Capítulo único
Com a reconstrução lenta das cidades no reino de Sonteperl, nunca foi tão imprescindível a formação de um novo exército, agora maior e ainda mais forte. ainda engolia as baixas do último embate com amargor. Cada homem que perdia para as mãos dos inimigos significava também mais uma família desfalcada por aí. No fim, todos eles eram mais do mesmo: homens que só querem garantir a segurança e proteger aqueles que amam. Apesar de ter sido introduzido desde criança às batalhas, sob os olhos e asas do rei Alberlorh Slonce, o peso da responsabilidade de carregar uma nação nas costas nunca parecia aliviar.
nunca conheceu os pais. Cresceu com os cuidados dos trabalhadores do castelo, ao lado da princesa Meriana, que assim como ele, nunca teve a chance de ver os brilhos nos olhos da mãe. Tudo por causa da grande guerra de pouco mais de duas décadas atrás que destrinchou o Império Dourados em outras ramificações menores. Sonteperl, o resultado de uma delas. Enquanto Meriana aprendia bons modos e era impedida de conhecer o exterior por receios de sofrer alguma espécie de atentado, se deparava com o mundo real. As lembranças de si correndo pelo vilarejo, aterrorizando os comerciantes em suas tendas, implorando por quitutes ainda eram tão saborosas quanto às uvas que compartilhavam consigo. Ao mesmo tempo em que aprendia a viver o frescor de ser uma criança sem amarras, as espadas de madeira e os primeiros golpes de autodefesa começavam a ser introduzidos em sua rotina. Foi a forma que encontrou de ficar mais forte. Participar de pequenos treinos era uma chance de retribuir todo acolhimento que recebeu do rei e uma oportunidade de defender a honra do lugar onde nasceu.
Diferente do que parte dos feirantes acreditava, o atual general nunca se sentiu órfão apesar de não ter conhecido os pais. Seria forçar a barra ele insinuar que sentia a falta de duas pessoas que mal guardava em memória. De fato, o homem às vezes se pegava distraído, curioso, cogitando como seria conversar com os progenitores. Pelas histórias que contavam nas cozinhas, eles morreram como herois, carregando as honras de terem partido defendendo os iguais, como ele fazia agora. Também, a presença e o cuidado constante que os membros reais prestavam era o suficiente para preencher qualquer vazio que viesse a criar. Eles não eram uma família convencional. Contudo, era como se Alberlorh fosse seu pai e Meriana sua irmã mais nova, ainda que compartilhassem da mesma idade. Os olhares de ternura, os conselhos, as cervejas compartilhadas... havia sido presenteado na vida com laços além da morte.
Por eles, lutaria.
Por eles, morreria.
Ao mesmo tempo em que aprendia o que era amar, precisava aceitar odiar. No campo de batalha, junto com a esperança que carregava de trazer uma vida mais tranquila aos cidadãos de Sonteperl, ele tinha o temor. Criar laços era um caminho de duas vias, as relações que o fortaleciam para avançar com as tropas eram as mesmas que faziam seu íntimo tremer. Ninguém estava imune em uma briga, ele mal podia mensurar do que seria capaz, se algo viesse a acontecer com aqueles que lhe interessavam. Por isso, em campo, seria uma vida pela outra. mataria sem piedade pelos seus.
- General, os recrutas estão o aguardando no campo para novas ordens. – Lector Elara, o braço direito, apareceu nos aposentos com a usual postura ereta e fala polida.
- Me deem mais uns instantes, por favor, Lector.
O recém-chegado assentiu levemente com a cabeça antes de fazer uma referência e deixar o cômodo.
Com a ramificação do Império Dourados, os vários distritos e reinos que sobreviveram tiveram dificuldades para se reestruturar. Sonteperl ainda se levantava em passos pequenos e quando as cidades estavam próximas de alcançar os dias de glória outra vez, o inimigo vinha e os atacava com brutalidade. via suas tropas cada vez mais exaustas e reduzidas. A sucessiva série de ataques surpresa mal permitia que eles pregassem os olhos. Não importava quem estava na liderança dos mascarados que portavam a flâmula cinzenta, o objetivo deles estava escancarado: aniquilar tudo que restara do antigo Dourados. Não bastassem os ataques em terra firme, interferências mágicas começaram a surgir nos quatro pontos cardeais de Sonteperl, sem a permissão dos oficiais. Por meio de portais, criaturas mágicas – que apelidavam de aberrações – brotavam, determinados a destruir tudo que estivesse à frente. Aquilo só podia ser obra dos Celestiais – pessoas nascidas com habilidades mágicas. Se antes já estava difícil abater o inimigo numeroso, o acréscimo de mascotes celestiais apenas reforçou a sobrecarga que os soldados estavam sofrendo. O rei, cansado de ler relatórios desanimadores e compadecido dos esforços do exército de , enviou uma carta especial e restrita ao Reino dos Celestiais pedindo por compreensão da rainha dos Guardiões.
✨
Sobre um palanque, diante dos novos recrutas que iniciariam os treinos pesados nos próximos dias, se pegou sendo fisgado por um sentimento saudosista. Fechou os olhos por um breve momento. A vontade de mostrar serviço e o brilho de determinação que encontrava em cada olhar enquanto passeava pelas fileiras de homens alinhados o fazia se lembrar de certo alguém.
A decisão do rei Slonce de apelar aos guardiões ainda era contestada pelos conselheiros reais. Ninguém em Sonteperl tinha bons olhos para as criaturas celestiais. Há vinte anos, elas – ou pelo menos parte delas – contribuíram para a destruição em massa de Dourados. Aqueles que viveram para contar ainda guardavam os traumas dos feixes de luz coloridos disparando para todos os cantos, dos fenômenos da natureza criados para render os civis. Após o fim da guerra, foi assinado um tratado onde Celestiais e interferências mágicas jamais deveriam fazer parte do cotidiano das terras de Alberlorh, a menos que fossem requisitados. O acordo funcionou... Até agora.
Duas guardiãs foram enviadas como reforços.
Para que evitassem uma possível revolta civil e as intenções do rei seguissem conforme o planejado, as Celestiais pisariam nas terras com histórias combinadas e disfarces pré-estabelecidos. Eles podiam tentar ignorar a existência dos seres mágicos, porém não o rancor dos civis. Sendo assim, , a especialista em barreiras mágicas, seria anunciada como a noiva prometida ao general, vinda de um reino distante. A outra, Reina Feith, seria uma órfã da cidade de , recrutada para auxiliar nas tarefas do castelo. Ambas deveriam descobrir as origens dos portais e eliminá-los antes que mais criaturas pudessem causar destruição.
