Capítulo Único
Querido Diário,
Disseram que é assim que se começa a escrever em uma dessas páginas ridículas. Nada contra você em particular, mas é que eu simplesmente não queria estar fazendo isso e muito menos aqui. Veja só, já estou personificando essa coisa toda! Quão ridículo isso tudo soa? Juro que se as freiras não tivessem nos obrigado a escrever um diário, nada disso estaria acontecendo e eu pareceria menos idiota. Acontece que elas pensam que é uma boa ideia termos um lugar teoricamente seguro para expressar nossas frustrações e eu poderia fazer uma lista bem extensa de tudo que vem me frustrando.
Tudo o que eu não precisava era ser transferida para um internato católico exclusivamente feminino no meu último ano escolar. Aparentemente, os meus pais pensam que eu sou um grande problema. Fazem-me rir! Mal percebem que o problema sempre esteve neles.
As garotas por aqui, no geral, compartilham da mesma situação. Algumas roubaram coisas como jóias ou doces, outras picharam os muros das próprias casas. A maioria, como eu, aparentemente só não aceitava mais as ordens de uma família que nunca se importou verdadeiramente. Por que eu obedeceria a alguém que sequer se lembra do dia do meu aniversário? Fomos criadas por empregados, babás, mordomos e motoristas que o dinheiro conseguia pagar sem maiores problemas. Minhas primeiras apresentações de dança foram assistidas por Morgana, minha primeira babá. As mais recentes no teatro, foram vistas apenas pelos pais dos meus colegas. Completar dezessete anos significou que nem pagar alguém para me acompanhar deveria mais ser uma preocupação.
O último elogio que recebi de minha mãe foi sobre como o vestido que ela escolheu para que eu usasse em um jantar de negócios era incrivelmente chique. Sobre o meu pai? Não me recordo. Provavelmente porque tudo que saía de seus lábios para mim nos raros segundos mensais era algum tipo de decepção profunda. Sinto muito, papai, mas jamais me desculparei. É um prazer enorme te decepcionar. Uma das poucas coisas que ainda me emociona nessa vida medíocre e sem importância.
Comecei a escapar durante a noite para festas, bares e outros lugares. Diário, não pense que eu sou algum tipo de “garota-problema”, porque não sou. Só cansei de ser uma boneca de porcelana para aqueles que sequer se dão ao trabalho de se lembrar da minha existência quando a mesma não lhes é conveniente. Decidi viver a minha vida como bem entedia e vim parar aqui, nesse fim de mundo desgraçado. As riquezas da empresa da família nunca puderam me comprar amor e preocupação, mas foram hábeis em pagar um cativeiro para meu espírito. Não existem palavras nos dicionários capazes de expressar o meu mais verdadeiro e sincero ódio.
Talvez eu tenha levado essa coisa toda de escrever as frustrações no papel a sério demais.
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O café da manhã estava certamente listado entre as coisas mais horríveis do internato. Aqueles pães farinhentos e os sucos artificiais demais eram de enjoar o início do dia de qualquer um.
Ah, e também tinham as saias! O xadrez vinho naquele tecido pesado e longo demais não combinava em nada com o meu tom de pele. Parecia exatamente o tipo de coisa que, por me incomodar tanto, deixaria minha mãe inexplicavelmente feliz.
A manhã começava com duas longas horas de aula de religião, acompanhadas por um tempo de orações e confissões na capela. Nunca fui uma pessoa dedicada à vida na fé, para desespero de minha avó. Quero dizer, quase sempre fiz minhas preces antes de dormir, mas era isso. Nunca fiz grande caso sobre, exatamente por pensar que tinha o direito de manter a minha própria vida sem estampar para o mundo cada respiração. Encostar meu corpo ao banco da igreja e ouvir os sermões por horas era tão cansativo que eu dava graças a Deus - grande ironia, não? - pela minha incrivelmente útil habilidade de me desligar completamente. A única coisa que ainda tinha minha atenção era o grande piano nos fundos.
Ainda me lembrava de todas as partituras das principais sinfonias de Bach e Mozart que meu pai pagara para o professor me ensinar. Aparentemente, era imprescindível que uma adolescente da alta sociedade pudesse deleitar as amizades exclusivamente por interesse dos pais durante um jantar insuportável e interminável com uma apresentação maçante de piano.
O instrumento era a lembrança horrivelmente perfeita de tudo aquilo que me prendera em todo aquele tempo. A obrigação tinha destruído meu prazer pela música. A pressão de todos tinha pisoteado a minha vontade de aprender coisas novas. As expectativas altas que não acompanhavam qualquer tipo de incentivo criaram ainda mais decepções. Tudo que eu quis nos últimos anos foi um tempo completamente afastada de todo a nuvem de caos psicológico sob a qual meus pais me colocavam para tomar chuva. E, agora, eu sentia um ódio mortal por ter de ser dessa forma.
Era difícil ter algum tipo de contato além do básico - bom dia; com licença; obrigada - com alguém que não as freiras. Todas as meninas estavam tão emburradas por estar ali que qualquer contato social parecia um pouco demais, era literalmente a definição de “forçar a barra”. A única que raramente falava comigo era Gabrielle, filha de algum cirurgião incrivelmente bem sucedido e absurdamente ocupado para cuidar da própria filha. Gab e eu definimos o internato como o símbolo do fracasso da paternidade de nossos (não) queridos progenitores. Pareceu duro de início, mas logo se mostrou real demais.
No primeiro Fim de Semana da Família Unida a Deus - como as madres gostavam de chamar -, nossos pais não apareceram. Na verdade, foram poucos os que o fizeram. Alguns irmãos e irmãs se fizeram presentes para os poucos que foram agraciados com a sorte seletiva da fraternidade. Alguns funcionários de longa data apareceram por apego com as meninas, dizendo aos ventos coisas como “Eu troquei as suas fraldas, preparei seus almoços. A senhorita faz falta naquela casa.”. A única vantagem daquele sábado deprimente foi o almoço especial com massas e doces que não comíamos há tempos.
Foram os ocorridos e os abandonos escancarados da primeira semana que aprofundaram a revolta de muitos. Incluindo a minha.
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— A irmã Cora teve alguns problemas e não poderá ficar no corredor com vocês hoje - diz a irmã Constância para as garotas de nosso dormitório.
— Ela está bem? O que aconteceu? - Gabrielle pergunta.
— Ela está indisposta por uma enxaqueca muito forte. Logo estará de volta, com a graça de nosso Senhor. Porém, enquanto ela não volta, eu espero que as senhoritas mantenham o bom comportamento no período de reclusão nos quartos. Não temos mais funcionários disponíveis para assumir a ronda noturna por aqui, então confiamos na manutenção de sua boa conduta em grupo e respeito à irmã Cora.
Com a porta fechada, estávamos sozinhas para digerir o que aquela notícia estranha significava de fato.
Gabrielle voltou para a sua cama e eu me deitei abaixo dela no beliche. As outras garotas rapidamente começaram a substituir os pijamas por roupas casuais.
— O que estão fazendo? - Gab perguntou.
— Aproveitando os poucos e milagrosos instantes de liberdade - Martha respondeu. — Vamos passar a noite no quarto das garotas mais velhas. Elas conseguem trazer bebidas e outras coisas para o dormitório. Vocês vêm?
Confesso que tive de pensar duas vezes antes de menear a cabeça em negação. Alguma parte de mim queria muito passar algum tempo tranquilo, mas a porção consciente sabia que uma noite alcoólica não tinha como acabar bem.
— Bom, espero que não seja um problema para vocês e que não nos deduzem para as madres.
— Temos mais o que fazer, Martha - Gab respondeu, enquanto jogava repetidamente para o alto uma bolinha estrelada. — Tipo dormir.
Martha deu de ombros e saiu juntamente às outras meninas, fechando a porta atrás de si. Com o som da porta sendo fechada, Gab pulou do beliche e começou a se trocar também.
— Pensei que você ia dormir - comentei, repousando meu livro no criado-mudo. Aquela era uma das poucas coisas que nos permitiram trazer
— Eu vou. Quer dizer, em algum momento. Definitivamente não agora. E você também não deveria ficar lendo esse livro tosco.
Ajeitei meu corpo rapidamente, encostando as costas na parede com alguma força - o suficiente para prever um daqueles roxos de que eu não me lembraria no dia seguinte.
