Postado: 05/10/2017

Capítulo Único

As pessoas iam e vinham sem parar quietas no lugar, as vozes altas ainda tentavam sobressair-se sobre a música que o DJ tocava e que animava os que dançavam no meio do salão e Kate estava estonteante em seu vestido branco armado, cheio de brilhos e bordados. A festa estava incrivelmente linda, e eu estava imensamente feliz por minha prima e uma das minhas amigas mais próximas, mas, a cada segundo que passava, eu não conseguia evitar ficar mais ansiosa. Não que eu pudesse, mas a minha vontade de sair correndo dali só aumentava a cada vez que meus olhos paravam sobre o arranjo de flores amarelas em cima da mesa do bolo; era como se ele me encarasse de volta e, com um olhar maléfico, dissesse: “Está chegando a hora, . Vamos confirmar sua solteirice por mais algum tempo”. E era inevitável olhar para lá, aquela coisa parecia me atrair como a um ímã.
Vamos esclarecer algo aqui: se, por acaso, você vive no planeta Terra, com certeza deve saber da existência da superstição do buquê da noiva, certo? Aquela que diz que a mulher que pegar o buquê que a noiva jogar para o alto em sua cerimônia de casamento vai por fim desencalhar e descolar um casamento também, ou algo do tipo. Bobagem, certo? Certo. Ninguém acredita nisso e eu tento fielmente também não acreditar, mas fica difícil quando todas as mulheres da sua família coincidentemente conheceram o amor da sua vida — ou ainda, fizeram com que seu namorado/pretendente as pedisse em casamento de uma vez — depois de pegarem um maldito buquê de flores.
Sim, isso de fato aconteceu com minha bisavó materna, minha avó, minha mãe, suas três irmãs e minhas quatro primas já casadas, inclusive Kate. Todas elas tiveram sua vida amorosa desencadeada após uma fatídica cerimônia de casamento e minha bisa, como fiel supersticiosa, acreditava piamente que isso era alguma espécie de dádiva em sua família que seria passada de geração em geração. Portanto, esse era um assunto sempre pautado nas reuniões de família e, para piorar, minha família era muito unida. Não que isso fosse ruim, pelo contrário, eu amava a forma como todos nós nos dávamos bem e amava estar no meio de tanta gente em cada almoço de domingo ou feriado, mas conforme você vai chegando perto dos trinta anos solteira, sem nunca ter chegado perto de um buquê de noiva e fazendo parte de uma família que acredita na “benção do buquê”, fica cada vez mais difícil aturar as perguntas de “e os namoradinhos, ?”. Acredite, com o passar do tempo fica pior e não são apenas as tias que continuam a perguntar incessantemente.
Então, conforme os minutos iam passando, eu tentava inutilmente criar alguma desculpa esfarrapada que pudesse me tirar dali quando o DJ abaixou quase totalmente o volume da música e a cerimonialista surgiu ao seu lado, com um microfone em mãos. Uma movimentação de meninas surgiu logo à frente do palco e eu gelei, percebendo Kate caminhar em direção à mesa em que os girassóis descansavam. Pude ver o olhar animado que lançou em direção às mulheres que se aglomeravam, umas mais empolgadas que outras. Kate cochichou algo no ouvido da cerimonialista assim que subiu no palco e as duas olharam ao redor do salão.
— Vamos, lá, sem cerimônias. Eu sei muito bem que ainda há algumas mocinhas solteiras que sentadas por aí... Vamos, gente. Venham até aqui! — A mulher vestida de forma elegante começou a proclamar no microfone, mas foi logo interrompida por minha prima:
— Vocês não precisam que eu as chame pelo nome, certo? Porque fui eu quem convidei vocês, então eu sei bem quem está solteira e quem não. — Deu de ombros, fixando o olhar no meu. Estreitei os olhos, tentando descobrir alguma forma de revidar a humilhação pública que seria eu estar no meio de tantas mulheres mais novas. Por Deus, o que aquelas adolescentes faziam ali? Eu podia garantir que elas não tinham idade suficiente nem para namorar, quem dirá casar. Revirei os olhos, frustrada, quando um tapa no ombro me fez sair de meus devaneios. Olhei para o lado e meus companheiros de mesa — meus pais, minha irmã e um casal de tios — me observavam, todos dizendo “levante a bunda dessa cadeira de uma vez” com o olhar. O sorriso de minha mãe e de Liv se alargavam cada vez mais, e minha irmã começou a balançar as sobrancelhas em uma tentativa falha de incentivo.
— Ah, gente... Sei lá. Eu meio que já passei da idade de fazer essas coisas. — Dei de ombros. Mamãe ia falar algo, mas pude ouvir a voz de Liv novamente.
— Ah, , qual é. Não se faça de coitada. E outra, estou sentindo que dessa vez o buquê cai na sua mão. Estou falando sério! Não faça essa cara de deboche. Vamos, por favor. Faça isso por nós, ou apenas por mim, então. Você tem uma chance, mas sabe que eu nunca vou conseguir nem lutar por um buquê. — Liv fez cara de cachorro caído da mudança e eu quis matá-la naquele exato momento. Vi o sorriso de mamãe vacilar e papai desviar o olhar, e bufei, irritada. Odiava quando ela fazia ou falava algo do tipo e ela sabia muito bem, porém seguia apelando nos momentos mais inoportunos. Rolei os olhos e empurrei a cadeira, jogando na mesa o guardanapo que repousava em meu colo. Pude ouvir os gritinhos animados de Liv atrás de mim, mas fiz questão de não voltar a olhá-la, tentando focar minha mente em qualquer lugar que não me acusasse de estar ali. Assim que cheguei no grupinho de mulheres em frente ao palco, Kate fez uma pequena comemoração, seguida das minhas concorrentes, e piscou em minha direção, ato que eu revidei com maestria e intensa maturidade mostrando-lhe a língua.
— Vamos, vamos, todas vocês aqui na minha frente. Vocês sabem o que fazer, certo? — a cerimonialista voltou a falar, e as meninas começaram a se organizar. Propositalmente me desloquei ao final do grupinho, sabendo que de jeito nenhum o buquê conseguiria passar por umas quinze mulheres que sairiam pulando para tentar alcançá-lo e chegar até mim, tão distante. — Bom, antes de a noiva jogar o buquê, eu gostaria de avisar de uma promoção de última hora: a moça que porventura pegá-lo terá sete dias para entrar em contato comigo e eu faço todo o cerimonial do casamento dela totalmente de graça. É sério! — emendou a mulher, quando os convidados começaram a rir. Claro, como se fosse fácil arranjar alguém para casar em uma semana. Rolei os olhos, cogitando novamente a possibilidade de sair correndo dali enquanto Kate conversava com a moça, mas ela logo virou de costas, e eu engoli em seco. Alguma coisa estava muito errada. Apesar de ainda estar encalhada, eu nunca tinha ficado tão agoniada em uma cerimônia de casamento em que eu tivesse que ficar em pé vendo as flores voarem em minha direção.
10, 9…
Talvez fosse porque era uma festa de família. É, talvez fosse isso. Eu podia sentir o olhar de minha avó e de toda a sua prole sobre mim. Se eu pegasse o buquê, talvez conseguisse engatar em um relacionamento estável depois de um tempo. Se eu não pegasse, eles me dariam os tapinhas nas costas que eu já estava acostumada a ganhar e diriam que a minha hora iria chegar.
8,7…
O que é claro que iria acontecer. Quer dizer, não que um buquê fosse realmente mágico e fizesse o amor da minha vida cair do céu em meus braços, mas em algum momento eu sabia que ia encontrar alguém por quem valesse a pena construir alguma coisa. E não seria um caco como alguns dos meus ex-namorados...
6, 5...
Não, definitivamente o amor da minha vida não teria nada a ver com algum deles. Bem, ele poderia ter o físico do Alex, pelo menos... Um sorriso quis brotar em meu rosto ao lembrar das coisas divertidas que eu já havia feito com seu corpo. E a inteligência de Brody. Sim, alguém tão esperto quanto Brody com o corpo de Alex seria a minha perdição.
4, 3...
O quê?! Ok, foco, . Kate iria arremessar um simples arranjo de flores, não uma lâmpada mágica com algum gênio que pudesse realizar meus desejos. Até porque se fosse isso, eu estaria lá na frente, não atrás do amontoado de garotas.
2, 1...
— Pula, ! — Ouvi alguém gritar à minha esquerda e, súbita e inadvertidamente, virei o rosto em direção à voz. Questão de um segundo, no máximo dois. Quando voltei a olhar para frente, pude perceber que algo se movia rapidamente em direção ao meu rosto, então fiz a única coisa possível que meus reflexos me permitiram: guiei minhas mãos em direção ao meu rosto, sentindo o dorso delas bater em meu nariz. Algo macio bateu em minhas palmas e, mais uma vez, meus reflexos exerceram sua função, impedindo que o objeto ainda não identificado caísse. Nem consigo tentar definir a minha expressão de incredulidade ao abaixar o olhar e ver — e sentir — a maciez das pétalas amarelas levemente amassadas por minhas mãos, que até então eu nem sentia tremer. Os momentos seguintes pareciam ter acontecido em apenas um borrão. Eu podia ver toda a minha família, nos diversos cantos do salão, gritando e pulando de alegria, como se fosse a torcida do Brasil em clima de Copa do Mundo quando o time nacional ainda era bom. Ao meu redor, as outras meninas batiam palmas e me parabenizavam e eu ao menos consegui retribuir algum dos sorrisos antes que Kate viesse correndo em minha direção e me abraçasse. Reações exageradas, eu sei. Era como se eu tivesse ganhado um Oscar ou um Prêmio Nobel ou algo do tipo, mas eu apenas tinha segurado o buquê da noiva. Quer dizer, ele tinha caído nas minhas mãos. E, sufocada pelo abraço apertado de Kate, outra preocupação passou a assolar a minha mente. Existiria realmente uma benção do buquê na minha família ou eu estaria fadada a ficar sozinha pelo resto da vida e acabar com a tradição hereditária da minha bisavó?
De resto, a festa passou sem maiores emoções, a não ser pelo fato de que a cada dezessete minutos, mais ou menos, alguém vinha me parabenizar pelo ocorrido, e um novo tipo de constrangimento recaiu sobre mim. Uma tia-avó cumprimentou até os meus pais depois de mim! Acho que nem se eu tivesse ganhado na loteria eles ficariam felizes assim. Minha vontade agora era subir naquele palco e gritar em alto e bom som que, desde a última vez que eu chequei, eu ainda estava solteira. E era só um arranjo de flores, pelo amor de Deus. Tudo bem, não vou negar que a pontinha de esperança lá no fundo — bem no fundo — estava dando sinais de crescimento, mas ainda assim. Saí do salão de festas com a certeza de que nenhum príncipe passaria por mim em seu cavalo branco e se apaixonasse à primeira vista, porém extremamente feliz, confesso. Pegar aquele buquê de alguma forma tinha me despertado uma inquietação boa e, ao mesmo tempo, estranha.
Por mais bem resolvida que eu fosse, era inevitável não me imaginar, ou mesmo querer, alguém com quem partilhar um pouco da vida. Era chato ver todas as minhas amigas namorando, outras casando, outras já com suas famílias formadas. E, por mais boba que possa parecer, essa coisa toda do buquê realmente parecia funcionar na minha família, e seria no mínimo frustrante saber que, além dos relacionamentos completamente desastrosos que eu já tive, eu estragaria toda uma tradição, um aspecto peculiar da minha parentela. Mas pensar nesse lado me deixava tensa, então ignorei ao máximo esse tipo de pensamento e deixei que meu lado sonhador se manifestasse, passando a imaginar o que poderia acontecer se aquilo ali de fato tivesse alguma magia. E não vou negar, minha imaginação foi longe. Sonhar acordada com isso de alguma forma me animou ainda mais na caminhada de volta para casa, tanto que resolvi conectar os fones, que eu levava para literalmente todo canto, ao celular, dando play em uma playlist de músicas que me deixavam de bom humor.
Apesar do horário avançado, o evento tinha acontecido em um espaço relativamente perto do meu apartamento e meu bairro era bem tranquilo. Não seria a primeira vez que eu caminhava sozinha de madrugada na volta para casa, afinal de contas. Então, apertando o passo só por precaução e ao mesmo tempo cantarolando One More Time, do Maroon5, eu seguia para casa com as flores amarelas em uma das mãos, em um cuidado um tanto quanto excessivo. Talvez tenha sido o meu incrível bom humor, juntamente com a minha alegria e o volume alto da música em meus ouvidos, a falta de atenção no percurso ou apenas a maldita lei de Murphy querendo acabar com a minha euforia, mas subitamente senti um impacto no lado direito do meu corpo, que me fez cair de joelhos na calçada. O som parou de chegar aos meus ouvidos no exato momento em que algo passou raspando em meu braço, e pude ouvir um resmungo de dor mais adiante.
Olhei desacreditada para baixo: eu realmente estava no chão. Algo, ou melhor, alguém tinha batido em mim com algum objeto até o momento não identificado, mas que tomou forma assim que levantei a cabeça. Aparentemente, eu tinha sido atropelada por uma bicicleta. Inacreditável. Levantei sentindo meus joelhos arderem por estarem completamente ralados e ouvi um lamento novamente. Só então olhei mais à frente da bicicleta e, jogado de costas no chão, com uma das pernas flexionada e um braço no rosto, um homem se contorcia levemente e respirava com dificuldade.
Meu primeiro impulso foi dar um passo à frente a fim de socorrê-lo, pois ele parecia bem pior que eu, mas meu lado racional me fez estacar no lugar. Eram mais de 5h da manhã, a rua estava deserta e aquilo poderia muito bem ser um golpe ou alguma estratégia de sequestro, o que me fez calcular a distância restante entre o ponto em que eu estava até a porta do meu prédio. Se eu saísse correndo naquele exato momento, teria alguns segundos de vantagem até o ser humano entender o que estava acontecendo, levantar e correr atrás de mim, porém, por mais que eu não fosse sedentária e corresse pela manhã em alguns dias apenas por lazer, meus saltos me atrasariam consideravelmente, e o tempo que eu levaria para tirá-los dos pés seria o necessário para que o dito cujo me capturasse. Então, enquanto eu olhava para a rua perdida em meus pensamentos desastrosos, o homem deitou-se de lado, tirando o braço do rosto, permitindo-me ver um filete de sangue escorrer de sua sobrancelha. Por algum motivo, todo o meu receio se esvaiu naquele momento e minha maior preocupação era que o desconhecido poderia ter batido seriamente a cabeça. Antes de sequer pensar em qualquer outra coisa, me aproximei de seu corpo ainda jogado no chão e me abaixei.
— Moço do céu, você está bem? Seu rosto está sangrando! — Me aproximei mais e pude ver que, além do corte no rosto, ele tinha escoriações nos braços, e sua camiseta tinha rasgado perto da barra. Um belo tombo, que eu nem ao menos vi acontecer. Tirei minha bolsa do ombro e me inclinei mais, pegando seu braço e vendo os ferimentos ali. — Quer que eu chame uma ambulância? Você está todo lanhado, sério mesmo.
— Não precisa. São só alguns arranhões... Ai! — Sem querer, apertei em um dos machucados e ele gritou, me fazendo desequilibrar e cair ajoelhada. Senti meus olhos lacrimejarem instantaneamente assim que senti o impacto em meus joelhos já feridos, e arfei de dor. — Você se machucou?
— Um pouco. Menos que você. — Dei de ombros, sentando desajeitada na calçada a fim de olhar minhas pernas, que agora latejavam de dor. O estranho também sentou e, numa breve olhada para cima, percebi que ele também tinha seus olhos cravados nas minhas pernas, o que fez meu coração acelerar e eu me dar conta do que estava fazendo. A rua continuava deserta e agora eu estava sentada na calçada com um potencial assassino — ou pior — ao meu lado, pronto para me dar o bote a qualquer hora. Engoli em seco e levantei o mais rápido possível, ignorando a dor lacerante. — Não foi nada, mas obrigada por me atropelar com uma bicicleta. Uma bicicleta, pelo amor de Deus. — Revirei os olhos e catei a bolsa do chão, pendurando-a em meu ombro e comecei a me distanciar, retomando o caminho a passos apressados.
— Hey, quem mandou você se jogar na minha frente?!
— Como é?! — Parei no lugar e virei meu corpo, a fim de olhá-lo enquanto se levantava.
— Isso mesmo. — Deu de ombros. — Você estava perambulando pela calçada como se dançasse e se jogou na minha frente. Eu não tive culpa nenhuma.
— Com licença?! Caso você não tenha percebido, isso aqui é uma calçada — apontei para as lajotas no chão, indignada —, não uma ciclovia. A rua está deserta, quem mandou andar por aqui?
— Não é porque é calçada que é exclusividade de pedestre, gata. E eu não tenho culpa de você estar bêbada e não prestar atenção no caminho. Eu gritei duas vezes para você sair da frente, mas você não escutou, ou fingiu que não escutou. — Falou calmamente enquanto levantava a bicicleta. Pensei ter ouvido coisas, não era possível. Além de me atropelar com uma porcaria de bike, ainda por cima ele me chama de bêbada? E gata, tudo na mesma frase? E o tom de voz carregado de ironia que ele usava para falar comigo... Definitivamente, ele estava pedindo por mais um olho roxo.
— Escuta aqui, seu bicicleteiro de meia tigela. Em primeiro lugar, eu não estou bêbada. E não que eu lhe devesse satisfações, mas eu não ouvi chamado nenhum porque eu estava ouvindo música! Com fones! — Ergui a minha bolsa com raiva, onde o fio branco caía do zíper, já que o celular estava lá dentro. Minha raiva a essa altura era tanta que eu nem me dei conta de que gritava no meio da rua. O cara me olhou incrédulo por dois segundos e depois deu de ombros novamente, como se fizesse descaso de mim.
— Ouvindo música com fone de ouvido enquanto caminha sozinha a essa hora da madrugada, com esse vestido curto? Entendi agora. E o certo é ciclista, não “bicicleteiro”. — Fez aspas enquanto falou a última palavra e subiu na bike, ainda com um ar irônico de superioridade. Eu apenas abri a boca, sem acreditar no que meus ouvidos tinham acabado de captar.
— Argh! Quem você pensa que é para falar assim comigo? Você pensa que eu sou o quê? — Deixei o pouco de sanidade que ainda me restava de lado e caminhei em sua direção, me aproximando dele novamente. — Escuta aqui, não que eu tenha algo contra prostitutas, mas eu não. Sou. Uma. Está me ouvindo? Não te interessa o motivo pelo qual eu estou na rua, aliás, a rua é livre, a cidade é livre e eu sou livre para fazer o que quiser, onde eu quiser, vestida do jeito que eu quiser no horário que eu quiser. E eu estava de costas! Você estava me vendo a todo o momento e, mesmo assim, se recusou a descer com a bicicleta para a rua e preferiu me atropelar. Isso pode ter sido totalmente proposital! Eu poderia prestar queixa contra você, sabia? — Falei sem parar nem para respirar, com a raiva emanando de cada poro meu. Se eu fosse capaz de fuzilá-lo com o olhar, ele já estaria só o pó na minha frente. Em nenhum momento ele baixou ou desviou o olhar, pelo contrário, segurou firme no meu, sempre mantendo aquele arzinho de sarcasmo ao seu redor. Bufei de raiva, com vontade de esganá-lo, mas sabia que de nada adiantaria. Eu simplesmente não poderia atacá-lo do nada, por mais que a vontade fosse grande. Apenas tentei passar todo o meu descontentamento em meu olhar e me virei para ir embora, não sem dar a palavra final antes. — E eu falo como que quiser! — Abaixei as mãos que eu nem percebi que tinha levantado e segui meu caminho, bufando de raiva. Ainda pude perceber sua risada baixa atrás de mim, mas não lhe dei o gostinho de olhá-lo novamente. Não até que ele me chamasse de volta.
— Ei, esquentadinha. — Ri, incrédula. Não era possível que ele não fosse me deixar em paz até o último minuto. Decidi ignorá-lo e continuar andando, mas ele chamou mais uma vez, e mais alto. — Ei! Está ouvindo música de novo ou é surda mesmo?
— Que é, merda?! — Me virei também gritando, frustrada. Assim que vi a cor amarela nas mãos dele, gelei.
— Você deixou cair isso aqui. — Estendeu a mão na qual segurava o buquê em minha direção. Fiquei sem saber como reagir. Por um lado, me recusava a caminhar na direção dele novamente, mas, por outro, eu precisava pegar o buquê. Não sabia como eu tinha esquecido do arranjo tão fácil e agradeci mentalmente por ele ter me avisado, apesar de que não diria um “ai” em agradecimento. Vendo minha relutância, ele suspirou, descendo os ombros, e pedalou até onde eu estava, o braço ainda estendido em minha direção. Peguei o arranjo assim que fui capaz de alcançá-lo sem sair do lugar, tocando sem querer em seus dedos gelados, que me fizeram arrepiar por algum motivo.
Senti seu olhar curioso sobre mim e o encarei de volta, sem saber o que dizer e sem realmente querer dizer algo. Ele desceu os olhos para as flores e voltou ao meu rosto novamente enquanto eu continuava parada, sem expressão. Por fim, balançou a cabeça e se curvou novamente, voltando a pedalar, não sem antes murmurar um “obrigada, de nada” em minha direção. Virei constrangida, afinal, eu tinha uma educação que se prezasse e não faria mal agradecê-lo, no fim das contas, mas quando o alcancei com o olhar, ele já estava muito longe para que pudesse me ouvir. Dei de ombros então, voltando a caminhar até meu apartamento, segurando mais firme o buquê e sem ouvir música dessa vez.