Maravilha.
havia saído com uma carta secreta em mãos e retornado com uma esposa. Por aquilo, nem ele esperava. No entanto, era ordem do rei, uma missão extraordinária em outras palavras. Precisaria engolir mais essa. Slonce só parecia ter apagado da cabeça o fato dele ser o único homem responsável pela segurança e defesa de todos do reino, ou seja, não havia espaço para romances.
- Não é como se eu estivesse louca para me casar com você. – Fora uma das primeiras coisas que ouviu despejar assim que chegaram aos aposentos que passariam a dividir – Está de prova que perdi no teste da Oráculo para Reina! – pareceu enfurecer ainda mais com as lembranças.
No caminho do Palácio dos Guardiões para Sonteperl, foi obrigado a assistir sua devoção ser empurrada como uma batata quente prestes a explodir entre as guardiãs.
- Casa você! – Reina jogou para .
- Eu não! Você é que tem mais cara de casada. Casa você, Reina!
- Sou a mais velha. Tenho o poder de decisão, portanto casa você.
- Exatamente. É a mais velha, está mais bem preparada para tal posição. Não posso me entregar assim.
Ao lado de , Lector presenciava a discussão de olhos esbugalhados. O braço direito parecia mais assustado com a presença delas do que com o pássaro gigante de duas cabeças que eliminaram uma semana atrás.
- Só tem um jeito possível de sairmos daqui sem arrancar a cabeça de ninguém. – fuzilava a amiga.
- Tenho certeza que está pensando exatamente a mesma coisa que eu. – Reina retribuía a hostilidade, batendo os dentes com força.
- O “Destino pelo Oráculo”. – ambas revelaram por fim, mas os homens continuavam sem entender.
- Destino pelo Oráculo? – Lector deixou escapar em voz alta.
- Sim. Você já vai ver, homenzinho. – acompanhou Reina sair um pouco da trilha que seguiam na caminhada e logo retornar com uma flor em mãos – Eu começo. Reina casa com o general. – arrancou uma das pétalas alaranjadas.
- casa com o general. – a ação foi copiada.
- Reina casa com o general.
[...]
- casa com o general.
Com a alegria retirada de si e muita lástima, acompanhou a última pétala alcançar o chão. não poderia estar mais entediado.
- Pelas fezes de um cavalo alado! – balançou os braços em direção ao céu, deixando os ombros caírem um pouco em seguida.
Pelo visto, a apatia seria mútua entre os noivos.
✨
A divisão da cama não foi uma decisão consensual. Por ele, a esposa falsificada dormiria no chão, ou em qualquer canto do quarto que desejasse, com exceção de sua enorme, macia e invejável cama.
- A cama é minha. É óbvio que eu tenho que dormir nela.
- Cadê a sua gentileza, general? – bateu as botinas brancas com impaciência.
- No lugar de sempre. – retrucou simplesmente – Se me lembro bem, está aqui por uma missão, guardiã. Não são férias. Lide com as adversidades.
- Incrível! Meu marido é um ogro.
- Não é de verdade! – referiu-se à relação entre eles, revirando os olhos.
- Mas precisamos fingir. – Pontuou com o dedo em riste para ele – Poderia começar o teatro de bom marido me cedendo a cama.
- Nem pensar.
- Então, vou dormir com Reina no castelo.
- Não! – o general entrou em pânico, eles precisavam dividir o cômodo, se quisessem que o teatro funcionasse – Somos casados! – apontava o dedo para ela e depois para si, repetindo isso várias vezes para ilustrar a situação – Como ficaria a minha reputação, se descobrirem que minha mulher dorme fora?
- Eu não sei? – não poderia ligar menos – Não estou aqui para elevar sua moral, . Salvar sua bunda, sim. Mas a moral... – balançava a cabeça em negação, dando um estalo na boca.
- Não sairá deste quarto enquanto o sol não aparecer, . Não vai estragar os planos do rei.
- Os planos do rei... – ela repetiu desgostosa – Vou fingir que é só por isso mesmo. Está tudo bem. Você venceu. Dormirei no chão. Depois da extensa caminhada que seus homens e você nos obrigaram a fazer, estou muito cansada para brigar.
- Queria vir como, querida? – usou todo o cinismo acumulado – Voando?
- Não era uma má ideia! – devolveu, ajeitando-se sobre as várias camadas de lençóis que improvisaram – Um portal seria ainda mais rápido e fácil. – apalpou o travesseiro.
- Como iríamos explicar isso aos civis, maluca? Já temos problemas demais com portais.
- Problema seu.
o grunhiu, apertando o próprio cobertor com ódio. Era bom que tivesse habilidades com barreiras, isso o impediria de esganá-la. Foi com o sangue fervendo e sem sinalizar à guardiã que o dono do quarto soprou as velas, deixando-os em um completo breu. Com as discussões dando-se por encerradas, ambos fecharam os olhos com o sangue ainda borbulhando. Aquela seria a primeira de outras várias longas noites.
Resiliência foi uma qualidade que desenvolveu na Academia dos Guardiões. Ela se adaptava bem em cenários diversos, mas se havia chance de também desfrutar de um colchão merecidamente, ela o faria. Foi com essa determinação que aguardou o novo marido cair no sono para agir. Com cautela, permitindo-se guiar pelas poucas frestas de luz da lua que invadiam o recinto, a guardiã foi tateando o piso até encontrar um dos pés da cama. Ainda cuidadosa, escalou o colchão, movimentando-se sobre a superfície macia sem ousar respirar ou fazer qualquer outro ruído que pudesse despertar . Lentamente, foi soltando o peso do corpo até senti-lo afundar por completo no espaço livre da cama. Como havia dito mais cedo: a cama era grande o suficiente para eles dois. não era capaz de ocupar tudo sozinho, tornando-o automaticamente um egoísta por negar conforto a ela.
Na manhã seguinte, o pânico veio à tona quando se deparou com a respiração serena de ricocheteando contra seu nariz ao abrir os olhos.
- Mas o que é que você faz aqui? – aumentou o tom de voz, levantando-se com brutalidade, checando se as roupas ainda estavam em seu devido lugar, temendo que pudesse ter abusado dela inconscientemente no meio da noite – O quê aconteceu? – balançou a parceira pelos ombros.
Pelo sono leve que nutria, acordou com o coração acelerado. As pálpebras ainda grudadas pela sonolência desejaram voltar a se fechar por completo com a claridade entrando por todos os lados
- O que houve? – perguntou ao vento, sem condição de ouvir uma resposta. Pôs-se a colocar sentada com uma calmaria que faltava no outro.
