego, custeando as emergentes consultas cheias de exames repetitivos para certificar-se de que eu e Lea estávamos bem, apesar dos pesares.
Não fora fácil achar um emprego para uma adolescente que, em poucos meses, daria a luz. Minha sorte foi poder contar com a bondade da avó de Herman, que tinha uma loja de roupas e chamou-me assim que soube.
Herman fora criado por uma família de comercial de margarina e tinha tudo para ser o pai perfeito como pelo qual fora criado. Dito e feito. O homem simplesmente parecia ter nascido para a paternidade, e a prova disso era que, durante a nova remessa de madrugadas acordados, Leanne preferia o colo do pai ao meu.
Clifford adentrou a academia de polícia assim que Lea completou dois anos, na mesma época em que terminou a licença maternidade estendida que Clarissa me dera. Em poucos meses, eu e Herman éramos os novos oficiais da polícia de Chicago.
Revezávamos turnos para que nossa filha não ficasse sozinha. Apesar de todo o esforço, entre mensagens e ligações, logo um se lamentava com o outro pela saudade que sentia da pequena.
Nós tínhamos a nossa própria família de comercial de margarina.
Já havia anoitecido quando os recrutas chegaram de diversos estados do norte e, apesar da viagem, não seria o momento em que eles descansariam. Ao contrário, o primeiro teste era condicionamento físico. Dali, sairiam os melhores, que teriam suas qualidades exaltadas e trabalhariam com elas. Apesar de estar treinando-os, haviam equipes a serem divididas e líderes a serem intitulados.
Queria dizer que apenas minha mente implorava por descanso, mas meu corpo não estava diferente. Dividia-me entre os treinamentos e as estratégias com os líderes estaduais. Aquela seria uma força-tarefa que estenderia-se por meses, era uma ameaça que não reapareceria enquanto fosse possível.
– Como está a conexão com as vias principais? – Perguntei um tanto ofegante após correr nas escadas até o andar superior.
Analisei rapidamente as diversas telas de computador que monitoravam as avenidas e pontos turísticos de Chicago.
– Monitoradas há duas horas, sargento. – Henry, gênio da computação, esclareceu. – Nenhuma alteração.
– Não é possível... – Sussurrei mais para mim mesma do que para o rapaz. – Há patrulha nas fronteiras?
– Em todas, senhora. Averiguando veículos e carregamentos.
– Tente contato com o tráfego aéreo, é uma alternativa. Uma ameaça desse porte precisa de armamento proporcional.
– Sargento . – Preparei para comentar mais alguma coisa com Henry, porém a voz do recruta atrás de mim me interrompeu. – Permissão para falar. – Percebi um burburinho atrás do rapaz e, antes que concedesse a permissão, Gilbert se adiantou.
– Ele estava no treino de condicionamento físico, não consegui impedí-lo de vir até aqui. – Admitiu ofegante.
– Permissão concedida, recruta.
– Com todo o respeito, senhora, mas... Se fomos recrutados, é justamente porque estamos em perfeito condicionamento. Não quero desrespeitá-la ao sugerir que possamos ser mais úteis aqui em cima. – O rapaz despejou de uma só vez.
Tinha postura firme e palavras certeiras, estava plenamente confiante sobre o que falava.
– Recruta...
– , senhora.
– Recruta , não conheço os oficiais do norte e não me é exagero querer entender suas aptidões.
– Como aspirante a oficial, lhe garanto que meu pelotão está pronto, sargento. – Inflou o peito, tornando-se ainda mais confiante, se fosse realmente possível. – Eu mesmo os treino.
Definitivamente, não estávamos com tempo para contar com a sorte.
– Tudo bem. – Engoli em seco. – Temos líderes de todos os estados aqui mas, antes de qualquer coisa, denomine tarefas para o seu batalhão.
– Obrigado, sargento.
– Recruta . – Chamei sua atenção antes que ele se retirasse. – Seja prudente. Isso pode custar vidas inocentes em seu país.
O recruta não aparentava ser inexperiente, tinha cerca da minha idade e, no pior dos cenários, estava a meses de completar seus trinta anos.
Retomei minha atenção, assistido os dedos de Henry digitarem milhares de códigos em mínimos segundos. Estabelecemos contato com os comandantes dos helicópteros e a busca com visão noturna não resultou em nada. Aquilo poderia ser como procurar uma agulha no palheiro.
Ouvia-se telefones tocando repetidamente, rádios comunicadores, reportagens a todo vapor, mas nenhuma resposta, nenhuma pista sequer.
Estava avulsa demais para perceber a aproximação de Gilbert. No entanto, a pasta que mostrara em suas mãos chamara toda a atenção.
– O que é isso?
– Vi o jeito que olhou pro recruta. – Fez uma pausa dramática, suspirando. – E isso é tudo que precisa saber sobre ele.
O pai do recruta fora um grande homem, quase uma lenda. Morrera no Onze de Setembro, salvando o número máximo de vidas que pôde, o que fizera automaticamente com que eu questionasse o que queria em Chicago, tão longe das memórias heroicas do pai. Christopher estava a poucos dias de completar seus trinta anos, como deduzira anteriormente, e tinha as melhores notas de toda a academia de polícia. Suas porcentagens para aptidões eram quase perfeitas, mesmo após ter tentado alistar-se quando mais novo e ter sido rejeitado. A julgar pela idade e pelas datas, se Christopher tivesse sido aceito de primeira, provavelmente, seria ele no comando daquela operação hoje e não eu.
Dei o braço a torcer: o rapaz era um gênio.
Como se pudesse ler meus pensamentos, tomou meu campo de visão.
– Temos uma pista. Uma caixa misteriosa apareceu no Columbus Park e tem a insígnia do distrito 21. O esquadrão antibombas está a caminho. Vamos? – Devolvi a pasta de qualquer maneira para Gilbert e segui os passos do rapaz, que não se importou caso eu tivesse alguma resposta, tomando a frente.
girou a chave de seu Dodge Charger em mãos e ligou a lanterna que nos ajudaria a ultrapassar faróis para sair, cantando pneu. Não estávamos perto do parque, porém sabíamos que estávamos correndo contra o tempo. aproveitara o tardar da noite e as ruas quase vazias para cortar pelos melhores atalhos, mesmo que nos custasse alguns quilômetros na contra mão.
– No porta-luvas, tem uma calibre 12. Pode carregá-la pra mim?
– Claro. – Respondi automaticamente, atentando-me a recarregar a arma enquanto ele se mantinha atento na direção.
– Gostou do relatório, sargento? – riu nasalado, olhando-me de soslaio ao perceber a surpresa em meu rosto. – Estava muito concentrada nele. Achou algo de interessante?
– Não estava completo. – Preparei a arma, finalizando-a. – Não havia nada alertando sobre como é prepotente, recruta .
Todo o perímetro do parque estava isolado e haviam viaturas por todos os lados. Oficiais ainda tentavam dispersar os pedestres que por ali passavam.
– Sargento Upton. – Eu me apresentei, sendo isso o suficiente para que atualizassem-me sobre o que acontecia.
– É uma caixa de madeira e a pintaram de preto pra que apenas o distintivo do Distrito 21 fosse relevante. – Um oficial que estava na patrulha me explicou. – Há uma senha de quatro dígitos, mas deixavam o primeiro e o último visíveis. O esquadrão antibombas está paramentado e pronto pra se aproximar. Com sua permissão, senhora.
