Última atualização: Fanfic finalizada.

Capítulo Único

— Acho que você deveria mudar o tapete da porta.
Me virei para a direção de onde vinha a voz, me sentindo um pouco tonto pelo movimento, e mantive a mão no caminho da maçaneta. Encarei a mulher parada na porta ao lado esquerdo da minha, a vizinha nova.
— O quê? — Minha resposta foi automática, eu não estava confuso igual o meu tom fez parecer.
— O tapete. Ele está… rasgado. Não limpa o pé corretamente e você vai levar toda a sujeira da rua para o seu ambiente.
Ela parecia decidida em me convencer do que estava falando e eu não tinha nem um pingo de vontade de estar ali, discutindo sobre um tapete velho que não havia sido eu a colocar na porta do meu apartamento. Tampouco estava interessado em mudar qualquer coisa. Mas seria grosseiro expor toda a verdade, além dela ser uma desconhecida e não ter responsabilidade nenhuma em ter que me ouvir falar sobre as ladainhas da minha vida preto e branco.
Apenas torci os lábios, demonstrando minha camuflagem para o tanto de coisas presas que poderiam sair se eu abrisse a boca para falar qualquer coisa, o tédio.
— Irei pensar sobre isso. — Minha mão encontrou a maçaneta e eu empurrei a porta, entrando logo para não dar continuidade no assunto.
A sala estava do mesmo jeito que eu tinha deixado na noite anterior, antes de sair para o show. E, como sempre, D’arc veio me cumprimentar com seu jeito felino, passando por entre minhas pernas com seu rabo erguido e o miado de quem me dizia que queria comer, afinal era só isso que ela me pedia, comida, água e paz. Talvez fosse uma extensão do que eu era, até porque o que eu vejo no outro e que me incomoda está, na verdade, em mim.
— Eu deixei comida o suficiente para você, precisa parar de comer tudo de uma vez só. — Me abaixei para passar a mão em seu pelo, tendo um breve momento dela me deixando lhe acariciar e dar carinho, até porque tinha um certo interesse em cima disso, D’arc queria comer. — Gosto que você não esconde o seu interesse.
Ela se sentou em minha frente e eu me levantei, me direcionando para o pote de sua ração na parede lateral à porta, abri o armário também no mesmo canto e tirei o pacote de ração, despejando no recipiente, sendo observado por uma devoradora de ratos e baratas que vivia em minha casa de graça, depois de ser deixada para trás por sua primeira humana. D’arc foi rapidamente para sua comida, não esquecendo seu miado em agradecimento. Pelo menos ela tentava demonstrar um pouco da educação que lhe fora dada quando era filhote.
Respirei fundo e finalmente me joguei no sofá, tirando de dentro da minha jaqueta os envelopes de cartas que peguei na caixa de correspondências. Joguei no espaço vazio ao meu lado, cansado demais para me importar com as contas a serem pagas no mês que se iniciava, sentindo meu corpo começar a se comprimir outra vez em menos de algumas horas. Como em um fluxo de idas e vindas, assim como as ondas do mar: quando recuava, era o momento em que eu me sentia anestesiado, para então retornar em sua altura absurda; por vezes se fazia como na praia, ondas mais levianas, em outras, me sentia em alto mar durante uma tempestade, completamente abatido pela água que nunca parava. Era cansativo não enxergar uma rota de fuga e não ver uma mínima cor, por menos intensa que fosse.
Cansativo se sentir cansado.
Me sentia em inércia; ainda que fosse uma propriedade geral de matéria, na condição em que estava há tempos se fazia impossível qualquer variação de velocidade. O modo automático não conseguia mais ser derrubado nem mesmo quando eu estava em cima dos palcos me apresentando, não tinha um sentido, uma linha de movimento sequer. Perdido em um labirinto, entregue à falta de saídas. E isso não era novo, não, pelo contrário, já durava tempo demais, porém agora soava diferente porque eu não conseguia mais encontrar nenhuma cor em nada, assim como eu tinha seis meses atrás. Estava abandonado depois da última tentativa de resgate, só que a partida de me fazia pensar se ela realmente tentou me salvar ou me acompanhar, querendo acreditar que não era uma forma de se auto preencher de algo que ela achava que eu poderia oferecer.
Um porém que me fazia ignorar todas as tentativas dos meus neurônios de gerar a culpa sobre ela. Na tentativa de encontrar o que ela poderia estar buscando no interesse de ficar comigo, eu não conseguia encontrar uma resposta, porque sabia que em mim não encontraria nada além de alguém sem coragem de andar pelos próprios pés. Antes dela, eu era pacato, sem perspectivas para nada, com total falta de um senso crítico em cima da minha própria rotina morta; vivia no desejo profundo de encontrar um ceifador, sabendo que a minha covardia me fazia continuar vivendo o ciclo interminável do desânimo. Bem, pelo menos eu acreditava que ela não era ignorante ou como uma das tantas outras pessoas com um vazio diferente do meu no mundo.
Quanto mais eu pensava sobre isso, maior era a minha angústia, gigante se tornava o meu pacote de medos e receios, incessante como minha ansiedade diária. Nem mesmo os flashes do sol das seis entrando pela janela da minha sala e batendo contra mim, esquentando mais o tecido das roupas de outono, pareciam ser uma faísca eficiente para me causar algum sentimento, porque nada era capaz de me preocupar ou causar qualquer movimento. Nem mesmo o oposto do positivo me atingia e minhas lágrimas, que ainda sobravam como uma população perdida no meio de uma ilha abandonada, caíam em forma de apelo.