— Jamais repita um absurdo desses sobre Jenny Han! Esse é um daqueles romances que te deixa suspirando do título até o fim do último capítulo.
Gab riu alto, jogando-se ao meu lado sobre o colchão.
— É tão romance fictício que dá tudo certo no final. Tenho certeza de que dá, não?
— Sim, Peter e Lara Jean ficam bem no final. Bem e maravilhosos como o melhor casal de todo o universo.
— Peter e Lara Jean não existem no nosso mundo. E você está trancada nesse internato idiota e precisa conhecer o mundo de verdade lá fora.
— O mundo nos livros é muito melhor que essa merda toda. Por sinal, você sabe que eu estou aqui exatamente por fugir de casa para conhecer o mundo lá fora, certo?
— Mas não conhece o mundo fora desse lugar. Acho que precisamos dar uma chance a isso. Não vai acreditar no que eu descobri durante a semana com muita observação durante a insônia noturna causada por esse colchão horrível e esse travesseiro pior ainda.
— Pelo amor de Deus, diga que não tem nada a ver com resíduos escatológicos alheios - pedi, recebendo em resposta uma cara de completa ojeriza dela.
— Que tipo de pessoa você pensa que eu sou? Credo! Enfim, não é nada disso, sua tolinha. Olhe pela janela.
Olhando pelo amplo vazio que avistávamos pelo vidro, percebi o restaurante do outro lado da rua. Não era dos mais amplos e espaçosos, mas tinha toda uma decoração externa aconchegante que me deixava curiosa para saber como era por dentro. Não era como se tivesse outra coisa interessante em nossa vista. O movimento no estabelecimento era uma das poucas e monótonas distrações noturnas que tínhamos enquanto o sono não vinha.
— Você realmente só percebeu o restaurante agora? - Faço a pergunta porque para mim a presença dele por ali fora bem óbvia desde o princípio.
Gab revira os olhos para mim e coloca as mãos ao lado de minha face, trazendo meu rosto para baixo.
— Não sou cega. Eu sei sobre o restaurante. Estou falando do muro. Já tinha percebido como ele é próximo de nossa janela? E nem é tão alto.
— Não estou gostando nada do rumo dessa conversa.
— Bom, eu simplesmente não ligo. Prosseguirei. Em minhas observações, percebi que as freiras têm o cuidado dos corredores, mas nunca se preocuparam com o muro.
— Talvez porque nós tenhamos um toque de recolher restrito e vigilância das portas.
— Exatamente - ela concordou. — E é por isso que nós vamos nos trocar e dar um passeio.
Meus olhos se arregalam involuntariamente, mesmo que meu subconsciente já estivesse esperando essa ideia maluca e descabida. É simplesmente mais forte do que eu.
— Não tenho intenção alguma de fugir. Darão falta de nós pela manhã e acionarão a polícia. Tem noção da merda que isso tudo vai dar?
— Eu sei, meu anjo. É por isso que eu usei claramente a palavra “passeio”. Não estamos indo embora. Só… Dando uma volta. - Ela sorriu zombeteira e começou a se trocar sem sequer esperar que eu pudesse esboçar algum tipo de resposta ou reação.
Engoli em seco, mas comecei a me trocar também. A ideia de sair era amedrontadora, mas ao mesmo tempo libertadora. Um formigamento percorria todo o meu corpo, como se tivessem bichinhos invisíveis brincando de pega-pega pelo meu corpo. É nervosismo o nome. Com um quê de excitação por fazer algo que soava tão “perigoso”.
— Boa garota - Gab comentou sorrindo, enquanto abria a janela cuidadosamente, torcendo para que suas hastes não rangessem como uma mobília antiga.
— Para onde vamos? - Pergunto porque gosto de ter um plano. Ou ao menos uma noção das coisas que estão prestes a acontecer. Com certeza não sou a maior fã de surpresas.
— Para o restaurante fofo. Não é como se eu soubesse para onde ir além disso. Só tenho conhecimento do que está literalmente do lado de fora dessa janela.
— E você pretende pagar como?
— Lavando os pratos, oras. Não é isso que as pessoas fazem na televisão?
Dou um peteleco ardido no braço de Gab, que reclama enquanto massageia o ponto da agressão. Provavelmente, um vergão vermelho logo apareceria por ali.
— Era só uma brincadeira, sem noção! Claro que vamos pagar como pessoas normais. Vai me dizer que você não trouxe um cartão de crédito em algum canto meio escondido na mala só por precaução?
— Trouxe - murmuro, detestando o fato de ela sempre saber de quase tudo.
— Então, vamos usá-los.
— Você sabe que gastos em cartões de crédito são facilmente rastreáveis, não sabe? Nossos pais podem ver a qualquer instante o nosso extrato.
— Seus pais se importam o suficiente para olhar sua conta? Porque os meus não fazem a mínima questão.
Pisco algumas vezes, absorvendo o que parece um soco na boca do estômago. É muito fácil dizer que meus pais sempre foram ausentes e, principalmente, negligentes, mas quando é outra pessoa que diz… Ah, meu amigo, é aí que você sente o peso de verdade. E eu estou simplesmente cansada de ficar sentindo sempre esse peso sobre os meus ombros.
— Tem razão - concordo. — Vamos logo.
Basta que estiquemos um pouco os pés para alcançar o muro. Gab tinha razão: é perto o suficiente e fácil também. O problema é lidar com a altura para retornar ao chão.
— Anda logo! Não temos tempo para ter medo agora. Não podem nos pegar no muro - ela briga e me obriga a descer logo. Atiro meu peso para frente de olhos fechados, torcendo para que o ato cego consiga atenuar o impacto daquela súbita mudança em meu centro de gravidade. Mas fica tudo bem depois que meus pés já sentem o chão.
Olhamos em volta em um misto de nervosismo com deslumbre. Meu coração batia violentamente contra o meu peito. É só uma cidade e nem é das maiores, mas já é um impacto depois de uma semana completamente trancadas. Era como se, de repente, até o ar fosse mais leve.
— Vamos logo com isso - digo praticamente sem pensar. Praticamente porque isso não existe, mas ao mesmo tempo não é como se eu tivesse sido racional.
Atravessamos a rua rapidamente e logo estamos no restaurante. É exatamente como eu imaginei. Mesas redondas cobertas por toalhas de um tecido fino e claro, acompanhadas por delicados arranjos florais em tons de lilás e púrpura. O piso de madeira brilhosa reflete facilmente a luz do ambiente, criando pontos no chão como se fossem estrelas. Quando levanto o meu olhar, deparo-me com ele novamente. Um piano . Por alguns segundos perco o ar, pensando se isso não faz parte de alguma conspiração do universo que decidiu me atormentar.
— Você pode parar de agir dessa forma esquisita e só se sentar? Sabe, como uma pessoa normal faria. - A voz de Gab me tira de meus devaneios. Sento-me ao seu lado.
Em questão de minutos, um rapaz que não aparenta ser mais velho que nós aparece pronto para anotar nossos pedidos. Ele tinha feições suaves e serenas, como uma daquelas pessoas que parecem uma amizade fácil.
Gab pediu porções para nós duas. Enquanto esperávamos que os pratos chegassem, meu olhar perdido continuava no piano. Era como uma avalanche irritantemente repetitiva de lembranças e memórias que eu faria qualquer coisa para simplesmente esquecer. Afinal, quão idiota era remoer os feitos de uma família que te deixou para trás sem pensar duas vezes? Tenho certeza de que não pensaram sequer a primeira vez.
O movimento foi diminuindo aos poucos, assinalando o tempo que já passava. Corria pelos dedos como areia seca. Eu balançava o resto da bebida de um lado para o outro, menos entediada que verdadeiramente afoita.
— Com licença, vocês gostariam pedir mais alguma coisa? - Era o garoto de sorriso fácil. E ele estava sorrindo.
— Sim - Gab respondeu rapidamente. — Eu gostaria de saber sobre aquele piano ali. Minha amiga ficou a noite inteira encarando o coitado e agora eu estou curiosa. Vocês têm música ao vivo?
O rapaz sorriu mais abertamente. Era como se o mundo inteiro tivesse parado para iluminar apenas seu rosto.