- Por que você está aqui, guardiã?
- Hm? – ainda coçava os olhos.
- Seu lugar era no chão!
No momento que o cérebro se colocou para funcionar, entendeu o drama de .
- Te disse que havia espaço suficiente para nós dois. – explicou com a voz arrastada.
- Tem ideia da besteira que achei que tínhamos feito? – exasperou, deixando a cama para andar de um lado para o outro.
- Não precisa ficar tão nervoso! – deitou-se outra vez, pesarosa por ter o sono interrompido sem um motivo plausível.
- Não ficar nervoso? – o timbre subiu um pouco mais – Você é uma mulher... Eu sou um homem... Nós deitados... Na mesma cama... – parecia que ele iria ter um colapso mental a qualquer instante, tal possibilidade arrancou um riso frouxo de .
- Fica tranquilo. – Abanou as mãos no ar. – Não existe sentimento, então está tudo bem.
pensou bem nas palavras dela. não estava toda errada.
- Sem sentimentos. Sem problemas. – Reiterou em voz alta, abrindo a porta do quarto.
- Para onde está indo? Está muito frio... E cedo! – choramingou.
- Treinar. Não posso me dar o luxo de perder tempo. Passarei no campo de treinamento para checar os recrutas. Você pode dormir. Volto em breve, não se preocupe...
- Até mais! – não se importou, rolando e aninhando-se com os lençóis da cama até ficar de costas para a porta, pronta para retornar ao mundo dos sonhos.
✨
Com a presença das guardiãs no reino, se viu obrigado a redobrar a atenção sobre tudo que controlava ao invés de relaxar. Elas ainda não eram confiáveis. Passava os dias e as noites alternando entre ficar nos campos de treinamento, avaliando os recrutas, e voltar para casa para introduzir a noiva e Reina à sociedade de Sonteperl. Elas já conheciam alguns comerciantes e parte das construções do vilarejo, contudo ele não podia simplesmente juntar as tropas e sair em caçada da cabeça dos inimigos, enquanto elas cuidavam da cidade.
Esse não era o combinado.
A rotina monótona, apesar de chata, não incomodava tanto à . Reina certamente tinha muito mais a desbravar nos extensos corredores do castelo dos Slonce, ainda assim as criaturas que brotavam nos portais eram aventura suficiente para a guardiã mais nova. Um pouco de tensão à tarde para compensar as manhãs relaxantes e bem descansadas. Não havia um dia em que não era acordada, devido ao sono leve, com atravessando a porta prometendo que voltaria logo. Ela nada podia fazer. era um homem de muitas funções e carregava um peso importante no funcionamento do reino, cada um tinha suas tarefas programadas. No fim, ele sempre voltava mesmo.
✨
sabia como era ter uma família. As poucas tardes que passava escoltando a princesa Meriana o faziam despertar o instinto protetor de irmão mais velho. Por compartilharem a mesma idade, compartilhavam algumas confissões em meio às caminhadas nos jardins do castelo. Ela era gentil e se demonstrava muito aberta para receber ele e a esposa nos aposentos do castelo para um grande banquete assim que o cenário em Sonteperl melhorasse. Se ela ao menos imaginasse a farsa...
As reuniões noturnas com o rei e os Conselheiros, por outro lado, eram um pouco mais descontraídas. Ali, todos tinham conhecimento das guardiãs e da missão que estavam encarregadas de cumprir. Tendo uma dentro do castelo e outra mais próxima do vilarejo, as respostas deles aos ataques surpresas haviam melhorado. O Palácio dos Guardiões acertara em cheio na escolha dos reforços.
- Podem ser de uma raça maldita, mas que mulheres lindas... – um dos Conselheiros disparou entre uma caneca e outra de álcool.
- Bota malditas nisso, parece que foram esculpidas! Aqueles vestidos... – risadas maliciosas preencheram o salão.
Da posição onde estava, ficou rígido. Dominado por um acesso de raiva pelos comentários, esmurrou a própria caneca contra a mesa, fazendo todo o conteúdo dentro dela esparramar para os lados.
Silêncio.
As cabeças do recinto imediatamente se voltaram para , inclusive Alberlorh, que reparando demoradamente no general e em sua mudança de postura repentina, questionou-se internamente se a convivência com as Celestiais haveria o transformado. Teria sido um erro atirá-lo contra elas?
- Senhores... – conteve a vontade perigosa de espetar aqueles velhotes desprezíveis – Sempre fomos reconhecidos por nossa educação. Gostaria de mais respeito, afinal e Feith têm contribuído para nossa ascensão.
- , ...
- Elas são Celestiais, não merecem nossa piedade.
- Não muda o fato de que são mulheres. – pressionou os dedos contra a alça da caneca até ficarem esbranquiçados – São nossas convidadas e merecem tratamento decente.
- Deixe-me encarregado delas que mostro o tratamento que merecem.
Asco.
Compreendendo que não seria levado a sério por aquele bando de perdidos já altos com a bebida, pediu para se retirar do jantar, confuso o bastante com a forma que as próprias células do corpo pareciam reagir contra os comentários desagradáveis. A ideia de nas mãos de um daqueles homens fez os músculos contraírem e a respiração falhar. Ele nunca conseguiria aceitar aquilo.
Ao retornar para os aposentos, deparou-se com a esposa estirada sobre o colchão, com as pernas erguidas para o alto e os braços esticados, lendo pela segunda vez o livro de contos e lendas de Sonteperl disponível na biblioteca particular que não se importou de compartilhar com ela. era bem curiosa e parecia disposta a se aprofundar nos costumes deles. O general não via desvantagens naquilo.
- O que está fazendo, ?
- Lendo. – Replicou direta.
- Isso eu vi, por que a posição? – passou a mão pelos cabelos, confuso.
- Sei lá.
Sem cerimônias, juntou-se a ela na cama, usando do ombro para empurrá-la mais para o lado, suficiente para que ambos estivessem bem acomodados. Pelo costume, compartilhar o colchão não era mais problema. A guardiã tinha suas noites conturbadas, mas no geral se sentia bem e nada intimidado. Não havia segundas intenções – que ele soubesse –, ou maldade nas coisas que faziam na cama. era contida e tinha um humor leve. Com exceção dos assuntos e gostos pessoais, eles entravam em um consenso sem maiores dificuldades. Ela reclamava da monotonia da mansão. Então, nas missões da qual era designado a cumprir sozinho, arrastava a mulher consigo, pelo deleite da companhia e sob a justificativa de que os poderes dela facilitariam a execução. Uma guardiã e um general podiam formar uma boa dupla.