Um apelo que não me causava mais nada, porque o meu tipo de vazio era o perigoso, daqueles que sugam tanto a ponto de não conseguir expelir, causando toda a instabilidade emocional, psíquica e física. Algo que nem mesmo Freud poderia desvendar.
Mas eu ainda não tinha coragem, tanto que minha única saída era clamar por algum comando que fosse possível me fazer tentar, mesmo sabendo que seria uma medida da covardia.
Não deveria ser tão difícil deixar de ser e estar cansado.
Todo e qualquer movimento deveria ser menos doloroso, menos complexo e com ruídos, não um extremo silêncio incompreensível. Eu deveria estar me perguntando em que lugar poderia comprar um novo tapete para minha porta, ou então ter me atentado a isso antes — o que não faria a vizinha interagir comigo sobre tal item e se fosse como a segunda face de Murphy: o que tiver de ser vai ser. De alguma forma, eu deveria estar me importando e não na briga impiedosa contra o montante de responsáveis pela incompreensão, mas eu conseguia sentir que quanto mais buscava as respostas que não consegui encontrar em anos, maior se tornava o abismo.
E continuava me cansando estar cansado.
Tirei minha jaqueta e puxei o monte de cartas, levantando e indo até o aparelho telefônico em cima do balcão que dividia o ambiente aberto entre cozinha e sala. Dei a volta enquanto ouvia as mensagens da caixa postal e abri a gaveta, pegando minha carteira de cigarros; felizmente, não precisaria bolar e me preocupar com o TOC sobre o alinhamento da seda com a erva dentro, estava tudo pronto. E enquanto Mark contava sobre sua última aula de piano com o professor no estúdio que estava trabalhando em Los Angeles, empolgado e ansioso pelo cumprimento da minha promessa de ir até ele e tentar trilhar esse caminho juntos, eu acendi o cigarro, tragando com todo o desejo e calmaria possíveis. A sensação da recreação começando a despontar.
Um pouco mais de áudio e ele estava me perguntando sobre os shows noturnos e como eu estava conseguindo me manter sozinho em Orlando. Pensei em anotar a resposta para enviar depois com um delicioso e gordo envelope de todos os boletos que estavam pagos, além do recibo do meu aluguel em dia e uma foto do pacote de ração de D’arc, a mais cara. Seria uma boa forma de mostrar que materialmente eu não tinha ausência de nada, na questão financeira, claro. Porém, eu não conseguia me sentir diferente de apático.
Não até o segundo recado.
— Ei, ? — suspirou e eu sabia que ela estava com vergonha, era o tom doce da voz dela que denunciava. — Eu espero que não tenha trocado o número de casa… Poderia te ligar ou mandar mensagem, sei disso, mas eu não tenho mais o seu número e… Sim, eu procurei pela agenda física. Uma velharia, não é mesmo? Talvez eu devesse agradecer minha vó.
Eu não sabia quantas vezes já havia tragado e o tanto de droga que continha em meu organismo, só tinha noção de que o vácuo constante deixou de ser linear por um momento, me fazendo sentir a primeira gota rolando pelas maçãs do meu rosto. O único momento que eu sentia dor era quando notava a ausência dela, ao ouvir sua voz em áudios que eu ainda tinha da nossa conversa nunca apagada, das fotos que eu via em minha galeria do celular, ou os vídeos que tínhamos de todo e qualquer cunho. Eu notava o peso em meu peito quando percebia que ela não era mais a pessoa que tanto me preenchia, e sim a que passou a ficar menos, me fazendo ter uma noção de que fora uma passagem tão depressa, tão rápida e que eu pouco aproveitei — e talvez por isso não quisesse de fato encontrar a razão da sua partida; se confessasse que fui usado para sua própria glorificação, poderia não doer tanto quanto a forma que a saudade dela tinha.
Sendo usado ou não, soava como se ainda tivesse tido um interesse. Uma origem, pelo menos.
— Enfim, eu tô te ligando para garantir que… na verdade eu não sei o que quero garantir, para ser bem honesta. Só queria dizer que um piano ainda é algo muito fora da minha realidade de garota deixada de fora da herança — ela riu nervosa; eu sabia como isso doía, embora não assumisse que suas escolhas tivessem gerado um arrependimento pelas consequências alcançadas —, então eu achei que esse cartão poderia ser um bom começo.
Olhei para a pilha em cima da superfície e puxei rapidamente, buscando, atordoado, entre elas, algo com seu nome. Quando achei, sendo o último envelope, meu coração pareceu acordar pela primeira vez.
— Você dizia que o vácuo parecia ser seu lugar de maior conforto. E eu discordava. Acho que agora te entendo… Então essa é a minha forma de te agradecer pelo o que tivemos, pelo o que você me proporcionou — suspirou. — Porque se eu sou quem sou hoje, é graças a você e… também porque não fomos para sempre como achamos que seria. Eu espero, de coração, que você encontre seu conforto em outra constelação, outra galáxia… em outra fórmula física. Talvez Einstein, porque Newton e Murphy foram muito pessimistas… Se cuida, por favor.
Sem o famoso “neném”, ou a sua declaração final de como se sentia por mim. Uma simples mensagem confusa, com suspiros de alguém cansado e com culpa a ser aliviada. A que eu conhecia e que me manteve acordado até mesmo na inércia não era a mesma que estava me mandando um cartão estampado com uma galáxia e com um simples “Aposte em Einstein” numa declaração genérica. Ou talvez eu estivesse perdido demais para reconhecer quem um dia foi meu ponto de paz.
E isso estava gritando muito sobre o tipo de pessoa que me tornava a cada dia.


FIM



Nota da autora: Olá, espero que tenha gostado. Até a próxima!
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