Assenti, observando a formação do esquadrão se aproximar. me passou um rádio comunicador e, com ele, teria comunicação direta com o esquadrão.
– Upton, câmbio.
– Consentimento para aproximação, sargento, câmbio.
– Permissão concedida. O que veem? Câmbio. – Os refletores na rua iluminavam pouco do parque, tornando a visão confusa, considerando a distância que estávamos da suposta bomba.
– Há um cadeado grande. Atrás dele, há quatro fios. Câmbio.
– Dois dígitos aparentes? Câmbio.
– Quatro e oito, respectivamente. Câmbio.
– Combina com a coordenada parcial daqui. Tente dois e sete, depois os inverta. Câmbio.
– Nenhuma alteração, senhora. Permissão para tentar outras combinações. Câmbio.
– Permissão concedida. Câmbio.
permanecia ao meu lado, comunicando-se com os oficiais que evacuavam a área, atualizando-os sobre qualquer progresso. O lugar exalava tensão. A cada metro, encarávamos rostos tensos e duvidosos. Sabíamos do risco que corríamos ali, também sabíamos que era o tipo de esforço válido pelo país.
Aguardávamos por algum contato do esquadrão antibombas, qualquer fosse.
– Vista. Está demorando demais, não é bom sinal. – reapareceu em meu campo de visão quando mal percebi sua ausência, com um colete à prova de balas em mãos e já vestido com o seu.
Agradeci e comecei a vestí-lo, prendendo os velcros das laterais dos ombros e da cintura, tendo um pouco de dificuldade nos dois últimos que restavam nas costas, sendo concluídos por , que fora generoso ao apertá-los.
– Seu distintivo. – Pegou-o em sua mão, encarando.
– O que tem?
– Os números.
– Igualam com os do cadeado. – Soprei as palavras, sentindo os pensamentos se embolarem.
Não podia ser.
– Esquadrão, tentem oito e seis. Câmbio.
– Estávamos estudando a conexão dos fios. Os quatro estão ligados à mesma fonte. Câmbio.
– Quatro, oito, seis, oito. Câmbio.
– Funcionou. Câmbio.
Tornara-se muito pior do que poderíamos imaginar.
– Não é uma bomba, senhora. Repito: não é uma bomba. Câmbio.
– Nenhuma ameaça? Câmbio.
– Apenas dois envelopes. Alarme falso. Câmbio.
– Isso é pessoal, Upton. – sussurrou ao meu lado.
Um oficial, que antes ajudava na evacuação, me trouxera os envelopes, que estavam intactos, sem uma única palavra escrita do lado de fora.
Em um dos envelopes, haviam apenas recortes de revistas, com letras aleatórias. No outro, um bilhete escrito à mão.
ENEALN
Não fazia sentido algum.
“Avanda
Stilista
Nn&Robert H. Laurie.”
Eu mal conseguia respirar. Meus ombros estavam tensos e, apesar de ouvir me chamar repetidas vezes, minha boca estava seca demais pra que conseguisse respondê-lo.
“Lavanda, Estilista e Ann&Robert H. Laurie” ou LEA.
Características ligadas à Leanne e tudo que envolvera os poucos anos de sua vida.
Lavanda era sua flor favorita, sua profissão dos sonhos era ser estilista, nascera no hospital infantil Ann&Robert H. Laurie, onde tivera as últimas horas de vida também.
Leanne Upton Clifford fora a melhor coisa que aconteceu a mim. Tirada de mim injustamente. Minha filha era a criança mais maravilhosa do universo e o mundo não estava pronto pra ela.
Leanne brincava com sua bicicleta na frente de casa quando, no final de um dia ensolarado de sábado, um carro atingira em cheio sua bicicleta e, de marcha ré, fugiu sem prestar socorro.
O socorro que, se imediato, teria salvado a vida dela.
O socorro que permitiria que ela completasse seus catorze anos, interrompidos dez anos atrás.
Leanne era apenas uma criança. Incrível e inocente, de quatro anos de idade.
Um ano depois, o pai de Lea me culpava por sua morte, já que era minha folga e eu estava no encargo de cuidar da menina. Herman alegava que tudo ao nosso redor lembrava ela. Chicago inteira lembrava Leanne.
Herman pediu transferência e morava na cidade vizinha.
Herman, meu amor de colegial e pai da minha filha, se tornara a maior ameaça pela qual lutara em toda a minha carreira policial.
Clifford ameaçava acabar com a cidade que carregava as memórias de sua filha.
– Hospital pediátrico de Laurie. – Sussurrei. – A próxima ameaça está lá.
– Como sabe? O que está acontecendo, ?
– Minha filha. – Engoli em seco, finalmente tomando coragem para encarar seus olhos. – Ela nasceu neste hospital, foi dada como morta lá também, e o autor das ameaças é o pai dela.
– Vocês ouviram a sargento: hospital pediátrico. Agora! – gritou para que todas a viaturas presentes ouvissem, juntando os envelopes e retornando ao seu carro.
Respirei fundo, ignorando os pensamentos que davam voltas e mais voltas em minha cabeça, emaranhando-se de maneira que tornara impossível sua compreensão.
– Sargento. – me chamou, ligando o carro.
Eu me apressei, retornando para o veículo e sentindo o ronco do motor tão potente quanto minutos atrás.
Estávamos um bocado longe e era necessário cruzar a cidade para chegar até o hospital. Enquanto dirigia, precisei reportar tudo à central para que passassem os últimos registros de Herman em Aurora e como estava se portara nos últimos dias. Acontecia que Clifford não respondia a chamados de patrulha havia semanas, não fizera compras no cartão de crédito e também não tivera registro de passagem pelas fronteiras. O homem se tornara um fantasma. Sua única aparição em semanas fora, justamente, a ameaça ao estado.
– Por que ele está fazendo isso?
– Ele me culpa pela morte de Lea. – Eu o respondi sem olhá-lo. – Só não entendo o porquê de ser agora.
As viaturas nos seguiam, e conforme nós nos aproximamos do local, ligamos as sirenes, chamando a atenção das poucas pessoas na rua. Alguns carros paravam gradativamente, com o intuito de esvaziar o perímetro, e todo o protocolo se reiniciava.
Precisávamos encontrar Herman, entender suas motivações e desarmar qualquer que fossem seus planos a tempo.
Sua voz reverberava na minha cabeça num misto das palavras doloridas de quando a perdemos, com as palavras doces da última vez em que nós nos falamos. Era um homem totalmente diferente.
Haviam policiais percorrendo os andares do hospital, ao mesmo tempo em que outras equipes revistavam os prédios vizinhos.
Precisei despistar para procurar sozinha por Herman. Caso contrário, ele jamais apareceria. Apesar de preparado, poderia precipitar-se, não conhecia Herman e qualquer segundo deveria ser calculado.
Atrás do estacionamento, havia um vasto e lindo jardim, muito mais bonito na luz do dia, e eu me lembrava de cada flor dali detalhadamente. Tinha um caminho feito por pedras coloridas que levava para um chafariz, que era ouvido mesmo devido à distância. À sua volta, colocaram bancos coloridos apontados em direção à fonte, que era iluminada pelas lâmpadas florescentes, mantendo o anjo central muito bem focalizado.