- Tenho centenas de outros livros nas estantes, por que insiste em reler o mesmo? – virou o rosto para encará-la.
De lábios crispados, formando um leve bico, desgrudou os olhos do exemplar e o analisou com uma sobrancelha levantada.
- Vai ficar dosando e controlando tudo que leio agora?
- Calma! Foi uma pergunta por perguntar...
- Sendo assim, vou responder. – deu um risinho, fazendo o homem duvidar de sua sanidade mais uma vez – Acho as lendas fascinantes. Principalmente a das árvores que explodem pó dourado quando sentem que a cidade alcançou o ápice da felicidade. É muito bonito. – fechou o livro para ficar de bruços, encarando melhor o companheiro.
- Nunca vi acontecer em todos os meus anos de vida. – fitou o teto, pensativo, com os braços flexionados para as mãos apoiarem a nuca.
- É porque ainda não chegaram ao ápice, er! – zombou da estupidez, mostrando a língua.
- Tem outra lenda que diz que as pessoas que mostram a língua querem beijo. – O flerte escancarado mudou um pouco a atmosfera do cômodo.
A insinuação pegou tão desprevenida que nenhuma resposta pronta lhe veio à cabeça. Os cotovelos que sustentavam o peso do corpo na posição de bruços ameaçaram a ceder. Como se não bastassem todos esses sinais da ausência de controle emocional perto de , ela ainda precisou puxar um pouco de ar para os pulmões com certa força.
- Achei que voltaria mais tarde do jantar. – Cortou qualquer chance de desenvolverem o outro assunto. O homem segurou o ímpeto de suspirar. Não era a primeira vez que tentava avançar um passo, porém dava um jeito de desconversar.
- Estava chato.
- Vocês são chatos sozinhos. – A mulher caçoou, deitando ao sentir que os braços começaram a formigar por todo o sangue concentrado na região. Aproveitando a deixa, ele içou o tronco para cima, ficando na posição que ela estava antes.
- Tem razão. Nenhuma companhia se iguala à sua. – Diminuiu a distância dos rostos e percebeu engolir seco. Ambos se encararam atentamente. – Somos casados, lembra? – brincou. – Não tem nada de errado em fazermos isso.
Dito, a guardiã parou de se conter e decidiu se deixar levar para onde quisesse. Molhou os lábios e os olhos se fecharam instantaneamente.
✨
A despedida.
Ela sempre vinha.
Contudo, com o passar dos dias, elas foram se tornando mais longas e doloridas de se aceitar. Os confrontos estavam ganhando ritmo. Almejando resultados impecáveis e tropas imbatíveis, o general passou a ficar cada vez mais nos campos de treinamento. Era como um acampamento dos homens. Ninguém entrava ou saía. Eram eles em campo, testando armas, mira e munições sem muita pausa. O ritmo frenético já existia antes da chegada das guardiãs, entretanto a necessidade de ficar confinado nos campos nunca pesou tanto quanto agora, sabendo que havia alguém em casa o esperando assim que retornasse.
Familiarizado com o sono leve da companheira, acreditava que finalmente havia chegado o dia em que ele conseguiria partir sem despertá-la. Quando estava com o corpo todo para fora da cama e estava pronto para dar um passo, a mão quente dela capturou a dele.
- Você já está indo de novo? – quis saber, visivelmente chateada. – Mal voltou, ...
A realidade era que o general nem deveria ter voltado. A viagem de ida e volta ao campo quase não compensava, mas o apego não o deixava falhar com a mulher. Se durante esses anos os Slonces tamparam os buracos para qualquer desfalque emocional, , sem intenção, surgiu para preencher os espaços que nem sabia que tinha.
- É meu dever, linda. – Forçou um sorriso quando os olhares se encontravam.
À contragosto, ela o soltou, deixando-o ir partir novamente.
- Quando menos esperar, estarei voltando diretamente para você.
A fala a aqueceu. Sozinha no cômodo, afundou o rosto contra o travesseiro para abafar os gritos. Era enlouquecedor a quantidade de preocupação que carregava no peito com relação àquele homem. estava se blindando para as batalhas difíceis que estavam previstas mais para frente. Não existia pessoa mais habilidosa e estrategista indicada para a liderança. Ela presenciara os movimentos certeiros e calculados em várias das missões. Todavia, mesmo com todos os fatos, o coração insistia em bater desenfreado diante dos perigos desconhecidos.
✨
A emboscada que planejaram para interceptar os inimigos antes que eles pudessem chegar ao reino tinha sido perfeita. Os combates acabaram demorando mais que o planejado, o clima atrapalhou mais outra meia dúzia de dias, mas se mais tempo significava mais vidas dos homens poupadas, não ligava. Montado no próprio cavalo, o general ia guiando o pequeno grupo de volta para o portão da cidade.
Ao atravessar a porta da mansão, não houve decepção maior do que encontrar tudo vazio. O abraço caloroso que havia projetado tantas vezes em campo de batalha estava sendo adiado. Cômodo por cômodo, o general averiguou e nada da mulher. O peito pareceu afundar. A armadura dele estava acabada, o rosto coberto de sangue seco principalmente dos inimigos e os cabelos grudados eram fortes indícios de que ele deveria se priorizar e cuidar primeiramente.
✨
A origem do surgimento dos portões mágicos já havia sido desvendada. Reina, o grande cérebro por trás da resposta, cuidava da finalização dos preparativos necessários para que elas iniciassem os feitiços. Com o fim das ameaças, os dias delas em Sonteperl estavam contados. Confusa a respeito de como deveria seguir com a vida, passeava pelo vilarejo abatida. Distraída e de braços cruzados, ia chutando uma pedrinha chata que encontrou no caminho. Os órgãos internos pareciam estar sendo comprimidos pela angústia com tanta intensidade que ela passava ignorando os pequenos vendedores das tendas oferecendo os quitutes de sempre que em condições normais ela não recusaria.
- !
Aquela entonação. Em alerta, a guardiã desistiu de agredir a pedra para buscar pelo chamado que recebera em todas as direções. Foi o olhar alcançando o final da linha de tendas esticadas que ela o viu. Então, depois de muito tempo, as preocupações puderam ser deixadas de lado.
estava finalmente de volta para ela.