— Temos ocasionalmente. Geralmente às sextas-feiras.
— E são aqueles pianistas chatos de restaurante de hotel cinco estrelas ou algo que dê menos vontade de dormir?
Arregalei os olhos para a minha amiga, como em uma bronca por sua educação deplorável. Não era como se eu fosse a Miss-Perfeição-Completa, mas Gab tinha chegado ali sem nenhum tipo de filtro. Simplesmente não havia nada que a impedisse de falar coisas que poderiam machucar alguém direta ou indiretamente. Mas ele riu. Mesmo que fosse aquele riso nervoso, ainda era uma risada. E era o suficiente para quebrar o climão.
— Na verdade, sou eu quem toca às vezes. Parece meio tendencioso que seja eu a te dizer se a música é péssima ou não.
— Talvez nós devamos aparecer aqui amanhã e responder isso por você, então - sugiro. E quase não acredito que o fiz.
Ele sorri abertamente mais uma vez.
— Parece uma boa ideia - ele concorda. — Sou , aliás.
— - respondo. — E a boca aberta é a Gabrielle.
Recebo um tapa em meu braço.
— É um prazer conhecê-las. Você toca?
Respiro fundo antes de jogar o balde de água fria. parece tão animado que sinto certa pena em ter de fazê-lo.
— Tocava. Mas eram apenas os clássicos por livre e espontânea pressão da minha mãe. Isso acabou me deixando meio revoltada e aversa. Então, acho que a sua resposta é não.
— Isso é bastante deprimente. É meio inacreditável para mim que uma pessoa possa simplesmente abandonar a música assim. Você não tem vontade de voltar a tocar? Algo que você goste dessa vez.
— Talvez. É, pode até ser uma boa ideia.
— Posso te ajudar com isso - ele se oferece. — Quando quiser. Estou sempre por aqui, afinal. Trabalhar com o seu pai tem algumas vantagens. Ou desvantagens. Depende do seu ponto de vista, na verdade.
— Ok, acho que é hora de irmos. , pode trazer a conta? - Gab pede, cortando completamente o momento.
— Claro! É para já.
Ambas observamos enquanto ele caminha em direção ao balcão. Gab, de repente, lança um olhar malicioso - e um tanto assustador - diretamente para mim.
— O que é? Pare de me encarar assim.
— Eu não sabia que a princesa sabia flertar. Estou muito orgulhosa.
— Ah, cale a boca!
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— Isso não vai dar certo - reclamo, completamente frustrada. — Eu estou enferrujada demais para sequer tocar em duas teclas que façam sentido.
ri de sua forma absurdamente doce. Quando ele se aproxima e faz menção de ocupar o banco, chego para o lado de forma a dar espaço para ele. Ficamos, então, os dois dividindo aquele assento. Seu braço encosta levemente no meu e eu sinto algo que parece um choque percorrendo a porção de minha pele que está em contato com o calor que emana dele. Parece exatamente o tipo de sensação que Nicholas Spark tentaria descrever em um de seus romances. Uma daquelas que você acha romanticamente idiota até que sente o mesmo e finalmente entende o impacto daquilo.
— Vamos tentar assim - ele diz calmamente e leva seus dedos finos para as teclas, tocando-as devagar o suficiente para que eu possa compreender. Fico me sentindo como uma criança sendo ensinada do zero. Parece idiota. — Eu sei o que você está pensando. Não se culpe. Tocar é como andar de bicicleta, sabe? Você nunca esquece de verdade, mas precisa de um pouco de treino até que consiga se equiparar depois de tanto tempo.
Dou uma risada nasalada.
— Droga, eu também não sei andar de bicicleta - admito.
— Ah, não. Agora você está simplesmente zombando de mim.
— Não estou, . Ninguém nunca fez questão de tirar um tempo para me ensinar e me ajudar. Quando eu pedi uma bicicleta de Natal, minha mãe disse que eu era uma garota e garotas não podem ter os joelhos marcados por arranhões e cicatrizes. Disse que, se algum dia esse tipo de coisa acontecesse, as babás teriam ordens expressas para me deixar sangrando até aprender a me comportar.
E é assim, senhoras e senhores, que você destrói a noite de alguém. E a sua também. De nada pelo toque. Realmente não há de quê.
— Eu sinto muito por você ter passado por esse tipo de coisa. Espero que saiba que ela estava errada. Qualquer um precisa de uns arranhões de vez em quando. Não tem nada de errado em ter cicatrizes.
Sorrio involuntariamente. Ter alguém se preocupando em oferecer algumas palavras de conforto é mesmo uma grande novidade para mim.
— Obrigada. De verdade. E, sim, eu sei. Não é como se eu fosse concordar com algo que minha mãe dizia depois de tudo.
— Acho que ela não merece isso mesmo. - deu de ombros, tentando agir como se a situação fosse incrivelmente banal. — Vamos do começo? Tenho certeza de que você está louca para me provar a grande pianista que há em você.
— Acho que a grande pianista está tirando um cochilo pela eternidade, como a Bela Adormecida.
— Você não se parece em nada com aquela doida com inclinações suicidas. Vamos, hora de acordar dessa soneca. Só você pode enfrentar esse trauma.
Respiro fundo antes de levar minhas mãos ao piano novamente. Repasso mentalmente a sequência que tinha apresentado e reproduzo da melhor forma que consigo. O resultado acabou surpreendendo a nós dois. Eu tinha acertado.
— Viu só? - Ele estava verdadeiramente animado. — Eu sabia que você conseguiria. Só precisava de um empurrãozinho.
— Obrigada por me empurrar.
Sorrio sinceramente em agradecimento e recebo um daqueles sorrisos incríveis que só ele consegue dar. De repente, concordo com ele. Tudo o que eu precisava era de uma sacudida que derrubasse o peso do mundo de meus ombros.
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— Você parece inquieta - diz ao me ver chegando ao restaurante.
Devo mesmo estar parecendo uma louca para que até ele precise me lembrar disso.
— Algo de errado no seu processo rotineiro de fuga, garota rebelde?
— Primeiramente, não acho que eu seja rebelde. Acho que o termo mais acertado é “mal compreendida”. Mas não, não é nada disso - admito. — Gab entrou em algum tipo de acordo com a irmã Cora para que ela fizesse vista grossa. Só espero que ela não esteja subornando uma freira.
— Parece exatamente algo que ela faria - ele comenta e eu sou obrigada a concordar. — Então, o que é que está te estressando tanto?
— Irmã Constância anunciou hoje algo como uma versão sem graça de um show de talentos. É mais um tipo de competição criativa. Cada uma terá que apresentar um trabalho completamente autoral. Ela deu exemplos de artesanato, pinturas, fotografias, escrita e por aí vai.
— E o que você quer fazer?
— Exatamente o que está fora da lista. Pensei em compor uma música. Na verdade, eu até já tenho alguns rascunhos de letras que escrevi quando não tinha nada de mais interessante a fazer. Basicamente, significa que eu estava sempre escrevendo.
sorri de uma forma tão aberta que cria covinhas inéditas nos cantos de suas bochechas. É uma das coisas mais adoráveis que já vi.
— Acho uma ideia incrível.
Mas, ao mesmo tempo que quero muito acreditar nele, penso que talvez ele só esteja tentando me apoiar mesmo sabendo que é uma ideia fadada ao fracasso completo. Até algum tempo, eu mal me lembrava da sequência de sons que poderia tirar do piano e, de repente, quero ajuda para compor uma melodia? Talvez fosse pedir demais do meu supostamente enferrujado talento.
— Quer saber? Esqueça. Não vai dar certo - digo. — Será um evento totalmente aberto ao público e eu não quero envergonhar as outras meninas que realmente têm algo a oferecer.
— Mas quem te disse que você não tem? , você superou um trauma e o converteu em um hobby. Tem alguma noção do verdadeiro impacto disso? Você enfrentou um fantasma do passado e criou um companheiro do presente. Sua música é algo incrível a se oferecer.
Penso por alguns instantes, engolindo aquele nó na garganta que me faz ter vontade de chorar. Acontece todas as vezes em que ele me acolhe dessa maneira, relembrando-me de meu próprio valor e força. No entanto, por mais difícil que fosse, nunca tinha derrubado uma lágrima sequer em sua frente. Ao menos, não até esse momento.