Sem nenhuma luz para destacá-la, meus olhos pararam sob uma caixa semelhante à que vimos no Columbus Park. Sem insígnia do Distrito 21 em cima, eu me dirigi diretamente a ela sem chamar reforços. Herman sabia que esse seria meu movimento inicial e eu acataria porque ele não me faria mal. Ele poderia estar perturbado, mas nunca fora uma má pessoa.
No cadeado, os quatro dígitos estavam visíveis, só precisava que apertasse o botão abaixo deles e o que quer que tivesse de acontecer estava há dois centímetros dos meus dedos.
Eu me agachei, analisando-o por mais alguns momentos, não encontrando nada semelhante aos fios que foram reportados na denúncia anterior.
Seria o que teria que ser.
Apertei o botão, ouvindo o tilintar do destrincar do cadeado. A caixa se abriu e, nela, nada mais havia que coisas que pertenciam a Leanne: desenhos, os cadernos dos seus primeiros anos escolares, fotos e parte da coleção de tiaras da menina.
Herman não precisava de uma bomba para me matar, aquelas lembranças já foram um ótimo trabalho.
O álbum de fotos que estava no fundo da caixa, parcialmente coberto, era a linha do tempo que formamos da vida da garota até que não pudéssemos mais. Na verdade, fizemos dois deles, idênticos, e um dos álbuns estava comigo, o que significava que aquele era o que demos para Clarissa, presenteando a avó de Lea, que fora fundamental em sua vida.
O sorriso espontâneo de Lea, as roupas coloridas dela, os cabelos desgrenhados com os quais ela nem se importava... Leanne fora, de longe, o grandessíssimo marco da minha vida.
Em todos aqueles anos, quando chegava a data de seu aniversário, a dor retornava, como se eu precisasse de um lembrete da falta que ela fazia. Leanne fora a melhor parte de mim, e arriscava dizer que fora a única.
Era impossível encarar suas antigas coisas e não desejar nossa família de volta.
– Você veio. – Ele sussurrou sôfrego e senti sua mão em meu ombro.
Virei-me, encarando sua silhueta.
Herman estava terrivelmente diferente do que lembrava. Seus ombros estavam curvados e caídos, a barba volumosa tomava boa parte de seu rosto e o restante era coberto pelo capuz do moletom. Suas roupas eram gastas e sujas, alguns números maiores do que o necessário.
Eu me levantei, levando o álbum comigo, e arrependi-me de encarar seus olhos.
Um dos motivos que fizeram com que eu me apaixonasse perdidamente por Herman foi o brilho dos seus olhos e o quão intensos eram. De fato, ainda havia intensidade, mas não transmitiam a segurança de antes.
Ele estava perdido, assustado, fora de si.
O ponto eletrônico em meu ouvido transmitia as conversas entre os oficiais e suas buscas que, por um segundo, fizeram com que eu hesitasse. Eu deveria reportar sobre o paradeiro de Herman, mas isso seria igual matá-lo, porque fariam antes que ele pudesse proferir qualquer coisa. Não reportar ia contra o juramento que fiz ao departamento de polícia e ao país, o mesmo que fiz ao lado de Herman quando nos alistamos.
– Posso te abraçar? – Perguntou, mantendo o tom baixo de voz.
Percebi seus dedos inquietos, que tinham movimentos repetitivos em ambas mãos. Não o respondi, apenas aproximei-me e fiz. Senti o cheiro forte de suas roupas e como seu corpo tremia.
– Está com colete a prova de balas? Acha que te faria algum mal? – Ele tentou esquivar-se do abraço, no entanto, antes que fizesse, eu o apertei ainda mais forte.
– Sei que não seria capaz disso. É só protocolo. – Eu lhe assegurei em um tom tão baixo quanto o dele. – Na verdade, vista.
Eu me desvencilhei dele para tirar o colete, imediatamente ajudando-o a vestir. Ele corria grande perigo.
– O que está acontecendo, Herman? Você ameaçou o estado. Esse não é você.
– Nunca quis te machucar, mas sabia que, com estas pistas, você chegaria diretamente a mim. – Ele confessou rápido, puxando seu capuz vez ou outra a fim de se esconder. – Lea deveria completar catorze anos hoje. Nos meus catorze anos, meu pai me ensinou à dirigir, e eu deveria fazer o mesmo com ela... Entende?
– Eu entendo. Claro que entendo. – Tentei segurar sua mão para transmitir-lhe calma, mas ele se esquivou.
– Se esse país tivesse leis mais rigorosas, ela estaria viva... Viva. Ela estaria viva. – Proferiu repetitivo, tornando mais intensos os movimentos de seus dedos. – Queria que eles pagassem.
– Herman. Fale comigo, há alguma bomba aqui? – Segurei seu rosto gentilmente, encarando-o para que sentisse segurança em mim.
– Na academia de polícia. Eles... Eles vão pagar, . – Assentiu repetidas e rápidas vezes com a cabeça, suas pupilas dilatadas deixavam nítido que ele não estava bem.
– Não faça isso, Clifford...
– Só você me chama de Clifford.
– Eu sei. – Sorri fraco, sem realmente achar graça. – Se fizer isso, vai causar neles a mesma dor que sentimos. Cada um ali é filho de alguém. – Sem permitir que ele se esquivasse dessa vez, enlacei meus dedos à sua mão. – Eu não desejo essa dor pra ninguém. – Murmurei da maneira que foi possível, considerando o nó na garganta e as lágrimas que cansei de segurar. – Onde está o detonador, Clifford?
– Eles devem pagar.
– Eu mesma ainda estou investigando. – Engoli em seco. – Agora... Me dê o detonador. Por favor. – Supliquei, frágil, percebendo os passos vacilantes dos policiais atrás de nós.
Estiquei minha mão, aguardando que colocasse o detonador ali, mesmo que trêmula.
Clifford revirava os bolsos da sua blusa de moletom e aproveitei para dar uma rápida olhada significativa para os oficiais. Eles precisavam recuar. Logo, Herman poderia percebê-los e eu perderia o controle.
Ele tirou do bolso um clipe semelhante ao que acoplamos à bateria de carro, mas o que impedia que os grampos se tocassem era uma borracha escolar de Lea, que eu bem me lembrava por ter os desenhos azuis da Cinderela, ainda que gastos pelo tempo. O clipe estava conectado a um celular antigo, de teclas. Não reconheci a técnica que usara, então talvez fosse apenas um blefe.
– E-eu fiz tudo sozinho.
– Acredito em você. Posso ver?
– Tome cuidado. – Alertou, depositando o dispositivo na palma da minha mão.
– Não tenho visão completa. Câmbio. – Ouvi a voz de comunicar pelo ponto eletrônico.
estava preparado em algum prédio alto, pronto para executar Herman, e a confirmação disso fora a mira de laser vermelho pousar no ombro de Clifford.
– Não se aproximem. Repito, não se aproximem. Câmbio. – Ordenei categórica, retomando parte das forças.
Puxei a mão de Herman para que ele me abraçasse e, com a mão livre, mostrei o detonador, levantando-o.
– Solte ele, . Ele é uma ameaça. Sabe disso. – se comunicou pelo ponto eletrônico.
– Ele não está bem. Precisamos ajudá-lo. – Respondi, olhando em volta e encarando os oficiais de armas apontadas em nossa direção que cercavam-nos.