Baby, you don’t have to worry
I’ll be coming back for you, back for you, back for you, you
Lately, I’ve been going crazy
So I’m coming back for you, back for you, back for you, you
nunca conheceu os pais. Cresceu com os cuidados dos trabalhadores do castelo, ao lado da princesa Meriana, que assim como ele, nunca teve a chance de ver os brilhos nos olhos da mãe. Tudo por causa da grande guerra de pouco mais de duas décadas atrás que destrinchou o Império Dourados em outras ramificações menores. Sonteperl, o resultado de uma delas. Enquanto Meriana aprendia bons modos e era impedida de conhecer o exterior por receios de sofrer alguma espécie de atentado, se deparava com o mundo real. As lembranças de si correndo pelo vilarejo, aterrorizando os comerciantes em suas tendas, implorando por quitutes ainda eram tão saborosas quanto às uvas que compartilhavam consigo. Ao mesmo tempo em que aprendia a viver o frescor de ser uma criança sem amarras, as espadas de madeira e os primeiros golpes de autodefesa começavam a ser introduzidos em sua rotina. Foi a forma que encontrou de ficar mais forte. Participar de pequenos treinos era uma chance de retribuir todo acolhimento que recebeu do rei e uma oportunidade de defender a honra do lugar onde nasceu.
Diferente do que parte dos feirantes acreditava, o atual general nunca se sentiu órfão apesar de não ter conhecido os pais. Seria forçar a barra ele insinuar que sentia a falta de duas pessoas que mal guardava em memória. De fato, o homem às vezes se pegava distraído, curioso, cogitando como seria conversar com os progenitores. Pelas histórias que contavam nas cozinhas, eles morreram como herois, carregando as honras de terem partido defendendo os iguais, como ele fazia agora. Também, a presença e o cuidado constante que os membros reais prestavam era o suficiente para preencher qualquer vazio que viesse a criar. Eles não eram uma família convencional. Contudo, era como se Alberlorh fosse seu pai e Meriana sua irmã mais nova, ainda que compartilhassem da mesma idade. Os olhares de ternura, os conselhos, as cervejas compartilhadas... havia sido presenteado na vida com laços além da morte.
Por eles, lutaria.
Por eles, morreria.
Ao mesmo tempo em que aprendia o que era amar, precisava aceitar odiar. No campo de batalha, junto com a esperança que carregava de trazer uma vida mais tranquila aos cidadãos de Sonteperl, ele tinha o temor. Criar laços era um caminho de duas vias, as relações que o fortaleciam para avançar com as tropas eram as mesmas que faziam seu íntimo tremer. Ninguém estava imune em uma briga, ele mal podia mensurar do que seria capaz, se algo viesse a acontecer com aqueles que lhe interessavam. Por isso, em campo, seria uma vida pela outra. mataria sem piedade pelos seus.
- General, os recrutas estão o aguardando no campo para novas ordens. – Lector Elara, o braço direito, apareceu nos aposentos com a usual postura ereta e fala polida.
- Me deem mais uns instantes, por favor, Lector.
O recém-chegado assentiu levemente com a cabeça antes de fazer uma referência e deixar o cômodo.
Com a ramificação do Império Dourados, os vários distritos e reinos que sobreviveram tiveram dificuldades para se reestruturar. Sonteperl ainda se levantava em passos pequenos e quando as cidades estavam próximas de alcançar os dias de glória outra vez, o inimigo vinha e os atacava com brutalidade. via suas tropas cada vez mais exaustas e reduzidas. A sucessiva série de ataques surpresa mal permitia que eles pregassem os olhos. Não importava quem estava na liderança dos mascarados que portavam a flâmula cinzenta, o objetivo deles estava escancarado: aniquilar tudo que restara do antigo Dourados. Não bastassem os ataques em terra firme, interferências mágicas começaram a surgir nos quatro pontos cardeais de Sonteperl, sem a permissão dos oficiais. Por meio de portais, criaturas mágicas – que apelidavam de aberrações – brotavam, determinados a destruir tudo que estivesse à frente. Aquilo só podia ser obra dos Celestiais – pessoas nascidas com habilidades mágicas. Se antes já estava difícil abater o inimigo numeroso, o acréscimo de mascotes celestiais apenas reforçou a sobrecarga que os soldados estavam sofrendo. O rei, cansado de ler relatórios desanimadores e compadecido dos esforços do exército de , enviou uma carta especial e restrita ao Reino dos Celestiais pedindo por compreensão da rainha dos Guardiões.
Sobre um palanque, diante dos novos recrutas que iniciariam os treinos pesados nos próximos dias, se pegou sendo fisgado por um sentimento saudosista. Fechou os olhos por um breve momento. A vontade de mostrar serviço e o brilho de determinação que encontrava em cada olhar enquanto passeava pelas fileiras de homens alinhados o fazia se lembrar de certo alguém.
A decisão do rei Slonce de apelar aos guardiões ainda era contestada pelos conselheiros reais. Ninguém em Sonteperl tinha bons olhos para as criaturas celestiais. Há vinte anos, elas – ou pelo menos parte delas – contribuíram para a destruição em massa de Dourados. Aqueles que viveram para contar ainda guardavam os traumas dos feixes de luz coloridos disparando para todos os cantos, dos fenômenos da natureza criados para render os civis. Após o fim da guerra, foi assinado um tratado onde Celestiais e interferências mágicas jamais deveriam fazer parte do cotidiano das terras de Alberlorh, a menos que fossem requisitados. O acordo funcionou... Até agora.
Duas guardiãs foram enviadas como reforços.
Para que evitassem uma possível revolta civil e as intenções do rei seguissem conforme o planejado, as Celestiais pisariam nas terras com histórias combinadas e disfarces pré-estabelecidos. Eles podiam tentar ignorar a existência dos seres mágicos, porém não o rancor dos civis. Sendo assim, , a especialista em barreiras mágicas, seria anunciada como a noiva prometida ao general, vinda de um reino distante. A outra, Reina Feith, seria uma órfã da cidade de , recrutada para auxiliar nas tarefas do castelo. Ambas deveriam descobrir as origens dos portais e eliminá-los antes que mais criaturas pudessem causar destruição.
Maravilha.
havia saído com uma carta secreta em mãos e retornado com uma esposa. Por aquilo, nem ele esperava. No entanto, era ordem do rei, uma missão extraordinária em outras palavras. Precisaria engolir mais essa. Slonce só parecia ter apagado da cabeça o fato dele ser o único homem responsável pela segurança e defesa de todos do reino, ou seja, não havia espaço para romances.
- Não é como se eu estivesse louca para me casar com você. – Fora uma das primeiras coisas que ouviu despejar assim que chegaram aos aposentos que passariam a dividir – Está de prova que perdi no teste da Oráculo para Reina! – pareceu enfurecer ainda mais com as lembranças.