Sinto seus braços envolvendo o meu corpo e permito que os meus percorram o mesmo caminho. Pela primeira vez em anos, deixo que alguém me conforte. Permito-me desabar em seus braços porque sei que ele se importa. E, pela primeira vez, tudo parece fazer algum tipo de sentido. Por mais complicado que ele fosse.
— Vamos fazer isso, ok?
— Ok - respondo sorrindo.
Meus dedos correm para minhas bochechas, secando-as. Esfrego levemente as pálpebras, na intenção de mandar o choro embora. É quando percebo que estou muito mais leve do que já estive algum dia.
— Acho que, para começar, você deveria me mostrar essas letras - ele diz.
Retiro meus papéis da bolsa e os entrego a ele após aceitar sua mão que me conduz até o piano.
Naquele momento, enquanto seus olhos hábeis percorrem meus rabiscos de forma voraz, percebo que aquilo era tudo o que eu precisava. Talvez, a história do anjo da guarda que contavam fizesse algum sentido no fim das contas. E, se isso realmente existisse, tenho certeza de que o meu era o rapaz de sorriso fácil que se sentava ao meu lado e me incentivava a cada passo que eu dava para fora de toda aquela bolha da filha perdida.
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Embrulhado. Dolorido. Enjoado. Era assim que ela sentia o seu estômago cada vez que mais uma pessoa entrava e se acomodava para o evento. Parecia uma máquina de lavar que batia as roupas com força cada vez que mais uma pessoa entrava. Ela estava ansiosa para se apresentar e receosa sobre o resultado. Pior ainda, estava receosa por não ter dito que sua apresentação seria com uma música inédita. Havia declarado que era um “objeto artístico” e todos concordaram sem pestanejar. Talvez estivessem pensando em um pote de barro.
Como esperado pelas sugestões, várias meninas apresentaram artesanatos (como almofadas, toalhas bordadas e até bijuterias), pinturas em quadros, desenhos em grandes folhas brancas ou coloridas, dobraduras, fotografias, etc. Até que chegou a minha vez. A única louca que precisava usar o piano intocado.
Quando estava prestes a me sentar, senti aquele frio esquisito percorrendo todo o meu corpo. A adrenalina, a boca seca, a respiração acelerada e o coração socando meu peito como se estivesse lutando boxe profissional ali dentro. Eu definitivamente iria desistir.
Quando estava prestes a dar um passo para trás, encontrei o rosto de na primeira fila. Meneei a cabeça para ele, assinalando que não poderia fazer isso. O movimento de seus lábios dizia precisamente “Você consegue”. Mas não foi isso que me deu o chute na bunda final que eu precisava para enfrentar aquilo. O que me impulsionou de uma vez por todas foi perceber a presença inesperada dos meus pais. Seus olhares pareciam desafiadores, como se quisessem provar um ponto por ali. O ponto era a minha incompetência. A minha fraqueza. E eu definitivamente não daria esse prazer para eles. Eu faria aquilo. Não tinha qualquer outra escolha possível naquele momento. Simplesmente comecei a tocar.
Wake up here I go
(Acordo, aqui vou eu)
Cram it all down my throat
(Empurro tudo garganta abaixo)
Stomach so full that I wish I could choke
(Estômago tão cheio que eu queria poder engasgar)
7 Am my heads already in a spin
(7 da manhã e minha cabeça já está girando)
As soon as I'm out that door
(Logo que saio por aquela porta)
Bam it hits me like a ton of those red bricks
(Bam, me acerta como uma tonelada daqueles tijolos vermelhos)
Can't dig myself out of this highest ditch
(Não consigo cavar para sair dessa grande vala)
This madness
(Essa loucura)
Finalmente chego à minha parte favorita: o refrão. Sua melodia se torna suave de repente e evidencia a importante relação que construí com a música nos últimos tempos.
I swear sometimes I can't tell
(Eu juro que às vezes não consigo dizer)
Which way is up
(Que direção é para cima)
Which way is down
(Que direção é para baixo)
It's all up in my face
(Está tudo na minha cara)
I need to push it away
(Preciso tirar isso)
Somebody push it away
(Alguém tire isso)
So all that I can hear
(Para que tudo que eu possa ouvir)
Is a simple song
(Seja uma simples canção)
Sing along now
(Cantem comigo agora)
La la la la la la
La la la la
La la la la la la
La la la la
Retorno ao primeiro tom. Finalmente tenho o fôlego e a coragem para aproveitar aquele momento de verdade.
Mid day sun beating on the concrete
(Sol do meio-dia batendo no concreto)
Burning up my feet
(Queimando os meus pés)
Too many cars on the street
(Muitos carros na rua)
The noise
(O barulho)
The red
(O vermelho)
The green
(O verde)
Makes me wanna scream
(Me faz querer gritar)
5 O clock now
(Cinco horas agora)
It's bumper on bumper on bumper
(Para-choques em para-choques em para-choques)
Horns honking
(Buzinas buzinando)
Nobody’s looking
(Ninguém está olhando)
But everybody’s talking
(Mas todos estão falando)
It's another day
(É um outro dia)
On this highway
(Nessa auto-estrada)
Retomo o refrão com naturalidade. É como se fizesse isso por toda a minha vida. Nunca me senti tão bem desse jeito. É como se finalmente tivesse encontrado um lugar para mim em meio a toda a loucura do mundo.
What I'd give to turn it off
(O que eu faria para desligar isso)
And make it stop
(E fazer isso parar)
Make it stop
(Fazer isso parar)
Gotta make it stop
(Tenho que fazer isso parar)
So all that I can hear
(Para que tudo que eu consiga ouvir)
Is a simple song mmm
(Seja uma simples música)
Quando termino, as pessoas estão aplaudindo. Agradeço com um sorriso orgulhoso. Orgulhoso de mim. Orgulhoso do meu trabalho. Orgulhoso de como eu consegui tirar força de uma das minhas maiores fraquezas. É a incrível sensação de um trabalho cumprido. E cumprido por uma superação.
Abandono o local rapidamente, buscando a área externa para encher meus pulmões de ar. É como se o peso dos meus ombros tivesse simplesmente me abandonado.
— Você foi simplesmente incrível - aparece comemorando. Ele segura a minha mão e me gira. É impossível não rir de sua atitude. Sinto meu corpo se aquecendo finalmente depois de tanto suar frio. — Eu estou tão orgulhoso.
— Mas nós não estamos.
É a voz de minha mãe. Seu semblante é duro, assim como o de meu pai. E, pela primeira vez, eu absolutamente não me importo.
— Olá para você também, mãe. Fico feliz que tenham me visto tocar.
— Tocar?! Aquela porcaria sequer pode ser chamada de música. É simplesmente barulho. E um barulho incômodo.
— Essa é o ponto, mãe. Eu não pedi a sua opinião.
— Você não tem o direito de falar assim com a sua mãe. - Meu pai apontava o dedo na minha cara. — Você veio aqui para se recuperar desses maus comportamentos, não para se tornar essa louca rebelde.
— Acho que rebelde não é a palavra mais apropriada - intervém. — Mal compreendida é mais correto.
— E quem é esse moleque?
— Sou o , prazer. Aquele que decidiu apoiar a sua filha.
— Então já pode ir embora.
— Vocês vão ter de me perdoar, mas eu não vou a lugar algum.
Minha mãe faz uma cara de quem está completamente indignada. De repente, percebo que estou feliz que ela esteja.
— Então é assim que as coisas são agora, ? Não dá valor à sua família? - Ela tem a cara de pau de perguntar enquanto se vitimiza como de costume.
— A uma família que nunca se importou comigo? Não, obrigada. Estou bem assim.
— Espero que saiba que as coisas não vão ficar assim - ela cospe as palavras e vira as costas, carregando meu pai que ainda fuzila com ódio.
Quando a imagem de ambos some de meu campo de vista, expiro fortemente, deixando que os sentimentos ruins sejam soprados para fora de mim. passa os braços ao redor de mim.
— Eu não sei como as coisas vão ser daqui para frente - admito, mas ele me interrompe.
— Ninguém nunca sabe. Mas vai ficar tudo bem.
Quando ele deposita um beijo no topo de minha cabeça, concordo com ele. Vai ficar tudo bem.