Herman não me abraçava, mas meu braço livre mantinha o enlaço forte em seus ombros, unindo nossos corpos. Ele ainda vestia o colete a prova de balas, isso dificultava a ação da mira de e, se quisessem acertá-lo na cabeça, muito provavelmente me acertariam também, por isso a hesitação.
– Não se aproximem. – Decretei pausadamente.
Em um segundo de descuido quando encarava os policiais que cercavam nós dois, Clifford se soltou de mim, dando um único passo para trás e sendo atingido na cabeça por um tiro limpo de .
Os olhos dele reviraram e seu corpo perdeu a força, fazendo ouvir o baque ao atingir o chão.
– Ameaça anulada. Câmbio.
Apesar de ter cumprido anos em serviço policial, Herman não foi enterrado com suas honras porque a ameaça que fizera anulara suas conquistas. A bomba era real, e foi neutralizada a tempo.
Meus joelhos tocaram o chão quando estavam fracos demais para manter meu corpo reteso. O pai da minha filha se tornara mais uma ameaça neutralizada na minha carreira policial.
cobriu o corpo de Herman com um plástico preto, impedindo a curiosidade de terceiros. Amparou-me em seus braços até seu carro mais uma vez e certificou-se de que eu estava bem durante todo o caminho de volta ao distrito policial.
Christopher recebera honrarias policiais pela sua atuação, subira de cargo e dividíamos os mesmos corredores sob olhares atentos de Gilbert.
– O que pensa que está fazendo? – Questionei assim que eu o vi pousar uma caixa em cima da minha mesa, fazendo um barulho com a força que investira para levantá-la.
– É a caixa que ficou no jardim do hospital infantil. – Retesou os ombros, parecia desconfortável. – Inclusive, desculpa tê-la pressionado.
– Estava fazendo seu trabalho. Muito bem, aliás.
– Escondi porque sabia que são importantes pra você, sargento. – Sussurrou, tentando quebrar o gelo em um tom cômico, virando-se para fechar a porta da minha sala e retornando para empurrar a caixa para mais perto de mim.
– Realmente, essa caixa deveria estar como evidência, recruta .
– Agente especial, . – Corrigiu-me em um tom de voz suave. – Não está sozinha, . Se acostume com isso. – Piscou, mostrando-me seu sorriso ladino, afundando as mãos nos bolsos dianteiros da calça que vestia antes de deixar a sala.
No, I wouldn't have done
(Não, eu não teria feito)
All the things that I've done
(Todas as coisas que eu fiz)
If I knew one day you would come
(Se eu soubesse que um dia você viria)
Esgueirou-se pela porta entreaberta e aconchegou-se na cadeira de rodinhas ali, onde depositou todo seu peso, o que a fez ranger por alguns momentos.
O policial ganhara alguns quilinhos após ser transferido para o escritório. Tinha inúmeras histórias das cirurgias que foram necessárias após ser baleado enquanto protegia crianças mantidas em cativeiro para trabalho escravo. Em suas palavras, não se arrependia de um passo sequer, inclusive orgulhava-se fortemente.
– Acumulei trabalho demais. – Respondi automaticamente.
Não o olhei, mas os nossos anos de parceria fizeram com que ele percebesse que o real motivo era muito maior do que aquilo. Fazia anos que não tirava uma folga, porque fazia anos que eu ignorava a memória ruim e, consequentemente, a dor do vazio que estremecia-me.
– . – Bastou olhar-me com atenção.
Ele se lembrava de que dia era aquele.
– Aniversário dela.
Gilbert fora o responsável por comandar a investigação. Eu bem que tentei. Mas ver as fotos, as evidências, as teorias e, principalmente, as visitas ao necrotério resultaram em crises quase irreversíveis de estresse pós-traumático.
Não tínhamos um culpado. A cela do criminoso estava vazia. E só o que restou foram as sessões com o psicólogo todas as terças-feiras como condição pra que voltasse ao trabalho.
Naquele dia, ela estaria completando catorze anos. Uma criança porém, seguindo seu comportamento energético, ela, com certeza, me corrigiria, dizendo que estava tornando-se uma adolescente.
Uma década se passou e a saudade era a mesma. O tempo não curava nada. Estava cada vez pior.
– E Herman...? – Bert hesitou.
– Nos falamos há uns dois meses. Ele está bem. – Assegurei, deixando que uma linha se formasse em meus lábios na melhor forma de um sorriso.
– E você? Está bem?
Não respondi a sua pergunta porque não haveria resposta que agradasse.
Suspirei, indicando a pilha de pastas em minha mesa. Bert quis dizer mais alguma coisa, mas foi interrompido por um advogado que apressou-se, jogando de forma rude uma pasta fina em minha mesa. Encarei-o por alguns segundos, retomando minha pose, e cruzei as mãos, aguardando sua explicação.
– Solte meu cliente. – Arqueei minha sobrancelha, assistindo-o puxar a cadeira de frente à minha mesa para sentar-se.
– E quem é você?
– Richard Butler, prazer. Represento Carl Stevenson e confirmo que a droga encontrada em seu carro é de uso medicinal próprio. – Despejou de uma só vez, polido e certo de si.
Nem precisava de tamanha cena, o sujeito estava apenas sob custódia.
Folheei a pasta que tinha receitas médicas com as datas sobre todas as consultas de Carl Stevenson. No entanto, isso não bastava. Entreguei-a para Gilbert que saberia o que fazer: precisava ser checada, consulta por consulta, e principalmente o quão verdadeiro aquele médico era. Os jovens estavam cada vez mais meticulosos com as falsificações e isso levava a grandes esquemas de tráfico de drogas sofisticadas. Estas ganhavam fama pelas ruas e overdoses em cada esquina.
Não seria primeira vez que um caso como aquele chegaria às minhas mãos, assim como não era a primeira vez em que batia de frente com esquemas de gangues contrabandistas.
Também havia a primeira vez na qual não fui atenta o bastante.
Três anos atrás, após seis meses como detetive à frente da Inteligência, dei como arquivado um caso em que tivemos até mesmo um homem infiltrado mas que não resultou na apreensão de drogas que esperávamos durante os meses de disfarce. Era sobre uma gangue que investira todo o seu dinheiro sujo em uma nova área após ver o cabeça do esquema ser morto por invadir uma área já dominada por outra gangue. Queria medir influências. Nada parecia resolver. Armamos compra de drogas por outros policiais disfarçados, monitoramos as conversas com microcâmeras, implantamos plantões em que revezávamos para conseguir monitorar seus passos por vinte e quatro horas: nada.
Um mês se passou após arquivarmos o caso e as drogas chegaram às ruas. Batizada como PoorDope, ou PD, em homenagem ao departamento policial.
As manchetes saíram e eram cruéis.
“Qual PD matava mais?”
“O domínio que falta em um PD sobra em outro.”
“Guerra entre PD’s”.
“A saga do sangue derramado em nome da PD.”
O tráfico de PD foi fechado, mas precisou que a Narcóticos assumisse o caso.
E eu nunca mais fui a mesma.
O distintivo preso em meu pescoço ganhara um peso maior que o seu habitual durante um longo tempo. As cobranças que eu me fazia eram muito maiores. E não era todo dia que eu conseguia fechar os olhos e dormir com a tranquilidade de uma missão cumprida.
