ATENÇÃO: Essa história aborda assuntos que podem ser gatilhos para algumas pessoas. Se tópicos como assédio sexual físico e verbal, xenofobia, misoginia, homofobia, vazamento de fotos íntimas, disforia e slut-shaming podem ser gatilhos para a sua saúde mental, sinta-se livre para fechar essa aba.
Mas, antes disso, quero lembrá-la de que você não está sozinha. Somos muitas e somos mais fortes juntas. Procure ajuda, seja na forma de apoio psicológico e suporte ou em aconselhamento e assistência legal. Não vamos nos calar.

Aimee

Ela tinha plena certeza de que não deveria ter levantado da cama naquele dia. Cada passo no corredor em direção à aula de ‘História da América’ parecia se tornar mais pesado e arrastado apenas para lhe servir como um lembrete sádico de que ela poderia estar dormindo e não enfrentando aquele inferno.
Entrou rapidamente na sala, completamente ciente de que estava à beira de mais um dos atrasos intolerados pelo colégio. O sinal estridente soou logo acima de sua cabeça, como se enfiasse uma agulha de crochê bem no meio de seu tímpano.
— Chegou cedo, Mackey - zombou Summer, que tinha os pés apoiados contra a base de sua carteira.
— E me arrependo amargamente de ter vindo - Aimee respondeu, jogando a mochila de qualquer jeito no chão ao seu lado.
Soltou o próprio corpo contra o assento, desajeitadamente. Sabia plenamente que sua coluna passaria o resto do dia lembrando-a, de forma latejante, que aquela havia sido uma péssima decisão. Mas não importava naquele momento. Sinceramente, não sabia se qualquer coisa realmente importava.
Bem, talvez Summer. Summer que havia feito jus ao seu nome e se aproximado calorosamente como um dia de verão, com a alegria da criança que corre atrás do carrinho de sorvete e a animação de quem vê o mar e pisa na areia da praia pela primeira vez. Summer que parecia fazer hora extra no colégio só para conseguir cobrir todas as aulas avançadas que existiam, sustentando o gigantesco fardo de ser boa em absolutamente tudo. Summer que a acolheu em seus piores momentos, quando os problemas de casa tinham conseguido escapar por baixo da porta apenas para persegui-la por diversão.
— Você adora essa aula - Summer a lembrou, com o típico sorriso doce coberto de brilho labial de morango. — Vai passar rapidinho.
E ela adorava mesmo. Desde que o último professor havia sido demitido após comprar uma briga idiota e infundada com o treinador, a sra. Dawne havia feito com que História da América fosse uma das matérias mais interessantes e instigantes de se ter. Aparentemente, a professora nova havia faltado à matéria ‘Nacionalismo Tosco e Outros Extremismos’ na faculdade e carregava consigo o brilhante conhecimento de que existia mais na América do que apenas os Estados Unidos. Como alguém que ainda sustentava em suas perspectivas de vida a possibilidade de fazer uma graduação na área e dar aulas, Aimee a tinha colocado em um pedestal como o maior modelo de sua vida.
Foram duas horas completas discutindo o neocolonialismo, o longo histórico das intervenções imperialistas e as consequências no panorama político e socioeconômico atual de nações como a Colômbia e a Venezuela. Aimee havia forçado a insônia da madrugada a lhe deixar em paz, enquanto tentava arregalar os olhos o máximo possível e anotar cada um dos tópicos abordados em seu caderno.
Com o fim da aula e o horário livre que tinha em sequência, ela se dirigiu à cafeteria, com um muffin de mirtilos e uma garrafa de água, torcendo para que seu estômago ainda fosse ingênuo o suficiente para acreditar que aquilo - e àquela hora - poderia ser considerado um café da manhã.
— Desembucha - Summer disse, sentando-se no banco ao seu lado.
Aimee não conseguiu evitar que seu cenho se franzisse ao limite das rugas.
— Você não tem aula de química agora?
— É biologia - a amiga a corrigiu. — Mas eu entreguei o trabalho final com algumas semanas de antecedência, então acho que eu meio que conquistei o direito de matar uma aula.
— E o que aconteceu com a regra de só matar aula se você estiver morrendo ou se o apocalipse zumbi começar?
Summer brincou com a costura na barra de seu vestido florido, enquanto soltava uma risada anasalada.
— Acho que você não leu a cláusula pequenininha no fim do contrato, dizendo: “Exceção: quando sua melhor amiga estiver parecendo prestes a ter uma síncope.”
Foi a vez de Aimee rir, enquanto se esforçava para não engasgar com o pedaço de muffin na boca.
— Você não existe - ponderou. — Mas, enfim, é só o mesmo de sempre.
— Ela sumiu de novo?
A garota respirou fundo, sentindo uma dezena de dedos se embrenhando entre suas artérias e veias só para esmagar seu coração em um aperto desconfortavelmente distante demais da expectativa do fim.
— Como de costume - respondeu, em um sopro de ar. — Não deu as caras nos últimos três dias.
— Que bosta. Mas ela vai aparecer. Ela sempre aparece.
— Talvez seja esse o problema - Aimee deixou escapar, sem ter muita certeza de que era isso mesmo que pensava.
Só não era justo. Nem um pouco justo.
Uma garota de dezessete anos deveria estar se preocupando com a construção de sua identidade social, com a escolha de a que universidade aplicar e como escolher cada passo trilhado para o seu futuro cedo demais para que houvesse autoconhecimento suficiente para isso. Ela deveria ter conquistado o direito de se incomodar com coisas que acabariam sendo consideradas futilidades completas e não a obrigação de trazer na bagagem o peso da preocupação com aquela que deveria cuidá-la. Deveria estar gastando seu tempo terminando de ler as leituras obrigatórias da aula de Literatura Inglesa e não se perguntando se a mãe ainda tinha um coração batendo fosse lá em que buraco havia se enfiado apenas para fugir da própria vida por meios quase nunca lícitos.
No fim do dia, contudo, ela ainda era a sua mãe. E ela não conseguia simplesmente não demonstrar cada segundo de sua preocupação nas olheiras profundas e no peso que carregava sobre os ossos.
Summer inspirou longamente, antes de oferecer nova liberdade ao ar e tomar para si a mão da amiga, tentando demonstrar a ela todo o carinho de que ela carecia, mesmo que não pudesse substituir a fonte.
— Sabe que pode contar comigo para qualquer coisa, não sabe? Se quiser dormir lá em casa ou só passar para comer, conversar um pouco e… Sei lá, espairecer… Vamos te receber de braços abertos.
Aimee esboçou um sorriso triste, aquiescendo.
— E aí, garotas? Festa mais tarde. Esperamos vocês lá - uma voz masculina disse de forma apressada, largando um pedaço de papel colorido em sua mesa.
Aimee estreitou os olhos, tentando se lembrar de quem era aquele. Will? Bill? Augustus? Ela nem sabia o que o último tinha a ver com o resto. Tinha quase certeza de que ele ocupava uma carteira no fundo da sala na aula de francês, mas não apostaria suas fichas naquela informação. Adolescentes brancos populares de classe média tinham a incrível capacidade de se parecerem uns com os outros ao ponto do absurdo.
Summer puxou o papel verde neon, lendo as informações mais importantes em voz alta:
— Festa na casa do Marcus. Início às oito, fim quando o último cair. Uau, que atraente - ironizou.
— Quem raios é Marcus?
Summer riu alto, entregando-lhe o panfleto.
— O capitão do time de basquete. Se você participasse dos jogos, com certeza saberia.
— Eu não entendo o conceito de correr atrás de uma bola laranja que fica quicando em uma quadra barulhenta. E a multidão nas arquibancadas me deixa nervosa.
— Era só você chutar a bunda de todo mundo na sua frente com aquele seu coturno preto. Com certeza eles iriam parar.
Aimee sorriu de forma debochada, erguendo seu dedo médio.
— Talvez você devesse ir, Ames - Summer sugeriu. — Pode fazer bem, sabe? Para desviar um pouco a sua cabeça de tanta coisa ruim e preocupação.
— Você vai?
— Não posso. Tenho preparatórias para a olimpíada de matemática amanhã cedo.
— Em um sábado?
Summer inclinou a cabeça contra o tampo da mesa.
— Sim. Eles querem nos colocar ao limite até o primeiro ceder a algum tipo de pacto de almas. Mas eu não posso faltar.
— Não tem problema. Nós vamos juntas em outra. Tenho a última temporada de How To Get Away With Murder inteira para rever.
— Eu não posso deixar você ficar mofando em um sofá, comendo salgadinhos fedidos e vendo a mesma série pela milésima vez em uma sexta à noite.
— Eu não vou sem você.
— Então eu vou - a amiga disse, dando de ombros. — Para completar minhas sete horas de sono necessárias, eu posso chegar em casa até umas onze e pouca. Eu vou com você, fico um pouco. Se você estiver curtindo, continua lá. Se achar que é uma grande porcaria, eu te deixo em casa. Pode ser?
Que mal havia? Se a mãe decidisse bater à porta bem naquela noite, ela que esperasse um pouco. Algumas horas seriam nada em relação a tantos dias por tantas vezes.
— Quer saber? Pode salvar o endereço do Marcus no seu Waze. Nós vamos a essa festa.