***


Depois de zapear todos os canais da TV por duas vezes, tentar terminar de ler um livro e nem consegui cochilar. Passei a buscar em todos os armários algo que sanasse a minha fome; mais precisamente, minha vontade de doce. Em vão, porque o mais perto que cheguei foi um pacote já aberto de amendoins cobertos com chocolate, donos de uma aparência não muito agradável. Suspirei, derrotada por não achar nada que me agradasse. Precisava urgentemente fazer umas compras, pois doce não era a única coisa faltando em minha cozinha e, se eu quisesse sobreviver às férias, precisava me alimentar. Sentei novamente no sofá, completamente entediada. Era um pouco mais de sete horas da noite, a casa estava toda limpa e organizada, não havia roupas para passar, programação que me animasse e minha barriga roncava. Cogitei a possibilidade de jantar na casa de meus pais, mas logo a descartei. Eu já almoçava e passava a tarde lá todos os dias desde segunda, quando peguei férias, e hoje era sexta. Eu precisava de um dia só para mim, um dia para, teoricamente, não fazer absolutamente nada. No entanto, esse nada estava me matando aos poucos de tédio. Me lembrei de um barzinho no qual eu e alguns amigos da empresa costumávamos fazer um happy hour vez ou outra, mas a quem eu queria enganar? Minha disposição não me deixava nem ir à loja de conveniências uma quadra abaixo da minha casa, que dirá tirar meu pijama confortável do corpo para atravessar a cidade e encontrar alguns companheiros de trabalho, em plenas férias.
Suspirei novamente ao sentir meu estômago roncar e, na rapidez em que uma lâmpada se acende, uma ideia surgiu em minha mente. A conveniência! Lá com toda certeza teria algo que me faria acabar com aquele desejo louco e, melhor ainda, eu encontraria algo para tentar cozinhar um jantar decente. Apesar de não ter muitas habilidades na cozinha, preparar uma refeição com certeza me tiraria da monotonia que o dia havia sido. Um pouco mais animada, troquei o short que vestia por uma calça de moletom e joguei um casaco por cima da blusinha de alças de seda que fazia parte do pijama, apenas para não dar tão na cara que eu vestia pijamas. Calcei meus chinelos e ia passando por uma das janelas da sala quando meu olhar caiu sobre o arranjo amarelo devidamente posicionado no parapeito. Milagrosamente — ou naturalmente, já que eu não entendia nada de flores —, elas ainda estavam abertas e pareciam cheias de vida. Sem querer, lembrei que no dia seguinte faria uma semana que elas haviam caído em minhas mãos, como se me tivessem me escolhido, ou sido jogadas propositalmente em minha direção — fato esse que Kate negou até o fim.
Olhando o arranjo em dúvida, mas sem conseguir me conter, esfreguei o polegar em uma das pétalas da cor do sol, me sentindo tola no mesmo instante, porém quem poderia negar que ela talvez pudesse me dar sorte? Exceto que todo mundo poderia. Balancei a cabeça, saindo de vez do imóvel e descendo as escadas em direção à rua, torcendo para que, se o buquê realmente desse sorte, que essa sorte não recaísse sobre mim naquele instante. Moletom e chinelos com certeza não seriam o maior atrativo que chamaria a atenção de um possível pretendente. Por outro lado, ele me veria assim pelo resto da vida, portanto já seria bom ir se acostumando. Ri incrédula comigo mesma, balançando novamente a cabeça a fim de tirar aqueles pensamentos bobos da mente. A pequena loja se encontrava vazia, com uns dois clientes além de mim e o mesmo senhor de idade no caixa. Apesar de fazer algum tempo que não ia ali, eu costumava ser uma cliente assídua, visto que podia encontrar de tudo no pequeno estabelecimento.
Segui para o corredor dos doces e meus olhos imediatamente grudaram em um belo pote de sorvete guardado no freezer, piscando, como se esperasse ser pego por mim, depois de todo tempo, e eu não podia fazer essa desfeita. Joguei o pote em uma cesta que encontrei ali e voltei às prateleiras, pegando algumas barras de chocolate e alguns pacotes de bala. Em outro corredor, garimpei um pacote de macarrão, salsichas e algum vinho barato que havia ali, mas que era bom o suficiente para ajudar a engolir a massa. Fui lendo o rótulo procurando saber a data de fabricação enquanto andava em direção ao caixa quando alguém esbarrou em meu ombro, me fazendo bater em uma prateleira.
— Poxa, moça, me desculpa! Eu estava desatento, não vi você vindo.
— Tudo bem, sem problemas. — virei-me a fim de ver o desconhecido que me deu um encontrão. Sorri cordialmente, mas deixei o sorriso morrer lentamente enquanto o observava. Ele não era um completo desconhecido. Algo me dizia que eu já o havia visto alguns dias antes. Pude perceber que o mesmo pensamento passava por sua mente, já que ele franziu as sobrancelhas e passou a me analisar com seriedade, até que finalmente se pronunciou.
— Você de novo?! — Exclamou, e eu tive a confirmação que esperava. Com o rosto desinchado, os braços já sem arranhões evidentes e nenhum filete de sangue correndo da sua testa, pude reconhecer o bicicleteiro que havia me atropelado no sábado passado. Não pude deixar de notar o sorriso de lado, cínico, que me lançou enquanto me olhava. Rolei os olhos, frustrada. Duas agressões em menos de uma semana.
— Você vive atropelando as pessoas por hobby mesmo ou te falta algum parafuso? — Questionei, irritada, fazendo-o rir. Vi que ia falar algo de maneira descontraída, assim como seu riso, mas em uma fração de segundo sua expressão tornou a ser sarcástica.
— Eu definitivamente tenho alguns charmes, mas esbarrar nas pessoas não é um deles. Ainda não posso ser culpado pelo fato de você nunca olhar por onde anda. — Encarei-o sem expressão por três segundos quando desisti de fazer qualquer comentário, sabia que ele revidaria. Simplesmente o ignorei, andando até o caixa com minha cesta. Por incrível que pareça, o indivíduo veio atrás de mim. Comecei a depositar os itens na frente do senhor com certo incômodo, sentindo o bicicleteiro observar todos os meus movimentos. Em um momento ele se apoiou no caixa ao meu lado, sem fazer a mínima questão de esconder que me encarava. Quando meu olhar encontrou o seu, pude ver que ele sorria de lado, o cinismo ainda levemente presente. — Vejo que a sua sexta vai ser animada, hm?
— Certamente mais que a sua. — Olhei de seu rosto ao engradado de cerveja que ele tinha nas mãos e refiz o trajeto. Eu sabia que ele estava sendo irônico, mas mal sabia ele que dois podiam jogar esse jogo. Observei-o dar de ombros, fazendo cara de descaso.
— Quem sabe?! — Voltei a atenção aos meus produtos e os paguei, quase que arrancando as sacolas das mãos do velho homem à minha frente, tentando sair o mais rápido possível dali. Não estava com ânimo para ficar de conversinha à toa com um ser humano tão... indelicado, mas a vida não estava a meu favor naquela hora. Vi o indivíduo pagar as suas cervejas e sair da loja tão rápido quanto eu, antes de me chamar. — Ei, esquentadinha! Espera aí. — Virei-me novamente em sua direção, suspirando. Será que ele não podia me deixar em paz? Me atropelar por duas vezes já era suficiente, não precisava ficar me enchendo. Com certeza meu rosto estampava todos os meus pensamentos naquela hora, pois ele deu risada. — Sabe, você bem que podia ser mais alegrinha de vez em quando. Toda essa amargura faz mal. Ei, vamos começar agora? Eu estava indo naquele pequeno parque que tem ali pra baixo, sabe? Só passar o tempo. Vamos? — Ergueu o engradado com a mão direita e curiosamente um sorriso convidativo estampava seu rosto. Sem cinismo ou sarcasmo. Arqueei uma sobrancelha, ponderando o convite feito tão rápido, que nem tive tempo de retrucar e dizer que não era amarga. Balancei a cabeça, inexpressiva.
— Tenho coisas a fazer.
— Ah, qual é. Quer apostar dez pratas como eu sei que você não vai fazer nada essa noite além de se entupir de doce e tentar cozinhar um macarrão meia boca enquanto toma um vinho fajuto? — Tentei não demonstrar qualquer reação à sua fala, mas parece que meu rosto me entregou. Como ele adivinhou toda a minha programação noturna? Questionei-o com o olhar, vendo-o dar de ombros mais uma vez. — Você é previsível.
— Ei, eu não sou nada previsível!
— Você está de pijama na rua, flor. — Sem querer, abaixei o olhar para o meu moletom, e finalmente concordei de que de nada adiantava ter tirado o short. Corei instantaneamente, ainda que a cada minuto ficasse mais zangada com aquele cara. — Relaxa, também tô com roupa de usar em casa. Vamos?
— Eu nem conheço você.
— Eu também não conheço você. Mas tranquilo, lá tem uns moleques que costumam jogar bola nesse horário, a gente pode sentar lá para ver e continuar não se conhecendo, um do lado do outro. — Não era possível. Era um ser humano na minha frente mesmo? Como ele conseguia ser tão insistente? O céu já estava em sua maior parte escuro, e um ar gelado ameaçava cair. O certo a se fazer era eu dar as costas àquele rapaz e seguir caminho até o meu apartamento, torcendo para que nunca mais o encontrasse ao acaso novamente, mas, em vez disso, levantei as mãos para o alto, me rendendo. Suspirei derrotada e comecei a andar na direção oposta à minha casa, sem falar nada, percebendo o sorriso se alargar um pouco em seu rosto. O rapaz me respondeu um “vai indo que eu já te encontro!” e voltou para dentro da loja, me deixando sozinha. A ideia de que ele me deixaria plantada o esperando passou pela minha cabeça, mas ele não seria nem louco de fazer isso. Eu o mataria. De qualquer forma, continuei caminhando em direção ao parque, sem saber exatamente o porquê. Sem demorar muito, logo o vi se aproximar de mim montado em sua bicicleta, a mesma com a qual tinha me atropelado uma semana atrás. Dei risada, sem acreditar no que estava acontecendo.
— Quer dizer que ela está inteira?
— Para a sua sorte, sim. Nem arranhou a tinta nem nada, ao contrário dos meus braços. Mas, caso contrário, eu tinha feito você pagar a pintura. — Piscou, sorrindo, vendo-me responder com um revirar de olhos.
— Já te falaram que você é muito folgado? — Arqueei uma sobrancelha.
— Já te falaram que você precisa aprender a relaxar? — Ele devolveu, me fazendo fechar a cara novamente.
— Eu sei relaxar, não sou amarga. — Retruquei, mencionando o que ele havia me chamado anteriormente. Pude ver que ele segurou o riso. — Você que me tira do sério.
— É um dos meus dons. Vem, vamos sentar aqui. — Encostou a bicicleta em uma árvore onde a grama ao redor era mais baixa e amassada, como se o pedaço costumasse receber pessoas a todo o momento. Sentei ao seu lado olhando para frente, onde de fato algumas crianças jogavam bola em um campo de areia. Fora isso, o parque tinha alguns brinquedos para crianças e um longo gramado. Enquanto analisava o local que eu sempre passava em volta, mas nunca de fato havia prestado atenção, o homem ao meu lado remexia em sua sacola, mostrando um pacote consideravelmente grande de salgadinhos. Até então eu não havia notado, porém com certeza ele tinha comprado quando voltou à loja e me deixou andando sozinha por um tempo. Abriu o pacote e me ofereceu, junto com uma cerveja. Antes que eu tomasse um gole, ele me estendeu a mão em que segurava sua própria bebida. — Um brinde. — Sorriu fechado. Franzi as sobrancelhas, estendendo minha garrafa também.
— Um brinde? A quê, exatamente? — Questionei, observando seu rosto adquirir um ar pensativo. Por fim, deu de ombros, batendo as duas garrafas.