Salvar vidas era um sonho que carregava desde pequena, eu só não sabia que causaria pesadelos.
Gilbert retornou e assentiu, confirmando-me que as informações eram reais. Ao fundo, pude ver um oficial retirar as algemas e conduzir o jovem até seu advogado. Logo, ambos assinaram o termo de soltura.
– Senhor Butler? – Eu o vi virar-se para mim enquanto acompanhava-os até a porta da minha sala. – Sugiro que controle o tom se precisar voltar aqui. Tenha um bom dia.
Sua cara de poucos amigos não me intimidou, até porque esta era a nossa primeira lição quando ingressávamos na academia. Eu sempre fui aluna nota A.
Uma ameaça de bomba em uma escola infantil no centro da cidade nos serviu como combustível para manter a equipe atenta após não respondermos nada além de chamados de patrulha durante a manhã.
A ameaça era falsa, felizmente. Contudo, os casos de falsos-chamados eram quase inexistentes no estado, quiçá na cidade. Aumentava a teoria que rondava minha mente: aquilo foi só uma distração. Em cada ano durante os últimos quatro, os estados vizinhos receberam ameaças semelhantes e, quando estudamos as coincidências, acabou que as datas também eram extremamente próximas.
O estado do Illinois declarara emergência entre todas as suas divisões e autoridades policiais. Isso queria dizer que não criaríamos pânico, não haveria comunicado público, mas as unidades estavam em vigilância.
Para isto, um novo programa fora lançado. Recrutas que presenciaram a ameaça em seus estados desviariam a atenção de suas especialidades para Illinois e fariam de tudo para manter a população intacta.
O departamento policial estava quase do avesso. Telefones não paravam um segundo, equipes de diversas unidades se esbarravam, apressadas, pelos corredores, os chamados triplicaram nas ruas e precisávamos responder a todos. Algum destes poderia ser real, certo? Errado.
Automaticamente, a população se tornou alarmada, então era questão de tempo até que as redes de televisão cobrassem pronunciamentos.
A verdade era que sabíamos tanto quanto os cidadãos. Sabíamos que algo estava acontecendo, mas não saberíamos responder o porquê, por quem, muito menos quando.
Aquilo era, de fato, um atentado.
As distrações eram perfeitas porque colocavam diversos oficiais nas ruas, tornando o grupo de planejamento cada vez mais escasso.
O estado inteiro estava sob ameaça.
Precisamos pensar tão grande quanto e ter um esquadrão que estivesse certo da responsabilidade de manter o controle.
Eu me certificaria disso.
Alguns olhares tortos me encurralaram quando eu me prontifiquei a treinar os recrutas do lado norte do país.
Eles estavam na minha área, minha cidade, meu distrito, e ninguém enxergava Chicago como eu.
Minha infância foi correr por aqueles bairros. A adolescência, conhecer alguns esquemas e, de quebra, fazer uma das decisões mais difíceis, que mudaria a vida por completo. Tinha muitas cartas na manga que conhecer aquelas ruas proporcionou. A mais marcante delas tinha nome e sobrenome: Herman Clifford.
Herman, meu amor de colegial, era de família estritamente religiosa, mas deixava isso de lado quando anoitecia e sua máscara de bom moço caía. O rapaz protagonizara muitas das minhas primeiras vezes durante o período do final da adolescência até o começo da vida adulta – de um jeito torto, mas estava lá. Durante diversas madrugadas, fomos acordados pelas inúmeras ligações de seus pais quando ele estava chapado demais para atender.
Em uma dessas madrugadas, descobrimos Leanne, que foi o nome que demos a ela assim que descobrimos a gravidez.
Os primeiros meses de gestação foram confusos e longos. Herman logo arranjou um emprego, custeando as emergentes consultas cheias de exames repetitivos para certificar-se de que eu e Lea estávamos bem, apesar dos pesares.
Não fora fácil achar um emprego para uma adolescente que, em poucos meses, daria a luz. Minha sorte foi poder contar com a bondade da avó de Herman, que tinha uma loja de roupas e chamou-me assim que soube.
Herman fora criado por uma família de comercial de margarina e tinha tudo para ser o pai perfeito como pelo qual fora criado. Dito e feito. O homem simplesmente parecia ter nascido para a paternidade, e a prova disso era que, durante a nova remessa de madrugadas acordados, Leanne preferia o colo do pai ao meu.
Clifford adentrou a academia de polícia assim que Lea completou dois anos, na mesma época em que terminou a licença maternidade estendida que Clarissa me dera. Em poucos meses, eu e Herman éramos os novos oficiais da polícia de Chicago.
Revezávamos turnos para que nossa filha não ficasse sozinha. Apesar de todo o esforço, entre mensagens e ligações, logo um se lamentava com o outro pela saudade que sentia da pequena.
Nós tínhamos a nossa própria família de comercial de margarina.
Já havia anoitecido quando os recrutas chegaram de diversos estados do norte e, apesar da viagem, não seria o momento em que eles descansariam. Ao contrário, o primeiro teste era condicionamento físico. Dali, sairiam os melhores, que teriam suas qualidades exaltadas e trabalhariam com elas. Apesar de estar treinando-os, haviam equipes a serem divididas e líderes a serem intitulados.
Queria dizer que apenas minha mente implorava por descanso, mas meu corpo não estava diferente. Dividia-me entre os treinamentos e as estratégias com os líderes estaduais. Aquela seria uma força-tarefa que estenderia-se por meses, era uma ameaça que não reapareceria enquanto fosse possível.
– Como está a conexão com as vias principais? – Perguntei um tanto ofegante após correr nas escadas até o andar superior.
Analisei rapidamente as diversas telas de computador que monitoravam as avenidas e pontos turísticos de Chicago.
– Monitoradas há duas horas, sargento. – Henry, gênio da computação, esclareceu. – Nenhuma alteração.
– Não é possível... – Sussurrei mais para mim mesma do que para o rapaz. – Há patrulha nas fronteiras?
– Em todas, senhora. Averiguando veículos e carregamentos.
– Tente contato com o tráfego aéreo, é uma alternativa. Uma ameaça desse porte precisa de armamento proporcional.
– Sargento . – Preparei para comentar mais alguma coisa com Henry, porém a voz do recruta atrás de mim me interrompeu. – Permissão para falar. – Percebi um burburinho atrás do rapaz e, antes que concedesse a permissão, Gilbert se adiantou.
– Ele estava no treino de condicionamento físico, não consegui impedí-lo de vir até aqui. – Admitiu ofegante.
– Permissão concedida, recruta.
– Com todo o respeito, senhora, mas... Se fomos recrutados, é justamente porque estamos em perfeito condicionamento. Não quero desrespeitá-la ao sugerir que possamos ser mais úteis aqui em cima. – O rapaz despejou de uma só vez.
Tinha postura firme e palavras certeiras, estava plenamente confiante sobre o que falava.
– Recruta...
– , senhora.
– Recruta , não conheço os oficiais do norte e não me é exagero querer entender suas aptidões.
– Como aspirante a oficial, lhe garanto que meu pelotão está pronto, sargento. – Inflou o peito, tornando-se ainda mais confiante, se fosse realmente possível. – Eu mesmo os treino.
Definitivamente, não estávamos com tempo para contar com a sorte.