No caminho do Palácio dos Guardiões para Sonteperl, foi obrigado a assistir sua devoção ser empurrada como uma batata quente prestes a explodir entre as guardiãs.
- Casa você! – Reina jogou para .
- Eu não! Você é que tem mais cara de casada. Casa você, Reina!
- Sou a mais velha. Tenho o poder de decisão, portanto casa você.
- Exatamente. É a mais velha, está mais bem preparada para tal posição. Não posso me entregar assim.
Ao lado de , Lector presenciava a discussão de olhos esbugalhados. O braço direito parecia mais assustado com a presença delas do que com o pássaro gigante de duas cabeças que eliminaram uma semana atrás.
- Só tem um jeito possível de sairmos daqui sem arrancar a cabeça de ninguém. – fuzilava a amiga.
- Tenho certeza que está pensando exatamente a mesma coisa que eu. – Reina retribuía a hostilidade, batendo os dentes com força.
- O “Destino pelo Oráculo”. – ambas revelaram por fim, mas os homens continuavam sem entender.
- Destino pelo Oráculo? – Lector deixou escapar em voz alta.
- Sim. Você já vai ver, homenzinho. – acompanhou Reina sair um pouco da trilha que seguiam na caminhada e logo retornar com uma flor em mãos – Eu começo. Reina casa com o general. – arrancou uma das pétalas alaranjadas.
- casa com o general. – a ação foi copiada.
- Reina casa com o general.
[...]
- casa com o general.
Com a alegria retirada de si e muita lástima, acompanhou a última pétala alcançar o chão. não poderia estar mais entediado.
- Pelas fezes de um cavalo alado! – balançou os braços em direção ao céu, deixando os ombros caírem um pouco em seguida.
Pelo visto, a apatia seria mútua entre os noivos.
A divisão da cama não foi uma decisão consensual. Por ele, a esposa falsificada dormiria no chão, ou em qualquer canto do quarto que desejasse, com exceção de sua enorme, macia e invejável cama.
- A cama é minha. É óbvio que eu tenho que dormir nela.
- Cadê a sua gentileza, general? – bateu as botinas brancas com impaciência.
- No lugar de sempre. – retrucou simplesmente – Se me lembro bem, está aqui por uma missão, guardiã. Não são férias. Lide com as adversidades.
- Incrível! Meu marido é um ogro.
- Não é de verdade! – referiu-se à relação entre eles, revirando os olhos.
- Mas precisamos fingir. – Pontuou com o dedo em riste para ele – Poderia começar o teatro de bom marido me cedendo a cama.
- Nem pensar.
- Então, vou dormir com Reina no castelo.
- Não! – o general entrou em pânico, eles precisavam dividir o cômodo, se quisessem que o teatro funcionasse – Somos casados! – apontava o dedo para ela e depois para si, repetindo isso várias vezes para ilustrar a situação – Como ficaria a minha reputação, se descobrirem que minha mulher dorme fora?
- Eu não sei? – não poderia ligar menos – Não estou aqui para elevar sua moral, . Salvar sua bunda, sim. Mas a moral... – balançava a cabeça em negação, dando um estalo na boca.
- Não sairá deste quarto enquanto o sol não aparecer, . Não vai estragar os planos do rei.
- Os planos do rei... – ela repetiu desgostosa – Vou fingir que é só por isso mesmo. Está tudo bem. Você venceu. Dormirei no chão. Depois da extensa caminhada que seus homens e você nos obrigaram a fazer, estou muito cansada para brigar.
- Queria vir como, querida? – usou todo o cinismo acumulado – Voando?
- Não era uma má ideia! – devolveu, ajeitando-se sobre as várias camadas de lençóis que improvisaram – Um portal seria ainda mais rápido e fácil. – apalpou o travesseiro.
- Como iríamos explicar isso aos civis, maluca? Já temos problemas demais com portais.
- Problema seu.
o grunhiu, apertando o próprio cobertor com ódio. Era bom que tivesse habilidades com barreiras, isso o impediria de esganá-la. Foi com o sangue fervendo e sem sinalizar à guardiã que o dono do quarto soprou as velas, deixando-os em um completo breu. Com as discussões dando-se por encerradas, ambos fecharam os olhos com o sangue ainda borbulhando. Aquela seria a primeira de outras várias longas noites.
Resiliência foi uma qualidade que desenvolveu na Academia dos Guardiões. Ela se adaptava bem em cenários diversos, mas se havia chance de também desfrutar de um colchão merecidamente, ela o faria. Foi com essa determinação que aguardou o novo marido cair no sono para agir. Com cautela, permitindo-se guiar pelas poucas frestas de luz da lua que invadiam o recinto, a guardiã foi tateando o piso até encontrar um dos pés da cama. Ainda cuidadosa, escalou o colchão, movimentando-se sobre a superfície macia sem ousar respirar ou fazer qualquer outro ruído que pudesse despertar . Lentamente, foi soltando o peso do corpo até senti-lo afundar por completo no espaço livre da cama. Como havia dito mais cedo: a cama era grande o suficiente para eles dois. não era capaz de ocupar tudo sozinho, tornando-o automaticamente um egoísta por negar conforto a ela.
Na manhã seguinte, o pânico veio à tona quando se deparou com a respiração serena de ricocheteando contra seu nariz ao abrir os olhos.
- Mas o que é que você faz aqui? – aumentou o tom de voz, levantando-se com brutalidade, checando se as roupas ainda estavam em seu devido lugar, temendo que pudesse ter abusado dela inconscientemente no meio da noite – O quê aconteceu? – balançou a parceira pelos ombros.
Pelo sono leve que nutria, acordou com o coração acelerado. As pálpebras ainda grudadas pela sonolência desejaram voltar a se fechar por completo com a claridade entrando por todos os lados
- O que houve? – perguntou ao vento, sem condição de ouvir uma resposta. Pôs-se a colocar sentada com uma calmaria que faltava no outro.
- Por que você está aqui, guardiã?
- Hm? – ainda coçava os olhos.
- Seu lugar era no chão!
No momento que o cérebro se colocou para funcionar, entendeu o drama de .
- Te disse que havia espaço suficiente para nós dois. – explicou com a voz arrastada.
- Tem ideia da besteira que achei que tínhamos feito? – exasperou, deixando a cama para andar de um lado para o outro.
- Não precisa ficar tão nervoso! – deitou-se outra vez, pesarosa por ter o sono interrompido sem um motivo plausível.
- Não ficar nervoso? – o timbre subiu um pouco mais – Você é uma mulher... Eu sou um homem... Nós deitados... Na mesma cama... – parecia que ele iria ter um colapso mental a qualquer instante, tal possibilidade arrancou um riso frouxo de .