Disseram que é assim que se começa a escrever em uma dessas páginas ridículas. Nada contra você em particular, mas é que eu simplesmente não queria estar fazendo isso e muito menos aqui. Veja só, já estou personificando essa coisa toda! Quão ridículo isso tudo soa? Juro que se as freiras não tivessem nos obrigado a escrever um diário, nada disso estaria acontecendo e eu pareceria menos idiota. Acontece que elas pensam que é uma boa ideia termos um lugar teoricamente seguro para expressar nossas frustrações e eu poderia fazer uma lista bem extensa de tudo que vem me frustrando.
Tudo o que eu não precisava era ser transferida para um internato católico exclusivamente feminino no meu último ano escolar. Aparentemente, os meus pais pensam que eu sou um grande problema. Fazem-me rir! Mal percebem que o problema sempre esteve neles.
As garotas por aqui, no geral, compartilham da mesma situação. Algumas roubaram coisas como jóias ou doces, outras picharam os muros das próprias casas. A maioria, como eu, aparentemente só não aceitava mais as ordens de uma família que nunca se importou verdadeiramente. Por que eu obedeceria a alguém que sequer se lembra do dia do meu aniversário? Fomos criadas por empregados, babás, mordomos e motoristas que o dinheiro conseguia pagar sem maiores problemas. Minhas primeiras apresentações de dança foram assistidas por Morgana, minha primeira babá. As mais recentes no teatro, foram vistas apenas pelos pais dos meus colegas. Completar dezessete anos significou que nem pagar alguém para me acompanhar deveria mais ser uma preocupação.
O último elogio que recebi de minha mãe foi sobre como o vestido que ela escolheu para que eu usasse em um jantar de negócios era incrivelmente chique. Sobre o meu pai? Não me recordo. Provavelmente porque tudo que saía de seus lábios para mim nos raros segundos mensais era algum tipo de decepção profunda. Sinto muito, papai, mas jamais me desculparei. É um prazer enorme te decepcionar. Uma das poucas coisas que ainda me emociona nessa vida medíocre e sem importância.
Comecei a escapar durante a noite para festas, bares e outros lugares. Diário, não pense que eu sou algum tipo de “garota-problema”, porque não sou. Só cansei de ser uma boneca de porcelana para aqueles que sequer se dão ao trabalho de se lembrar da minha existência quando a mesma não lhes é conveniente. Decidi viver a minha vida como bem entedia e vim parar aqui, nesse fim de mundo desgraçado. As riquezas da empresa da família nunca puderam me comprar amor e preocupação, mas foram hábeis em pagar um cativeiro para meu espírito. Não existem palavras nos dicionários capazes de expressar o meu mais verdadeiro e sincero ódio.
Talvez eu tenha levado essa coisa toda de escrever as frustrações no papel a sério demais.
O café da manhã estava certamente listado entre as coisas mais horríveis do internato. Aqueles pães farinhentos e os sucos artificiais demais eram de enjoar o início do dia de qualquer um.
Ah, e também tinham as saias! O xadrez vinho naquele tecido pesado e longo demais não combinava em nada com o meu tom de pele. Parecia exatamente o tipo de coisa que, por me incomodar tanto, deixaria minha mãe inexplicavelmente feliz.
A manhã começava com duas longas horas de aula de religião, acompanhadas por um tempo de orações e confissões na capela. Nunca fui uma pessoa dedicada à vida na fé, para desespero de minha avó. Quero dizer, quase sempre fiz minhas preces antes de dormir, mas era isso. Nunca fiz grande caso sobre, exatamente por pensar que tinha o direito de manter a minha própria vida sem estampar para o mundo cada respiração. Encostar meu corpo ao banco da igreja e ouvir os sermões por horas era tão cansativo que eu dava graças a Deus - grande ironia, não? - pela minha incrivelmente útil habilidade de me desligar completamente. A única coisa que ainda tinha minha atenção era o grande piano nos fundos.
Ainda me lembrava de todas as partituras das principais sinfonias de Bach e Mozart que meu pai pagara para o professor me ensinar. Aparentemente, era imprescindível que uma adolescente da alta sociedade pudesse deleitar as amizades exclusivamente por interesse dos pais durante um jantar insuportável e interminável com uma apresentação maçante de piano.
O instrumento era a lembrança horrivelmente perfeita de tudo aquilo que me prendera em todo aquele tempo. A obrigação tinha destruído meu prazer pela música. A pressão de todos tinha pisoteado a minha vontade de aprender coisas novas. As expectativas altas que não acompanhavam qualquer tipo de incentivo criaram ainda mais decepções. Tudo que eu quis nos últimos anos foi um tempo completamente afastada de todo a nuvem de caos psicológico sob a qual meus pais me colocavam para tomar chuva. E, agora, eu sentia um ódio mortal por ter de ser dessa forma.
Era difícil ter algum tipo de contato além do básico - bom dia; com licença; obrigada - com alguém que não as freiras. Todas as meninas estavam tão emburradas por estar ali que qualquer contato social parecia um pouco demais, era literalmente a definição de “forçar a barra”. A única que raramente falava comigo era Gabrielle, filha de algum cirurgião incrivelmente bem sucedido e absurdamente ocupado para cuidar da própria filha. Gab e eu definimos o internato como o símbolo do fracasso da paternidade de nossos (não) queridos progenitores. Pareceu duro de início, mas logo se mostrou real demais.
No primeiro Fim de Semana da Família Unida a Deus - como as madres gostavam de chamar -, nossos pais não apareceram. Na verdade, foram poucos os que o fizeram. Alguns irmãos e irmãs se fizeram presentes para os poucos que foram agraciados com a sorte seletiva da fraternidade. Alguns funcionários de longa data apareceram por apego com as meninas, dizendo aos ventos coisas como “Eu troquei as suas fraldas, preparei seus almoços. A senhorita faz falta naquela casa.”. A única vantagem daquele sábado deprimente foi o almoço especial com massas e doces que não comíamos há tempos.
Foram os ocorridos e os abandonos escancarados da primeira semana que aprofundaram a revolta de muitos. Incluindo a minha.
— A irmã Cora teve alguns problemas e não poderá ficar no corredor com vocês hoje - diz a irmã Constância para as garotas de nosso dormitório.
— Ela está bem? O que aconteceu? - Gabrielle pergunta.
— Ela está indisposta por uma enxaqueca muito forte. Logo estará de volta, com a graça de nosso Senhor. Porém, enquanto ela não volta, eu espero que as senhoritas mantenham o bom comportamento no período de reclusão nos quartos. Não temos mais funcionários disponíveis para assumir a ronda noturna por aqui, então confiamos na manutenção de sua boa conduta em grupo e respeito à irmã Cora.
Com a porta fechada, estávamos sozinhas para digerir o que aquela notícia estranha significava de fato.
Gabrielle voltou para a sua cama e eu me deitei abaixo dela no beliche. As outras garotas rapidamente começaram a substituir os pijamas por roupas casuais.
— O que estão fazendo? - Gab perguntou.
— Aproveitando os poucos e milagrosos instantes de liberdade - Martha respondeu. — Vamos passar a noite no quarto das garotas mais velhas. Elas conseguem trazer bebidas e outras coisas para o dormitório. Vocês vêm?
Confesso que tive de pensar duas vezes antes de menear a cabeça em negação. Alguma parte de mim queria muito passar algum tempo tranquilo, mas a porção consciente sabia que uma noite alcoólica não tinha como acabar bem.
— Bom, espero que não seja um problema para vocês e que não nos deduzem para as madres.
— Temos mais o que fazer, Martha - Gab respondeu, enquanto jogava repetidamente para o alto uma bolinha estrelada. — Tipo dormir.
Martha deu de ombros e saiu juntamente às outras meninas, fechando a porta atrás de si. Com o som da porta sendo fechada, Gab pulou do beliche e começou a se trocar também.
— Pensei que você ia dormir - comentei, repousando meu livro no criado-mudo. Aquela era uma das poucas coisas que nos permitiram trazer
— Eu vou. Quer dizer, em algum momento. Definitivamente não agora. E você também não deveria ficar lendo esse livro tosco.
Ajeitei meu corpo rapidamente, encostando as costas na parede com alguma força - o suficiente para prever um daqueles roxos de que eu não me lembraria no dia seguinte.