– Tudo bem. – Engoli em seco. – Temos líderes de todos os estados aqui mas, antes de qualquer coisa, denomine tarefas para o seu batalhão.
– Obrigado, sargento.
– Recruta . – Chamei sua atenção antes que ele se retirasse. – Seja prudente. Isso pode custar vidas inocentes em seu país.
O recruta não aparentava ser inexperiente, tinha cerca da minha idade e, no pior dos cenários, estava a meses de completar seus trinta anos.
Retomei minha atenção, assistido os dedos de Henry digitarem milhares de códigos em mínimos segundos. Estabelecemos contato com os comandantes dos helicópteros e a busca com visão noturna não resultou em nada. Aquilo poderia ser como procurar uma agulha no palheiro.
Ouvia-se telefones tocando repetidamente, rádios comunicadores, reportagens a todo vapor, mas nenhuma resposta, nenhuma pista sequer.
Estava avulsa demais para perceber a aproximação de Gilbert. No entanto, a pasta que mostrara em suas mãos chamara toda a atenção.
– O que é isso?
– Vi o jeito que olhou pro recruta. – Fez uma pausa dramática, suspirando. – E isso é tudo que precisa saber sobre ele.
O pai do recruta fora um grande homem, quase uma lenda. Morrera no Onze de Setembro, salvando o número máximo de vidas que pôde, o que fizera automaticamente com que eu questionasse o que queria em Chicago, tão longe das memórias heroicas do pai. Christopher estava a poucos dias de completar seus trinta anos, como deduzira anteriormente, e tinha as melhores notas de toda a academia de polícia. Suas porcentagens para aptidões eram quase perfeitas, mesmo após ter tentado alistar-se quando mais novo e ter sido rejeitado. A julgar pela idade e pelas datas, se Christopher tivesse sido aceito de primeira, provavelmente, seria ele no comando daquela operação hoje e não eu.
Dei o braço a torcer: o rapaz era um gênio.
Como se pudesse ler meus pensamentos, tomou meu campo de visão.
– Temos uma pista. Uma caixa misteriosa apareceu no Columbus Park e tem a insígnia do distrito 21. O esquadrão antibombas está a caminho. Vamos? – Devolvi a pasta de qualquer maneira para Gilbert e segui os passos do rapaz, que não se importou caso eu tivesse alguma resposta, tomando a frente.
girou a chave de seu Dodge Charger em mãos e ligou a lanterna que nos ajudaria a ultrapassar faróis para sair, cantando pneu. Não estávamos perto do parque, porém sabíamos que estávamos correndo contra o tempo. aproveitara o tardar da noite e as ruas quase vazias para cortar pelos melhores atalhos, mesmo que nos custasse alguns quilômetros na contra mão.
– No porta-luvas, tem uma calibre 12. Pode carregá-la pra mim?
– Claro. – Respondi automaticamente, atentando-me a recarregar a arma enquanto ele se mantinha atento na direção.
– Gostou do relatório, sargento? – riu nasalado, olhando-me de soslaio ao perceber a surpresa em meu rosto. – Estava muito concentrada nele. Achou algo de interessante?
– Não estava completo. – Preparei a arma, finalizando-a. – Não havia nada alertando sobre como é prepotente, recruta .
Todo o perímetro do parque estava isolado e haviam viaturas por todos os lados. Oficiais ainda tentavam dispersar os pedestres que por ali passavam.
– Sargento Upton. – Eu me apresentei, sendo isso o suficiente para que atualizassem-me sobre o que acontecia.
– É uma caixa de madeira e a pintaram de preto pra que apenas o distintivo do Distrito 21 fosse relevante. – Um oficial que estava na patrulha me explicou. – Há uma senha de quatro dígitos, mas deixavam o primeiro e o último visíveis. O esquadrão antibombas está paramentado e pronto pra se aproximar. Com sua permissão, senhora.
Assenti, observando a formação do esquadrão se aproximar. me passou um rádio comunicador e, com ele, teria comunicação direta com o esquadrão.
– Upton, câmbio.
– Consentimento para aproximação, sargento, câmbio.
– Permissão concedida. O que veem? Câmbio. – Os refletores na rua iluminavam pouco do parque, tornando a visão confusa, considerando a distância que estávamos da suposta bomba.
– Há um cadeado grande. Atrás dele, há quatro fios. Câmbio.
– Dois dígitos aparentes? Câmbio.
– Quatro e oito, respectivamente. Câmbio.
– Combina com a coordenada parcial daqui. Tente dois e sete, depois os inverta. Câmbio.
– Nenhuma alteração, senhora. Permissão para tentar outras combinações. Câmbio.
– Permissão concedida. Câmbio.
permanecia ao meu lado, comunicando-se com os oficiais que evacuavam a área, atualizando-os sobre qualquer progresso. O lugar exalava tensão. A cada metro, encarávamos rostos tensos e duvidosos. Sabíamos do risco que corríamos ali, também sabíamos que era o tipo de esforço válido pelo país.
Aguardávamos por algum contato do esquadrão antibombas, qualquer fosse.
– Vista. Está demorando demais, não é bom sinal. – reapareceu em meu campo de visão quando mal percebi sua ausência, com um colete à prova de balas em mãos e já vestido com o seu.
Agradeci e comecei a vestí-lo, prendendo os velcros das laterais dos ombros e da cintura, tendo um pouco de dificuldade nos dois últimos que restavam nas costas, sendo concluídos por , que fora generoso ao apertá-los.
– Seu distintivo. – Pegou-o em sua mão, encarando.
– O que tem?
– Os números.
– Igualam com os do cadeado. – Soprei as palavras, sentindo os pensamentos se embolarem.
Não podia ser.
– Esquadrão, tentem oito e seis. Câmbio.
– Estávamos estudando a conexão dos fios. Os quatro estão ligados à mesma fonte. Câmbio.
– Quatro, oito, seis, oito. Câmbio.
– Funcionou. Câmbio.
Tornara-se muito pior do que poderíamos imaginar.
– Não é uma bomba, senhora. Repito: não é uma bomba. Câmbio.
– Nenhuma ameaça? Câmbio.
– Apenas dois envelopes. Alarme falso. Câmbio.
– Isso é pessoal, Upton. – sussurrou ao meu lado.
Um oficial, que antes ajudava na evacuação, me trouxera os envelopes, que estavam intactos, sem uma única palavra escrita do lado de fora.
Em um dos envelopes, haviam apenas recortes de revistas, com letras aleatórias. No outro, um bilhete escrito à mão.
ENEALN
Não fazia sentido algum.
“Avanda
Stilista
Nn&Robert H. Laurie.”
Eu mal conseguia respirar. Meus ombros estavam tensos e, apesar de ouvir me chamar repetidas vezes, minha boca estava seca demais pra que conseguisse respondê-lo.
“Lavanda, Estilista e Ann&Robert H. Laurie” ou LEA.
Características ligadas à Leanne e tudo que envolvera os poucos anos de sua vida.
Lavanda era sua flor favorita, sua profissão dos sonhos era ser estilista, nascera no hospital infantil Ann&Robert H. Laurie, onde tivera as últimas horas de vida também.
Leanne Upton Clifford fora a melhor coisa que aconteceu a mim. Tirada de mim injustamente. Minha filha era a criança mais maravilhosa do universo e o mundo não estava pronto pra ela.