- Fica tranquilo. – Abanou as mãos no ar. – Não existe sentimento, então está tudo bem.
pensou bem nas palavras dela. não estava toda errada.
- Sem sentimentos. Sem problemas. – Reiterou em voz alta, abrindo a porta do quarto.
- Para onde está indo? Está muito frio... E cedo! – choramingou.
- Treinar. Não posso me dar o luxo de perder tempo. Passarei no campo de treinamento para checar os recrutas. Você pode dormir. Volto em breve, não se preocupe...
- Até mais! – não se importou, rolando e aninhando-se com os lençóis da cama até ficar de costas para a porta, pronta para retornar ao mundo dos sonhos.
Com a presença das guardiãs no reino, se viu obrigado a redobrar a atenção sobre tudo que controlava ao invés de relaxar. Elas ainda não eram confiáveis. Passava os dias e as noites alternando entre ficar nos campos de treinamento, avaliando os recrutas, e voltar para casa para introduzir a noiva e Reina à sociedade de Sonteperl. Elas já conheciam alguns comerciantes e parte das construções do vilarejo, contudo ele não podia simplesmente juntar as tropas e sair em caçada da cabeça dos inimigos, enquanto elas cuidavam da cidade.
Esse não era o combinado.
A rotina monótona, apesar de chata, não incomodava tanto à . Reina certamente tinha muito mais a desbravar nos extensos corredores do castelo dos Slonce, ainda assim as criaturas que brotavam nos portais eram aventura suficiente para a guardiã mais nova. Um pouco de tensão à tarde para compensar as manhãs relaxantes e bem descansadas. Não havia um dia em que não era acordada, devido ao sono leve, com atravessando a porta prometendo que voltaria logo. Ela nada podia fazer. era um homem de muitas funções e carregava um peso importante no funcionamento do reino, cada um tinha suas tarefas programadas. No fim, ele sempre voltava mesmo.
sabia como era ter uma família. As poucas tardes que passava escoltando a princesa Meriana o faziam despertar o instinto protetor de irmão mais velho. Por compartilharem a mesma idade, compartilhavam algumas confissões em meio às caminhadas nos jardins do castelo. Ela era gentil e se demonstrava muito aberta para receber ele e a esposa nos aposentos do castelo para um grande banquete assim que o cenário em Sonteperl melhorasse. Se ela ao menos imaginasse a farsa...
As reuniões noturnas com o rei e os Conselheiros, por outro lado, eram um pouco mais descontraídas. Ali, todos tinham conhecimento das guardiãs e da missão que estavam encarregadas de cumprir. Tendo uma dentro do castelo e outra mais próxima do vilarejo, as respostas deles aos ataques surpresas haviam melhorado. O Palácio dos Guardiões acertara em cheio na escolha dos reforços.
- Podem ser de uma raça maldita, mas que mulheres lindas... – um dos Conselheiros disparou entre uma caneca e outra de álcool.
- Bota malditas nisso, parece que foram esculpidas! Aqueles vestidos... – risadas maliciosas preencheram o salão.
Da posição onde estava, ficou rígido. Dominado por um acesso de raiva pelos comentários, esmurrou a própria caneca contra a mesa, fazendo todo o conteúdo dentro dela esparramar para os lados.
Silêncio.
As cabeças do recinto imediatamente se voltaram para , inclusive Alberlorh, que reparando demoradamente no general e em sua mudança de postura repentina, questionou-se internamente se a convivência com as Celestiais haveria o transformado. Teria sido um erro atirá-lo contra elas?
- Senhores... – conteve a vontade perigosa de espetar aqueles velhotes desprezíveis – Sempre fomos reconhecidos por nossa educação. Gostaria de mais respeito, afinal e Feith têm contribuído para nossa ascensão.
- , ...
- Elas são Celestiais, não merecem nossa piedade.
- Não muda o fato de que são mulheres. – pressionou os dedos contra a alça da caneca até ficarem esbranquiçados – São nossas convidadas e merecem tratamento decente.
- Deixe-me encarregado delas que mostro o tratamento que merecem.
Asco.
Compreendendo que não seria levado a sério por aquele bando de perdidos já altos com a bebida, pediu para se retirar do jantar, confuso o bastante com a forma que as próprias células do corpo pareciam reagir contra os comentários desagradáveis. A ideia de nas mãos de um daqueles homens fez os músculos contraírem e a respiração falhar. Ele nunca conseguiria aceitar aquilo.
Ao retornar para os aposentos, deparou-se com a esposa estirada sobre o colchão, com as pernas erguidas para o alto e os braços esticados, lendo pela segunda vez o livro de contos e lendas de Sonteperl disponível na biblioteca particular que não se importou de compartilhar com ela. era bem curiosa e parecia disposta a se aprofundar nos costumes deles. O general não via desvantagens naquilo.
- O que está fazendo, ?
- Lendo. – Replicou direta.
- Isso eu vi, por que a posição? – passou a mão pelos cabelos, confuso.
- Sei lá.
Sem cerimônias, juntou-se a ela na cama, usando do ombro para empurrá-la mais para o lado, suficiente para que ambos estivessem bem acomodados. Pelo costume, compartilhar o colchão não era mais problema. A guardiã tinha suas noites conturbadas, mas no geral se sentia bem e nada intimidado. Não havia segundas intenções – que ele soubesse –, ou maldade nas coisas que faziam na cama. era contida e tinha um humor leve. Com exceção dos assuntos e gostos pessoais, eles entravam em um consenso sem maiores dificuldades. Ela reclamava da monotonia da mansão. Então, nas missões da qual era designado a cumprir sozinho, arrastava a mulher consigo, pelo deleite da companhia e sob a justificativa de que os poderes dela facilitariam a execução. Uma guardiã e um general podiam formar uma boa dupla.
- Tenho centenas de outros livros nas estantes, por que insiste em reler o mesmo? – virou o rosto para encará-la.
De lábios crispados, formando um leve bico, desgrudou os olhos do exemplar e o analisou com uma sobrancelha levantada.
- Vai ficar dosando e controlando tudo que leio agora?
- Calma! Foi uma pergunta por perguntar...
- Sendo assim, vou responder. – deu um risinho, fazendo o homem duvidar de sua sanidade mais uma vez – Acho as lendas fascinantes. Principalmente a das árvores que explodem pó dourado quando sentem que a cidade alcançou o ápice da felicidade. É muito bonito. – fechou o livro para ficar de bruços, encarando melhor o companheiro.