♀

Se Aimee achava o sinal da escola alto e agressivo demais, era porque ainda não havia conhecido a capacidade de amplificação da aparelhagem de som naquela casa enorme. Mal conseguia ouvir seus próprios pensamentos autossabotadores sob o compasso de cada batida masterizada de fosse lá qual música eletrônica estivesse tocando no momento.
Summer a puxou pelo braço, seguindo até o bar. Serviu para si um pouco de água e, para a amiga, cerveja.
— Preciso dirigir depois - se explicou, recebendo um aceno positivo da amiga, em concordância.
Esbarraram em alguns conhecidos, jogando conversa fora e fingindo um entendimento que estava longe de ser completo em meio a toda a barulheira. Dançaram as músicas que, finalmente, pareciam ter se lembrado de que era possível ter uma letra junto da melodia.
Aimee ria, enquanto a amiga a girava e fazia as danças mais atrapalhadas que ela já tinha visto. Levou as mãos à nuca, prendendo os cabelos em um coque no topo da cabeça, de forma a liberar o pescoço que já começava a acumular várias gotas de suor.
O cheiro de álcool, suor e fumaça já havia se impregnado de uma forma que só se lembraria de ser desconfortável pela manhã quando a ressaca moral viesse. Naquele momento, nada importava e ela havia atingido seu objetivo silencioso de se esquecer da mãe por aquelas horas.
Fora esse o único motivo para a resposta que ela deu quando Summer disse:
— Eu preciso ir. Você vai ficar?
— Vou - decidiu, sem pensar muito. — Depois eu dou um jeito de ir para casa.
— Tem certeza?
— Absoluta, amiga - Aimee garantiu, com um sorriso tranquilizador. — Vai ficar tudo bem.
Summer assentiu e acenou, sumindo entre as pessoas aglomeradas.
Aimee se aproximou de um pequeno grupo que ela reconhecia das aulas de geografia e dançou com eles até sentir os pés cansando e os pulmões implorando por um lugar em que pudessem respirar um ar que não tivesse parecido ter passeado pela traqueia de pelo menos umas quinze pessoas antes dela.
Caminhou até o quintal que quase conseguia parecer maior que a casa gigante e escolheu o local mais afastado do barulho que pôde encontrar. Tirou o celular do bolso, erguendo-o em busca de alguma cobertura da operadora.
— Porcaria de sinal - reclamou, devolvendo o aparelho à calça.
— Você parece revoltada. Precisa de ajuda?
Aimee digeriu o susto e o estado de alerta que seu corpo havia adquirido ao ouvir a voz estranha parecendo audível tão perto de sua cabeça. De repente, era como se seus batimentos cardíacos acelerados tivessem se embrenhado nas repetições eletrônicas da música que não havia parado para ninguém enquanto o mundo também tratava de continuar do lado de fora.
— Não. Só queria ver se encontrava sinal no celular.
O rapaz acendeu um cigarro, levando-o à boca. Deu uma tragada lenta, aproveitando cada segundo daquilo. Pelo cheiro, ela sabia que ele não havia poupado esforços na tentativa de consumir qualquer coisa alcoólica que Marcus e os amigos tivessem arranjado.
— Eu adoraria te ajudar, mas a bateria do meu acabou há uma hora.
— Não precisa mesmo. Está tudo bem. Obrigada.
Guardou o aparelho no bolso e fez menção de se afastar e retornar para a festa, mas foi impedida pela sensação dos dedos firmes dele se fechando ao redor de seu pulso.
— Já vai entrar? Lá dentro ficou um saco - ele disse.
— Já vou entrar, sim. - Ela tentou puxar o braço, sentindo a força dele aumentando. — Me solta.
— Calma, gatinha. Não precisa ficar na defensiva assim. A gente só está se divertindo.
— Bom, claramente eu não estou me divertindo, então solta a porra do meu braço.
O pânico começou a borbulhar como ácido na boca de seu estômago, como se fosse capaz de fazer todos seus órgãos se revirarem ao mesmo tempo. Já tinha se desconectado da consciência do quão elevada sua voz estava, percebendo que, mesmo assim, não havia uma alma sequer por perto capaz de prestar atenção neles. A falta de iluminação e de interesse no fundo do quintal não a ajudavam.
O rapaz riu, puxando-a para mais perto.
— Tem algo sexy em se fazer de difícil - comentou.
Aimee sentiu a voz falhar no fundo da garganta, em uma súplica desesperada enquanto seus joelhos nervosos lutavam para não ceder à agonizante aflição.
— Por favor, só me deixa ir.
O rosto dele chegou ainda mais perto do seu, o cheiro da nicotina e do álcool a deixando tão nauseada que ela seria capaz de vomitar ali mesmo. Talvez aquilo tivesse sido suficiente para livrá-la do toque dos lábios dele em seu pescoço, tomando-a para si mesmo enquanto ela tentava, em vão, esquivar-se entre os tremores súbitos que a atingiam.
— Me deixa ir - ela pediu de novo, com o tom de voz surpreendentemente autoritário.
Havia sido o suficiente para fazê-lo se afastar, encarando-a profundamente nos olhos. Sua esperança recém-adquirida fora quebrada quando sentiu a mão dele deslizando por seu corpo, buscando acariciá-la logo abaixo de seu baixo ventre.
Enquanto ele parecia procurar o zíper de sua calça, ela teve um lampejo de consciência, percebendo que, para aquilo, ele havia se desvencilhado minimamente dela. A adrenalina gritava em zumbidos em seus ouvidos como aquela provavelmente seria sua última chance.
Ergueu o joelho com toda a sua força, atingindo-o no meio das pernas com firmeza. Em um grunhido animalesco de dor, ele a soltou para se dobrar sobre as próprias pernas, levando as mãos até a região atingida.
Aimee correu como nunca antes tinha feito. Não deu ao azar o tempo de ouvir todos os xingamentos sujos que saíram da boca dele. Não precisava daquilo. Já estava se sentindo imunda o suficiente.
Percebeu uma ardência nos olhos, com as lágrimas silenciosas escorrendo enquanto trombava em qualquer um que estivesse em seu caminho no meio da festa. Avistou Eva de longe e correu até ela.
— Aimee, pelo amor de Deus, o que houve?
Estavam longe de serem grandes amigas. Estavam mais para colegas de classe que, ocasionalmente, tiveram que fazer alguns trabalhos juntas. Mas ela era a sua esperança.
— Sei que você não bebe - falou com a voz nervosa. — Pode me levar para casa?
O olhar era o suficiente. O silêncio gritava cada uma das palavras entaladas em sua garganta que, agora, ela não conseguiria dizer.
— Vamos - Eva disse, pegando-a pela mão rapidamente.
Dentro do carro, segura no banco do carona, Aimee permanecia rígida e imóvel como uma estátua.
— Você quer ir para a delegacia?
— Não - respondeu secamente.
Infelizmente, desacreditava completamente da justiça, especialmente quando a vítima era uma mulher. Especialmente uma levemente alcoolizada que estava em uma festa. Sabia que o álcool em suas veias seria suficiente para algum homem a culpá-la. E ela já se sentia culpada o suficiente.
Estacionaram na frente da pequena casa.
— Quer conversar sobre o que aconteceu?
Os olhos de Eva eram compreensivos e acolhedores o suficiente para ela saber que não seria descredibilizada. Ela receberia apoio, suporte… Talvez o reforço de que não era sua culpa, mesmo que não conseguisse acreditar naquilo naquele momento. Mas não dava. Era demais. Ainda sentia o pulso queimando e o toque invasivo e indesejado em sua calça.
— Eu só preciso descansar - respondeu, limpando o rosto. — Obrigada pela carona.
E entrou correndo, trancando todas as portas e janelas para realimentar uma falsa sensação de segurança que pudesse ao menos fazê-la sobreviver enquanto tudo ao seu redor parecia apodrecer.
Arrancou toda a roupa, entrando no chuveiro e deixando a água limpá-la de toda aquela sujeira que não queria se desgarrar de sua epiderme. Soluçando, seu corpo cedeu ao chão.