— Ao acaso, eu acho. — Sorriu, encarando-me, e não pude deixar de sorrir também. Tinha sido um bom motivo, afinal, e ele não precisou explicar para que eu entendesse. Seguimos tomando as cervejas e comendo o salgadinho em silêncio; de alguma forma, eu começava a apreciar sua companhia. Ainda olhávamos as crianças quando pensei em voz alta, após um menino magrelo perder um bom lance.
— Não acredito nisso. Acho que vou ter que ensiná-los a jogar. — Comentei baixo e alheia ao fato de que havia alguém ao meu lado. Senti seu olhar cair sobre mim no momento em que finalizei a frase.
— Você sabe jogar futebol? Duvido.
— Meu bem, eu era a melhor artilheira do meu colégio. É sério! — Completei quando o vi estreitar os olhos para mim. — E você, joga em que posição?
— Nenhuma — declarou, sorrindo, dando a impressão de que estava um pouco envergonhado.
— Não gosta de esportes?
— Gosto sim, mas prefiro vôlei a futebol, porque eu nunca aprendi a lidar com uma bola com os pés. Os caras sempre me chamavam para jogar quando eu estava na... — Parou abruptamente, franzindo as sobrancelhas, e voltou o olhar para frente. Uma expressão um pouco séria apareceu em seu rosto e, por sua demora, deduzi que estava escolhendo um jogo de palavras melhor para continuar a conversa, o que despertou me despertou certa curiosidade. — Eles sempre me chamavam, mas eu nunca ia. Portanto nunca aprendi.
— Que pena. Eu gosto de vôlei também. — Comentei, apesar de querer saber o que o havia feito mudar de ideia. Ele assentiu em silêncio, ainda assistindo os meninos no campo improvisado. Passei a olhar ao redor e lembrei do pote de sorvete em uma das sacolas. — Ah, droga, vai derreter tudo! Se ao menos tivéssemos colheres ao alcance.
— Não seja por isso. — Ele declarou, remexendo a sacola ao seu lado. Tirou dali duas colheres de plástico, e eu ri, sem entender.
— É um hábito seu carregar colheres por aí?
— Eu as peguei quando voltei na loja de conveniência. — Se explicou, me oferecendo uma e já atacando meu pote.
— Quer dizer que desde o início a sua intenção era filar um pouco do meu sorvete?
— Você ia demorar para voltar para casa e isso ia derreter de qualquer jeito. Digamos que eu apenas tinha esperança de que você quisesse comê-lo.
— Você é muito folgado. — Dei risada, sem de fato acreditar que ele tinha pensado naquele detalhe.
— Talvez. Come, anda. ‘Tá bom. — Deu mais uma colherada no pote e deixou o caminho livre. Ele tinha um sorriso leve no rosto, bem diferente dos momentos anteriores. Continuamos comendo até que passei a ficar incomodada com o silêncio.
— Você faz o que da vida?
— No momento estou procurando emprego. Passei um tempo afastado de tudo.
— Como num retiro?
— É. — Ele riu. — Mais ou menos.
— E como era lá? Era no meio do mato? Uma vez eu fui em um, mas foi coisa de um final de semana, mais ou menos. Achei que eu ia odiar dormir em barracas, mas no fim das contas foi uma experiência legal.
— Foi em um lugar totalmente diferente do seu. Só que eu não gosto de falar sobre isso. — Encheu a boca com uma quantidade que eu nem fazia ideia de que coubesse em uma boca humana. Quase fiquei irritada. Se ele não queria me contar coisas da sua vida, por que tinha me chamado para passar o tempo num parque? Desisti de esperar alguma resposta e voltei a olhar para frente, quando ele retomou o assunto. — E você? Faz o que da vida?
— Trabalho na empresa do meu pai. Sou formada em Ciências Econômicas.
— Não! — Me olhou como se eu tivesse dito um absurdo. — É sério mesmo? Não consigo te imaginar trabalhando em um escritório, lidando com números. Ei, talvez seja por isso que você é amarga assim!
— Eu não sou amarga! — Quase gritei, furiosa, o que arrancou gargalhadas do homem à minha frente. Cruzei os braços, largando o pote no chão. — Para a sua informação, eu sou formada nessa área porque eu gosto disso, de verdade. A área de exatas não tem nenhuma “cara”, é só se interessar por ela.
— Certeza que seu pai não te obrigou a cursar isso enquanto você queria fazer Moda, ou alguma coisa mais feminina?
— Você é ridículo. — Balancei a cabeça e arrumei a posição em que estava sentada, ficando quase de costas para ele.
— Ei, relaxa. Eu estava só brincando. — Ele pegou uma das minhas mãos, me fazendo virar novamente. Seu toque era suave e seus dedos estavam gelados, o que me fez arrepiar um pouco. — Você deve ser boa no que faz.
— Sou mesmo.
— Puxa, eu queria ser decidido assim. Você defendeu sua profissão com tanta segurança... Eu queria poder me encontrar em alguma área desse jeito algum dia. Poder fazer meu trabalho com gosto. — Seu olhar estava além de mim, e eu podia jurar que naquele momento ele se imaginava trabalhando em algo que gostasse. De repente seus olhos perderam um pouco do brilho e voltaram a focar em mim. — Mas, por hora, estou aceitando qualquer coisa mesmo. Qualquer bico que eu possa ser registrado e não morrer de fome já está bom.
— Ah, mas não é tão difícil assim hoje em dia. Você é formado no quê?
— Em nada.
— Você não fez faculdade? Um curso técnico? ‘Tá, mas você já trabalhou antes, certo? Deve ter recomendações. — A cada pergunta ele negava com a cabeça, sem me olhar, me deixando confusa. — Mas como você viveu até agora? Ah, ‘tá explicado. Seus pais são ricos e você passou a vida toda gastando o dinheiro deles.
— É o quê?! — Exclamou, dando risada de forma exagerada logo em seguida, enquanto eu não entendia o que havia dito de tão engraçado. — Você não tem noção nenhuma mesmo, não é? Mas não foi isso, apesar de eu querer muito.
— Dá para me explicar o que eu disse de tão engraçado? Não entendi. — Retruquei enquanto ele ainda ria devagar.
— Nada, deixa pra lá. Mas é, pode ser que não seja difícil alguém como você arranjar um emprego, só que ninguém quer dar um para alguém como eu.
— Alguém como você?
— Eu sou ex-presidiário. Aquele retiro que eu te falei era a cadeia. — Jogou a informação tão rápido, que eu achei que não tinha entendido direito. Agora ele me encarava como se quisesse ler em meu rosto qualquer reação que eu pudesse ter ao fato de que ele tinha passado um tempo preso. Engoli em seco, tentando ao máximo não demonstrar nada, mas com a mente a mil. Como na primeira vez em que nos encontramos, tentei calcular o tempo que eu levaria para correr até o local mais próximo e cheio de gente possível, porém desisti da ideia no mesmo instante. Tentei pensar positivo e acreditar que, se ele quisesse fazer qualquer coisa comigo, já teria feito.
— P-posso perguntar o motivo? — Pigarreei, sem saber ao certo se queria ouvir suas razões, mas fiquei levemente menos nervosa.
— Roubo.
— Primeira vez, ou...
— Que nada. Foi o que eu fiz a vida inteira. — Arqueei as sobrancelhas sem querer, surpresa. Ele falava com tanta naturalidade que parecia não se arrepender nem um pouco. — Só me pegaram uma vez, e me deixaram jogado lá por alguns anos.
— Foi grande? — Sem perceber, minhas mãos tremiam. Ele não exalava perigo nenhum, muito menos tinha um “ar” de ex-presidiário como eu achei que todos os caras que iam presos possuíam.
— Meu maior serviço. Eu e uns caras entramos numa companhia grande, mas planejamos mal. Dois fugiram, eu e mais um fomos pegos.
— E por que você roubava? — Questionei, vendo-o dar de ombros e fazer uma careta.
— Digamos que a gente não tem muita opção no lugar de onde eu vim. Eu não tive pai nem mãe, quem me criava era uma tia minha, e éramos em quatro na casa. Ela limpava casas, lavava e passava roupas, mas tudo por uma recompensa ínfima, que não era nem perto de ser suficiente para o aluguel de onde morávamos, nem para comermos e coisas do tipo. Quando se cresce em condições como essa, é impossível pensar que o trabalho “digno” seja melhor do que o trampo que aqueles caras que a minha tia sempre mandava eu ficar longe tinham. Para eles o dinheiro entrava fácil, com pouco esforço. O negócio era não ser pego e saber para quem repassar a mercadoria. Comecei a fazer isso criança ainda. Os caras viram que eu era bom e me ensinaram. Aprendi a levar objetos e tudo mais, além do dinheiro. Dependendo da semana eu tirava o suficiente para passarmos o mês inteiro, eu, minha tia e os filhos dela. Até o dia em que me pegaram, minha vida inteira tinha sido roubo atrás de roubo. Não me leve a mal, não me sinto orgulhoso em te contar isso, mas é o que eu sou. Ou melhor, era. Durante esses anos na cadeia, eu vi e ouvi muita coisa. Coisas que eu sabia serem possíveis, mas acreditava estar numa realidade muito distante de mim, quando elas estavam à porta, sabe? Só que eu estava enganado. Desde antes de eu ser solto, eu já tinha desistido dessa vida. Não queria mais manter o meu conforto fazendo mal às pessoas. Ainda não quero. Foi por isso que quando eu saí da cadeia vim para essa cidade, onde ninguém me conhece, procurar um emprego e uma forma de me manter bem, mas é difícil quando ninguém dá um voto de confiança a alguém que não tem experiência em nada e, ainda por cima, é ex-presidiário. — Finalizou, sorvendo todo o líquido da garrafa. Eu não sabia o que dizer e não conseguia imaginar nada do que ele havia me revelado. O choque de realidade foi tão grande; eu sempre tive conforto, comida na mesa, roupas boas, o que eu quisesse meus pais podiam dar, enquanto o cara na minha frente aprendeu a roubar desde criança para sobreviver, para poder comer e dar de comer à família.
Fiquei observando seus traços. Ele não me remetia em nada a um ex-presidiário. Era bonito, de certa forma; nada exagerado, mas bonito a seu modo. E era uma pessoa boa, ou pelo menos estava se esforçando para ser. Em nenhum momento percebi sua voz vacilar, e passei a acreditar que havia honestidade no que ele falava. Não sei explicar, porém algo pulsou dentro de mim para que fizesse alguma coisa por ele.
— Sabe, a empresa do meu pai está precisando de um funcionário. — Chamei sua atenção, recebendo seu olhar concentrado no meu. — Para limpeza, alguns concertos, office boy. Tipo um “faz-tudo”, sabe. Não sei, talvez você podia dar uma passada lá, caso se interesse.
— Isso é sério? — Perguntou, surpreso, os olhos arregalados.
— Se você quiser, é sim. Toma, anota o seu número no meu celular que depois eu te passo as informações certas. — Estiquei o aparelho em sua direção, vendo-o pegar ainda incrédulo.
— Sabe, eu não quero parecer interesseiro. Quer dizer, eu não tinha a intenção de te pedir um emprego quando te chamei para vir ao parque. Eu espero que você não ache que estou me aproveitando de alguma forma.
— Não se preocupe, não vou achar. — Sorri em resposta. Peguei o celular de volta, lendo seu nome no visor, só então me dando conta de que todo esse tempo estávamos conversando sem nos apresentar. — ... . — Estendi a mão direita em sua direção. sorriu, segurando-a e beijando o dorso em vez de simplesmente apertá-la levemente como eu esperava. Torci para que eu não estivesse tão vermelha quanto eu achava que estaria. Guardei o aparelho assim que ele me soltou, tentando pensar em algo que me deixasse menos desconcertada. — Mas então, , por que me chamou até aqui se não foi para tentar se aproveitar da minha bondade?
— Você tem espelho em casa, ?
— Tenho. Mas em quê isso responde a minha pergunta? — Franzi as sobrancelhas, olhando-o, confusa. então sorriu, de forma que eu ainda não o havia visto sorrir. Um sorriso de tirar o fôlego, apesar de eu não saber por que tinha achado isso. Deu de ombros, como se sua resposta não fosse de grande importância, mesmo me fazendo prender a respiração por alguns segundos.
— Você é linda.