— Jamais repita um absurdo desses sobre Jenny Han! Esse é um daqueles romances que te deixa suspirando do título até o fim do último capítulo.
Gab riu alto, jogando-se ao meu lado sobre o colchão.
— É tão romance fictício que dá tudo certo no final. Tenho certeza de que dá, não?
— Sim, Peter e Lara Jean ficam bem no final. Bem e maravilhosos como o melhor casal de todo o universo.
— Peter e Lara Jean não existem no nosso mundo. E você está trancada nesse internato idiota e precisa conhecer o mundo de verdade lá fora.
— O mundo nos livros é muito melhor que essa merda toda. Por sinal, você sabe que eu estou aqui exatamente por fugir de casa para conhecer o mundo lá fora, certo?
— Mas não conhece o mundo fora desse lugar. Acho que precisamos dar uma chance a isso. Não vai acreditar no que eu descobri durante a semana com muita observação durante a insônia noturna causada por esse colchão horrível e esse travesseiro pior ainda.
— Pelo amor de Deus, diga que não tem nada a ver com resíduos escatológicos alheios - pedi, recebendo em resposta uma cara de completa ojeriza dela.
— Que tipo de pessoa você pensa que eu sou? Credo! Enfim, não é nada disso, sua tolinha. Olhe pela janela.
Olhando pelo amplo vazio que avistávamos pelo vidro, percebi o restaurante do outro lado da rua. Não era dos mais amplos e espaçosos, mas tinha toda uma decoração externa aconchegante que me deixava curiosa para saber como era por dentro. Não era como se tivesse outra coisa interessante em nossa vista. O movimento no estabelecimento era uma das poucas e monótonas distrações noturnas que tínhamos enquanto o sono não vinha.
— Você realmente só percebeu o restaurante agora? - Faço a pergunta porque para mim a presença dele por ali fora bem óbvia desde o princípio.
Gab revira os olhos para mim e coloca as mãos ao lado de minha face, trazendo meu rosto para baixo.
— Não sou cega. Eu sei sobre o restaurante. Estou falando do muro. Já tinha percebido como ele é próximo de nossa janela? E nem é tão alto.
— Não estou gostando nada do rumo dessa conversa.
— Bom, eu simplesmente não ligo. Prosseguirei. Em minhas observações, percebi que as freiras têm o cuidado dos corredores, mas nunca se preocuparam com o muro.
— Talvez porque nós tenhamos um toque de recolher restrito e vigilância das portas.
— Exatamente - ela concordou. — E é por isso que nós vamos nos trocar e dar um passeio.
Meus olhos se arregalam involuntariamente, mesmo que meu subconsciente já estivesse esperando essa ideia maluca e descabida. É simplesmente mais forte do que eu.
— Não tenho intenção alguma de fugir. Darão falta de nós pela manhã e acionarão a polícia. Tem noção da merda que isso tudo vai dar?
— Eu sei, meu anjo. É por isso que eu usei claramente a palavra “passeio”. Não estamos indo embora. Só… Dando uma volta. - Ela sorriu zombeteira e começou a se trocar sem sequer esperar que eu pudesse esboçar algum tipo de resposta ou reação.
Engoli em seco, mas comecei a me trocar também. A ideia de sair era amedrontadora, mas ao mesmo tempo libertadora. Um formigamento percorria todo o meu corpo, como se tivessem bichinhos invisíveis brincando de pega-pega pelo meu corpo. É nervosismo o nome. Com um quê de excitação por fazer algo que soava tão “perigoso”.
— Boa garota - Gab comentou sorrindo, enquanto abria a janela cuidadosamente, torcendo para que suas hastes não rangessem como uma mobília antiga.
— Para onde vamos? - Pergunto porque gosto de ter um plano. Ou ao menos uma noção das coisas que estão prestes a acontecer. Com certeza não sou a maior fã de surpresas.
— Para o restaurante fofo. Não é como se eu soubesse para onde ir além disso. Só tenho conhecimento do que está literalmente do lado de fora dessa janela.
— E você pretende pagar como?
— Lavando os pratos, oras. Não é isso que as pessoas fazem na televisão?
Dou um peteleco ardido no braço de Gab, que reclama enquanto massageia o ponto da agressão. Provavelmente, um vergão vermelho logo apareceria por ali.
— Era só uma brincadeira, sem noção! Claro que vamos pagar como pessoas normais. Vai me dizer que você não trouxe um cartão de crédito em algum canto meio escondido na mala só por precaução?
— Trouxe - murmuro, detestando o fato de ela sempre saber de quase tudo.
— Então, vamos usá-los.
— Você sabe que gastos em cartões de crédito são facilmente rastreáveis, não sabe? Nossos pais podem ver a qualquer instante o nosso extrato.
— Seus pais se importam o suficiente para olhar sua conta? Porque os meus não fazem a mínima questão.
Pisco algumas vezes, absorvendo o que parece um soco na boca do estômago. É muito fácil dizer que meus pais sempre foram ausentes e, principalmente, negligentes, mas quando é outra pessoa que diz… Ah, meu amigo, é aí que você sente o peso de verdade. E eu estou simplesmente cansada de ficar sentindo sempre esse peso sobre os meus ombros.
— Tem razão - concordo. — Vamos logo.
Basta que estiquemos um pouco os pés para alcançar o muro. Gab tinha razão: é perto o suficiente e fácil também. O problema é lidar com a altura para retornar ao chão.
— Anda logo! Não temos tempo para ter medo agora. Não podem nos pegar no muro - ela briga e me obriga a descer logo. Atiro meu peso para frente de olhos fechados, torcendo para que o ato cego consiga atenuar o impacto daquela súbita mudança em meu centro de gravidade. Mas fica tudo bem depois que meus pés já sentem o chão.
Olhamos em volta em um misto de nervosismo com deslumbre. Meu coração batia violentamente contra o meu peito. É só uma cidade e nem é das maiores, mas já é um impacto depois de uma semana completamente trancadas. Era como se, de repente, até o ar fosse mais leve.
— Vamos logo com isso - digo praticamente sem pensar. Praticamente porque isso não existe, mas ao mesmo tempo não é como se eu tivesse sido racional.
Atravessamos a rua rapidamente e logo estamos no restaurante. É exatamente como eu imaginei. Mesas redondas cobertas por toalhas de um tecido fino e claro, acompanhadas por delicados arranjos florais em tons de lilás e púrpura. O piso de madeira brilhosa reflete facilmente a luz do ambiente, criando pontos no chão como se fossem estrelas. Quando levanto o meu olhar, deparo-me com ele novamente. Um piano . Por alguns segundos perco o ar, pensando se isso não faz parte de alguma conspiração do universo que decidiu me atormentar.
— Você pode parar de agir dessa forma esquisita e só se sentar? Sabe, como uma pessoa normal faria. - A voz de Gab me tira de meus devaneios. Sento-me ao seu lado.
Em questão de minutos, um rapaz que não aparenta ser mais velho que nós aparece pronto para anotar nossos pedidos. Ele tinha feições suaves e serenas, como uma daquelas pessoas que parecem uma amizade fácil.
Gab pediu porções para nós duas. Enquanto esperávamos que os pratos chegassem, meu olhar perdido continuava no piano. Era como uma avalanche irritantemente repetitiva de lembranças e memórias que eu faria qualquer coisa para simplesmente esquecer. Afinal, quão idiota era remoer os feitos de uma família que te deixou para trás sem pensar duas vezes? Tenho certeza de que não pensaram sequer a primeira vez.
O movimento foi diminuindo aos poucos, assinalando o tempo que já passava. Corria pelos dedos como areia seca. Eu balançava o resto da bebida de um lado para o outro, menos entediada que verdadeiramente afoita.
— Com licença, vocês gostariam pedir mais alguma coisa? - Era o garoto de sorriso fácil. E ele estava sorrindo.
— Sim - Gab respondeu rapidamente. — Eu gostaria de saber sobre aquele piano ali. Minha amiga ficou a noite inteira encarando o coitado e agora eu estou curiosa. Vocês têm música ao vivo?
O rapaz sorriu mais abertamente. Era como se o mundo inteiro tivesse parado para iluminar apenas seu rosto.
— Temos ocasionalmente. Geralmente às sextas-feiras.