♀

Aimee estremeceu ao ouvir o estanho do sinal batendo fervorosamente. As olheiras profundas evidenciavam a plena incapacidade de adormecer por mais de vinte minutos sem ter uma onda de pesadelos reais demais para que ela, apavorada e suando frio, não retornasse à vigília. Se a mãe não tivesse decidido voltar no dia anterior pensando ter qualquer direito de fazer perguntas demais, ela não teria se arriscado para fora da cama na segunda-feira. Preferia enfrentar o colégio às asneiras e insensibilidades maternas. Não precisava de sua decepção; já estava decepcionada consigo mesma o suficiente.
Caminhou até a sala de cálculo com a cabeça baixa, tentando se proteger em sua própria capa da invisibilidade. Mas ela já deveria imaginar que tudo estava fácil demais para alguém que não sabia há tempos o que isso significava.
A visão fez seu estômago se embrulhar como um cobertor asfixiante prestes a levá-lo ao extremo de um choque anafilático. Era ele. Ela sabia que era. Ele sentado de lado sobre a mesa, conversando com seus amigos e rindo de qualquer merda idiota e machista que fosse. Ele levando a vida como se nada tivesse acontecido, enquanto ela só queria correr ao banheiro e esfregar sua pele com uma esponja áspera até retirá-la por completo, para ter certeza de que não sustentava mais nenhum vestígio de seu toque.
Engolindo o ácido gástrico que havia acabado de fazer uma visita à garganta, ela deu as costas para a sala e correu.
— Senhorita Hart, volte aqui agora. A aula já vai começar - o professor bradou pelo corredor, enquanto ela se afastava.
No banheiro, liberou o conteúdo estomacal em um jato sôfrego. As lembranças lhe davam ânsia; a visão era nauseante. Exausto do esforço para o qual não havia se alimentado para obter energia, seu corpo escorregou contra a parede do cubículo ocupado, sem se preocupar por um segundo sequer com as coisas sujas sobre as quais poderia ter se sentado.
— Senhorita Hart, volte para a aula agora. O tempo do banheiro já acabou - o professor repetia da porta do banheiro feminino. Ela não teve tempo para lidar com o choque pelo fato de ter sido seguida pelo homem.
— Eu não consigo - murmurou, consciente de que não tinha força suficiente para respondê-lo de forma audível.
— Bom, você não me deixa escolha - ele encerrou sua discussão em monólogo que ela não ouvira. — Detenção depois do almoço.
Finalmente sozinha, Aimee abraçou as próprias pernas e rezou para o Deus que fosse que a permitisse simplesmente desaparecer.

Summer

Ela odiava ter de acordar meia hora antes do qual estava acostumada. Era o suficiente para fazer parecer que todo seu sono havia sido completamente em vão e ela poderia facilmente participar da seleção de figurantes da nova temporada de The Walking Dead. Eram esses os momentos em que se arrependia amargamente da ideia de preencher meticulosamente seu currículo com as mais variadas conquistas e participações apenas para assegurar que ele parecesse agradável o suficiente para as universidades da Ivy League.
Mas era só lhe entregarem uma folha de papel e um lápis preto bem apontado que ela despertava para todos os números, cálculos e raciocínios que pareciam saltar de seus dedos com a mesma facilidade de um artista em um surto espontâneo de inspiração.
— Está atrasada - Leonard reclamou, quando ela ocupou sua carteira.
Summer olhou para o relógio de pulso, que ela havia sincronizado meticulosamente para sempre ter o horário certo.
— Não. Estou no horário exato que foi marcado pelo grupo. Não é minha culpa se vocês decidem chegar antes.
— Chama compromisso. Talvez você não saiba o significado disso.
— Leonard, me poupe, vai. Vê se me esquece um pouco.
Ele era um implicante de merda e ela o detestava com todas as suas forças. Se qualquer um dos outros rapazes decidisse aparecer uma hora depois, não receberia um terço do sermão ridículo que ela recebia por simplesmente ser pontual.
Leonard era do tipo que tinha que sustentar a mais plena certeza de que era o melhor em tudo a cada segundo ou seu espírito ruiria aos escombros de uma cidade medieval abandonada. A autoafirmação parecia mais constante e imutável em sua vida do que a certeza da morte e ele era simplesmente insuportavelmente circular e limitado, incapaz de falar qualquer coisa sem usar os pronomes da primeira pessoa do singular.
E tudo piorava em uma escala exponencial quando se tratava dela. Leonard não aceitava ser batido de forma geral, mas suas reações eram ainda mais grotescas, exageradas e vergonhosamente deprimentes quando seu posto de segundo lugar era assumido porque Summer havia ocupado o primeiro.
O professor responsável pelo treinamento dos quatro melhores alunos em exatas do colégio lhes entregou as listas de exercícios. Ela leu todos os exercícios primeiro, planejando mentalmente o melhor plano de resolução, buscando prever quais desenvolvimentos de resposta lhe tomariam mais tempo. Com a letra pouco cuidadosa, anotou o tópico das grandes áreas da matemática a que cada item se referia e deu início ao seu processo da forma que julgou mais adequada em termos de produtividade qualitativa.
Várias linhas de contas depois, virou a lista, expondo seu verso para cima. Puxou o celular do bolso rapidamente, abrindo as mensagens.

“Me avisa quando chegar em casa.”
“Aimee, me dá notícias.”


Não havia respostas. Respirou fundo, repetindo para si mesma que a amiga provavelmente só havia chegado cansada e tinha capotado. Talvez dormisse o dia todo para superar a ressaca. Precisava dar a ela mais tempo antes de surtar completamente.
Uma risada irônica que mais parecia uma exalação forçosamente bizarra ao seu lado lhe trouxe de volta à atenção para o mundo fora da tela de seu celular.
— É claro. A pessoa chega atrasada e ainda fica no celular. É por isso que eu sempre disse que a gente não devia aceitar garotas na equipe.
Com o tempo, Summer havia se tornado profissional com excelência na arte de ignorar as besteiras que Leonard despejava, mas aquilo havia feito seu sangue subir até queimar as hélices das orelhas.
Virou-se rapidamente, fuzilando-o. Que momento incrivelmente útil para ter os superpoderes da Supergirl.
— O que foi que você disse?
— Você ouviu muito bem. Até onde eu sei, é irresponsável, mas não é surda.
Summer sentiu seu maxilar e mandíbula se travando um contra o outro.
— Posso saber por que eu sou irresponsável?
— Claro que pode. Nós estamos aqui, comprometidos em dar o nosso melhor e representar a escola e você no celular, mais preocupada com a última fofoca do momento.
— Pessoal, acho que já deu - o professor alertou, pedindo que parassem.
— Ah, não - Summer insistiu. — Eu ainda quero saber se eu ouvi direito. Você é contra aceitar garotas na equipe?
Leonard deu de ombros, como se estivesse sendo acusado de algo banal e fosse completamente inocente.
— Qual é? Todos nós sabemos que essa nem é uma área feminina, não é à toa que você é a única aqui. E não acho que o esforço para te receber valha a pena considerando que você nem se compromete direito com a equipe.
Ela poderia respirar fundo e engolir, mas ao mesmo tempo sabia que não podia. Não mais.
— Eu não sou obrigada a ouvir essas merdas machistas suas sem te dizer nada. Então, quer saber de uma coisa? Vai se foder, Leonard. Vai se foder você e seus amigos idiotas que ficam quietos, mas concordam em silêncio com todas as merdas que você faz. Vocês são um bando de machistas imbecis que perderam o cérebro nos séculos passados. Se você acha que as exatas não são uma área feminina, é porque deve ter vivido preso em uma caverna desde que nasceu ou negligenciou muito os estudos de história porque não cabem na sua mentalidade atrofiada.
Summer não fez questão de se interromper nem para recuperar seu fôlego.
— E deixa eu corrigir uma coisinha: vocês nunca tiveram que me aceitar. Eu fui convidada. Sabe por quê? Porque eu sou boa para caralho nisso. Porque eu sou esforçada, comprometida e inteligente, mas, ao contrário de você, eu não preciso ficar me reafirmando o dia todo porque sou um puta bosta inseguro.
— Você é ridícula.
— Não, Leonard. Você é ridículo. Você se acha tão superior, mas não aceita que perdeu para uma garota. Você não é nem um por cento do que seu ego inflado te faz acreditar que seja.
— Já chega - o professor interveio. — Isso não é um local para discussão.
— Foi ela quem começou - Leonard rebateu infantilmente.
Summer gargalhou com todo o deboche e o ódio que a consumiam naquele momento.
— Você é um merda mesmo.
— Summer, já chega desse linguajar. Detenção segunda.
— Claro, culpe a garota por se defender usando palavras feias, mas não o garoto por atacá-la. - Ela meneou a cabeça. — Pelo menos lá eu posso ficar bem longe de vocês e dessa masculinidade frágil e patética.
Ela retornou até sua carteira, jogando o material de qualquer jeito na bolsa.
— Mas, antes de eu finalmente te deixar em paz com sua insignificância, querido Leonard. Tem umas coisinhas que você deveria saber. Eu fui melhor que você em álgebra, física avançada e geometria analítica. Só que eu não preciso ficar me exibindo para os outros, então você nunca soube disso.
Ela não o deixou falar quando fez menção de interrompê-la. Pegou a lista resolvida em sua carteira e, em um movimento violento, colocou-a sobre a mesa dele.
— E eu só estava no celular porque já tinha acabado. Pode conferir as respostas, caso a resolução tenha sido muito difícil para você.
Ele parecia prestes a espumar como um animal não vacinado para a raiva. Era aquele pingo de contentamento e satisfação que a nutriam e a fizeram engolir todo o ódio, sabendo que, independentemente do que fosse, sairia por cima. Eram eles quem precisavam dela e não o contrário.
— Boa sorte para ganhar essa competição sem mim. Vocês vão precisar.