***


— Ah, meu Deus. Agora mesmo que eu preciso conhecer esse cara! — Liv exclamou, assim que terminei de contar o motivo de ter ficado alguns anos preso e o elogio que ele havia me feito logo depois. Estávamos sentadas no jardim da casa de meus pais e eu lhe colocava a par dos meus encontros com ele na semana passada. — E ele é gato?
— Liv! Isso é tipo de pergunta que se faça? — Retruquei, corada. — Eu não reparei nessa parte.
— Ah, , não se faça de santa para o meu lado! Duvido que você não tenha reparado. Eu só queria saber se ele é bombado, cheio de tatuagens e com aquele corte de cabelo baixo e sexy. — Completou, fazendo-me rir da sua cara de boba. — Sabe como é, o estereótipo do presidiário. Ele tem um ar meio perigoso? Ou, quem sabe, selvagem?
— Lavínia , você está muito saidinha para o meu gosto! Deixa o papai ouvir você falando essas coisas.
— Ele nem vai ligar. Ele sabe que eu não vou poder me aproveitar disso, então pelo menos eu posso falar. Ao contrário de você, que sabe, mas não me dá informações suficientes para que eu possa pelo menos dar asas à minha imaginação.
— Você gosta mesmo de trazer esse assunto à tona, não é? — Deitei-me ao seu lado, colocando os braços no rosto a fim de me proteger do sol. — Ridícula.
— Ele está à tona, . Vocês que insistem em ignorá-lo. Sabe, todo mundo fica tão preocupado com isso enquanto eu estou tranquila, sendo que sou eu mesma que vou sofrer as consequências. Vocês têm que se acostumar também. Mas ei, o foco da conversa não era eu. Pode ir descrevendo o gato que eu vou classificando o grau de gostosura dele.
— Você é impossível, Liv. Eu nem parei para pensar nisso, na hora eu só fiquei chocada com o relato de vida dele e tal. Fiquei comovida, na verdade. — Resmunguei, ainda chateada pelo rumo que a conversa tinha tomado antes de voltarmos ao assunto principal. Suspirei, dando o braço a torcer. Não gostava de conversar sobre aquilo, por mais que o assunto nos rondasse o tempo todo e Liv estivesse certa. — Mas é, ele é forte, só que não bombado do jeito que você gosta. O cabelo é cortado baixo, de fato, e ele não tem muitas tatuagens, pelo menos não à mostra. Só reparei em uma no braço esquerdo, acho que era uma ave. Um falcão, talvez.
— É, eu posso trabalhar com isso. — Sorriu malandra, apoiando o queixo nas mãos. — E quando é que você vai vê-lo de novo?
— E eu sei lá?! Não é porque nos encontramos duas vezes que eu vou esbarrar nele a todo minuto.
— Mas você não tem o telefone dele? Por que não o chama para sair?
— Porque eu acabei de conhecê-lo, Liv. Não vou ficar em cima dele o tempo todo e, mais ainda, não vou começar a imaginar coisas e me iludir.
— Mas você pegou o buquê, ...
— Aquilo é só um arranjo de flores. Não venha me atazanar com isso você também. — Proclamei, irritada, virando de bruços.
— E no mesmo dia esbarrou com alguém na rua...
— Liv.
— E de novo... e ele acha você linda...
— Para.
— Só quando você parar de frescura e aproveitar o que a vida está de dando nas palmas das mãos. Me prometa uma coisa.
— O quê?
— Assim que você parar de ser fresca, me prometa que vai me dizer se ele é bom de cama no dia seguinte ao que acontecer.
— Lavínia! — Gritei, exasperada, ficando em pé no mesmo momento. Liv se contorcia enquanto ria. Eu mal conseguia processar o que ela havia dito. — Você é ridícula!
— Ah, não diga que não quer, ! Faz quanto tempo que você está na seca? Quase um ano? — Continuou a rir, fazendo-me sentir meu rosto mais quente a cada segundo. Estava pronta para retrucá-la pela petulância, quando Liv começou a tossir forte, sem conseguir parar. Corri para dentro de casa e gritei por alguém que a trouxesse água, sua tosse parecendo piorar a cada segundo. Em uma leve pausa, Liv respirou fundo duas vezes e achei que a crise tinha passado, quando ela voltou a tossir mais ainda. Assim que um dos empregados chegou com um copo de água, Liv fez menção de pegá-lo, mas logo se curvou em direção ao chão, cuspindo um pouco de sangue. Engoli em seco, preocupada. Fazia tempo que não via aquilo acontecer. Resolvi levá-la para dentro assim que a tosse aliviou, e segui empurrando sua cadeira.
— Faz tempo que isso voltou a acontecer? — Ela negou com a cabeça.
— Agora de verdade, . Você acha que não tem nenhuma chance de ele ser a pessoa certa? — Questionou, com a voz fraca.
— Eu não faço a mínima ideia, Liv. Como eu disse, nós acabamos de nos conhecer. Eu o achei bonito e tal, mas seria necessário mais do que isso. Sem contar que agora que ele está construindo a vida dele... Para ser sincera, ele parece sem rumo, meio perdido, sabe?
— E qual o problema de se perder junto com ele? Já cansei de falar que você vive a vida muito à risca, . Você não aproveita nada.
— Eu só não quero me iludir, Liv. Cansei de passar pela mesma coisa sempre, mesmo com caras diferentes.
— Você nunca vai saber se não tentar.
— Nós estamos mesmo tendo toda essa discussão por um cara que eu conheci há uma semana? — Lembrei, tendo uma risada fraca em resposta.
— Estamos. O buquê não erra, .
— Pare de falar nessas flores. Eu não vou criar nenhum sentimento pelo . Nem sei se vou vê-lo novamente algum dia. — Comentei, sentindo um aperto no peito, de alguma forma. Não sabia a razão, mas decidi ignorar.
— Soube que o papai fez questão de entrevistá-lo na companhia, já que ele foi indicação sua.
— Sim. — Concordei, lembrando que logo na terça-feira seguinte ao sábado que nos encontramos, meu pai chamou para conhecê-lo.
— Soube também que papai gostou dele.
— Ah, é?
— A ponto de contratá-lo. — Parei de empurrá-la de súbito, involuntariamente. Circundei sua cadeira a fim de olhá-la nos olhos para ver se ela não estava tirando uma com a minha cara.
— Ele contratou ? Sério?
— Uhum. — Liv balançou a cabeça animada, me olhando com os olhinhos brilhando. — Parece que você não vai ficar muito tempo sem vê-lo, na verdade. Ah, um amor nascendo dentro de uma empresa. Qualquer lugar é propício, não é mesmo? — Comentou, recostando-se na cadeira, fingindo um ar sonhador que eu sabia que ela não tinha. Revirei os olhos, voltando para trás dela.
— Desista, Liv. Eu não vou criar expectativas. Não vou me apegar a uma hipótese. — Finalizei, desejando de alguma forma que isso fosse verdade, ainda que minha mente me levasse a todo o momento ao arranjo amarelo no meu apartamento.