Leanne brincava com sua bicicleta na frente de casa quando, no final de um dia ensolarado de sábado, um carro atingira em cheio sua bicicleta e, de marcha ré, fugiu sem prestar socorro.
O socorro que, se imediato, teria salvado a vida dela.
O socorro que permitiria que ela completasse seus catorze anos, interrompidos dez anos atrás.
Leanne era apenas uma criança. Incrível e inocente, de quatro anos de idade.
Um ano depois, o pai de Lea me culpava por sua morte, já que era minha folga e eu estava no encargo de cuidar da menina. Herman alegava que tudo ao nosso redor lembrava ela. Chicago inteira lembrava Leanne.
Herman pediu transferência e morava na cidade vizinha.
Herman, meu amor de colegial e pai da minha filha, se tornara a maior ameaça pela qual lutara em toda a minha carreira policial.
Clifford ameaçava acabar com a cidade que carregava as memórias de sua filha.
– Hospital pediátrico de Laurie. – Sussurrei. – A próxima ameaça está lá.
– Como sabe? O que está acontecendo, ?
– Minha filha. – Engoli em seco, finalmente tomando coragem para encarar seus olhos. – Ela nasceu neste hospital, foi dada como morta lá também, e o autor das ameaças é o pai dela.
– Vocês ouviram a sargento: hospital pediátrico. Agora! – gritou para que todas a viaturas presentes ouvissem, juntando os envelopes e retornando ao seu carro.
Respirei fundo, ignorando os pensamentos que davam voltas e mais voltas em minha cabeça, emaranhando-se de maneira que tornara impossível sua compreensão.
– Sargento. – me chamou, ligando o carro.
Eu me apressei, retornando para o veículo e sentindo o ronco do motor tão potente quanto minutos atrás.
Estávamos um bocado longe e era necessário cruzar a cidade para chegar até o hospital. Enquanto dirigia, precisei reportar tudo à central para que passassem os últimos registros de Herman em Aurora e como estava se portara nos últimos dias. Acontecia que Clifford não respondia a chamados de patrulha havia semanas, não fizera compras no cartão de crédito e também não tivera registro de passagem pelas fronteiras. O homem se tornara um fantasma. Sua única aparição em semanas fora, justamente, a ameaça ao estado.
– Por que ele está fazendo isso?
– Ele me culpa pela morte de Lea. – Eu o respondi sem olhá-lo. – Só não entendo o porquê de ser agora.
As viaturas nos seguiam, e conforme nós nos aproximamos do local, ligamos as sirenes, chamando a atenção das poucas pessoas na rua. Alguns carros paravam gradativamente, com o intuito de esvaziar o perímetro, e todo o protocolo se reiniciava.
Precisávamos encontrar Herman, entender suas motivações e desarmar qualquer que fossem seus planos a tempo.
Sua voz reverberava na minha cabeça num misto das palavras doloridas de quando a perdemos, com as palavras doces da última vez em que nós nos falamos. Era um homem totalmente diferente.
Haviam policiais percorrendo os andares do hospital, ao mesmo tempo em que outras equipes revistavam os prédios vizinhos.
Precisei despistar para procurar sozinha por Herman. Caso contrário, ele jamais apareceria. Apesar de preparado, poderia precipitar-se, não conhecia Herman e qualquer segundo deveria ser calculado.
Atrás do estacionamento, havia um vasto e lindo jardim, muito mais bonito na luz do dia, e eu me lembrava de cada flor dali detalhadamente. Tinha um caminho feito por pedras coloridas que levava para um chafariz, que era ouvido mesmo devido à distância. À sua volta, colocaram bancos coloridos apontados em direção à fonte, que era iluminada pelas lâmpadas florescentes, mantendo o anjo central muito bem focalizado.
Sem nenhuma luz para destacá-la, meus olhos pararam sob uma caixa semelhante à que vimos no Columbus Park. Sem insígnia do Distrito 21 em cima, eu me dirigi diretamente a ela sem chamar reforços. Herman sabia que esse seria meu movimento inicial e eu acataria porque ele não me faria mal. Ele poderia estar perturbado, mas nunca fora uma má pessoa.
No cadeado, os quatro dígitos estavam visíveis, só precisava que apertasse o botão abaixo deles e o que quer que tivesse de acontecer estava há dois centímetros dos meus dedos.
Eu me agachei, analisando-o por mais alguns momentos, não encontrando nada semelhante aos fios que foram reportados na denúncia anterior.
Seria o que teria que ser.
Apertei o botão, ouvindo o tilintar do destrincar do cadeado. A caixa se abriu e, nela, nada mais havia que coisas que pertenciam a Leanne: desenhos, os cadernos dos seus primeiros anos escolares, fotos e parte da coleção de tiaras da menina.
Herman não precisava de uma bomba para me matar, aquelas lembranças já foram um ótimo trabalho.
O álbum de fotos que estava no fundo da caixa, parcialmente coberto, era a linha do tempo que formamos da vida da garota até que não pudéssemos mais. Na verdade, fizemos dois deles, idênticos, e um dos álbuns estava comigo, o que significava que aquele era o que demos para Clarissa, presenteando a avó de Lea, que fora fundamental em sua vida.
O sorriso espontâneo de Lea, as roupas coloridas dela, os cabelos desgrenhados com os quais ela nem se importava... Leanne fora, de longe, o grandessíssimo marco da minha vida.
Em todos aqueles anos, quando chegava a data de seu aniversário, a dor retornava, como se eu precisasse de um lembrete da falta que ela fazia. Leanne fora a melhor parte de mim, e arriscava dizer que fora a única.
Era impossível encarar suas antigas coisas e não desejar nossa família de volta.
– Você veio. – Ele sussurrou sôfrego e senti sua mão em meu ombro.
Virei-me, encarando sua silhueta.
Herman estava terrivelmente diferente do que lembrava. Seus ombros estavam curvados e caídos, a barba volumosa tomava boa parte de seu rosto e o restante era coberto pelo capuz do moletom. Suas roupas eram gastas e sujas, alguns números maiores do que o necessário.
Eu me levantei, levando o álbum comigo, e arrependi-me de encarar seus olhos.
Um dos motivos que fizeram com que eu me apaixonasse perdidamente por Herman foi o brilho dos seus olhos e o quão intensos eram. De fato, ainda havia intensidade, mas não transmitiam a segurança de antes.
Ele estava perdido, assustado, fora de si.
O ponto eletrônico em meu ouvido transmitia as conversas entre os oficiais e suas buscas que, por um segundo, fizeram com que eu hesitasse. Eu deveria reportar sobre o paradeiro de Herman, mas isso seria igual matá-lo, porque fariam antes que ele pudesse proferir qualquer coisa. Não reportar ia contra o juramento que fiz ao departamento de polícia e ao país, o mesmo que fiz ao lado de Herman quando nos alistamos.
– Posso te abraçar? – Perguntou, mantendo o tom baixo de voz.
Percebi seus dedos inquietos, que tinham movimentos repetitivos em ambas mãos. Não o respondi, apenas aproximei-me e fiz. Senti o cheiro forte de suas roupas e como seu corpo tremia.
– Está com colete a prova de balas? Acha que te faria algum mal? – Ele tentou esquivar-se do abraço, no entanto, antes que fizesse, eu o apertei ainda mais forte.