Olivia

Ela podia jurar que os cochichos e as risadas no burburinho ao seu redor lhe queimavam tanto quanto os olhares furtivos e curiosos da fofoca e dos comentários maldosos.
Sentia o buraco do julgamento na nuca, como se tivesse sido perfurada por uma agulha longa e exposto seu íntimo vulnerável a pequenos vermes que a consumiriam avidamente de dentro para fora enquanto rissem de sua desgraça.
Apertou o fichário com mais força, ignorando a pressão tornando as articulações esbranquiçadas e tão mortas quanto ela pensava que talvez gostaria de estar em seus momentos de maior desespero. De todos os sentimentos do mundo, o arrependimento deveria ser um dos mais sádicos, apunhalando-a pelas costas milhares de vezes; arrancando a faca só para colocá-la de novo para que ela pudesse experimentar a dor mais uma vez. Só para não permitir que ela parasse de sangrar.
Que ideia idiota tinha sido aquela, afinal? Sempre havia permitido que a vergonha e a auto-estima - ou a ausência dela, mais precisamente - criasse e reforçasse sua aversão à exposição do próprio corpo, independentemente do motivo e da causa. Então por que tinha que ter decidido se libertar só um pouquinho; só por um dia?
Se não tivesse decidido postar uma foto de biquíni na frente do espelho, agradecendo pelo surpreendente dia de sol antes de ir para a piscina de sua casa, nada daquilo teria acontecido. Tinha arriscado correr para o banheiro e analisar sua própria imagem refletida enquanto usava e abusava do filtro solar. Pela primeira vez, deveria admitir, não detestou o que viu. Sentiu um ímpeto estranho e cálido como uma vontade de abraçar a si mesma; de lhe cuidar, pois merecia cuidado. E carinho. E preocupação. E, talvez, se se esforçasse um pouco, amor.
Então puxou o celular da bancada de mármore claro e abriu a câmera, sorrindo levemente enquanto capturava a fotografia. E era um bom resultado. Se não se sentisse intimidada pela liberdade do próprio colo e barriga, teria sido uma daquelas fotos que se tira de vez em nunca e acaba virando a foto de perfil de todas as redes sociais existentes na internet.
Não queria deixar que ela morresse enclausurada no próprio rolo da câmera, onde sabia que seria esquecida até que se tornasse tão permissiva de sentimentos contraditórios como todas as outras. E era por saber que esse momento inevitavelmente chegaria que ela decidiu que precisava dar a ela vida útil enquanto seu ódio ainda não tinha criado uma implosão autodestrutiva.
Clicou no ícone do instagram, abrindo o aplicativo que mal usava por lhe oferecer gatilhos constantes a uma velocidade bem maior do que conseguia digerir. Publicou a foto em seus stories, selecionando a guia 'melhores amigos’, segura ao pensar em compartilhar a imagem com as poucas pessoas em quem ainda poderia dizer que confiava cegamente.
Ao menos, era isso que ela pensava que tinha feito, até encontrar, ao sair da piscina se sentindo renovada, algumas mensagens diretas que ela preferia não ter visto.

“Finalmente a baleia voltou para a água.”
“O show de horrores, meu Deus.”
“Dá para usar esse pneu em um trator.”

Foi quando ela percebeu, com os olhos embaçados pela deposição das lágrimas, que havia publicado a foto para todos sem perceber. Com um soluço entalado, tirou a foto do ar o mais rápido possível, decidida a limitar o estrago, mesmo sabendo, no fundo, que era tarde demais para apagar o fogo quando já havia se intoxicado com as cinzas.
Passou o resto do fim de semana trancada no próprio quarto, sentindo um vazio gigante que paradoxalmente preencheu o buraco em seu estômago, que só aumentava conforme sua falta de apetite negava qualquer tentativa de alimentação. Manteve-se o mais imóvel possível enquanto pôde, evitando sucumbir à própria fraqueza. Ignorou os pais e as tentativas de interação, enfrentando a estranha incapacidade de se detestar ainda mais; dessa vez por preocupá-los.
Eles não mereciam nada daquilo. Mas ela sim. Merecia para parar de ser burra e por achar que as pessoas poderiam engolir sua própria crueldade por um segundo sequer, em vez de destilá-la como veneno por aí a troco de nada.
Só levantou da cama para ir para o colégio na segunda-feira e mesmo isso só foi feito porque precisava entregar o trabalho de química ou iria diretamente para a recuperação.
Enquanto caminhava pelo corredor, ela sentia os olhares sobre ela. Pensava ter contido o vazamento antes que a inundação se alastrasse, mas, pelo visto, já era tarde demais. Seu nome havia se tornado popular na boca de vários colegas e, fosse em tom de piedade ou de escárnio, ela só conseguia apertar os olhos e desejar que todos eles e suas persecutórias vozes sumissem.
Rodou o cadeado do armário rapidamente, buscando colocar o segredo o mais rápido possível, para pegar seu livro e sair da vista dos abutres carniceiros. Quando puxou a porta de ferro para si, foi atingida por uma enxurrada de fotos reveladas. Várias versões ampliadas, descaracterizadas, caçoadas e graficamente alteradas de sua foto. E, a pior de todas, uma em que haviam conseguido uma montagem relativamente realista de seus seios expostos, como se ela não estivesse usando o bíquini.
Ela ouvia as risadas e exclamações das pessoas à sua volta, abafadas pela taquicardia súbita. Quis correr, quis sumir, quis juntar todas aquelas imagens antes que mais alguém as visse. Quis coisas demais para alguém que não conseguia sequer sair de sua estática e estarrecida posição inicial.
— Mas o que que é isso? - A voz aguda soou ao seu lado, enquanto Summer juntava as fotos rapidamente em um bolo, olhando para o seu conteúdo.
Olivia não conseguiu responder. Mal sabia como ainda continuava respirando.
— Quem foi o imbecil que fez isso? - Seu tom de voz era inquisitivo e acusador, enquanto suas narinas pareciam dilatar em fúria.
A garota olhou de novo para as fotos, antes de soltar uma risada irônica e anasalada em completa incredulidade.
— Além de fazerem esse absurdo, ainda conseguem fazer uma edição tão porca de nudez que largaram a alça do biquíni dela. Parabéns. Até para serem uns lixos de ser humano vocês são incompetentes.
— Credo, Summer - um garoto zombou. — Nunca te vi tão estressada.
— Vai ver é porque eu já estou de saco cheio dessa merda toda e de como vocês não têm um pingo de respeito pelas pessoas.
— Calma - a voz dele foi estridente em deboche. Summer inspirou o ar com força, sentindo que quebraria os próprios dentes se se permitisse pressioná-los em expressão correspondente a toda a raiva que a consumia naquele momento.
— Qual é o problema de vocês? Nunca viram um par de peitos? Nunca viram uma mulher de roupa de banho? Qual é a piada tão engraçada que eu aparentemente perdi?
O silêncio se instaurou de uma só vez. As pessoas no corredor começaram a desviar os olhares, fugindo do tom ameaçadoramente inédito - para a maioria - de Summer.
— Andem, eu estou esperando uma resposta. Quero rir também. Qual é a piada?
— Você sabe qual é a piada - ele respondeu. A voz mais baixa, menos confiante que antes.
— Não, eu não sei. Estou esperando que você me explique.
O único lampejo real de graça era aquele: o desconcerto completo de uma pessoa ao lhe pedirem explicação da graça de algo obviamente problemático até para ela.
— Que rodinha é essa aqui? Todo mundo circulando. Para a sala, andem - o diretor reclamou. Provavelmente havia visto a pequena comoção pelas câmeras de segurança. Ele baixou o olhar para a pilha nas mãos de Summer. — Que pouca vergonha é essa, Olivia?
Summer revirou os olhos enormemente, sem acreditar que teria que explicar o óbvio novamente.
— É photoshop. Tem uma alça perdida aqui.
— Editado ou não, continua sendo um conteúdo totalmente inapropriado.
— E o senhor acha mesmo que é ela a responsável? Que ela estava esperando espalhar essas imagens pela escola e ver se terminava contratada para posar nua para uma dessas revistas?
— Eu não vou tolerar que me trate com ironia.
— Claro que não. Vocês só toleram as merdas que os outros fazem, mas nunca as respostas a elas. E esses babacas continuam agindo feito moleques exatamente por nunca serem responsabilizados.
— Vocês estão insinuando algo sobre o meu trabalho?
Summer fitou Olivia, que aquiesceu em um movimento mínimo. Passou então o braço sobre o ombro dela, pronta para tirá-la dali. Mas não antes de responder:
— Quer saber? Estamos, sim.
O homem respirou fundo, comprimindo a mandíbula.
— Vocês duas…
— É, a gente sabe - Summer o interrompeu, puxando Olivia consigo pelo corredor.
Interrompeu seus passos por alguns instantes, rasgando as impressões em vários pedaços e afundando-as no fundo do latão azul.
Olivia nunca havia experimentado tamanha gratidão na vida.