***


Criar expectativas? É claro que eu não criaria. Jamais. Exceto que... sim, eu estava criando muita expectativa, eu estava a ponto de doar expectativas a quem quer que desejasse. E não era em vão; pelo menos eu pensava que não era. Assim que minhas férias terminaram e eu passei a frequentar o prédio da empresa novamente, era inevitável encontrar com pelos corredores, pelas salas, nos elevadores. Sempre conversávamos, às vezes em assuntos banais, às vezes em temas mais sérios. Sempre que me via, me recebia com um sorriso tão encantador que era impossível não tentar retribuí-lo da mesma forma, e a cada dia o sorriso parecia aumentar. Também saímos para almoçar juntos de vez em quando, eu o convidava para ir em alguns happy hours comigo e alguns membros do meu setor e, em algum momento, tudo desandou. Eu não conseguia mais controlar o que eu pensava, ou sentia. Cheguei a um ponto em que, assim que eu colocava os pés dentro do meu local de trabalho, meus olhos involuntariamente esquadrinhavam todos os cantos possíveis de todo caminho que eu passasse até chegar em meu escritório e, se eu não o encontrasse, algo dentro de mim se remexia em desgosto. E isso era a todo o momento. Era sair da minha sala e procurar por ele, porque eu sabia que se ele estivesse no mesmo ambiente que eu, ele também estaria me encarando; eu sabia que assim que meus olhos encontrassem os dele, aquele agito estranho em mim seria acalmado com o sorriso que ele direcionava só a mim.
Eu me sentia patética; na verdade, eu estava sendo totalmente patética. Mas era algo que eu já havia perdido o controle. O que me frustrava, porque, sejamos francos, eu já me imaginava fazendo muito mais coisas com do que apenas trocar olhares e sorrisos por aí e, por mais que em alguns momentos ele parecia querer me dizer algo, mas sempre acabava mudando de ideia, às vezes eu pensava que era tudo coisa da minha cabeça. Apesar disso, alguns colegas sempre comentavam o quanto nós parecíamos próximos, e em como ele parecia ter um interesse em mim. Eu queria dizer que era recíproco, mas não arriscaria falar nada antes que ele me desse pelo menos um sinal que confirmasse as hipóteses. Para piorar, as benditas flores no meu apartamento pareciam estar cada vez mais amarelas, com seus miolos mais escuros; a cada vez que eu entrava em casa sorrindo feito boba, era como se de alguma forma elas ganhassem mais vida. Eu só podia estar ficando louca. Precisava me lembrar de pesquisar quanto tempo girassóis costumam viver em arranjos para que eu parasse de imaginar besteiras, porém isso ficaria para outra hora. Agora eu só tinha que controlar meus pensamentos para não correr o risco de fazer ou falar alguma besteira; tarefa bem difícil quando o perfume de se propagava por todo o interior do meu carro.
— Tem certeza de que isso é uma boa ideia, ? Quer dizer, eu sou só um funcionário, não quero que seu pai pense que estou ultrapassando algum limite, ou algo do tipo. — Comentou ele novamente, sentado ao meu lado no banco do carona.
, eu já disse que está tudo bem. Primeiro que meus pais não estão em casa, segundo que mesmo que eles estivessem, nenhum deles ligaria. Eu só preciso pegar uns documentos, é rapidinho. Vamos? — Passei os portões da mansão, dirigindo até a porta de casa. Desci do carro sem pegar nada e vi relutar, mas finalmente abrir a porta para descer. Segui ao escritório de meu pai enquanto ele ficou na sala, olhando o jardim através das janelas.
— Essas porções só de terra. São flores?
— Sim. — Aproximei-me dele. O sol estava se pondo e, estrategicamente, as janelas da sala haviam sido projetadas para captarem as cores do crepúsculo, e a claridade que entrava pelos vidros iluminava o rosto de . Seus olhos adquiriram um tom mais claro e, merda!, ele estava mais lindo do que nunca. Desviei o olhar para o jardim, ao espaço em que ele mencionara. — Girassóis.
— São bonitos. Algum motivo em particular?
— Minha mãe gosta. — Dei de ombros; em nenhuma hipótese confessaria a que o real motivo de minha mãe ter plantado aquele tipo específico de flor seria uma superstição boba da minha família. Até porque eu teria que dizer que ele era a única pessoa diferente que eu havia conhecido até agora e, como dois mais dois são quatro, agora não só Liv, mas também meus pais acreditavam que realmente era o “prometido”, ou coisa do tipo. Não, isso estava fora de cogitação. Fiz menção de me retirar dali quando percebi me olhando de forma estranha, engraçada, até, com um pequeno sorriso surgindo em seus lábios. Arqueei uma sobrancelha, desconfiada. — Nós podemos caminhar um pouco pelo jardim. Você parece gostar de ambientes ao ar livre.
— Não. Quero dizer, sim, eu gosto. Mas não era isso que passava pela minha mente. — deu um passo em minha direção, aparentemente sem saber como agir. — Droga, , você me faz perder toda e qualquer linha de raciocínio.
...? — O encarei curiosa, enquanto ele colocava as mãos no rosto, virando-se novamente para a janela. Balançou a cabeça, antes de me olhar.
— Você me distrai, . Seu jeito, sua beleza, tudo em você. E era isso que eu estava pensando. — Falou como se não fosse nada demais, mas na mesma hora em que eu me desarmei, achando que ia derreter com suas palavras (patético, eu sei), uma coragem súbita me tomou. Eu estava cansada dessas palavras jogadas ao vento, de trocas de olhares quaisquer, de joguinhos. Eu sempre fui do tipo “ou é oito, ou oitenta”, no entanto, de alguma forma, tinha um efeito completo em mim, deixando-me sem ação, porém eu já estava farta. Não conseguiria ficar nessa por muito mais tempo.
, o que você quer dizer? E eu pergunto, literalmente, o que você quer dizer? Porque você vive me dizendo coisas desse tipo, e quando eu olho para você, você está sempre me olhando. E você sorri, e abre as portas para mim, e me trata tão bem, e ao mesmo tempo em que parece que você só está sendo gentil, sendo a boa pessoa que você é, parece que há algo a mais, algo que eu tento interpretar, mas não consigo. Porque você não me dá um sinal, uma abertura, não toca no assunto, e eu não sei o que fazer! — Exclamei, exasperada. me olhava perplexo, e eu temi ter sido totalmente invasiva e estar errada. Arrumei a postura e o encarei, decidida. — Eu sinto algo a mais por você, . Não sei o que é, não posso explicar, mas é algo bom. E de alguma maneira você me dá a impressão de que isso é recíproco, só que, se não for, essa é a hora de você me dizer a verdade. Por favor, se eu estou sendo louca e vendo coisas onde não há, me diz agora. A gente pode esquecer esse assunto e seguir em frente, e eu prometo a você que nunca mais toco no assunto, ou começo a agir diferente. Mas eu não aguento mais essa dúvida, , esse vai ou não vai. Me diz alguma coisa.
ainda me encarava estagnado, com o queixo minimamente caído. Ele parecia estar absorvendo as minhas palavras e tentando entender tudo o que eu havia dito, e eu já estava a ponto de desistir e ir embora, deixando-o para trás, quando alargou seu sorriso, bem devagar. Colocou as mãos nos bolsos da calça e mordeu o lábio, diminuindo o espaço entre nós. Eu fazia uma força imensa para não perder o raciocínio de vez e fazer algo que pudesse me arrepender mais tarde, enquanto uma parte do meu cérebro insistia em me dizer que eu havia sido tola e não sentia nada por mim, e, pela demora, não sabia como dizer sem me magoar. Então, quando fiz menção de retomar a palavra, ele colocou um indicador sobre os meus lábios, de leve, posicionando-se a uma distância perigosa. riu mais uma vez, o que já começava a me irritar, antes de abrir a boca.
— Impulsiva. Destemida. Corajosa. Isso são apenas algumas das qualidades que eu tanto admiro em você, . E eu me sinto um idiota agora, ao pensar que eu poderia ter passado todo esse tempo mais perto de você, te descobrindo melhor, nos descobrindo melhor. — Começou a passar os dedos levemente sobre a minha bochecha, ao passo em que seus olhos percorriam toda a extensão do meu rosto. — É recíproco, . Eu também não sei nomear, muito menos descrever o que acontece dentro de mim toda vez que alguém menciona o seu nome perto de mim, e essas sensações são multiplicadas por mil todas as vezes que eu te vejo, que eu te sinto do meu lado e tudo o que eu mais quero é te ter nos meus braços; e eu juro que tentei confessar isso a você inúmeras vezes, mas toda vez que eu tentava, algo me impedia. Algo que agora eu consigo nomear; pelo menos isso. Eu sentia medo. Sentia receio de te contar como me sentia, porque eu não sou digno de você, . Eu não tenho muito a oferecer além do meu afeto, e dos meus sentimentos doidos, e apesar de eu ser doido por você, você merece alguém bem melhor que eu. Não sou o seu cara ideal.
... Eu já desisti de esperar esse tal cara “ideal” há muito tempo. — Balancei levemente a cabeça, segurando a mão que ainda estava em meu rosto. Sorri, querendo dizer mil coisas, mas sem saber exatamente por onde começar. — Alguns já passaram por mim com esse título e se mostraram totalmente o oposto. Não te dou esse direito de decidir o que é melhor para mim, não ainda. E eu não peço por nada além do que você pode me dar. Afeto, sinceridade, seus sentimentos reais. É isso, . O que você topar, eu topo.
Sorri, aliviada por enfim poder dizer tudo o que queria dizer há várias semanas, e mais aliviada ainda por finalmente saber que ele também sentia algo por mim e não era coisa da minha cabeça. Eu sentia minhas pernas tremerem e um frio intenso na barriga; uma sensação incrível corria por meu corpo. sorriu em resposta, descendo a mão de meu rosto para a minha nuca enquanto a outra segurava minha cintura, acabando com a distância de nossos corpos. Sem delongas, aproximou seu rosto do meu e finalmente, finalmente!, pude sentir seus lábios nos meus, me beijando com ternura no início, para lentamente passar a expressar todo o desejo reprimido durante algum tempo. Talvez fosse clichê falar isso, mas eu conseguia sentir toda a intensidade da sua paixão, e tentava ao máximo retribuir à altura, deixando meus sentimentos conduzirem minhas ações. Naquele momento, não havia razão nenhuma, nem cérebro nenhum que pudesse tentar me impedir de fazer aquilo. Assim que meus pulmões começaram a arder levemente em busca de ar, se afastou, apenas o mínimo para que pudesse me olhar nos olhos. Ele sorria a todo instante, com uma expressão abobalhada, que eu garanto que também era a minha. Seus lábios estavam levemente inchados e seus olhos tinham um brilho intenso.
— Você tem certeza disso, ? Você quer ficar comigo mesmo?
— Eu não sei aonde isso vai nos levar, . Deixa eu me perder com você. — Dei de ombros. Ele sorriu de canto, me beijando novamente, sem tanta pressa como o beijo anterior. — Ei, o que acha de você jantar lá em casa essa noite? Podíamos pedir algo para comer e passar um tempo juntos.
— Acho ótimo. Se eu já acreditava que seu pai não gostaria de saber que eu, como funcionário, estava entrando na casa dele sem um devido convite, me pergunto o que ele não faria caso descobrisse que eu dei uns amassos em você na sala de estar. — Comentou, risonho, no caminho para o carro. Um de seus braços estava ao redor dos meus ombros, e nossas mãos, entrelaçadas.
— Bom, eu acho que ele vai ter várias ocasiões para se acostumar com a ideia. — Sorri, e me beijou na testa. Sem que eu pudesse um dia imaginar, a realidade estava se mostrando muito melhor que as minhas expectativas.