– Sei que não seria capaz disso. É só protocolo. – Eu lhe assegurei em um tom tão baixo quanto o dele. – Na verdade, vista.
Eu me desvencilhei dele para tirar o colete, imediatamente ajudando-o a vestir. Ele corria grande perigo.
– O que está acontecendo, Herman? Você ameaçou o estado. Esse não é você.
– Nunca quis te machucar, mas sabia que, com estas pistas, você chegaria diretamente a mim. – Ele confessou rápido, puxando seu capuz vez ou outra a fim de se esconder. – Lea deveria completar catorze anos hoje. Nos meus catorze anos, meu pai me ensinou à dirigir, e eu deveria fazer o mesmo com ela... Entende?
– Eu entendo. Claro que entendo. – Tentei segurar sua mão para transmitir-lhe calma, mas ele se esquivou.
– Se esse país tivesse leis mais rigorosas, ela estaria viva... Viva. Ela estaria viva. – Proferiu repetitivo, tornando mais intensos os movimentos de seus dedos. – Queria que eles pagassem.
– Herman. Fale comigo, há alguma bomba aqui? – Segurei seu rosto gentilmente, encarando-o para que sentisse segurança em mim.
– Na academia de polícia. Eles... Eles vão pagar, . – Assentiu repetidas e rápidas vezes com a cabeça, suas pupilas dilatadas deixavam nítido que ele não estava bem.
– Não faça isso, Clifford...
– Só você me chama de Clifford.
– Eu sei. – Sorri fraco, sem realmente achar graça. – Se fizer isso, vai causar neles a mesma dor que sentimos. Cada um ali é filho de alguém. – Sem permitir que ele se esquivasse dessa vez, enlacei meus dedos à sua mão. – Eu não desejo essa dor pra ninguém. – Murmurei da maneira que foi possível, considerando o nó na garganta e as lágrimas que cansei de segurar. – Onde está o detonador, Clifford?
– Eles devem pagar.
– Eu mesma ainda estou investigando. – Engoli em seco. – Agora... Me dê o detonador. Por favor. – Supliquei, frágil, percebendo os passos vacilantes dos policiais atrás de nós.
Estiquei minha mão, aguardando que colocasse o detonador ali, mesmo que trêmula.
Clifford revirava os bolsos da sua blusa de moletom e aproveitei para dar uma rápida olhada significativa para os oficiais. Eles precisavam recuar. Logo, Herman poderia percebê-los e eu perderia o controle.
Ele tirou do bolso um clipe semelhante ao que acoplamos à bateria de carro, mas o que impedia que os grampos se tocassem era uma borracha escolar de Lea, que eu bem me lembrava por ter os desenhos azuis da Cinderela, ainda que gastos pelo tempo. O clipe estava conectado a um celular antigo, de teclas. Não reconheci a técnica que usara, então talvez fosse apenas um blefe.
– E-eu fiz tudo sozinho.
– Acredito em você. Posso ver?
– Tome cuidado. – Alertou, depositando o dispositivo na palma da minha mão.
– Não tenho visão completa. Câmbio. – Ouvi a voz de comunicar pelo ponto eletrônico.
estava preparado em algum prédio alto, pronto para executar Herman, e a confirmação disso fora a mira de laser vermelho pousar no ombro de Clifford.
– Não se aproximem. Repito, não se aproximem. Câmbio. – Ordenei categórica, retomando parte das forças.
Puxei a mão de Herman para que ele me abraçasse e, com a mão livre, mostrei o detonador, levantando-o.
– Solte ele, . Ele é uma ameaça. Sabe disso. – se comunicou pelo ponto eletrônico.
– Ele não está bem. Precisamos ajudá-lo. – Respondi, olhando em volta e encarando os oficiais de armas apontadas em nossa direção que cercavam-nos.
Herman não me abraçava, mas meu braço livre mantinha o enlaço forte em seus ombros, unindo nossos corpos. Ele ainda vestia o colete a prova de balas, isso dificultava a ação da mira de e, se quisessem acertá-lo na cabeça, muito provavelmente me acertariam também, por isso a hesitação.
– Não se aproximem. – Decretei pausadamente.
Em um segundo de descuido quando encarava os policiais que cercavam nós dois, Clifford se soltou de mim, dando um único passo para trás e sendo atingido na cabeça por um tiro limpo de .
Os olhos dele reviraram e seu corpo perdeu a força, fazendo ouvir o baque ao atingir o chão.
– Ameaça anulada. Câmbio.
Apesar de ter cumprido anos em serviço policial, Herman não foi enterrado com suas honras porque a ameaça que fizera anulara suas conquistas. A bomba era real, e foi neutralizada a tempo.
Meus joelhos tocaram o chão quando estavam fracos demais para manter meu corpo reteso. O pai da minha filha se tornara mais uma ameaça neutralizada na minha carreira policial.
cobriu o corpo de Herman com um plástico preto, impedindo a curiosidade de terceiros. Amparou-me em seus braços até seu carro mais uma vez e certificou-se de que eu estava bem durante todo o caminho de volta ao distrito policial.
Christopher recebera honrarias policiais pela sua atuação, subira de cargo e dividíamos os mesmos corredores sob olhares atentos de Gilbert.
– O que pensa que está fazendo? – Questionei assim que eu o vi pousar uma caixa em cima da minha mesa, fazendo um barulho com a força que investira para levantá-la.
– É a caixa que ficou no jardim do hospital infantil. – Retesou os ombros, parecia desconfortável. – Inclusive, desculpa tê-la pressionado.
– Estava fazendo seu trabalho. Muito bem, aliás.
– Escondi porque sabia que são importantes pra você, sargento. – Sussurrou, tentando quebrar o gelo em um tom cômico, virando-se para fechar a porta da minha sala e retornando para empurrar a caixa para mais perto de mim.
– Realmente, essa caixa deveria estar como evidência, recruta .
– Agente especial, . – Corrigiu-me em um tom de voz suave. – Não está sozinha, . Se acostume com isso. – Piscou, mostrando-me seu sorriso ladino, afundando as mãos nos bolsos dianteiros da calça que vestia antes de deixar a sala.
(Não, eu não teria feito)
All the things that I've done
(Todas as coisas que eu fiz)
If I knew one day you would come
(Se eu soubesse que um dia você viria)
Fim.
Nota da autora: "Hello, hello! 😉 Vocês estão bem? Espero que sim, porque eu mesma já não sei mais!!!
Em meio ao nosso pandemic times, uma fanfic com drama em sua pura forma é o que não pode faltar né?
Essa é primeira fic que escrevo sem cenas de romance e preciso dizer que foi esquisito, mas me conformo dizendo que essa é uma maneira de sair da zona de conforto HAHAHAHAHA
Apesar de curtinha, digito as últimas palavras já pensando em uma segunda parte (e com todo o romance que não teve nessa).
Espero que gostem como eu gostei. ♥
XOXO"
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Em meio ao nosso pandemic times, uma fanfic com drama em sua pura forma é o que não pode faltar né?
Essa é primeira fic que escrevo sem cenas de romance e preciso dizer que foi esquisito, mas me conformo dizendo que essa é uma maneira de sair da zona de conforto HAHAHAHAHA
Apesar de curtinha, digito as últimas palavras já pensando em uma segunda parte (e com todo o romance que não teve nessa).
Espero que gostem como eu gostei. ♥
XOXO"