Eva

Estava decidido. “Câimbras” tinham acabado de assumir um lugar de honra no topo da lista de coisas que Eva eliminaria do universo em um estalar de dedos se tivesse uma manopla. Thanos parecia ter se esquecido de sumir com aquilo que mais importava.
E o pior é que parecia totalmente inútil e patética sua tentativa de consumir cálcio e potássio antes das tardes reservadas para a educação física. Claro; talvez fosse culpa sua por só se lembrar disso duas horas antes da aula, mas era obrigação das frutas e laticínios fazerem algo por ela quando ela havia se dado o trabalho de consumi-las. Era literalmente o mínimo que elas poderiam lhe oferecer em retribuição.
Mas ela adorava, precisava ser sincera. Não as câimbras, claro que não; mas a sensação de queimação muscular e fadiga de quem tinha acabado de gastar sua energia em uma atividade sistematizada.
Eva adorava correr. Amava a sensação do vento na nuca, onde os cabelos pretos haviam sido recentemente cortados. Amava o calor. Amava o exercício de seu instinto competitivo e a realização silenciosa de ultrapassar outra pessoa na pista. Amava saber que era verdadeiramente boa em algo, mesmo sem fazer grandes esforços.
Mas odiava ter que se sentar contra o concreto quente e puxar a ponta dos pés em um alongamento emergencial para fazer aquela contração do demônio parar.
Inspirou aliviada ao perceber que a dor havia passado e alongou a outra perna também apenas por uma questão de simetria plenamente satisfatória a ela como indivíduo. Levantou-se rapidamente e caminhou ao encontro do resto do grupo, que esperava o retorno do treinador para lhes direcionar para a próxima atividade.
— Foi embora cedo da festa sexta - Steven comentou ao vê-la.
Eva deu de ombros. Ainda estava em um gigantesco conflito interno, tentando decidir com sua própria consciência e a busca dolorosa e conflitante de buscar a consideração e o respeito ao mesmo tempo se deveria intervir. Não conseguia se livrar da sensação de que precisava fazer algo por Aimee e, ao mesmo tempo, não queria se sentir invadindo o espaço de alguém que, provavelmente, já estava passando por coisas demais e poderia precisar do seu tempo sozinha. Mas não queria abandoná-la. Os dilemas da vida eram uma gigantesca desgraça.
— É - concordou simplesmente, evitando fornecer a ele a abertura que sabia que buscava.
— Não vi sua namorada lá.
Ela inspirou profundamente, tentando forçar seu corpo a se acalmar.
— Ela estava ocupada.
O esforço para não revirar os olhos doía em seu peito.
Steven sustentava a maior expressão de babaca que ela já havia visto na vida. Se decidissem fazer uma máscara para o Halloween nessa temática, com certeza a fonte número um de inspiração seria a cara dele.
— Ocupada, sei.
— Que bom que sabe.
— Só não sei se ela existe de verdade.
— De novo essa palhaçada, Steven? Por que você não arranja alguma coisa para fazer em vez de ficar me enchendo o saco?
O garoto riu, meneando a cabeça.
— Eu sempre achei fofo te ver brava desse jeito. Estranhamente, é uma das coisas que mais me atrai em você.
Eva sorriu ironicamente, repassando em sua mente uma pacífica e aconchegante lista com todas as formas possíveis de se cometer um homicídio.
— Não estou interessada. Tenho certeza de que já te disse isso algumas vezes.
— Já, sim - concordou. — Mas é que é óbvio que você só não está pensando direito.
Ela sentiu seu coração acelerando e sua respiração se tornando pesada.
— Sobre a minha sexualidade?
Ele assentiu como se fosse óbvio.
— Acho que é só uma fase.
Seus olhos se estreitaram em descrença.
— Como é que é?
— É, tipo, eu não acho que você não goste de homens, só que você não encontrou um que saiba fazer as coisas direito.
— Ah, é? E quantas comidas ruins os caras te deram para você decidir que realmente gostava de mulheres?
Steven fez uma careta de quem havia acabado de ouvir o maior ultraje de todo o universo. Ela não deveria estar pensando direito.
— O que uma coisa tem a ver com a outra?
— Tudo - sua explicação era compreensivelmente agressiva. — Se eu gostar de mulheres vem do fato de não terem me comido direito, sua preferência deve seguir a mesma linha de raciocínio.
— Lógico que não - a voz dele se tornou alta em volume e timbre. — Eu não saio por aí me comportando feito uma aberração só para chamar atenção.
Em sua defesa, ela já estava segurando e silenciando aquele impulso instintivo há muito tempo. Ela poderia jurar sem remorso algum que havia tentado ao máximo, dia após dia, não expressar seus sentimentos acumulados por Steven daquela forma. Mas, na vida, existe um limite para tudo. E ela o havia atingido da mesma forma que atingira bem o meio de seu rosto, sentindo seu nariz estalando com força contra os nós dos dedos.
— Sua puta - ele urrou, levando a mão ao nariz latejante e assistindo aos seus dedos se enchendo de sangue enquanto seus olhos começavam a ver estrelas salpicadas em plena luz do dia. — Meu Deus do céu, você quebrou a porra do meu nariz! Qual é a merda do seu problema?!

Ela deu de ombros, não sabendo se a risada que segurava era de satisfação ou apenas um esboço nervoso da adrenalina que corria por suas veias.
— Sei lá. Vai ver eu só estava confusa.
— Mas o que é que está acontecendo aqui?
Eva nem tentou disfarçar, assumindo a agressão ao treinador sem hesitar. Recebeu um longo sermão que vagou de uma orelha para a outra como se percorresse um túnel a alta velocidade. Aceitou seu envio para a detenção e encenou uma gratidão excessiva ao treinador quando ele se convenceu em não suspendê-la, por concordar que ela havia sido provocada. Violência, no entanto, era inadmissível em qualquer situação, ele reforçava.
E ela assentiu, sabendo que a única violência inadmissível era a física, já que ninguém nunca ligaria para as cicatrizes psicológicas.