***


Eu ajeitava meu arranjo de girassóis na mesa do café da manhã, esperando a cafeteira terminar seu trabalho, enquanto ouvia cantar no chuveiro. Estávamos em meu apartamento, alguns dias depois de finalmente colocarmos as cartas na mesa em relação ao que sentíamos, e, até então, nenhum momento da minha vida tinha sido tão bom quanto aquele que eu estava vivendo. Se me perguntassem antes, eu jamais diria que um relacionamento pudesse oferecer tamanha plenitude, mas ali estávamos nós. A cada dia mais próximos, mais confidentes, e eu podia afirmar sem medo de errar que estava completamente apaixonada por . Eu sentia que ele me completava de alguma forma, porém não como se eu não fosse ninguém sem ele, não; ele me fazia uma pessoa melhor, como se me transbordasse com o seu afeto por mim, e eu esperava que ele se sentisse da mesma forma que eu, pois até o momento eu desconhecia sensação melhor.
Minha família já estava sabendo que estávamos juntos, não com rótulos, mas juntos, e alguns amigos próximos também. Ninguém nos colocava pressão, e podíamos curtir esse momento só nosso onde quer que estivéssemos. Como para me trazer de volta à realidade fora dos meus devaneios, ouvi meu celular tocar e o volume ficar mais alto, à medida que se aproximava da cozinha com o aparelho em mãos. Agradeci-o com um selinho e visualizei três novas mensagens de minha mãe. Uma delas era uma foto de Liv na cama de um hospital, com fios coloridos saindo de sua pele e a ligando em algumas máquinas que estavam ao seu redor. Apesar de pálida e mais magra, Liv fazia uma careta para a câmera, mantendo sua expressão animada de sempre. Suspirei abatida, sentindo se posicionar atrás de mim, segurando em minha cintura. Recostei-me em seu peito, com ele afagando meus cabelos.
— O que exatamente a Liv tem, ? — Eu já havia mencionado que a Liv era doente, mas nunca havia dado detalhes do seu problema. Senti a garganta apertar; eu odiava ter que explicar aos outros como a minha irmã não era saudável, mas virei-me de frente para .
— Câncer. Desde os seis anos. — Imediatamente minha voz ficou embargada, e entrelaçou nossas mãos, mostrando apoio. Respirei fundo, a fim de lhe dar a explicação completa. — É um caso raro, os médicos nunca conseguiram chegar a uma conclusão concreta, isso que ela é tratada por um time dos melhores oncologistas do mundo. Eu não gosto de ficar comentando o tanto de dinheiro que meus pais têm, mas eles sempre viajam com a Liv em busca do melhor tratamento, da melhor opinião médica, só que de nada adianta. Dinheiro não compra saúde. — Sorri fraco. — Quando ela era criança, o tumor não era tão agressivo e não a debilitava tanto, mas conforme ela vai crescendo, o tumor também vai ficando mais forte e cada vez mais os recursos vão acabando. Há dois anos, ela perdeu totalmente a mobilidade das pernas. Estudos novos são feitos periodicamente, porém, de um tempo para cá, as mãos dela também começaram a atrofiar. Nada mais tem efeito, ela já está tomada por metástases no corpo inteiro, a maior parte do tratamento dela agora é constituída apenas por medicamentos para alívio das dores, porque não há mais nada a se fazer. E, há uns três meses, algumas células cancerígenas voltaram a se manifestar no pulmão dela. Ela vai fazer dezessete anos daqui três meses, mas, a cada dia que passa, ela está mais fraca. A piora dela é visível, sabe? Eu já perdi as contas de quantas vezes já pensei isso, mas eu acho que dessa vez ela não escapa. — Nem percebi o momento em que comecei a chorar, entretanto meu rosto se encontrava totalmente molhado quando pausei minha fala. Peguei o celular novamente, mostrando a foto recente. — E a danada está sempre assim, olha. Sempre alegre, na medida do possível. Pouquíssimas vezes eu vi Liv perder o entusiasmo por causa da doença, na verdade ela sempre fala que a gente sofre demais por ela, sendo que é só ela quem sente as dores e passa pelos processos. Ela é um exemplo de vida. — Minha voz falhou, completamente embargada. não falou nada, simplesmente me abraçou forte enquanto eu soluçava, molhando sua camisa.
Os últimos meses não estavam sendo os mais fáceis para a minha irmã, e todos os dias eu era assombrada por uma preocupação constante e um medo irracional de receber uma ligação com a confirmação. A minha vida e a vida de meus pais giravam em torno da de Liv e, por mais que eu esperasse a notícia a qualquer hora, não estava nem um pouco preparada para perdê-la de vez. continuou afagando minhas costas por longos minutos, em silêncio. Por mais infeliz que eu estivesse nessa parte, eu estava completamente feliz por tê-lo ao meu lado, por saber que poderia conversar e demonstrar meus medos sendo totalmente sincera, pois tinha a certeza de que ele ouviria.