— E são aqueles pianistas chatos de restaurante de hotel cinco estrelas ou algo que dê menos vontade de dormir?
Arregalei os olhos para a minha amiga, como em uma bronca por sua educação deplorável. Não era como se eu fosse a Miss-Perfeição-Completa, mas Gab tinha chegado ali sem nenhum tipo de filtro. Simplesmente não havia nada que a impedisse de falar coisas que poderiam machucar alguém direta ou indiretamente. Mas ele riu. Mesmo que fosse aquele riso nervoso, ainda era uma risada. E era o suficiente para quebrar o climão.
— Na verdade, sou eu quem toca às vezes. Parece meio tendencioso que seja eu a te dizer se a música é péssima ou não.
— Talvez nós devamos aparecer aqui amanhã e responder isso por você, então - sugiro. E quase não acredito que o fiz.
Ele sorri abertamente mais uma vez.
— Parece uma boa ideia - ele concorda. — Sou , aliás.
— - respondo. — E a boca aberta é a Gabrielle.
Recebo um tapa em meu braço.
— É um prazer conhecê-las. Você toca?
Respiro fundo antes de jogar o balde de água fria. parece tão animado que sinto certa pena em ter de fazê-lo.
— Tocava. Mas eram apenas os clássicos por livre e espontânea pressão da minha mãe. Isso acabou me deixando meio revoltada e aversa. Então, acho que a sua resposta é não.
— Isso é bastante deprimente. É meio inacreditável para mim que uma pessoa possa simplesmente abandonar a música assim. Você não tem vontade de voltar a tocar? Algo que você goste dessa vez.
— Talvez. É, pode até ser uma boa ideia.
— Posso te ajudar com isso - ele se oferece. — Quando quiser. Estou sempre por aqui, afinal. Trabalhar com o seu pai tem algumas vantagens. Ou desvantagens. Depende do seu ponto de vista, na verdade.
— Ok, acho que é hora de irmos. , pode trazer a conta? - Gab pede, cortando completamente o momento.
— Claro! É para já.
Ambas observamos enquanto ele caminha em direção ao balcão. Gab, de repente, lança um olhar malicioso - e um tanto assustador - diretamente para mim.
— O que é? Pare de me encarar assim.
— Eu não sabia que a princesa sabia flertar. Estou muito orgulhosa.
— Ah, cale a boca!
— Isso não vai dar certo - reclamo, completamente frustrada. — Eu estou enferrujada demais para sequer tocar em duas teclas que façam sentido.
ri de sua forma absurdamente doce. Quando ele se aproxima e faz menção de ocupar o banco, chego para o lado de forma a dar espaço para ele. Ficamos, então, os dois dividindo aquele assento. Seu braço encosta levemente no meu e eu sinto algo que parece um choque percorrendo a porção de minha pele que está em contato com o calor que emana dele. Parece exatamente o tipo de sensação que Nicholas Spark tentaria descrever em um de seus romances. Uma daquelas que você acha romanticamente idiota até que sente o mesmo e finalmente entende o impacto daquilo.
— Vamos tentar assim - ele diz calmamente e leva seus dedos finos para as teclas, tocando-as devagar o suficiente para que eu possa compreender. Fico me sentindo como uma criança sendo ensinada do zero. Parece idiota. — Eu sei o que você está pensando. Não se culpe. Tocar é como andar de bicicleta, sabe? Você nunca esquece de verdade, mas precisa de um pouco de treino até que consiga se equiparar depois de tanto tempo.
Dou uma risada nasalada.
— Droga, eu também não sei andar de bicicleta - admito.
— Ah, não. Agora você está simplesmente zombando de mim.
— Não estou, . Ninguém nunca fez questão de tirar um tempo para me ensinar e me ajudar. Quando eu pedi uma bicicleta de Natal, minha mãe disse que eu era uma garota e garotas não podem ter os joelhos marcados por arranhões e cicatrizes. Disse que, se algum dia esse tipo de coisa acontecesse, as babás teriam ordens expressas para me deixar sangrando até aprender a me comportar.
E é assim, senhoras e senhores, que você destrói a noite de alguém. E a sua também. De nada pelo toque. Realmente não há de quê.
— Eu sinto muito por você ter passado por esse tipo de coisa. Espero que saiba que ela estava errada. Qualquer um precisa de uns arranhões de vez em quando. Não tem nada de errado em ter cicatrizes.
Sorrio involuntariamente. Ter alguém se preocupando em oferecer algumas palavras de conforto é mesmo uma grande novidade para mim.
— Obrigada. De verdade. E, sim, eu sei. Não é como se eu fosse concordar com algo que minha mãe dizia depois de tudo.
— Acho que ela não merece isso mesmo. - deu de ombros, tentando agir como se a situação fosse incrivelmente banal. — Vamos do começo? Tenho certeza de que você está louca para me provar a grande pianista que há em você.
— Acho que a grande pianista está tirando um cochilo pela eternidade, como a Bela Adormecida.
— Você não se parece em nada com aquela doida com inclinações suicidas. Vamos, hora de acordar dessa soneca. Só você pode enfrentar esse trauma.
Respiro fundo antes de levar minhas mãos ao piano novamente. Repasso mentalmente a sequência que tinha apresentado e reproduzo da melhor forma que consigo. O resultado acabou surpreendendo a nós dois. Eu tinha acertado.
— Viu só? - Ele estava verdadeiramente animado. — Eu sabia que você conseguiria. Só precisava de um empurrãozinho.
— Obrigada por me empurrar.
Sorrio sinceramente em agradecimento e recebo um daqueles sorrisos incríveis que só ele consegue dar. De repente, concordo com ele. Tudo o que eu precisava era de uma sacudida que derrubasse o peso do mundo de meus ombros.
— Você parece inquieta - diz ao me ver chegando ao restaurante.
Devo mesmo estar parecendo uma louca para que até ele precise me lembrar disso.
— Algo de errado no seu processo rotineiro de fuga, garota rebelde?
— Primeiramente, não acho que eu seja rebelde. Acho que o termo mais acertado é “mal compreendida”. Mas não, não é nada disso - admito. — Gab entrou em algum tipo de acordo com a irmã Cora para que ela fizesse vista grossa. Só espero que ela não esteja subornando uma freira.
— Parece exatamente algo que ela faria - ele comenta e eu sou obrigada a concordar. — Então, o que é que está te estressando tanto?
— Irmã Constância anunciou hoje algo como uma versão sem graça de um show de talentos. É mais um tipo de competição criativa. Cada uma terá que apresentar um trabalho completamente autoral. Ela deu exemplos de artesanato, pinturas, fotografias, escrita e por aí vai.
— E o que você quer fazer?
— Exatamente o que está fora da lista. Pensei em compor uma música. Na verdade, eu até já tenho alguns rascunhos de letras que escrevi quando não tinha nada de mais interessante a fazer. Basicamente, significa que eu estava sempre escrevendo.
sorri de uma forma tão aberta que cria covinhas inéditas nos cantos de suas bochechas. É uma das coisas mais adoráveis que já vi.
— Acho uma ideia incrível.
Mas, ao mesmo tempo que quero muito acreditar nele, penso que talvez ele só esteja tentando me apoiar mesmo sabendo que é uma ideia fadada ao fracasso completo. Até algum tempo, eu mal me lembrava da sequência de sons que poderia tirar do piano e, de repente, quero ajuda para compor uma melodia? Talvez fosse pedir demais do meu supostamente enferrujado talento.
— Quer saber? Esqueça. Não vai dar certo - digo. — Será um evento totalmente aberto ao público e eu não quero envergonhar as outras meninas que realmente têm algo a oferecer.
— Mas quem te disse que você não tem? , você superou um trauma e o converteu em um hobby. Tem alguma noção do verdadeiro impacto disso? Você enfrentou um fantasma do passado e criou um companheiro do presente. Sua música é algo incrível a se oferecer.
Penso por alguns instantes, engolindo aquele nó na garganta que me faz ter vontade de chorar. Acontece todas as vezes em que ele me acolhe dessa maneira, relembrando-me de meu próprio valor e força. No entanto, por mais difícil que fosse, nunca tinha derrubado uma lágrima sequer em sua frente. Ao menos, não até esse momento.