Aisha

Ela tinha certeza de que agora deveria virar para a esquerda. Ou quase.
Tinha mesmo se esforçado para decorar todas as coordenadas oferecidas pela secretaria, mas não estava tão confiante em sua capacidade de reproduzir o caminho enquanto se preocupava com tantas coisas ao mesmo tempo.

Era estranho estar em um ambiente pela primeira vez. Seus pais haviam lidado com toda a papelada e discussões adjacentes do processo de transferência e matrícula de forma integralmente virtual. A única coisa que ela havia visto sobre o colégio novo nas últimas semanas tinha sido a foto de sua fachada na internet, tirada há alguns anos.
E ela tentava não prestar muita atenção em sua volta, receosa que isso fosse acabar fazendo-a desviar o próprio foco e se perder de vez em meio àqueles corredores, armários e portas de salas que ela desconhecia. Mas era impossível não reparar que alguns olhares furtivos a observavam com curiosidade e ainda mais difícil fingir que não tinha percebido quão raramente encontrava adolescentes não brancos em seu caminho. Ela deveria mesmo estar parecendo um completo extraterrestre sob o ponto de vista deles e se sentia um peixe fora d’água, tentando se agarrar à ideia de que logo encontraria um fio cristalino qualquer que o levasse de volta ao mar.
— Tarde demais - murmurou tão baixinho para si mesma que poderia muito bem ter aceitado aquela intervenção sonora como uma expressão presa apenas aos seus pensamentos.
Aisha não sabia mais se deveria se virar para a esquerda ou para a direita. Ou nenhuma das duas coisas. O corredor prosseguia à sua frente e ela se sentia presa em um cruzamento, apenas esperando que os outros começassem a buzinar para que ela saísse logo da frente. Suas cutículas atacadas estavam detestando cada segundo daquilo.
E não adiantava chutar. Se fosse para o lado oposto, terminaria ainda mais longe de seu destino final e sem ideia alguma de como retornar ao ponto de partida. Respirou fundo cinco vezes, expulsando o ar como se fosse um balão se esvaziando. Precisava de ajuda. E, se seu relógio estivesse certo - e ela tinha certeza de que estava - precisava rápido.
Escolheu a garota que parecia mais simpática - ou menos propensa a olhá-la com desprezo - e perguntou onde ficava a sala do professor de economia cujo nome ela já havia deletado completamente de sua mente.
Sua capacidade de formar primeiras impressões adequadas dos outros se mostrou mais uma vez precisa. A garota não só aceitou cordialmente ajudá-la como se ofereceu prontamente para acompanhá-la até lá, assegurando que ela realmente chegasse ao lugar certo dessa vez.
Agradeceu repetidamente, recebendo um sorriso solícito em resposta e um “te vejo por aí”. Repetiu o processo quase ritualístico de inspiração controlada em cinco sequências e projetou seu corpo para dentro da sala de aula.
— Você deve ser a nossa nova aluna - o senhor de meia idade comentou, gesticulando para que ela se aproximasse.
— Isso mesmo - concordou, apertando a alça da mochila com mais força do que precisava, sentindo cada uma de suas articulações doendo como se estivessem sendo esfaqueadas.
— Pessoal, um minuto, por favor - solicitou, interrompendo as conversas e quaisquer outras coisas que os alunos estivessem fazendo. — Essa é Aisha Samir, nova colega de vocês que ficará conosco pelo resto do ano letivo. Sejam cordiais e mostrem a ela toda a hospitalidade que sei que existe dentro de vocês. Ou ao menos espero que exista.
Ninguém ligava. E, sinceramente, era melhor assim. Aisha encontrou uma carteira vazia e se dirigiu até ela o mais rápido que pôde, disposta a fazer praticamente qualquer coisa para deixar de ser o centro das atenções o mais rápido possível.
— Bom, vamos começar a aula - o professor anunciou. — Antes, só uma coisa. Aisha, se você puder tirar… isso.
Ele apontou para a própria cabeça, sinalizando de forma estranha e desconexa.
Aisha sentiu o peso dos olhares alheios sobre si.
— O meu hijab?
O homem pareceu precisar de alguns instantes para pensar.
— Ah, sim. Isso.
Ela soube imediatamente como suas sobrancelhas deveriam estar franzidas e sua testa cheia de linhas da mais completa expressão de confusão.
— Não posso.
— Senhorita Samir, receio que sejam essas as regras do colégio. Não é permitido utilizar acessórios que cubram a cabeça em sala.
— Isso não é um acessório. Não é um chapéu ou um boné.
— Entendo que seja importante para você, mas não podemos tolerar.
— Não é só importante. É a expressão da minha cultura. Da minha religião.
— É resistência - a garota ao seu lado disse, fazendo-a concordar com veemência.
— Senhorita Samir, a situação já é desconfortável o suficiente sem precisarmos deixá-la ainda pior, não concorda?
— Não vou tirar o hijab.
— Tenho que insistir que tire.
— Tenho que insistir que não posso fazer isso.
— Então, preciso pedir que se retire.
Ela mordeu a parte interna da bochecha, levando seu tempo para digerir a informação. Estava tendo seu acesso à educação negado por aquilo. Era no mínimo absurdo e, com certeza, inaceitável.
Mas aquela era uma luta que ela não venceria na próxima hora. Pegou sua mochila, colocou-a de volta nas costas e se levantou.
— Com todo o prazer.

history has its eye on you

‘boys will be boys, but girls will be women’