***


se remexia nervoso ao meu lado, constantemente ajeitando a gravata atada ao seu pescoço. Meus pais estavam de volta à cidade e nós subíamos de elevador em direção à cobertura do prédio central da companhia, onde semestralmente meu pai organizava uma pequena festa restrita a funcionários do alto escalão da corporação e alguns dos sócios mais benquistos por ele. Pela primeira vez eu levava a um evento daquele porte; apesar de estarmos namorando há alguns meses, eu também não era muito fã desses encontros, mas dessa vez era necessário. já estava totalmente familiarizado com os meus pais e Liv, inclusive havia participado de alguns almoços de domingo com a maioria dos meus parentes presentes, portanto era hora de apresenta-lo socialmente também.
— Pare de mexer nessa gravata, . Eu já disse que está boa.
— Eu só não consigo me acostumar. — Coçou o pescoço, ainda mexendo na peça. — Não me lembro de uma única vez que eu usei uma gravata de tecido, as gravatas que estávamos acostumados a ver na cadeia eram bem diferentes. — Comentou, puxando-me para si. Tentei segurar o riso, em vão.
— Vai dar tudo certo. Você está lindo.
— Eu acho que o pessoal não vai gostar de mim.
— Ora, por favor, . Você é incrível. Mas se alguém não gostar, pode deixar que eu gosto por todos eles. — Abracei-o pelos ombros, selando nossos lábios, no exato momento em que as portas do elevador se abriram, revelando quase uma centena de pessoas vestidas impecavelmente, a maioria com taças de champanhe na mão.
Uma melodia suave ecoava pelo salão, as pessoas conversavam baixo, em pequenos grupos e alguns mais importantes transitavam pelo espaço. Segurei no braço de e sorri, o encorajando. Alguns funcionários passavam por nós e nos cumprimentavam, mas nenhum chegou a puxar assunto conosco, fato que agradeci mentalmente. Eu mostrava a as figuras mais importantes dali e dava uma breve biografia, só para que ele não ficasse tão perdido caso algum deles viesse de conversa para o nosso lado. O desconforto de era visível e eu comecei a achar um pouco estranho, mas relevei. Pelo menos ele estava se esforçando, ainda que pouco. Olhei por cima de seu ombro e pude ver Mateo Rodriguez vindo em minha direção, em um momento em que eu definitivamente não estava disposta a dialogar com ele. Talvez nunca estivesse, afinal. Mateo era arrogante e prepotente, e sempre que nos encontrávamos, ele conseguia me tirar do sério de alguma forma.
— Ora, se não é a belíssima . Como sempre, tirando o fôlego de todos ao seu redor.
— Senhor Rodriguez. — Estendi a mão direita, sorrindo cordialmente. Mateo segurou-a por um tempo maior que o necessário, com firmeza.
— Ah, , sabe que não sou apegado em formalidades. Até porque temos a mesma idade. Não há necessidade de me chamar de senhor. — Piscou, sorrindo de canto. Puxei minha mão sem muita delicadeza, imediatamente sentindo se impor ao meu lado, abraçando-me pela cintura. Mateo o olhou de alto a baixo, com a sobrancelha arqueada. — O que eu não pude deixar de perceber essa noite, minha querida , é que você está um pouco afastada dos demais. Guarda-costas novo? — Indicou com um movimento de cabeça. Respirei fundo para não mandá-lo à merda, como eu gostaria, no entanto, antes que eu pudesse responder, tomou a frente.
. Namorado da . — Estendeu a mão para cumprimentá-lo, encarando-o firmemente. Mateo arqueou as sobrancelhas, surpreso.
— Namorado? Uau. Fazia muito tempo que eu não via apresentar alguém com esse título. Parabéns, garotão. Quando é o casamento? Vai me convidar, né, ?
— Nós não estamos noivos, Rodriguez. — Revirei os olhos. Mateo nunca deixava de ser inconveniente.
— Ainda não? Qual é, amigão. Um cofre desses não dá pra deixar passar, tem que amarrar de uma vez! — Deixei meu queixo cair, ultrajada diante de uma suposição tão idiota.
— A mim não importa qualquer bem material que tenha, Mateo. Eu a namoro porque a amo, e não tenho nenhum interesse em qualquer outra coisa. — proclamou, sério, fazendo-me sorrir com orgulho. Entrelacei nossas mãos, colando seu corpo no meu. Eu não poderia ter ganhado alguém melhor. Ainda tentando estragar a nossa noite, Mateo começou a gargalhar exageradamente, chamando a atenção de algumas pessoas ao nosso redor.
— Ah, . Essa foi muito boa. Sabe, não é porque eu não trabalho na que eu não fico sabendo das novidades... e ser informado de que a herdeira da fortuna assumiu um romance ridículo com um faxineiro, isso sim foi inacreditável. Diga-me, você vai passar um bom tempo limpando esse chão depois que todo mundo for embora, não vai?
— Mateo! — Exclamei, indignada, prostrando-me na frente de , sentindo seu corpo enrijecer. De todas vezes em que tinha o desprazer de conversar com Mateo, ele nunca havia sido tão ridículo como agora.
, qual é. Eu só estou zoando com o grandão aqui — Tomou um gole da bebida que segurava, ao passo em que eu me concentrava para não pular em seu pescoço. — Falando em zoar, você sabia que o Jason está aqui? Ele já voltou das férias na Grécia. Eu me pergunto o que ele deve pensar desse seu namoradinho.
— Nos poupe desse desfavor, Rodriguez. Você e Roggers são dois ridículos que ainda não saíram da pré-adolescência. — Ignorando-me, Mateo ergueu o braço, chamando a atenção de Jason, que começou a caminhar em nossa direção. No mesmo instante, senti o aperto de ficar mais intenso em minha cintura. Procurei olhar em seus olhos e vi seu rosto pálido, de um jeito que nunca havia visto antes.
— Jason Roggers... como em Jason Roggers Corporation? — Ele questionou, ainda observando o outro homem andar até nós.
— Sim. Esse mesmo. É o filho dele, na verdade. Idiota como Mateo, talvez até um pouco mais.
, vamos embora. Agora. — Franzi as sobrancelhas, olhando-o, confusa, porém antes que eu fizesse menção de perguntar, Jason chegou à rodinha. O aperto de agora começava a me machucar.
— E os boatos se confirmam! — Gritou, parando na nossa frente. — Eu esperava mais de você, . Muito mais... Eu te conheço. — Eu já ia retrucá-lo, dizendo que ele nunca havia chegado nem perto de me conhecer realmente, quando percebi que a última frase não havia sido direcionada a mim. Jason encarava fixamente e não havia dúvidas em seu tom de voz. Jason estava afirmando que conhecia meu namorado, o que era ridículo. Eu não conseguia pensar em nenhuma ocasião em que os dois pudessem ter se encontrado antes da situação presente. Eles faziam parte de mundos completamente diferentes. — Como disse que se chamava, mesmo?
— Não disse. — Decidi intervir. — Jason, esse é o meu namorado, , e é impossível vocês já terem se conhecido.
... — Resmungou atrás de mim, me fazendo virar. Seus olhos tinham uma expressão misturada de medo e raiva, enquanto Jason foi perdendo o sorriso que mantinha no rosto, cerrando a mandíbula. Sua face adquiriu uma expressão horrenda de raiva, e pude ver a cólera saindo de seus olhos.
— Seu filho de uma puta, miserável! — Jason avançou para cima de , me fazendo gritar surpresa. Por pouco não caiu, mas Jason continuou a empurrá-lo com força. — O que pensa que está fazendo aqui, seu merda? Pensa que eu esqueci essa sua cara de lixo?
— Jason, você ficou louco? — Entrei no meio dos dois, empurrando Jason para longe. Todos os presentes no salão pararam para ver o movimento, e meus pais seguiam em nossa direção, acompanhados de alguns seguranças. — O que deu em você?
, vamos embora. — aproximou-se de mim, segurando em meu braço, mas logo foi afastado. Jason deu-lhe um soco no rosto, fazendo-o desequilibrar-se.
— O que está havendo aqui? Vocês ficaram loucos? — Meu pai gritou, assim que chegou ao nosso lado.
— Esse cara é um lixo! . Ele foi um dos caras que entraram no sistema da empresa do meu pai alguns anos atrás, vocês lembram? — Jason gritou em alto e bom som para quem quer que estivesse no salão pudesse ouvir. Prendi a respiração, incrédula. já havia mencionado como a empresa em que ele fora pego era importante, e que eles haviam tirado uma boa quantidade de dinheiro dela, mas nunca me dissera o nome da companhia, e eu nunca poderia sequer imaginar que seria uma das maiores companhias da cidade e a maior sócia da companhia do meu próprio pai. — Você acha que eu iria esquecer o seu rosto, seu verme? — Jason partiu para cima de novamente, mas dessa vez foi impedido pelo meu pai.
— Jason, vamos com calma, garoto. Com certeza há um mal-entendido.
— Não há mal-entendido nenhum! Calma? Esse imbecil está se aproveitando da sua filha e você me pede calma? Tenho certeza de que isso é só mais um golpe, claro, aproximar-se da filha do patrão. Tem truque mais conveniente que esse?
— Jason, você é ridículo. nunca faria isso! — Gritei, ultrajada, sentindo a raiva aumentar. Aproximei-me do meu namorado, que tremia. — Vamos sair daqui, .
— Você só pode estar brincando, . É capaz de me dizer que está realmente apaixonada por esse marginal? Ele deveria ter morrido na cadeia!
não é nenhum marginal, Jason! Ele pode ter cometido erros no passado, mas eu sei que hoje ele é diferente. E diferente do que você pensa, nem sabia quem eu era antes de nos conhecermos. — Virei-me em direção do elevador, puxando comigo. Descemos até o térreo, eu indignada com as acusações de Jason, mas, por algum motivo, estava quieto demais. — Eu sinto muito por isso, amor. Jason vai pagar caro pelas coisas que ele disse. Você está bem? — Aproximei-me dele, analisando seu lábio cortado por onde saía um filete de sangue.
— Foi só um corte, .
— Eu sei, mas está sangrando. Droga, eu vou matar o Roggers. Por que não me disse que era dele a companhia que você tentou prejudicar?
— Porque eu não sabia que seria necessário. Não imaginava que ele estaria presente.
— Ora, mas eu sabia que ele ia estar! O pai dele é um dos principais sócios do meu pai, . — Eu estava completamente nervosa, e não conseguia parar de falar. — Se eu soubesse, teria nos poupado desse desconforto. Eu teria vindo sozinha, você poderia ter ficado em casa como queria, ou...
— Como é? — tirou a mão do rosto e fixou o olhar em mim, arqueando uma sobrancelha. — Claro, seria muito mais fácil se eu tivesse ficado em casa, em vez de me intrometer num ambiente que claramente não é o meu lugar, não é mesmo?
, eu não quis dizer isso.
— É, mas disse. — As portas se abriram, revelando o hall de entrada do prédio. saiu apressado em direção à saída, comigo ao seu encalço.
— Eu não quis dizer isso, ! Não coloque palavras na minha boca. Eu só quis dizer que...
— Quer saber, você tem razão. Eu não pertenço a um lugar como esse. Desde o começo eu sabia, sabia que não era bom o suficiente para você, sabia que não tinha chance de tentar acertar as ações na minha vida, sabia que mais cedo ou mais tarde a segurança em que eu estava ia ruir, e alguma coisa ia me colocar de volta no meu lugar. Mas ainda assim, ainda assim eu tentei. Ainda assim eu fui estúpido o suficiente para me deixar cegar por um sentimento louco, mas tão intenso que me tirava do ar e não me deixava pensar com coerência. Eu sabia que você não era para mim, mas ainda assim eu tentei de todas as formas me encaixar a você. Eu te amei, , mesmo sabendo que você merecia um cara muito melhor que eu, e eu tentei tanto ser esse cara!
, não é para tanto! Para com isso, parece até que...
— Você merece mais que isso, — apontou com os indicadores para si mesmo — Muito mais que isso. O Jason estava certo, afinal. Você merece um desses engravatados que estava na festa hoje. Você merece alguém que possa te oferecer conforto e te dar das melhores coisas terrenas. Você não merece um marginal...
— Cala a boca! , cala a boca, para de falar besteira! Eu mereço alguém que me ame de verdade e alguém que eu ame de volta, e você faz isso! Você me ama, eu sinto em cada toque, em cada beijo, em cada palavra que você sussurra ao meu ouvido e eu tento tanto retribuir e fazer você perceber o quanto eu te amo de volta... Você não pode estar falando sério, não pode estar levando tão a sério os comentários do Jason ou de Mateo... O que importa é o que eu penso de você! Eu sei o que eu mereço e o que quero, !
— Eu não sou o cara certo para você, .
— Para o inferno com o “cara certo”! , eu fiquei tanto tempo correndo atrás de quem não me queria, mendigando carinho, achando que nunca ia encontrar alguém que desse tão certo pra mim. Mesmo com os seus defeitos, mesmo do jeito torto em que nos conhecemos, eu tenho a certeza de que você é esse cara! Você é esse cara, , por que do nada você vem com esse papo para cima de mim? Só pelo que um idiota aleatório relembrou o que você fez? Eu já sabia disso antes! Eu já sabia disso antes e mesmo assim eu não liguei, porque eu sei a pessoa que você se tornou, , sei que você não é mais nada do que o Jason insinuou.
, olha para você! Você é bem sucedida profissionalmente, você tem uma família que te ama, você é linda, você vive a vida plenamente, enquanto eu... Eu não tenho nada, . Eu não sou nada. E, por mais que eu lute, por mais que eu tente, eu nunca vou conseguir ser outra pessoa além do cara que roubou, do cara que foi preso, do cara que merecia morrer. Você não tem noção da vergonha, da culpa, do arrependimento que eu sinto a todo o momento, , porque a todo momento algo me lembra de que deveria estar na cadeia. E passar por uma situação como essa na cobertura do prédio do seu pai — Ele balançou a cabeça — só aumenta tudo umas mil vezes. Mas enquanto isso só afeta a mim, tudo bem. É a consequência dos meus atos. Mas eu não posso deixar que isso te afete, . Nem a você, que eu tanto amo, nem à sua família, que são tão bons comigo, nem a ninguém que se encontre ao nosso redor. Eu não posso. — Balançou a cabeça, indo até o meio da rua. Senti minhas pernas fraquejarem e minha mente rodar, sem conseguir processar o que de fato estava acontecendo naquele momento.
— Isso não é verdade, , por favor. Todos nós lidamos com arrependimentos, com fantasmas do passado que insistem em perturbar o nosso presente, mas a gente pode se ajudar. Me deixa carregar esse fardo com você, , eu já estou carregando esse fardo. Eu estou aqui, agora!
— Eu não posso fazer isso com você. Me desculpe, .
Entrou num táxi que parou à sua frente, sem nem ao menos me deixar responder. Corri até a rua, ignorando as buzinas dos outros carros e gritando por , em vão. Voltei à calçada atônita, sem acreditar no que havia acabado de acontecer. tinha terminado comigo, era isso? Por um motivo tão besta como aquele? A minha vontade era voltar até a festa e esganar Jason com minhas próprias mãos, porém, em vez disso, comecei a ligar para , sem sucesso. Uma, duas, três ligações, até ele desligar o celular. Minha garganta começou a apertar, quando chamei outro táxi e segui em direção ao apartamento do meu namorado, a fim de resolvermos essa situação. Era o cúmulo deixá-lo terminar comigo por causa disso, no entanto não havia ido para casa. Passei toda a noite o esperando, sem sucesso. Continuei ligando, mas em vão. Sem querer, comecei a chorar quando me dei conta de que ele pudesse estar falando sério. não deu notícias naquela noite, nem no dia seguinte, nem nas duas semanas que vieram, e eu estava totalmente perdida.