- Nunca vi acontecer em todos os meus anos de vida. – fitou o teto, pensativo, com os braços flexionados para as mãos apoiarem a nuca.
- É porque ainda não chegaram ao ápice, er! – zombou da estupidez, mostrando a língua.
- Tem outra lenda que diz que as pessoas que mostram a língua querem beijo. – O flerte escancarado mudou um pouco a atmosfera do cômodo.
A insinuação pegou tão desprevenida que nenhuma resposta pronta lhe veio à cabeça. Os cotovelos que sustentavam o peso do corpo na posição de bruços ameaçaram a ceder. Como se não bastassem todos esses sinais da ausência de controle emocional perto de , ela ainda precisou puxar um pouco de ar para os pulmões com certa força.
- Achei que voltaria mais tarde do jantar. – Cortou qualquer chance de desenvolverem o outro assunto. O homem segurou o ímpeto de suspirar. Não era a primeira vez que tentava avançar um passo, porém dava um jeito de desconversar.
- Estava chato.
- Vocês são chatos sozinhos. – A mulher caçoou, deitando ao sentir que os braços começaram a formigar por todo o sangue concentrado na região. Aproveitando a deixa, ele içou o tronco para cima, ficando na posição que ela estava antes.
- Tem razão. Nenhuma companhia se iguala à sua. – Diminuiu a distância dos rostos e percebeu engolir seco. Ambos se encararam atentamente. – Somos casados, lembra? – brincou. – Não tem nada de errado em fazermos isso.
Dito, a guardiã parou de se conter e decidiu se deixar levar para onde quisesse. Molhou os lábios e os olhos se fecharam instantaneamente.
A despedida.
Ela sempre vinha.
Contudo, com o passar dos dias, elas foram se tornando mais longas e doloridas de se aceitar. Os confrontos estavam ganhando ritmo. Almejando resultados impecáveis e tropas imbatíveis, o general passou a ficar cada vez mais nos campos de treinamento. Era como um acampamento dos homens. Ninguém entrava ou saía. Eram eles em campo, testando armas, mira e munições sem muita pausa. O ritmo frenético já existia antes da chegada das guardiãs, entretanto a necessidade de ficar confinado nos campos nunca pesou tanto quanto agora, sabendo que havia alguém em casa o esperando assim que retornasse.
Familiarizado com o sono leve da companheira, acreditava que finalmente havia chegado o dia em que ele conseguiria partir sem despertá-la. Quando estava com o corpo todo para fora da cama e estava pronto para dar um passo, a mão quente dela capturou a dele.
- Você já está indo de novo? – quis saber, visivelmente chateada. – Mal voltou, ...
A realidade era que o general nem deveria ter voltado. A viagem de ida e volta ao campo quase não compensava, mas o apego não o deixava falhar com a mulher. Se durante esses anos os Slonces tamparam os buracos para qualquer desfalque emocional, , sem intenção, surgiu para preencher os espaços que nem sabia que tinha.
- É meu dever, linda. – Forçou um sorriso quando os olhares se encontravam.
À contragosto, ela o soltou, deixando-o ir partir novamente.
- Quando menos esperar, estarei voltando diretamente para você.
A fala a aqueceu. Sozinha no cômodo, afundou o rosto contra o travesseiro para abafar os gritos. Era enlouquecedor a quantidade de preocupação que carregava no peito com relação àquele homem. estava se blindando para as batalhas difíceis que estavam previstas mais para frente. Não existia pessoa mais habilidosa e estrategista indicada para a liderança. Ela presenciara os movimentos certeiros e calculados em várias das missões. Todavia, mesmo com todos os fatos, o coração insistia em bater desenfreado diante dos perigos desconhecidos.
A emboscada que planejaram para interceptar os inimigos antes que eles pudessem chegar ao reino tinha sido perfeita. Os combates acabaram demorando mais que o planejado, o clima atrapalhou mais outra meia dúzia de dias, mas se mais tempo significava mais vidas dos homens poupadas, não ligava. Montado no próprio cavalo, o general ia guiando o pequeno grupo de volta para o portão da cidade.
Ao atravessar a porta da mansão, não houve decepção maior do que encontrar tudo vazio. O abraço caloroso que havia projetado tantas vezes em campo de batalha estava sendo adiado. Cômodo por cômodo, o general averiguou e nada da mulher. O peito pareceu afundar. A armadura dele estava acabada, o rosto coberto de sangue seco principalmente dos inimigos e os cabelos grudados eram fortes indícios de que ele deveria se priorizar e cuidar primeiramente.
A origem do surgimento dos portões mágicos já havia sido desvendada. Reina, o grande cérebro por trás da resposta, cuidava da finalização dos preparativos necessários para que elas iniciassem os feitiços. Com o fim das ameaças, os dias delas em Sonteperl estavam contados. Confusa a respeito de como deveria seguir com a vida, passeava pelo vilarejo abatida. Distraída e de braços cruzados, ia chutando uma pedrinha chata que encontrou no caminho. Os órgãos internos pareciam estar sendo comprimidos pela angústia com tanta intensidade que ela passava ignorando os pequenos vendedores das tendas oferecendo os quitutes de sempre que em condições normais ela não recusaria.
- !
Aquela entonação. Em alerta, a guardiã desistiu de agredir a pedra para buscar pelo chamado que recebera em todas as direções. Foi o olhar alcançando o final da linha de tendas esticadas que ela o viu. Então, depois de muito tempo, as preocupações puderam ser deixadas de lado.
estava finalmente de volta para ela.
Baby, you don’t have to worry
I’ll be coming back for you, back for you, back for you, you
Lately, I’ve been going crazy
So I’m coming back for you, back for you, back for you, you
FIM
Nota da autora: OOieeeee! Se você está lendo isso, obrigada por chegar até aqui <3 A história de Sonteperl e das guardiãs é tão grande na minha cabeça que ainda estou aparando umas pontinhas para fechar um enredo redondinho. Essa long vem! Enquanto ela não vem, vou escrevendo uma parte em cada projeto do site e depois só junto KKKK Até lá, pode ser que vocês encontrem outras versões desse mesmo reino em outras ficstapes. Mudo o enredo a todo instante, mas não consigo deixar de compartilhar nenhuma versão KKKKKK Paciência, por favor!
De qualquer forma, espero que estejam se cuidando e... Mais uma vez obrigada por darem uma chance à fic!
Beijos,
Ale
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Lindezas, o Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
De qualquer forma, espero que estejam se cuidando e... Mais uma vez obrigada por darem uma chance à fic!
Beijos,
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