Sinto seus braços envolvendo o meu corpo e permito que os meus percorram o mesmo caminho. Pela primeira vez em anos, deixo que alguém me conforte. Permito-me desabar em seus braços porque sei que ele se importa. E, pela primeira vez, tudo parece fazer algum tipo de sentido. Por mais complicado que ele fosse.
— Vamos fazer isso, ok?
— Ok - respondo sorrindo.
Meus dedos correm para minhas bochechas, secando-as. Esfrego levemente as pálpebras, na intenção de mandar o choro embora. É quando percebo que estou muito mais leve do que já estive algum dia.
— Acho que, para começar, você deveria me mostrar essas letras - ele diz.
Retiro meus papéis da bolsa e os entrego a ele após aceitar sua mão que me conduz até o piano.
Naquele momento, enquanto seus olhos hábeis percorrem meus rabiscos de forma voraz, percebo que aquilo era tudo o que eu precisava. Talvez, a história do anjo da guarda que contavam fizesse algum sentido no fim das contas. E, se isso realmente existisse, tenho certeza de que o meu era o rapaz de sorriso fácil que se sentava ao meu lado e me incentivava a cada passo que eu dava para fora de toda aquela bolha da filha perdida.
Embrulhado. Dolorido. Enjoado. Era assim que ela sentia o seu estômago cada vez que mais uma pessoa entrava e se acomodava para o evento. Parecia uma máquina de lavar que batia as roupas com força cada vez que mais uma pessoa entrava. Ela estava ansiosa para se apresentar e receosa sobre o resultado. Pior ainda, estava receosa por não ter dito que sua apresentação seria com uma música inédita. Havia declarado que era um “objeto artístico” e todos concordaram sem pestanejar. Talvez estivessem pensando em um pote de barro.
Como esperado pelas sugestões, várias meninas apresentaram artesanatos (como almofadas, toalhas bordadas e até bijuterias), pinturas em quadros, desenhos em grandes folhas brancas ou coloridas, dobraduras, fotografias, etc. Até que chegou a minha vez. A única louca que precisava usar o piano intocado.
Quando estava prestes a me sentar, senti aquele frio esquisito percorrendo todo o meu corpo. A adrenalina, a boca seca, a respiração acelerada e o coração socando meu peito como se estivesse lutando boxe profissional ali dentro. Eu definitivamente iria desistir.
Quando estava prestes a dar um passo para trás, encontrei o rosto de na primeira fila. Meneei a cabeça para ele, assinalando que não poderia fazer isso. O movimento de seus lábios dizia precisamente “Você consegue”. Mas não foi isso que me deu o chute na bunda final que eu precisava para enfrentar aquilo. O que me impulsionou de uma vez por todas foi perceber a presença inesperada dos meus pais. Seus olhares pareciam desafiadores, como se quisessem provar um ponto por ali. O ponto era a minha incompetência. A minha fraqueza. E eu definitivamente não daria esse prazer para eles. Eu faria aquilo. Não tinha qualquer outra escolha possível naquele momento. Simplesmente comecei a tocar.
Wake up here I go
(Acordo, aqui vou eu)
Cram it all down my throat
(Empurro tudo garganta abaixo)
Stomach so full that I wish I could choke
(Estômago tão cheio que eu queria poder engasgar)
7 Am my heads already in a spin
(7 da manhã e minha cabeça já está girando)
As soon as I'm out that door
(Logo que saio por aquela porta)
Bam it hits me like a ton of those red bricks
(Bam, me acerta como uma tonelada daqueles tijolos vermelhos)
Can't dig myself out of this highest ditch
(Não consigo cavar para sair dessa grande vala)
This madness
(Essa loucura)
Finalmente chego à minha parte favorita: o refrão. Sua melodia se torna suave de repente e evidencia a importante relação que construí com a música nos últimos tempos.
I swear sometimes I can't tell
(Eu juro que às vezes não consigo dizer)
Which way is up
(Que direção é para cima)
Which way is down
(Que direção é para baixo)
It's all up in my face
(Está tudo na minha cara)
I need to push it away
(Preciso tirar isso)
Somebody push it away
(Alguém tire isso)
So all that I can hear
(Para que tudo que eu possa ouvir)
Is a simple song
(Seja uma simples canção)
Sing along now
(Cantem comigo agora)
La la la la la la
La la la la
La la la la la la
La la la la
Retorno ao primeiro tom. Finalmente tenho o fôlego e a coragem para aproveitar aquele momento de verdade.
Mid day sun beating on the concrete
(Sol do meio-dia batendo no concreto)
Burning up my feet
(Queimando os meus pés)
Too many cars on the street
(Muitos carros na rua)
The noise
(O barulho)
The red
(O vermelho)
The green
(O verde)
Makes me wanna scream
(Me faz querer gritar)
5 O clock now
(Cinco horas agora)
It's bumper on bumper on bumper
(Para-choques em para-choques em para-choques)
Horns honking
(Buzinas buzinando)
Nobody’s looking
(Ninguém está olhando)
But everybody’s talking
(Mas todos estão falando)
It's another day
(É um outro dia)
On this highway
(Nessa auto-estrada)
Retomo o refrão com naturalidade. É como se fizesse isso por toda a minha vida. Nunca me senti tão bem desse jeito. É como se finalmente tivesse encontrado um lugar para mim em meio a toda a loucura do mundo.
What I'd give to turn it off
(O que eu faria para desligar isso)
And make it stop
(E fazer isso parar)
Make it stop
(Fazer isso parar)
Gotta make it stop
(Tenho que fazer isso parar)
So all that I can hear
(Para que tudo que eu consiga ouvir)
Is a simple song mmm
(Seja uma simples música)
Quando termino, as pessoas estão aplaudindo. Agradeço com um sorriso orgulhoso. Orgulhoso de mim. Orgulhoso do meu trabalho. Orgulhoso de como eu consegui tirar força de uma das minhas maiores fraquezas. É a incrível sensação de um trabalho cumprido. E cumprido por uma superação.
Abandono o local rapidamente, buscando a área externa para encher meus pulmões de ar. É como se o peso dos meus ombros tivesse simplesmente me abandonado.
— Você foi simplesmente incrível - aparece comemorando. Ele segura a minha mão e me gira. É impossível não rir de sua atitude. Sinto meu corpo se aquecendo finalmente depois de tanto suar frio. — Eu estou tão orgulhoso.
— Mas nós não estamos.
É a voz de minha mãe. Seu semblante é duro, assim como o de meu pai. E, pela primeira vez, eu absolutamente não me importo.
— Olá para você também, mãe. Fico feliz que tenham me visto tocar.
— Tocar?! Aquela porcaria sequer pode ser chamada de música. É simplesmente barulho. E um barulho incômodo.
— Essa é o ponto, mãe. Eu não pedi a sua opinião.
— Você não tem o direito de falar assim com a sua mãe. - Meu pai apontava o dedo na minha cara. — Você veio aqui para se recuperar desses maus comportamentos, não para se tornar essa louca rebelde.
— Acho que rebelde não é a palavra mais apropriada - intervém. — Mal compreendida é mais correto.
— E quem é esse moleque?
— Sou o , prazer. Aquele que decidiu apoiar a sua filha.
— Então já pode ir embora.
— Vocês vão ter de me perdoar, mas eu não vou a lugar algum.
Minha mãe faz uma cara de quem está completamente indignada. De repente, percebo que estou feliz que ela esteja.
— Então é assim que as coisas são agora, ? Não dá valor à sua família? - Ela tem a cara de pau de perguntar enquanto se vitimiza como de costume.
— A uma família que nunca se importou comigo? Não, obrigada. Estou bem assim.
— Espero que saiba que as coisas não vão ficar assim - ela cospe as palavras e vira as costas, carregando meu pai que ainda fuzila com ódio.
Quando a imagem de ambos some de meu campo de vista, expiro fortemente, deixando que os sentimentos ruins sejam soprados para fora de mim. passa os braços ao redor de mim.
— Eu não sei como as coisas vão ser daqui para frente - admito, mas ele me interrompe.
— Ninguém nunca sabe. Mas vai ficar tudo bem.
Quando ele deposita um beijo no topo de minha cabeça, concordo com ele. Vai ficar tudo bem.
Fim
Nota da autora: Eu amo tanto essa música que dá até medo.
Por favor, digam o que acharam aqui nos comentários.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo
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