***


Minha mãe caminhava de um lado para o outro constantemente, fazendo seus saltos ecoarem um barulho insuportável pelo corredor. Seu cabelo estava bagunçado e grandes olheiras pendiam em seus olhos enquanto suas mãos amassavam uma revista. Ao meu lado, meu pai estava sentado curvado para frente, apoiando os braços nos joelhos e com o olhar vago, perdido em pensamentos; sua expressão era preocupada e abatida. Eu não devia estar em condições muito diferentes dos meus pais. A preocupação pelo estado de minha irmã me corroía por dentro e, de maneira um pouco egoísta, a falta de também. Ele estava sumido há duas semanas, semanas essas que mais pareceram meses.
Eu não conseguia acreditar que ele havia terminado comigo por um motivo tão besta, sem nem ao menos conversarmos adequadamente. fora embora acreditando que eu tinha vergonha de quem ele era, quando, na verdade, sua cegueira pela raiva momentânea o impedia de lembrar que eu o amava, independente de seus arrependimentos pelo passado. Eu o amava, e sentia imensamente a sua falta, principalmente nesses momentos em que eu precisava parecer firme a fim de dar o apoio que meus pais precisavam, animando meu pai e estando sempre ao redor de minha mãe, ao passo em que eu estava quebrando por dentro, sem apoio nenhum. Algumas lágrimas tentavam descer pelo meu rosto, mas eu as impedi. Se começasse a chorar, meus pais desmoronariam. Estávamos esperando naquele corredor de hospital alguma notícia que nos confortasse. Liv havia sido internada às pressas naquela manhã após passar terrivelmente mal em casa, chegando ao hospital desfalecida. Seu quadro vinha piorando cada vez mais e nossa esperança ia se esvaindo. Meus pais estavam em um estado deplorável, nenhum aceitava a ideia de perdê-la; eu também não, mas, por outro lado, eu via todo o sofrimento que a minha irmã passava e sabia que ela estava esgotada. Seu limite estava chegando ao fim.
— Senhor e senhora ? — Estávamos tão aéreos, que nem vimos o doutor Williams, já bem conhecido de nossa família, chegar ao nosso lado. Sua expressão era séria, e ele tinha alguns papéis em mãos. — Eu tenho o resultado de alguns dos exames de Liv, e o prognóstico não é bom. Gostaria que vocês me acompanhassem ao meu consultório para que pudéssemos conversar mais privadamente. — Em um salto, nós três nos levantamos, completamente aflitos. — Você não, . Liv pediu para que você a fizesse companhia em seu quarto, mas já adianto que as condições não são favoráveis, e ela está bem debilitada. Não a deixe falar ou fazer qualquer esforço excessivo, está bem?
Assenti e segui uma enfermeira até o quarto em que Liv estava. Os barulhos das máquinas eram altos e desconfortáveis, porém, de alguma forma, um silêncio gritante ecoava pelo quarto excessivamente branco. Aproximei-me de minha irmã, que dormia. Liv estava extremamente magra, seus olhos, fundos, e seus cabelos, ralos, sem brilho nenhum; sua boca estava ressecada e sua pele, pálida. De alguma forma, Liv já estava sem vida. Levei uma cadeira até o lado da cama e peguei sua mão, acariciando seus dedos finos quando ela acordou e se virou para mim, sorrindo fraco. Respondi ao seu sorriso com a mesma intensidade, beijando sua mão.
— Meu Deus, . A doente sou eu, mas quem está em um estado deplorável é você. — Sua voz quase não pôde ser ouvida, de tão fraca. Ainda assim, Liv tentava fazer piadas com a situação. Balancei a cabeça, prendendo o choro.
— Como você está se sentindo? — Indaguei, deitando ao seu lado na maca.
— Mal. Bem mal. É difícil respirar, me mexer, até mesmo olhar para os lugares.
— Então não olhe. Não fale. O Dr. Williams falou que você não deve fazer esforço. — Liv assentiu minimamente, fechando os olhos e recostando-se em mim. Ficamos um tempo em silêncio, abraçadas, até que ela levantou a cabeça para me olhar.
ainda não voltou? — Neguei, sentindo a garganta arder. — Que idiota. Mas não se preocupe, . Ele vai voltar.
— Faz duas semanas, Liv. Ele não atende minhas ligações, não estava em casa quando eu o procurei. Só não foi despedido ainda porque seu chefe é o nosso pai, mas ninguém da empresa conseguiu contatá-lo também.
— O buquê não mente, . Não na nossa família. — Liv comentou, me fazendo suspirar frustrada.
— Que cisma com esse buquê, Liv! O que eu te disse naquele dia em que estávamos no jardim de casa, hein? Eu disse que tinha sido uma coincidência encontrar . Uma coincidência. Nós começamos a namorar, mas aquelas flores só serviram para me iludir. Onde está agora? As flores ainda não me disseram.
...
— Não, Liv. De qualquer forma não me importo mais com elas e elas parecem não se importar comigo. Estão murchando.
— O quê?
— É, elas estão morrendo. Alguns dias depois que terminou comigo, reparei que os caules começaram a se curvar, e as pétalas, a cair. Já não era sem tempo, também, quantos meses elas duraram? Eu sempre achei que havia algo errado com aquela planta. — Comentei, ouvindo Liv suspirar. Achei que ela havia desistido do assunto, mas o tempo em que ficou quieta serviu para que pensasse em suas próximas palavras.
— Sabe por que eu gosto tanto daquelas flores, ? — Liv perguntou com a voz fraca, sendo interrompida por algumas tosses. Olhei para ela, esperando que continuasse. — Porque elas me dão esperança. Eu passei a vida toda assim, em hospitais, cercada por máquinas, dopada por medicamentos, fazendo os mais diferentes exames, doente. Era sempre um tédio, mas quando você chegava... Ah, . Quando você chegava, tudo parecia melhorar. Você sempre estava ao meu lado e tentava me fazer esquecer um pouco das minhas dores. Você sempre tinha uma história diferente para contar, algo que você tivesse aprontado, alguma fofoca da elite da cidade, era sempre tão forte e decidida, eu vi você se tornar uma mulher incrível, . Pra ser sincera, eu tenho um pouquinho de inveja de você, das coisas que você passava e da pessoa que você se tornou. Você é minha melhor amiga, , e é por isso que eu sei que, apesar de ser tão realizada sozinha, lá no fundo você deseja ter alguém com quem compartilhar as pequenas coisas, alguém para ser feliz ao seu lado, e isso não é errado, . Não sei por que você esconde essa vontade, mas é normal. Então toda vez que algum cara te decepcionava e você chegava cabisbaixa no meu quarto, eu sentia vontade de dar uma surra em todos eles, porque não souberam te dar o valor que você merece. Quando você pegou aquele buquê, , eu senti que, de alguma forma, as coisas iam começar a dar certo para você. Não só por causa daquela superstição boba da vovó, mas, não sei explicar, eu simplesmente senti que você finalmente ia ter o que merecia. E logo depois o apareceu e, toda vez que eu te visitava no seu apartamento e via aquele arranjo amarelo tão bonito, tão vivo, parecia uma confirmação para mim. Eu sei que falando assim parece besteira de adolescente, mas vocês faziam tão bem um ao outro. A minha esperança se tornou em certeza ao ver vocês juntos. É por isso que eu digo que vai voltar, . Porque, e eu não estou sendo infantil, vocês foram feitos um para o outro. É uma pena que eu não vou poder vê-los casar, nem cuidar dos meus sobrinhos... — Sua voz foi morrendo, e a tosse voltou com força. Liv tremia o corpo todo com o esforço e começou a cuspir um pouco de sangue. Uma enfermeira chegou para auxiliá-la e saiu assim que a crise passou. Enxuguei meu rosto totalmente molhado pelas lágrimas, todo o choro que eu impedia a todo custo tinha sido liberado naquele momento. Eu chorava emocionada com o que Liv tinha me dito, chorava por vê-la naquela situação, chorava pela falta de . Senti seus dedos passarem suavemente em meu cabelo e sorrimos juntas.— ...
— Shhh, Liv. Chega de esforço por hoje. Não gosto de ver você sofrendo assim. — Entrelacei nossos dedos, segurando firme sua mão entre as minhas. Liv parecia um pouco mais abatida do que quando entrei no quarto, mas um sorriso sereno se mantinha em seu rosto.
— Eu amo você, minha irmã. — Sussurrou, com os olhos fechados, voltando a dormir.
— Eu também amo você, Liv. Mais do que pode imaginar.
Naquele mesmo dia, ao entardecer, a máquina que monitorava os batimentos cardíacos de Liv emitiu um som ensurdecedor. Nenhuma manobra de reanimação fora suficiente para fazê-la acordar, pois, de acordo com o médico, os recursos de Liv haviam se esgotado. Ela estava com o cronômetro em contagem decrescente, e chegava perto do fim. Eu chorei como nunca havia chorado antes, trancada em meu apartamento. De todas as vezes que eu me imaginava passando por esse exato momento, em nenhuma senti o que estava de fato sentindo. Era como se um caminhão de terra tivesse despejado seu conteúdo em mim, me sufocando com seu peso, ao mesmo tempo em que eu caía em um buraco sem fundo. Eu estava sozinha, sem chão. Me recusava a acreditar que havia chegado o momento em que falaríamos de Liv como uma lembrança, e não como se ela estivesse no outro cômodo da casa.
Sentada na frente da caixa de madeira que comportava seu corpo, minha mente não conseguia se concentrar em nada. Eu via meus pais abraçados ao meu lado, chorando copiosamente. Ouvia o reverendo proclamar algumas palavras de conforto, mas não processava nenhuma informação. Minha família, amigos, funcionários, médicos e enfermeiros; todos amontoavam-se ao nosso redor. Alguns choravam, outros mantinham a expressão séria, mas eu não conseguia me concentrar em nada nem ninguém. Parecia que eu estava fora do ar, aérea, em outra dimensão. Em determinado momento, meu olhar encontrou o de , e meu coração falhou uma batida. Não demonstrei nenhuma reação, ele também não, mas até mesmo a isso eu não fui capaz de responder. Voltei a encarar o caixão, até o momento em que ele começou a ser baixado, sendo coberto pela terra. O público começou a se dispersar, os coveiros terminaram seu trabalho, meus pais foram embora e, ainda assim, eu não conseguia me mover. Não sei dizer quanto tempo passou até que senti alguém sentar ao meu lado. Não levantei o olhar, que continuava fixo na lápide de Liv. Ouvi uma voz ao longe, falando comigo, mas eu ainda não conseguia escutar. Então senti uma mão pousar levemente em meu joelho, e foi como se eu tivesse sido despertada bruscamente de um transe. Minha respiração começou a falhar, e o ar parecia rarefeito, sem entrar de fato em meus pulmões. Acelerei a respiração gradativamente, fincando as unhas nas palmas das minhas mãos. Senti meu rosto esquentar e as bochechas sendo molhadas com as lágrimas que finalmente caíam. A pessoa ao meu lado passou os braços ao meu redor, puxando-me para si. Parecia que eu tinha ficado uma eternidade aconchegada ali, soluçando sem parar, sem saber de onde conseguia tirar tantas lágrimas. Eu me sentia exausta, e meus olhos inchados doíam. Quando comecei a fungar, recuperando o fôlego, me separei do abraço, respirando fundo. O céu estava completamente escuro e não havia mais ninguém ali. me encarava com os olhos vermelhos, indicando que ele também havia chorado.
— Eu não pude deixar de vir, . — Pronunciou com a voz rouca, pousando uma mão sobre meu ombro. — Eu sinto tanto.
Ouvir sua voz desencadeava uma reação estranha em mim. Ao mesmo tempo em que parecia aumentar a dor, ela a amenizava, me confortando. Suspirei, encarando-o sem saber o que dizer. Liv estava certa, ele tinha voltado, mas eu faria de tudo para que não fosse nessas circunstâncias, se eu pudesse.
— Eu sei que não é a hora certa para isso, mas nós precisamos conversar, . Eu fui estúpido, mas antes de resolvermos isso, quero que saiba que eu estou aqui caso você precise de algum apoio. Eu estou aqui.
— Me leva para casa? — Pedi, com a voz fraca. Não tinha condições de sair dali sozinha.
— Claro. Só me deixe colocar essas flores ali. — Pegou um pequeno buquê de flores amarelas ao lado de sua cadeira e levantou-se, indo em direção à porção de terra. Senti a respiração falhar novamente, e minha voz embargar.
— Gi-girassóis?
— Sim. — estendeu o arranjo em minha direção, sorrindo levemente. — Todas as vezes em que estávamos nós três na sua casa, eu observava Liv olhando o seu arranjo dessas flores sem parar. Algumas vezes ela desviava o olhar para mim, sorria, e voltava a olhar para as elas, feliz. Nunca cheguei a perguntar-lhe o motivo, mas deduzi que eram suas flores favoritas, por isso as trouxe. — Pousou o buquê no chão, voltando a caminhar em minha direção. Comecei a chorar novamente, sem acreditar no que havia dito. Sem acreditar que, de fato, ele estava ali, na minha frente. Voltamos para casa em um silêncio confortável, sendo cortado somente pelas minhas fungadas de vez em quando. Eu não tinha cabeça nenhuma para resolver minha situação com no momento, porém também não queria deixá-lo ir embora de novo. Não quando sua presença parecia ser meu único conforto, e eu definitivamente não queria ficar sozinha naquele momento.
Então, sem saber onde minhas próximas ações poderiam me levar, sem saber se conseguiríamos nos reconciliar um dia e sem segundas intenções, assim que estacionou em frente ao meu prédio, o encarei, incerta do que falar.
... Será que você poderia subir comigo? Eu não estou me sentindo bem e não queria ficar sozinha. Meus pais estão na mesma condição, se não piores do que eu, e eu não tenho ninguém mais a recorrer. Fica comigo?
Mordi o lábio, esperando sua resposta. sorriu e concordou, saindo do carro e abrindo a porta para mim. Subimos até meu apartamento e nos sentamos no sofá, com passando os braços ao meu redor. Eu não sabia o que falar, nem queria falar nada. Ainda estava sem saber como agir dali em diante, sem ter a minha irmã do lado. Perdi as contas de quantas vezes voltei a chorar nos braços de , e nem sabia dizer quanto tempo ficamos ali na sala. Eu não conseguia pensar em mais nada, nem prestar atenção em mais nada. Se conseguisse, teria caminhado até o arranjo de flores posicionado no parapeito da minha janela. No dia anterior, todas as flores estavam murchas, algumas pareciam estar totalmente mortas, no entanto, se eu conseguisse pensar em olhá-las assim que entrara no apartamento, teria visto que, diferente do dia anterior, naquele momento havia um pequeno broto saindo da terra, em tom de verde forte. Se eu tivesse prestado atenção, teria visto que, de alguma forma, a flor estava renascendo. Se eu tivesse prestado atenção, teria a confirmação prévia de que as coisas entre mim e se acertariam, mais cedo ou mais tarde. Se eu tivesse prestado atenção, teria acreditado que aquele buquê de fato era mágico e, naquele exato momento, eu poderia confirmar que a superstição boba de minha avó não era apenas uma superstição. Na nossa família, era real.


Fim



Nota da autora: Oi, oi! Obrigada por chegar até aqui! Bom, apesar de algumas dores de cabeça que essa fic me deu, eu me senti realizada por escrevê-la. Não é a melhor história do mundo, mas de alguma forma, me fez descobrir melhor o que eu realmente quero passar nas minhas criações, e como fazer isso. Portanto, deixe aí o seu feedback, por favorzinho, pra eu poder saber se estou indo na direção certa. Críticas, positivas ou negativas, elogios, sugestões, estou aberta a qualquer coisa! Mais uma vez, obrigada por entrar nessa breve jornada comigo. Qualquer coisa é só me gritar no twitter:





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