— Bom, passaremos as duas próximas horas trancadas aqui - a sra. Dawne comentou, olhando o relógio. — Teoricamente eu deveria pedir silêncio e qualquer outra coisa, mas sou pessoalmente contra esse e outros métodos punitivos adotados pelo colégio. Então, sei lá.
— E é por isso que você é minha professora preferida - Summer comentou, enquanto cruzava as pernas sobre a cadeira. — O que vocês fizeram para parar aqui?
Aisha apontou para o topo da própria cabeça.
— Não aceitei tirar o hijab.
— Que absurdo - Eva reclamou.
A sra. Dawne aquiesceu lentamente.
— Pois é. Grande primeiro dia.
— Bem-vinda ao colégio, tome aqui essa amostra de xenofobia gratuita. Tenha um bom ano! - Summer caçoou. — Mas, sério, bem-vinda ao colégio. Sinto muito que essa merda tenha acontecido.
— A gente deveria falar com o diretor - Eva sugeriu. — Isso é inadmissível.
— Não que ele tenha muita moral já que colocou a Olivia na detenção por terem colocado umas fotos no armário dela - Summer lembrou. — Mas a gente precisa pelo menos tentar fazer alguma coisa.
— Mas e você, Summer?
— Mandei o pessoal da olimpíada de matemática se foder. - Ela deu de ombros. — Falei umas verdades na cara deles e eles não gostaram.
— O que eles fizeram dessa vez?
— Ah, me menosprezaram como sempre. Mas dessa vez decidiram expressar todos os motivos pelos quais era péssimo ter uma mulher na equipe.
— Então nós duas explodimos com homens babacas - Eva disse, rindo, atraindo a atenção das garotas para si. — Quebrei o nariz do Steven.
— O quê?!
Eva quase se satisfez com a surpresa tanto quanto com o ato em si.
— Ele veio dizer que minha homossexualidade é só um período de confusão porque eu não fiquei com nenhum cara que “soube fazer direito” - sinalizou com aspas no ar.
— Que babaca - Olivia murmurou.
— E não foi a primeira vez que ele me encheu o saco - admitiu. — Então não me arrependo do soco. Talvez me arrependa um pouco de não ter feito antes só.
Eva poderia facilmente ter adquirido naquele momento seu direito imediato à introdução no grupo dos Vingadores - talvez levando o significado da palavra ainda mais a sério do que os próprios personagens da franquia. Violência até podia não levar a nada, mas em momentos como esse, por mais que ela provavelmente jamais fosse repetir a ação, ela se sentia bem por ter tomado uma decisão provavelmente errada.
As congratulações e risadas, contudo, foram interrompidas quando a última pessoa que faltava entrou na sala com a cabeça baixa e o olhar perdido, fraca demais até para despejar seu corpo sobre a cadeira como se fossem apenas meros destroços.
— Amiga, eu te mandei trocentas mensagens. Fiquei super preocupada - Summer foi correndo ao encontro de Aimee, que não esboçou reação alguma àquela declaração.
— Como você está?
Foi Eva quem perguntou, aproximando-se com vagareza, enquanto a preocupação dos últimos dias zumbia em seus ouvidos como um enxame aglomerado de várias colmeias.
Aimee não conseguia erguer os olhos. Não queria enxergar a curiosidade, a pena e muito menos a decepção nas íris alheias. Não queria olhar para o seu próprio reflexo e se sentir em processo de putrefação gradual, como uma laranja boa depois de ser tocada por uma fruta podre.
— Não consegui entrar na aula de cálculo - murmurou.
— Ah, meu Deus, ele é da sua turma de cálculo - Eva concluiu, passando o braço ao redor da amiga, enquanto Aimee soluçava sobre seu ombro.
— O que aconteceu? - Summer perguntou.
— Aimee foi assediada na festa do Marcus.
— Puta merda. - Summer sentiu seu coração se despedaçando como se tivesse se tornado dolorosamente oco. — É tudo culpa minha. Eu não deveria ter ido embora e te deixado sozinha.
— Não, Summer. Isso não é culpa sua e nem da Aimee e nem de ninguém a não ser desse filho da puta - Eva interveio novamente. — E ninguém além dele pode ser responsabilizado pelo que houve.
— Quem foi? - Dawne se aproximou, o semblante preocupado e tão nervoso quanto o de qualquer mulher cuja existência é automaticamente violada a cada vez que algo do tipo acontece.
— Eu não sei o nome dele - Aimee respondeu, com a voz embargada. — Sinceramente, nunca me importei em saber os nomes de todo mundo. Mas eu não conseguiria não reconhecê-lo depois… Daquilo.
— Posso trazer os arquivos da turma com as fotos de matrícula - a professora disse. — Ele precisa ser expulso.
— Duvido que seja.
— Ele precisa ser - Dawne insistiu. — Isso não pode ficar assim, Aimee. Não é justo com você e nem com todas as outras garotas desse colégio. Na verdade, não é justo nem com a sociedade, considerando que ele cometeu um crime.
Eva, Summer, Olivia e Aisha olharam para Aimee, em expectativa. Tentando conter a tremedeira súbita dos próprios dedos, tomou a decisão de fazer algo para tentar impedir que aquilo se repetisse.
— Pode trazer os arquivos, por favor.
Enquanto Dawne se retirava apressadamente, as quatro garotas se sentaram ao redor de Aimee, estendendo-lhe as mãos em um gesto que comunicava o que elas esperavam já ser óbvio: estavam juntas. Estavam com ela e não sairiam dali nem que Aimee as expulsasse completamente à base da força.
— Leve o tempo que precisar. E lembre-se de que estamos aqui.
Aimee esperou que seu olhar provavelmente pouco esperançoso e desperto fosse suficiente para expressar seu agradecimento. Puxou a grande pasta para si, abrindo-a e analisando rosto por rosto desde a primeira página.
Pela ordem alfabética, encontrou sua própria imagem rapidamente. Correu o dedo pela fotografia 3x4. Seus cabelos estavam mais claros na época. Os traços mais finos e os olhos provavelmente menos cansados. Faziam poucos anos e Aimee sabia que, se colocasse uma foto nova ali do lado, teria que enfrentar os instantes de choque. O sorriso forçado de quem detestava tirar fotos continuava exatamente o mesmo.
Evadiu de seu momento de estranha e pesarosa nostalgia e virou para as próximas páginas, buscando a feição daquele que era o último ser na face da Terra que gostaria de ver.
O momento chegou mais rápido do que ela esperava, mesmo que, paradoxalmente, parte de sua consciência parecesse ter driblado aquela demora por muito tempo. Era como se o tempo tivesse sido suspenso e ela não sabia como reavê-lo.
Aimee sentiu que poderia colocar bile para fora a qualquer momento. Estendeu a mão trêmula, pregando o indicador sobre a foto dele.
— Eu deveria ter suspeitado - Olivia comentou, sentindo uma bola entalada na própria garganta. — Ele me beijou à força na última excursão, enquanto eu saía do banheiro.
— Então não é a primeira vez - Aisha comentou.
— Sei de mais duas meninas que têm histórias iguais à minha - Olivia respondeu. — Infelizmente, nem eu fui a primeira. E também não fui, nem de perto, a última.
— Precisamos levar isso para o diretor - a professora reforçou. — Isso não pode continuar assim.
Summer assentiu.
— A gente vai infernizar todo mundo até esse imundo ser expulso. É literalmente o mínimo que ele merece.
— E apesar de essa ser a situação mais extrema, todas as questões que vocês levantaram aqui precisam ser levadas à diretoria.
Olivia soltou um protótipo frustrado de bufada de ar.
— É a certeza de que nada nunca é feito que faz a gente desistir de levar isso para frente.
— Então precisamos vencer pelo cansaço - respondeu a sra. Dawne. — Realmente nos mobilizar até que nos ouçam e não dar um passo sequer para trás enquanto algo não for feito. E eu falo isso sobre os problemas de todas vocês.
Os olhos de Summer brilharam como o nascer do sol no horizonte; a faísca de uma ideia procurando o comburente para criar um incêndio.
— Eu acho que pensei em uma coisa - disse, recebendo cinco pares de olhos interessados no que tinha a dizer. — Vamos precisar de alguns dias para organizar isso direito e vou precisar de todas vocês para que dê certo.

♀

A sexta-feira raiou como um presságio. Conforme os minutos giravam os ponteiros do relógio, mais e mais alunas, professoras e outras funcionárias se colocavam na entrada do colégio, enroscando seus braços umas às outras em uma corrente que representava união, resistência e luta de uma só vez, além da mensagem clara e alta de que não sairiam dali enquanto algo não fosse feito.
Com o horário oficial de início do dia letivo se aproximando, os demais começaram a chegar, sendo interrompidos em estranhamento pela barreira física de mulheres que impediam o acesso à entrada do colégio. Em cima de uma pequena colina, Eva bradava suas queixas ao megafone:
— Estamos cansadas de sermos desrespeitadas pelas nossas escolhas e aptidões e pela nossa sexualidade, cor e cultura. Chega de sermos julgadas e criticadas pelo nosso corpo, pela nossa inteligência, pela nossa simples existência.
Algumas das garotas do elo soltaram gritinhos em concordância.
— Nós queremos respeito, liberdade e justiça. Não vamos mais tolerar a impunidade daqueles que violaram nossos corpos e nossas vidas. Não vamos permitir que nos silenciem só porque o assunto incomoda vocês. Se preciso for, vamos gritar até que suas orelhas doam. E se vocês se cansarem, bom, problema de vocês. Nós estamos exaustas faz muito tempo.
— Que bagunça é essa aqui? - Questionou o diretor, aproximando-se a passos pesados, com sua pasta de couro marrom sintético embaixo do braço. — Para a sala já!
— Seja bem-vindo ao nosso protesto, querido diretor. Infelizmente, não podemos atender à sua solicitação enquanto não atender às nossas.
O homem soltou uma risada contida, carregada de ironia e deboche.
— Que absurdo. Deixem que os alunos entrem. Vocês não podem impedi-los de ter aula por causa dessa bagunça injustificável.
— E por que não? - Summer questionou-o. — Imagino que vá dizer que eles têm direito à educação, mas acho que vocês abriram precedente para isso ao expulsar uma aluna da sala só por usar um adereço da sua religião.
— Uma coisa não tem ligação com a outra.
— É claro que tem - Eva voltou a falar no megafone. — Vocês pregam os direitos das pessoas, mas ignoram os nossos o tempo todo. E isso, sim, é totalmente injustificável. Queremos respeito, liberdade e justiça para todos, não só para os homens. Queremos poder assistir às aulas em paz, andar pelos corredores sem sermos vítimas de bullying ou pegadinhas nos armários, ter nossa sexualidade e cultura sem sermos questionadas, participar de qualquer atividade sem sermos discriminadas simplesmente por sermos mulheres.
— Vocês estão exagerando.
— Estamos?
— Claro que estão! O colégio é um lugar seguro para todos!
— Certeza? Não me parece nada seguro ou justo uma garota ter que conviver com um cara que a violentou sexualmente e ser obrigada a fingir que nada aconteceu. Aliás, preciso corrigir essa frase. São garotas . No plural.
O diretor engoliu em seco, sentindo uma veia saltando em sua têmpora. O silêncio entre os demais alunos havia se tornado sepulcral. Ninguém queria tocar no assunto proibido. Ninguém queria encarar a seriedade e a presença de um criminoso entre eles.
— Não estou sabendo de nada - o homem se justificou, como se seu único objetivo fosse se limpar de sua própria culpa. Era uma ocasião mais importante que defender as vítimas, especialmente para a manutenção translúcida de sua frágil consciência.
— Agora sabe - Eva respondeu. — E não vamos sair daqui enquanto não tivermos a garantia de que alguma coisa será feita.
O homem respirou profundamente, esfregando os olhos por baixo das grossas lentes dos óculos com os dedos. Viu-se preso em uma rua sem saída, sem a possibilidade de simplesmente dar ré.
— Parem com essa bagunça e eu as ouvirei lá dentro.
— Não foi o que pedimos - interveio Summer. — Estamos sendo ouvidas aqui e agora por todo o corpo discente e docente. Queremos ações concretas e resolutivas para os problemas e isso não está aberto a discussão.
— Vocês não têm que pedir nada. Sabem muito bem que eu posso simplesmente suspendê-las e acabar com isso.
— Pode nos suspender, mas não acabar com isso - ela continuou. — Continuaremos aqui até conseguirmos o que buscamos.
— Eu não consigo acreditar que até você está fazendo parte dessa baderna. O que Yale vai pensar quando vir uma suspensão no seu histórico escolar?
Summer deu de ombros.
— Acho que eles vão me achar o máximo quando descobrirem o motivo e perceberem que, ao contrário do senhor, eu me coloquei do lado certo dessa luta.
O diretor bufou, soprando sua frustração que não conseguia conceber por completo a aceitação de que se sentia derrotado.
— Vamos conversar e tomaremos as medidas cabíveis e razoáveis para as exigências de vocês.
Olivia quase sentiu o corpo fraquejar de alívio ouvindo aquelas palavras. As expectativas borbulhavam em seu peito, misturando-se à tenra esperança de que, de uma vez por todas, alguma coisa pudesse ser feita. Não havia individualidade em seu pensamento; não era sobre ela. Era sobre todas as mulheres ao seu redor, obrigadas a amadurecerem cedo demais porque o mundo cobrava delas o que nunca cobrou deles. Sobre todas que haviam sido violadas, menosprezadas, ignoradas e silenciadas. Era sobre aquele misto de dor, medo e insegurança que só podia ser conhecido por quem vivia aquela realidade, dia após dia.
Seguiram o diretor até a sala, enchendo-a com as portadoras representantes das principais reclamações.
— Estou ouvindo - o homem disse.
— Fui expulsa da sala por usar hijab - Aisha começou. — O professor disse que não era permitido usar bonés e chapéus, mas não é um boné e nem um chapéu. É parte da minha vestimenta e da minha cultura. Quero a permissão para usá-lo na escola.
O diretor assentiu.
— Claro, é claro. Vou conversar com os professores.
— Fui repreendida por quebrar o nariz do Steven e não estou pedindo o contrário, porque sei muito bem o que fiz - Eva prosseguiu. — Mas ele foi homofóbico e machista e insinuou vários absurdos sobre a minha sexualidade, então acho que, no mínimo, ele deva receber alguma punição também.
— Quando isso aconteceu?
— Segunda de manhã, na aula de educação física. Tenho testemunhas se for preciso.
— Tudo bem. Quem mais?
— Pare de culpar a Olivia pelas fotos. Alguém fez aquilo como bullying para envergonhá-la e o senhor puniu a vítima - Summer reclamou. — Se as câmeras ainda funcionam, com certeza consegue descobrir quem foi.
— Agi precipitadamente em meio à confusão, concordo. Peço desculpas, Olivia.
A garota deu um sorriso de canto.
— Não tem problema.
— Desde que encontrem o verdadeiro culpado - Summer completou. — Até porque ninguém merece passar por isso.
— E por que é que você foi parar nisso mesmo?
— Mandei Leonard e os amigos do treinamento olímpico se foderem porque disseram que eu não deveria me meter nas exatas por ser mulher.
O diretor estreitou os olhos.
— Eles não sabem que suas notas são melhores que as deles?
Summer soltou uma risada debochada.
— Agora sabem. Eu meio que fiz questão de esfregar isso na cara deles antes de abandonar a equipe.
— Como assim abandonar a equipe? Você não pode fazer isso! Precisamos de você.
— Não vou me submeter a esse tipo de coisa só para fazer umas provas. Sinto muito.
— E se eu te restituir à equipe como líder e deixar bem avisado para todos os outros membros que serão expulsos se disserem qualquer coisa que a ofenda?
Summer fez uma careta, pensando na proposta.
— É, pensando bem, acho que funciona.
Ele balançou a cabeça lentamente, em sinal de concordância.
— E você, senhorita Hart?
— Fui assediada por um de seus alunos em uma festa - ela vomitou as palavras, antes que pudesse conectar as peças da vergonha e da apreensão em se ouvir dizendo aquelas coisas. — Consegui me desvencilhar dele e fugir, mas ele provavelmente teria me estuprado se eu não tivesse conseguido.
— Tinham outras pessoas nessa festa?
— Basicamente a escola toda.
— Alguém viu o que aconteceu?
— É sério que você vai duvidar da vítima? - Eva ralhou. — Qual é a droga do seu problema?
— Só gostaria de entender melhor a situação.
— A situação foi a seguinte: Aimee foi abusada, conseguiu escapar e me encontrou em desespero, pedindo para que eu a levasse para casa. E o senhor pode não ter visto o pavor estampado nos olhos dela, mas eu vi. E eu não vou ficar aqui sentada vendo você duvidando de uma mulher em seu momento de maior vulnerabilidade.
— Sem contar que não é a primeira vez - Olivia acrescentou. — Ele já me beijou à força. Fez o mesmo com outras meninas. Posso te passar os nomes delas se o senhor precisa tanto de recursos.
Aimee estava encolhida na cadeira, protegida pelo braço firme de Summer. Sairia dali correndo se pudesse, mas havia prometido a si mesma que aguentaria toda aquela dor mais um pouco. Se não podia mudar o passado, faria algo para modificar o futuro.
— Ele será expulso - o diretor garantiu, depois de alguns segundos de introspecção decisiva. — E, senhorita Hart, gostaria que visse a psicóloga do colégio por quanto tempo for necessário. Não posso imaginar o que você passou e está passando, mas quero que saiba que faremos o possível para ajudá-la a partir de agora.
Ela mal moveu a cabeça ao assentir, sentindo as lágrimas pesadas percorrendo o seu rosto. Summer beijou-lhe o rosto, apertando-a em seus braços e chorando junto com ela.
Poderiam não ter conseguido a utópica revolução em que a misoginia e a violência não mais as acometessem, mas tinham dado passos importantes naquela manhã. A história havia tomado um atalho importante para elas e todas suas colegas, bem como para aquelas que ainda ingressariam naquela instituição dali para a frente. Não seria a última vez que precisariam bater de frente com o sistema e destruir cada um de seus tijolos, mas criaram uma rachadura profunda o suficiente para que fosse possível vez a luz do outro lado.
E mais do que o gatilho para que as coisas começassem a mudar, haviam conquistado a certeza de que sempre haveria alguém ao seu lado, pronta para lhe oferecer a mão e empurrá-la para o alto em vez de jogá-la para baixo. No fim do dia, estavam juntas. E o futuro que se aproximava pela linha do horizonte era cada vez mais feminino.

Nota da autora: Depois de dezenas de histórias, essa é a primeira totalmente não interativa que eu escrevo. Acredito que vocês tenham entendido o porquê.
As discussões eram mais importantes que um romance, um drama familiar etc. E sei que ficou curtinha e várias coisas podem ter parecido corridas, mas a minha intenção com a história era bem essa mesmo: mostrar alguns (dos MUITOS) problemas e, mesmo que em um cenário um pouco otimista demais, reforçar como temos o poder de virar o jogo, nem que seja encontrando um ombro amigo. Ou vários.
Não desistam da nossa luta. Estamos juntas em todo esse trajeto. Se quiser contar a sua história, desabafar etc, fique à vontade para me procurar.
E a todas as mulheres desse mundo meu mais sincero obrigada e minha mais extensa admiração.
Sem mais delongas, espero que tenham gostado e, se você chegou até aqui, eu agradeço profundamente por me dar uma chance. Espero te receber aqui mais vezes.
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02. Don't Let It Break Your Heart
02. Stitches
03. Dear Patience
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Nós
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
Evermore
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallflower