Capítulo 1
Existiam poucas coisas que eu adorava mais do que o outono. Desde meus cinco anos aquela era minha estação preferida. Eu amava passear de carro pelas estradas desertas de minha cidade para observar as folhas caindo, colorindo o chão com suas cores vibrantes. Era apaixonada pelos feriados que tínhamos nessa época, principalmente pelo dia de ação de graças, quando eu comia peru e salada de gelatina como se não tivesse me alimentado durante todo o ano. E, como meu aniversário era em novembro, aquela era a época do ano em que mais me animava em receber presentes - inclusive a presença de minha mãe, que trabalhava na França e só visitava-nos em datas especiais.
No entanto, mesmo com vinte e três anos e com uma mentalidade extremamente diferente, o outono continuava sendo minha estação favorita. Não pelos mesmos motivos de alguns anos atrás. Agora, eu amava o outono pelo fato de essa ser a única época do ano em que eu podia ver a pessoa por quem desenvolvera uma paixão platônica dolorosa e, ao mesmo tempo, prazerosa. Meu colega, parceiro de crime e melhor amigo, .
Quando conheci , ainda no jardim de infância, nunca imaginara que eu passaria a amá-lo tão intensamente. Éramos melhores amigos desde o primário e não nos separávamos nem ao menos para viajarmos nas férias de fim de ano e de verão - sempre combinávamos um modo de ambas as famílias se reunirem em um mesmo local, para que não passássemos mais do que um mês longe um do outro. Em algum momento durante aqueles longos anos de amizade, vi-me me apaixonando pelo garoto maluco que adorava gibis e física e percebi que, talvez, ele pudesse vir a ser o homem da minha vida.
Observando agora, percebo como era sonhadora na minha adolescência. Não imaginava que, sem nem mesmo perceber, toda minha vida viraria de cabeça para baixo e se tornaria algo muito diferente do que eu almejava. Em pouco tempo, os amigos inseparáveis se afastaram devido aos sonhos de faculdade diferentes: queria se formar em física pelo MIT e eu, em arquitetura por Stanford. Quem diria que eu mudaria de perspectiva e começaria a lecionar na escola primário de Michigan - minha cidade natal - enquanto terminava seu mestrado em física? Quem poderia pensar que os amigos que não gostavam de ficar longe um do outro no curto período de um mês, agora lutavam contra a distância - com a ajuda do maravilhoso Skype - e só se viam realmente de ano em ano?
Naquele dia eu tentava esquecer todos os problemas e todas as reclamações que rodavam minha mente. Faltavam pouquíssimos minutos para que o avião de pousasse e eu já estava chegando no aeroporto com Max, o irmão mais novo do meu melhor amigo, para podermos lhe dar as boas vindas. O garoto de quase 5 anos estava tão animado quanto eu. Todos nós considerávamos um ano um período muito longo. Se não fosse pelas minhas crianças da escola e, se eu tivesse dinheiro suficiente para ficar esbanjando por aí, eu iria ao menos, de mês em mês me encontrar com , para podermos matar a saudade com mais frequência.
- Sua mãe contou que está fazendo macarrão com queijo, Max? - perguntei ao garotinho, que assentiu animadamente.
- Ela disse que é o preferido do . - o menininho disse, soltando o tiranossauro rex de brinquedo que ganhara do irmão para desfivelar o cinto.
Desci do carro e dei a mão para Max, que a segurou fortemente. Rapidamente já estávamos no setor de desembarque e esperávamos, sentados nas cadeiras desconfortáveis.
- Você acha que ele vai gostar do meu desenho, ? - a voz do garoto se fez audível, me tirando dos meus devaneios. Era normal eu me pegar sonhando acordada, imaginando que, finalmente, contara a tudo o que sentia e que ele correspondia minha afeição. Era bom idealizar, mas era quase impossível algo do tipo acontecer.
- É claro que ele vai, Max. Você sabe que ele ama todos os seus desenhos. - aquele em particular era surpreendentemente bem elaborado. Para uma criança de 5 anos, quero dizer. era retratado ao lado de Max no formato de bonequinhos de pau, que não estavam completamente tortos, como costumavam estar, nos desenhos do garoto. O menino, com certeza, colocara um empenho enorme para completar aquela carta em formato de desenho. - Você se lembra da caixa enorme que tem? Ela é cheia com seus desenhos.
Eu achava magnífico a maneira como as crianças, ao desenhar algo simples, como ela, de pé, ao lado de um sujeito, conseguiam dizer um "eu te amo" tão puro para tal pessoa. Acreditava que era por esse motivo que eu decidira dar aula para crianças. Era mágico imaginar aquele mundo particular delas e era extremamente maravilhoso aprender a se sentir parte daquele universo novamente, com os olhos mais experientes.
- Naquela caixa também tem muitas fotos. - Max sorriu travesso. - Um montão é sua com ele. Vocês faziam muita bagunça.
- Eu era super comportada! - fingi indignação.
- Não era não. Eu vi uma foto de vocês nadando sem roupa. - arregalei os olhos naquele segundo. Aquela foto, prova de minha primeira travessura de adolescência, era para ter sido rasgada há anos. me jurara que havia se livrado dela! - Mamãe disse que não pode nadar sem roupa. Por que vocês nadaram, ?
Naquele momento a situação ficara muito crítica. Como explicar para um garoto daquele tamanho que desobedecer os pais naquele dia tinha sido divertido? A mãe dele me mataria na hora, sem sombra de dúvidas. Ainda estava pensando em desculpas esfarrapadas ou em algo para desviar a atenção do menino quando meu celular começou a tocar, salvando-me.
- Ele já chegou? - Delphine me perguntou assim que atendi o celular.
- Ainda não, mãe coruja. Você tem que parar com esse medo de avião. Ele já deve estar quase pousando.
- Ok. - ouvi a risadinha da mãe de do outro lado de telefone. Eu até podia vê-la rolando os olhos por eu tê-la chamado de mãe coruja. - Não demorem muito, tudo bem? O jantar já está quase pronto.
Não se passara nem ao menos dois minutos quando percebi que já era o horário previsto, no painel de voos, para a chegada de . Levantei-me com Max e ficamos esperando nosso garoto chegar. Eu enxergava várias cabeças e não reconhecia nenhuma. O voo de não atrasara, portanto, era seguro de se dizer que, a qualquer minuto, veríamos seu rosto entre a multidão e poderíamos abraçá-lo tão apertado que seria perigoso esmagá-lo. Nossa, eu realmente estava morta de saudades do meu melhor amigo.
- ! - Max soltou minha mão de repente, correndo em direção a multidão. Procurei, avidamente, pelo rosto de e não conseguia encontrá-lo. Onde Max estava vendo o irmão?
Mas, após alguns segundos, meus olhos finalmente o encontraram e naquele instante parecia que minhas pernas haviam virado gelatina. Ele estava mais lindo do que me lembrava. Seu corpo estava mais definido do que o Skype conseguia mostrar, seu cabelo, mais curto e mais escuro. continuava com aquele sorriso sensual e com aquela postura encantadora. Como se trazia oxigênio para o pulmão, mesmo?
- E aê, macaquinho? - ele cumprimentou o irmão com a voz doce, pegando-o no colo e abraçando-o fortemente. - Você cresceu quantos metros enquanto eu estive fora?
- A última vez que medi, eu tinha um metro e trinta! Você acredita? Já sou quase mais grande do que você.
- Mais grande? Estou vendo. Vou ficar para trás. - beijou o topo da cabeça de Max, se aproximando de onde eu permanecia. - Eu estava morto de saudade de você, garotão.
- Eu também. - Max abraçou-o com os bracinhos finos e desceu do colo de , dando a mão para ele segurar enquanto percorriam a curta distância até mim.
- Saudades de mim, ursinha? - disse meu apelido e abriu os braços, convidando-me para um abraço. Eu não consegui esperar nem mesmo um segundo para tentar disfarçar minha ansiedade. Apenas corri até seus braços e o abracei apertado.
- Você não tem ideia do quanto. - respirei fundo, deixando o cheiro de penetrar minhas narinas. Eu o amava, caramba. Eu o amava tanto! Percebi quando meus olhos se encheram de lágrimas e me afastei um pouco da pele quente do meu melhor amigo, para secar meus olhos. Droga. Sem ser sentimental demais, né, . Por favor!
- Você está ainda mais linda do que eu me lembrava. - ele disse, passando os dedos em minha bochecha, ajudando-me a limpar minhas lágrimas. - Eu não sei como consigo passar tanto tempo longe de você.
Sorri fracamente e respirei fundo, me recompondo. Aquela voz rouca tão perto não fazia bem algum para minha sanidade. Perpassei meus olhos pelo seu rosto, desde o contorno de seus lábios até o brilho de seus olhos e parei por ali, encarando-o. Ah, se ele conseguisse ler meu olhar... ele saberia há décadas que eu o amava não apenas como amigo.
- Sua mãe pediu para não demorarmos. - eu disse após alguns segundos, desviando os olhos, um pouco constrangida. - É melhor a gente ir.
Ele concordou, retirando a palma da mão de minha bochecha e pegando Max no colo novamente. Quando começamos a andar, ele me puxou pela cintura, para permanecermos perto um do outro e eu abri um sorriso enorme com sua ação.
A conversa no carro tinha sido maravilhosa. Max insistira que fizesse a imitação de um tiranossauro rex e, após a vergonha que ele passara com a tentativa, aproveitamos o tempo para colocar a conversa em dia.
Não foi diferente no jantar. Delphine era uma cozinheira dos deuses. Seu macarrão estava maravilhoso e eu me empanturrei de comida. Conversamos por horas na sala de jantar e, depois, decidimos assistir um programa de tv na sala (foi nesse momento que Max sucumbiu ao sono e desmaiou feito uma pedra no sofá e Delphine decidiu ir dormir, antes que fizesse o mesmo que seu filho mais novo).
- Nossa! Você deve estar morto de cansaço, . - disse, após perceber que já se passava das dez. - Eu acho que vou embora.
- Você enlouqueceu, é? - ele riu da minha cara de desentendida. - Não estou nada cansado. E a gente combinou de ir na boate do centro, lembra? Ou é você quem está cansada? - ele levantou uma sobrancelha, não acreditando que aquilo fosse possível.
- Não! É só que eu achei que você ia querer dormir, ué. Se você quiser a gente pode deixar para outro dia sem problema.
Ele negou com a cabeça.
- Só terminar esse episódio e a gente vai, pode ser?
Dei de ombros e, juntos, assistimos ao episódio de The Flash que passava na tv.
A boate estava cheia, como sempre. Eu não ia lá com muita frequência por não saber dançar muito bem, mas, quando voltava a Michigan, ir àquele lugar era nosso ritual para lembrarmos dos velhos tempos. Fui pegar meu celular para ver as horas - eu não podia ficar até tarde, pois daria aula na parte da manhã - , porém não o encontrei no meu bolso.
- Droga! - eu disse irritada. - Você pega algo para eu beber, por favor? Esqueci meu celular no carro.
- Claro. - gritou, para que sua voz fosse escutada.
A merda do aparelho devia ter caído enquanto eu dirigia, pois ele estava no chão do carro. Foi quase impossível encontrá-lo. Demorei vários minutos e até cheguei a pensar na possibilidade de tê-lo esquecido na casa de .
- Estava lá? - meu melhor amigo perguntou quando voltei, me entregando uma garrafa de cerveja. Ele não lembrava que eu não gostava muito de álcool?! Que boa memória, . Contudo, naquela noite, eu queria beber, por isso não reclamei da escolha.
- Sim. No chão. - revirei os olhos e bebi uma grande quantidade do líquido. Eu tinha que me lembrar de ir com calma, pois, por não beber com constância, eu ficava bêbada com pouca coisa.
O som da música estava totalmente alto. Eu amava aquilo, pois o barulho exterior conseguia diminuir um pouco a inquietação de minha mente. No fim da primeira canção eu já tinha bebido a garrafa inteira de cerveja, enquanto estava sentada conversando com no balcão. Assim que terminei o líquido, pediu outro. Eu já estava começando a me sentir mais aérea. Era como se eu estivesse morta de sono.
- Eu sei que você não curte muito, mas você quer dançar? - me perguntou depois de tomar mais um pouco de sua própria cerveja.
- Eu amo dançar! - eu gritei, jogando os braços para cima. Com certeza era o álcool falando. Eu nunca admitira para ninguém que eu amava dançar e que apenas tinha vergonha de fazer isso em público. Nem mesmo para . A verdade era que eu parecia um pato com diarreia quando dançava e, por isso, fazia todos acreditarem que eu odiava fazê-lo.
- Que milagre! - ele riu, pegando-me pela mão e nos levando à pista de dança.
era muito desengonçado quando dançava. Era super fofo. Por isso e por causa do álcool que corria me minhas veias, decidi me soltar e dançar como gostava de fazer em frente ao espelho do meu quarto.
- Eu adoro essa música. - eu gritei e comecei a fazer alguns passos bem estranhos. Primeiro, eu começava fingindo que estava chutando algo atrás de mim enquanto balançava minha mão feito louca ao lado do meu corpo. Depois, eu inventava de fechar minhas mãos e fingir que estava numa luta de MMA e que estava espancando um outro jogador. Na verdade, acho que eu não era tão ruim assim enquanto dançava. Eu era ótima! Deveria ganhar dinheiro com isso. Ok. Alerta de bêbada tocando no fundo de minha mente.
- Eu também. - concordou e riu, olhando meus movimentos. - Onde aprendeu essa dança?
- Sozinha.
- Eu acho que somos o casal mais desengonçado da vida.
Casal. Meu coração parou por um milésimo de segundo. Dei uma risada e engoli em seco. Bebi mais um pouco da minha cerveja para que o bolo que se formara em minha garganta fosse capaz de descer, mas quem disse que funcionou? Era bem provável que eu acordaria com ressaca no outro dia e que, por isso, que acabaria esquecendo da fala de . Não sabia se aquilo era bom ou ruim. Por um lado, se eu lembrasse, poderia ter um pouco mais coragem de dizer o que sentia, mas, talvez, aquela frase simples estava apenas me dando falsas esperanças e eu quebraria a cara se tentasse qualquer coisa. Preferia não me lembrar do termo usado, então. Preferia um milhão de vezes.
Após a dança, sentamos novamente no balcão e pediu mais uma garrafa de cerveja. Ok, com certeza eu estava bêbada e iria morrer de dor de cabeça pela manhã. Ótimo. Para melhorar a situação, amanhã era dia de semana, o que implicava em ter que dar aula para criancinhas de ressaca. Extraordinário!
- , já são duas da manhã. - ri, um pouco assustada. - Eu tenho que dar aula daqui a pouco.
- Nossa. Nem vi que já era tão tarde. Vamos, vou te levar para casa.
Levantei-me do banquinho alta, mas minhas pernas estavam bambas e eu quase cai no chão no meio de um bocejo, não fosse me agarrar pela cintura para me ajudar a chegar até o carro. Estávamos muito próximos e eu encostei a cabeça em seu ombro, sentindo o cheiro maravilhoso do perfume amadeirado dele.
De repente, uma ideia não muito inteligente veio a minha mente enquanto eu passava minha bochecha pelo ombro de . Ok, a ideia não era nada inteligente, mas não custava tentar, não é mesmo? Eu estava bêbada. Se desse algo errado e ele não correspondesse, eu podia fingir que não lembrava e culpar o álcool, continuando com nossa amizade quase intacta. Ele não se irritaria, não é? Claro que não.
Estávamos quase chegando no carro. Era agora ou nunca. Entre em ação ou esqueça isso para sempre, . Decidi-me por seguir minha intuição e parei nossa caminhada, ficando de frente a . Mas as palavras "Eu te amo" não saíram pelos meus lábios. Ficaram presas em minha garganta enquanto ele me encarava em dúvida do que eu queria.
- O que aconteceu, ursinha? - colocou a palma de sua mão em minha bochecha. Deus, eu amava quando ele me acariciava daquele jeito.
Respirei fundo e fechei os olhos. Meu rosto estava próximo do dele, apenas alguns poucos centímetros nos separavam. E se eu o beijasse? Ele me impediria? Eu quebraria meu coração se ele não me correspondesse? Se ele não corresponder, você vai esquecer. Foi com esse último pensamento que me decidi. Aquela era a hora. Abri meus olhos rapidamente e olhei direto para as íris brilhantes do meu melhor amigo. Ele estava preocupado com o que me agitara e eu me aproximei ainda mais. Vi a surpresa nos olhos de antes de fechar os olhos novamente e encostar meus lábios nos dele.
Foi rápido. Apenas um selinho. Mas eu nunca me sentira mais maravilhada. Era como se um raio tivesse passado por meu corpo desde os lábios até a ponta dos dedos do pé.
- Desculpa, eu estou meio bêbada. - me afastei, já arranjando um motivo para ter feito algo tão embaraçoso. Eu não tinha coragem de olhar o rosto de , então, estava encarando minhas mãos completamente nervosa. Droga, . Pensa direito da próxima vez que for faze algo estupido.
- Bêbada? - a voz dele estava incrédula. Era errado eu querer mais um beijo?
- Bebi mais do que imaginei. - olhei para o lado, mordendo o lábio para não gritar. Eu queria muito repetir. Por que eu fizera aquilo, merda?
- , olha para mim. - ele colocou a mão em meu queixo e eu desviei o olhar. Eu não conseguiria ver a recusa nos olhos dele. Não conseguiria. - Você não bebeu álcool nenhum hoje. Não tem como estar bêbada.
Arregalei os olhos. Não! Eu tinha bebido quase 5 garrafas de cerveja. Eu estava bêbada. Não teria coragem de ter feito aquilo se não estivesse.
- Estou sim. Eu bebi muita cerveja e...
- Eram cerveja sem álcool. - ele disse, como se fosse óbvio. - Você não gosta de beber álcool, principalmente em dia de semana.
Ele lembrou! É claro que ele ia lembrar, sua tonta. Segurei uma mão na outra fortemente, percebendo a burrada que tinha feito. Não tinha mais como inventar uma desculpa. Eu estava completamente ferrada.
- Eu... - engoli em seco e respirei fortemente. Diga. Vai. Fala para ele o que você sente. Agora, caramba! - Eu gosto de você, . Tipo, muito. Mais que como amigos.
Foi assim, de uma só vez. Rápido como tirar band-aid de machucado. Apenas depois de toda essa declaração que, finalmente, tive coragem de encará-lo. Eu procurava pena, vergonha e até um pouco de frustração em seus olhos, mas, tudo o que percebi foi a expressão de surpresa estampada em seu rosto dar lugar a de determinação. Fiquei pasma quando ele segurou minha cintura fortemente e se aproximou ainda mais, me beijando novamente, com muito mais paixão.
Pernas, o que acham de não bambearem em um momento como esse? Obrigada. Meu Deus. Eu nunca imaginara que seria assim. Nunca imaginara que ele corresponderia meu beijo de uma forma tão, tão, apaixonado. Quando senti sua língua em minha boca, era como se eu tivesse morrido e voltado a viver. Seu beijo era como se fosse um despertador, que fazia com que muitas partes do meu corpo começassem a funcionar pela primeira vez (meu coração, com toda certeza, fazia parte dessa fração louca que começara a exercer sua função naquele momento). Minhas mãos não tinham um lugar fixo. Ora perpassam os largos ombros de , ora bagunçam o cabelo já desajeitado dele e eu não sabia mais como me mantinha em seus braços sem me enlouquecer. Meus pulmões pareciam arder por falta de ar, mas eu não queria me afastar. Nem mesmo por um minuto. Não queria perder a mágica. Sentia que podia até mesmo flutuar.
- Uau. - diz, um pouco ofegante, após pararmos o beijo. - Eu, nossa, uau.
- É... - foi a única coisa que consegui dizer enquanto estava agarrada à ele. Nem raciocinar direito eu estava conseguindo mais! Não percebi exatamente quando comecei a gargalhar, só sei que eu amei escutar me seguindo naquela liberação de endorfina e serotonina. Aquilo era um sonho e, acordar estava fora de possibilidade.
Fazia exatamente duas semanas que eu e estávamos nos... bem... divertindo juntos. Ok, a gente não tinha definido nada ainda. Só nos beijávamos quando tínhamos vontade (o que era, praticamente o tempo todo). Houve até um momento de agarração no quarto dele na noite passada, mas, Delphine e Max não sabiam de nada ainda e, era melhor encararmos a situação com mais calma.
- Você viu que vai ter uma peça de teatro do Rei Leão aqui na cidade? - me perguntou naquela tarde, enquanto estávamos deitados no colchão da sala de minha casa. - Estava pensando em levar o Max para assistir. Ele está louquinho. Quer ir? É esta noite.
- Rei Leão? - perguntei, surpresa. O filme era super antigo. - Claro que quero! Lembra de quando brincávamos de animais por causa desse filme?
- Aham. - ele disse, distraído, mexendo em meus cabelos. - Você foi vestida de leão em um Halloween porque queria ser forte que nem o Simba. - ele gargalhou, lembrando da cena. A fantasia havia ficado mais do que estranha em mim. Ela era ridícula!
- Você está rindo por quê, garotão? - indaguei, indignada. - Você não lembra da vez que você se vestiu de vaquinha não? - arqueei a sobrancelha, vitoriosa. - Até hoje eu me lembro de você com aquele sininho no pescoço. Melhor cena da vida.
Eu alcancei meu objetivo, com toda certeza. As bochechas de estavam completamente vermelhas - ele tinha odiado aquele Halloween por causa da sua fantasia - e eu comecei a gargalhar, sem conseguir me controlar.
- Quer rir, é? Vou fazer você rir. - ele sentenciou, com o olhar maligno. Quando ele fazia aquela expressão, eu tinha que me preparar para correr. O filho da mãe ia me matar de cócegas, eu tinha certeza.
Levantei-me correndo do colchão e sai de perto do alcance das mãos de .
- Você não consegue me pegar. - aticei, como se fosse uma criancinha. Eu amava brincar como criança às vezes. Não tinha porque negar.
- Pode se preparar para correr, senhorita . Porque, senão, você irá sofrer.
Eu já estava na cozinha quando ele se levantou do colchão. Quando ele chegou por lá, eu já corria em direção ao banheiro. Talvez, se eu me trancasse lá dentro, seria impossível para ele concluir seus planos malignos. No entanto, as pernas de eram tão longas e ele corria tão rápido que, quando estava prestes a fechar a porta, ele colocou uma perna para impedir minha ação. Droga!
- Você é um frangote. Tira a perna. - eu ria, já sem fôlego da pequena corrida.
- Não tiro enquanto você não abrir a porta.
- Para, !
- Abre a porta! - ele fingiu irritação com a demora, mas a risada ainda estava completamente presente em sua voz. começou a fazer um pouco de força na porta, simulando insatisfação. - Se você não abrir, eu vou empurrar! Você merece essa sessão de cosquinhas!
- Não mereço não. - gritei.
- Um, dois, três. - quando ele contou até três, eu me afastei da porta de repente e, por estar um pouco apoiado nela, ele caiu direto no chão. Ai meu Deus. Minha barriga já estava dolorida de tanto rir.
- Você é tão idiota! - não conseguia parar de rir nem mesmo para dizer a frase. Claro que ele não havia machucado mas, pela expressão dele, eu sabia que ele me faria pagar pela artimanha. - Agora, paremos de criancice e vamos assistir ao filme que já vai começar por favor.
Comecei a sair do banheiro, passando um pé por cima de seu corpo esticado no chão. Fiquei observando ele durante toda minha ação, com medo do que ele estava aprontando. estava muito quieto para meu gosto. Quando dei mais um passo para longe de seu corpo, eu o vi se levantar rapidamente e, por isso, corri a toda velocidade para a sala.
Ele estava atrás de mim. Muito próximo. Eu sabia disso. Senti o exato segundo quando ele conseguiu me alcançar e nós dois tropeçamos, caindo de volta no colchão macio. A força do baque me deixou desnorteada por um tempo e eu comecei a rir novamente. Minha gargalhada aumentou cem vezes quando decidiu ser malvado e começou a fazer cócegas em minha barriga. Eu clamava por ar. Clamava por uma pausa. Eu estava levantando bandeira branca.
- Chega! - eu gritei, me debatendo de um lado para o outro. Era tão horrível! - Eu te imploro. Pelo amor de Deus!
Ele parou após mais alguns segundos de tortura e saiu de cima de mim, deitando-se no colchão. Pela respiração ofegante, percebi que ele estava completamente cansado da brincadeira, por isso, virei-me, encarando o corpo maravilhoso dele esticado. Eu ainda estou ofegante, porém, haviam mais motivos - até mais interessantes - por trás de minha falta de ar.
Ele conseguiu se recuperar e olhou para mim novamente. Seus olhos brilhavam e o sorriso enorme mostrava que ele estava feliz. Como eu sentira saudades daquele sorriso. Como eu sentira saudades de tudo.
- Eu já te disse que amo seus olhos? - ele perguntou, de repente, tirando-me de meus devaneios.
- Não que eu me lembre.
- Bem, eles são lindos. - ele colocou a mão em minha bochecha, naquele carinho que sempre fazia-me derreter em seus braços. - Grandes globos oculares maravilhosos. Eles conseguiriam iluminar uma cidade inteira com esse brilho.
Nossa. Meu coração sofreu um pequeno disparo. Eu sei que sempre me fazia alguns elogios assim, do nada, quando éramos apenas amigos - naquela época eu ficava completamente sem fala também. Porém, naquela situação, eu conseguia interpretar o elogio de uma forma completamente nova e inesperada. Era um sentimento tão bom e tão puro. Eu o amava tanto que era difícil respirar.
continuava a acariciar minha bochecha. Eu sentia como se essa parte do meu rosto estivesse mandando um formigamento maravilhoso por todo o meu corpo. Fechei os olhos e respirei profundamente, ansiando para o que vinha em seguida.
O beijo começou muito calmo, como se estivéssemos sentindo, experimentando, nossos lábios pela primeira vez. Em pouco tempo já estávamos em uma fúria para tentarmos aproximar nossos corpos mais e mais - mesmo isso sendo humanamente impossível. Eu amava sentir os lábios dele nos meus. Amava não conseguir pensar e só seguir meus instintos quando estava agarrada assim à . Era perfeito.
Perfeito e, como sempre, era interrompido.
O celular de começou a tocar em uma altura desconcertante e nos separamos - com muito custo - para que ele pudesse atender. Uma mão dele continuava em meu quadril enquanto ele tentava tirar o aparelho do bolso. Ele continuava com um risinho sapeca no rosto e eu mantinha minha respiração acelerada. Como acalmar a respiração com um gato daqueles em cima de mim? Impossível.
- Oi, Max. - ele esperou o irmão falar por alguns segundos do outro lado da linha. - Eu disse que vou levar. - ele riu, esperando mais uma vez. - Aham. Ela vai com a gente. Daqui a pouco eu já estou indo. - Eu disse que ele estava maluco para ir. - disse após desligar o celular, rolando os olhos.
- Acho melhor eu ir me arrumando então. - comentei, levantando-me do colchão.
- Não mesmo. - ele me puxou de novo. - O show é só daqui a três horas.
- E? - perguntei, curiosa.
- É tempo suficiente para dois amigos brincarem, você não acha? - com aquele sorriso safado, quem iria negar?
A fila estava enorme, sem brincadeira. Não imaginava que um evento com uma atração tão antiga poderia trazer tantas crianças para participar. Acho que nem mesmo na escola em que dava aula eu vira tantos baixinhos juntos de uma vez só. Era encantador.
- , eu posso comer muita pipoca? Eu gosto muito de pipoca. - Max começou a conversar com o irmão mais velho, já planejando o que comeria enquanto assistíamos a peça e teatro. Aquele garoto pensava mais em comida do que eu (se é que isso era possível).
- Claro que pode, Max. - o mais velho respondeu. Ele estava me abraçando por trás, descansando sua cabeça em meu ombro, quando sussurrou: - Eu acho que nunca disse isso mas eu estava com saudades até desse seu perfume de baunilha.
- Só admite, . Você não consegue viver longe de mim. - ri um pouco do ar que ele soltou no meu pescoço, fazendo cócegas.
- Sabe, ... - ele começou, com a voz um pouco cautelosa, que fez com que minha espinha congelasse de expectativa. - eu meio que te...
- Tia . - uma vozinha fina, conhecida, gritou meu nome. - Eu não sabia que você gostava de Rei Leão.
A garotinha de 6 anos de idade, que estava na parte da frente da fila, tinha acabado de me reconhecer no meio da multidão e viera correndo me abraçar. Era uma das minhas alunas preferidas e eu adorava passar um tempo a mais com ela (os pais dela sempre atrasavam ao menos 10 minutos para buscá-la após a aula, o que nos dava tempo de ter longas conversas).
- Olá, Charlotte. - sorri ao sentir o cheiro delicioso do cabelo trançado da menina. - Como você está?
- Eu estou muito feliz. Papai veio assistir Rei Leão comigo! - ela disse completamente animada, apontando para o homem nervoso com celular no ouvido, que acenou sem jeito para mim. - E você, tia ? Veio com o seu namorado?
Minhas bochechas arderem em um segundo. A gente não tinha discutido isso ainda!
- É... - pigarreei e engoli em seco, tentando desviar da pergunta dela. - eu vim hoje para acompanhar o e o Max. - apontei para os dois, apresentando-os a ela.
- Eu vou comer muita pipoca hoje. - Max disse para Charlotte e me esforcei para segurar o riso. Ele tinha comido um prato enorme de comida em casa antes de vir para cá. Não era possível que ele estivesse tão fissurado em comer novamente.
- Eu também. - ela sorriu para o garotinho e virou-se para . - Eu sou Charlotte. Você é o namorado da minha professola?
Droga. Não tinha funcionado. Esquecera como Charlotte era persistente. Mas, na verdade, ao perguntar à , ela me ajudou um pouco. Eu não precisava perguntar mais tarde. Ele iria responder agora.
- Sim, Charlotte. - ele disse, sem mesmo parar para pensar. - Meu nome é .
Meu coração parou (isso vem acontecendo muito desde que voltou para Michigan) e eu sinto meus pelos se arrepiarem. A gente está namorando. Ok. Grande passo.
Virei-me para e, em seu olhar estava explicito a pergunta: "a gente está namorando, certo?". Meus lábios se abriram em um enorme sorriso e pareceu relaxar um pouco. Pelo visto, ele percebera, um pouco mais tarde, que não tínhamos tocado naquele assunto ainda.
O pai de Charlotte, de repente, chegou ao nosso lado, nos cumprimentando secamente. Ainda com o celular na mão ele disse para a filha:
- Não vai dar pra gente assistir à peça, filha. - ele era um pouco direto demais com uma criança daquela idade. - Eu tenho que voltar para a empresa nesse minuto.
Assim que ele começou a falar diretamente com Charlotte, eu soube o que ia acontecer. Eu conseguia perceber a mudança da feição da garotinha: de animação, ela foi a tristeza profunda, em poucos segundos.
- Mas, papai... - eu via as lágrimas se formarem nos olhos castanhos dela.
- Sem mais. - ele deu o ultimato.
Eu a escutei fungar e sussurrar um por favor tão baixo que quase ninguém ouviu. O clima do ambiente estava tão pesado e eu me sentia tão inútil, que tudo o que consegui fazer foi me oferecer para fazer a primeira coisa que me viera a mente:
- Senhor. - interrompi o olhar de irritação que ele lançava a Charlotte quando ela começara a andar muito devagar. - Eu não sei se me reconhece, mas eu sou a professora de sua filha. Será que não seria possível você deixá-la sobre a minha responsabilidade enquanto você resolve o problema na empresa? Ela parece querer tanto ver a peça... - deixei a frase solta, torcendo para que ele escutasse a voz da razão e deixasse a filha se divertir. Eu não era o pai dela e eu sabia que ela estava mais animada pela companhia do pai do que pelo espetáculo, mas, pelo menos, algo de bom eu faria a ela. Ao menos um pouco de alegria ela teria, se ele permitisse.
- Por favor, moço. - Max disse, com a voz pidona.
O senhor pareceu ponderar rapidamente e, após um longo suspiro, permitiu que Charlotte ficasse comigo.
- Eba! - a garotinha gritou, voltando para o meu lado e segurando minha mão. - Muito obrigada. - ela encostou a cabeça na minha cintura, secando suas lágrimas rapidamente.
- Não por isso, meu amor. - retribui o sorriso que me lançou, orgulhoso com a situação. - A gente vai se divertir pra caramba.
Realmente, eu não podia mentir: a peça era maravilhosa! Os efeitos especiais, as cortinas... eu não imaginava que um evento poderia ser tão bem organizado em uma cidadezinha no interior de Michigan. Eu chorei em algumas partes (quando o Mufasa morreu eu abri o berreiro mesmo. Não deu para segurar), ri em outras (Hakuna Matata, melhor música) e até fiquei encantada em como seres humanos, por causa da boa atuação e boa fantasia, conseguiram parecer com os animais do filme. Foi maravilhoso do começo ao fim.
- Tia , eu quero muito ir no banheiro. - a vozinha fina de Charlotte disse, quando o show acabou.
Procurei pelo banheiro dentro do teatro e o achei. Ele era bem longe da porta de saída, do outro lado do teatro. Teríamos que ir contra uma multidão para conseguirmos chegar lá. Será que ela conseguiria esperar? Olhei para a garotinha e percebi o esforço que ela fazia para segurar o xixi.
- , eu vou ao banheiro com a Charlotte. Eu encontro você e o Max lá fora, ok? - dei-lhe um selinho e segurei a mão da garotinha, enfrentando a multidão.
- Tia, eu não sei se vou conseguir segurar! - a menina de cabelos castanhos encaracolados desabafou quando estávamos chegando ao nosso destino.
- Calma, meu amor. Já estamos quase chegando. - começamos a andar um pouco mais rápido e, finalmente, conseguimos entrar no banheiro antes que Charlotte fizesse xixi na roupa.
Eu escutei alguns gritos do lado de fora enquanto auxiliava a garotinha a tirar a calça. O zíper estava preso e fez com que eu gastasse alguns minutos na tarefa. Sentei-me no chão, gargalhando após finalmente ter terminado de ajudá-la. Que dificuldade! Ouvi mais gritos e um barulho estrondoso. O que estava acontecendo? Alguma brincadeira com os atores da peça?
Esperei Charlotte adentrar a cabine e a auxiliei com sua higiene. Enquanto a garota lavava as mãos, decidi conferir o que estava ocorrendo do lado de fora com todo aquele alvoroço. Devia ser alguma brincadeira de mal gosto com as crianças que estavam assistindo ao espetáculo. Com o Halloween chegando, podia-se imaginar de tudo naquela cidade. Assim que abri a porta do banheiro, não consegui mais pensar em nada, não consegui mover nem mesmo um músculo de meu corpo. Aquilo não podia estar acontecendo! Eu só via fogo e fumaça por todo canto! Tudo estava pegando fogo! E, pelo visto, eu e a pequena menininha do banheiro éramos as únicas que ainda estavam dentro do teatro em chamas.
Ai. Meu. Deus. Eu não conseguia respirar. Haviam labaredas de fogo por todo o local - que se espalhando em uma velocidade inacreditável - atrapalhando a passagem de qualquer pessoa. Eu sentia o calor chegando em meu corpo e não tinha a mínima ideia de como poderia sair dali ou como encontrar uma brecha na muralha de calor. Parecia que a cada segundo tudo piorava e percebi que precisava agir naquele instante se desejasse sair com Charlotte ilesa do incêndio.
- Charlotte. - chamei, quando adentrei o banheiro novamente. Minha voz estava surpreendentemente calma, considerando a situação e a tremura que tomava conta do meu corpo. O treinamento que eu fizera de como lidar em situações estressantes parecia estar funcionando. - A gente tem que sair daqui agora, mas eu preciso que você não fique nervosa, ok?
A menininha, que estava lavando suas mãos, parou a ação e concordou, com medo no olhar. Pelo visto eu não estava aparentando tanta calma quanto imaginara. Saímos mais uma vez do banheiro e eu vi o medo da garota crescer ainda mais em seus olhos, quando ela percebeu com o que estávamos lidando.
O teatro não era grande, então, a maior parte do ambiente já estava completamente tomada pelo fogo. Eu não conseguia ver nenhuma brecha, nenhum local por onde pudéssemos passar. Eu não tinha nenhuma ideia de como salvar a pequena menina, encolhida de medo, que contava comigo para sobreviver.
- Tia, tem um lugar sem fogo! - Charlotte gritou, apontando para um lugar completamente arriscado de se passar. Havia pedaços do teto que estavam quase caindo no chão naquela parte do teatro. Não havia possibilidades de não nos machucarmos durante a travessia. Tinha que ter outra saída.
Eu não percebi. Foi muito rápido. Em um momento, eu estava procurando outras alternativas com Charlotte do meu lado, no outro, a menininha pôs-se a correr na direção que tinha apontado, sem minha permissão.
- Charlotte, não! - gritei quando a vi chegando próximo ao teto danificado e comecei a correr como nunca em minha vida.
No entanto, eu não cheguei a tempo. O fogo começou a chegar naquela parte e, o pedaço do teto começou a despencar. Eu não enxergava ou respirava direito devido a fumaça. Tudo o que consegui fazer foi ouvir um grito de dor, que me impulsionou a correr - não tenho ideia de como - ainda mais rápido em direção ao local mais perigoso do teatro.
- Charlotte! - gritei assim que cheguei no local, próximo ao palco. - Ai meu Deus! - engoli em seco quando vi a menina se contorcendo de dor, com um pedaço enorme da madeira do teto, prendendo uma de suas pernas ao chão.
- Tá doendo muito! - ela chorava e eu sabia que minha suposta feição de calma tinha sumido há tempos.
- Calma, meu amor. Vai ficar tudo bem, ok? Eu prometo. - eu disse com as mãos tremendo, tentando ver qual seria a melhor maneira de tirar a madeira sem machucá-la ainda mais. Era impossível algo assim estar acontecendo. Tinha que ser um sonho. Aquilo tinha que ser um sonho!
- Eu quero minha mamãe! Eu quero meu papai, tia. - os olhos cheios de lágrimas da garota começaram a me deixar ainda mais nervosa. Com uma força não natural, comecei a puxar a madeira. Nós sairíamos vivas dali. Eu não aceitava outra opção.
No entanto, a madeira era extremamente pesada. Eu não conseguia mover nem mesmo um centímetro dela e, toda vez que a puxava, Charlotte urrava de dor, totalmente indefesa. Eu não conseguia mais evitar as lágrimas que apareciam em meus olhos. Calma, . Por favor, calma.
Havia uma única saída livre do fogo, que agora, finalmente, eu conseguia ver. Tínhamos que nos retirar dali o mais rápido possível e aproveitar a única brecha que poderíamos usar. Como eu conseguiria fazer isso? O choro de Charlotte era alto e eu tentei, mais uma vez, retirar a madeira de cima de sua perna. Meu Deus, o que eu faria? Eu não tinha força o suficiente para retirar aquilo sozinha.
- Socorro! - gritei o mais alto que consegui, o que não foi muito, devido minha voz estar muito enfraquecida por causa da fumaça. - Alguém nos ajude. - eu vi que o choro de Charlotte começava a cessar e que ela estava prestes a desmaiar.
Eu não iria abandoná-la. Isso estava fora de possibilidade.
- Charlotte, meu anjo. Olha para mim. - ela abriu os olhos com dificuldade, ainda fungando. - Por favor. Eu preciso que você continue acordada, está me ouvindo?
- Tia . - a voz dela estava mais fraca do que a minha. - A gente vai morrer?
Meus olhos arderam e o medo na voz dela fez com que um arrepio subisse pela minha espinha. Não. A gente não iria morrer. Eu não a deixaria morrer!
- Não, meu amor! - neguei veementemente. - Eu prometo que não. Eu vou te tirar daqui, ouviu?
- Eu quero minha mãe, tia. Eu amo muito ela. Eu quero minha mãe. - segurei o rosto da menina, acariciando-o.
- Você vai vê-la daqui a pouco. - eu tinha que arrumar um jeito. Eu tinha que pedir ajuda. - Olha para mim, Charlotte. A titia vai ter que sair para pedir ajuda pra tirar essa madeira do seu pé, ok?
- Não me deixa, tia. Por favor, não me deixa. - ela me interrompeu, desesperada.
- Xiii. - eu a confortei sem força para mais nada. A dor em seus olhos me dilacerava. - Eu não vou te deixar, meu amor. Eu te prometo que eu vou voltar em pouco tempo. Charlotte, eu te prometo que nós duas vamos sair daqui. É só um segundo, ok? Eu prometo. - eu sabia que minha voz estava tremula. Sabia que não parecia confiante, mas a garota concordou e eu sai em disparada em direção a brecha. Eu tinha que agir o mais rápido possível.
Eu fizera uma promessa. Eu a cumpriria. Eu não deixaria aquela menina morrer. Não mesmo.
- Socorro! - eu comecei a gritar quando passei da porta. Fora do estabelecimento, uma multidão, muito maior do que a que estava presente no teatro esperava atrás de uma faixa amarela, daquelas que se vê em filmes policiais. Havia bombeiros se preparando para entrar no estabelecimento por todo lugar. Com minha visão periférica, vi sendo impedido de passar através da faixa por alguns policiais. Ele estava com Max e Delphine ao seu lado, todos eles com olhares desesperados em minha direção.
- Socorro. - gritei novamente e um dos bombeiros chegou perto de mim. Finalmente! Charlotte não iria morrer. Eu não iria morrer. Nós ficaríamos sã e salvas! - Tem uma garota presa debaixo de uma madeira lá dentro. O fogo já está chegando perto dela. Vamos rápido, por favor. - nunca tinha falado tão rápido em toda minha vida.
- Acalme-se, senhorita. - um bombeiro me parou, quando comecei a correr de volta para dentro do teatro. - A gente cuida da situação agora, ok? Você precisa ir para aquela ambulância.
- Não! - interrompi a fala do homem. - Eu prometi a ela que iria voltar. Eu tenho que salvá-la. Alguns bombeiros já estavam entrando lá dentro e quase bati no homem que estava impedindo a minha passagem. Eu tinha que voltar, caramba!
- Não podemos permitir civis dentro do estabelecimento, senhorita. - a voz dele estava inacreditavelmente calma, enquanto eu me derramava em lágrimas.
- Já tem uma pessoa lá dentro! - gritei exasperada. - Uma criança! Eu sou a única que sei onde ela está! Eu tenho que voltar lá!
- Você disse que ela está atrás do palco, senhorita. O nosso pessoal já foi resgatá-la.
Eu havia dito? Não me lembrava. O que importava? Eu tinha prometido à Charlotte. Eu tinha que voltar para ajudá-la. Minhas pernas tremiam e eu sabia que se não fizesse algo, iria desmaiar. E se os bombeiros não a encontrarem? E se a madeira estiver muito pesada para eles também?
- Calma, . Vai ficar tudo bem. - senti os braços de ao meu redor e instantaneamente me acalmei um pouco. Vai ficar bem. Tem que ficar bem. Virei-me para ele e encostei minha cabeça em seu ombro, manchando sua camisa branca de lágrimas e lápis creon.
- Ela não pode morrer, . Ela não pode. - funguei, completamente desamparada. Uma vez fora da fumaça, eu conseguia respirar melhor, mas isso não significava que não doía. A cada vez que respirava, mais destroçado meu coração ficava.
Eu continuava repetindo frase otimistas na minha cabeça a todo tempo. Eu não podia me desapegar da crença de que tudo ficaria bem e que eu não seria o monstro que fizera Charlotte ser morta. Ela tinha que ficar bem, não é mesmo? Olha o tanto de gente que fora salvá-la. É claro que ela ficaria bem.
Quando acabei de concluir meu pensamento, dois dos vários bombeiros que entraram no teatro começaram a sair do local, carregando Charlotte. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu corri em direção a eles, com um sorriso enorme.
- Meu amor, você está bem? - coloquei a mão no rosto dela. Sua perna estava sangrando muito e eu não via sinal de movimento algum no corpo dela.
Vários paramédicos me tiraram do caminho, rapidamente, e começaram a levar a garotinha para a ambulância. Eu corri atrás deles, junto a e conseguimos entrar no veículo, pouco antes das portas se fecharem e o carro entrar em movimento.
Era uma mistura de vozes ecoando pela ambulância e várias mãos perpassando o corpo da garota. Eu sabia que estava tremendo e sabia que minhas lágrimas não ajudavam em nada. No entanto, eu não conseguia parar de chorar ou de tremer ou, até mesmo, de me agarrar à de forma completamente indefesa.
- Ela vai ficar bem, não é? - perguntei para a paramédica ao meu lado.
- Faremos o máximo. - e foi naquele momento, olhando para os olhos de pena da mulher e segurando a mão, já fria, de Charlotte, que soube que todos meus pensamentos positivos não serviram para nada.
Havia, exatamente, cinco dias desde que eu tivera uma noite de sono decente. Aquela era a mesma quantidade de dias que eu passara não comendo direito e só pensando no acidente que desmoronara minha vida.
Eu levantara da cama naquela manhã, sem forças para ao menos ir ao banheiro. Eu não queria fazer nada, eu não queria ir a lugar algum. Tudo o que eu desejava era deitar em baixo do meu cobertor - mesmo que não estivesse fazendo frio - e chorar o dia inteiro.
- Minha mãe fez panquecas para o café, . Suas favoritas. - me obriguei a sorrir para , mas não fiz sucesso com a ação.
Eu não voltara para minha casa desde que tudo aconteceu. implorara para que eu ficasse na casa dele, pelo menos por alguns dias, e eu não sabia como negar. Eu achava que precisaria de companhia, mas tudo o que eu gostaria era não ter aceitado o convite. Eu precisava ficar sozinha, sem forças sorrisos ou sem ser obrigada a comer.
- Estou sem fome. - meus olhos estavam cheios de lágrimas novamente. Eu era uma assassina. Não merecia comer. Não queria comer.
- Você tem que estar forte para hoje, meu amor. - entrou no banheiro onde eu estava olhando para o espelho, sem realmente enxergá-lo.
Engoli em seco e sai do cômodo, entrando debaixo das cobertas de novo.
Eu nunca ficaria forte o suficiente para o que aconteceria hoje. O enterro de Charlotte não era algo para o qual eu conseguiria me sentir melhor por causa de comida. Além de fazer-me lembrar de toda a noite fatídica, aquele dia seria a primeira vez que veria os pais da garota, desde o hospital. Aquilo tudo era minha culpa.Eu era a culpada pela morte de uma criancinha de 5 anos de idade, que acreditara em mim para salvá-la.
- . - chamou com cuidado, após alguns segundos, retirando a coberta de meu rosto. - Você tem certeza que quer ir?
Concordei, um pouco relutante. Eu precisava daquele "fechamento".
- Já está quase na hora. Vou te deixar se trocar. Tenta comer pelo menos uma das panquecas, ok? - ele apontou para a bandeja na cômoda ao lado da cama. Concordei enquanto ele saia do quarto.
Sequei minhas lágrimas mais uma vez e tentei afastar os olhos de dor de Charlotte de minha mente. Peguei um pedaço da panqueca e, quando o engoli, senti vontade de vomitar. Estava ótima, não podia negar, mas qualquer coisa no meu estômago parecia fazer com que tudo se revirasse dentro do meu corpo.
Voltei para o banheiro, com intenção de tomar um banho e me livrar daquela bambeza, mas, ao chegar no cômodo novamente, senti-me ainda pior do que antes. Era como se tudo eu visse pela frente me lembrasse de como eu era um ser humano terrível. Eu não merecia ter saído do teatro. Eu deveria ter morrido...tinha que ter sido eu no lugar de Charlotte! Ah, se eu não tivesse tentado ser uma boa moça e pedido que o pai dela a deixasse assistir ao show comigo... se eu tivesse prestado mais atenção e percebido que Charlotte iria correr em direção a sua morte... pelo menos se eu tivesse sido capaz de levantar aquela merda de madeira! A garotinha estaria viva, na sala de aula, com seu olhar brilhante, ansiosa para mais um dia de aprendizado.
- É tudo minha culpa. - comecei a sentir a raiva percorrendo meu corpo. Eu era a pessoa mais idiota e irresponsável. - Sua assassina! - gritei para o espelho e, com uma fúria repentina, dei um soco no objeto.
Eu nem mesmo sentira a dor do machucado que o vidro quebrado causara em minha mão. Eu nem ao menos percebera o estrago até ver o sangue e vários pedaços de vidro caindo em cima da pia. entrou correndo no quarto, com aflição evidente em suas ações.
- Santo Deus, ! - ele chegou perto de mim, olhando o machucado em minha mão e me ajudando a tratá-lo. - O que aconteceu?
- Desculpa. - por incrível que pareça, eu não chorei. Parecia que a dor da mão estava amenizando a dor que perpassava pelo resto do meu corpo.
- Eu acho que seria melhor você não ir, ursinha. - ele me olhou, sincero.
- Eu tenho que ir, .
Era evidente que ele não concordava. Que ele preferiria que eu ficasse em casa, sã e salva.
- Você quer que eu te ajude a se trocar? - ele perguntou após alguns segundos, apontando para minha mão machucada. - Ou você quer que eu chame minha mãe?
- Eu consigo sozinha. - forcei um sorriso que não pareceu nada real, mas foi o melhor que consegui.
Em poucos minutos eu terminei de me arrumar e já estava no pé da escada, esperando pegar a chave do carro. O caminho para o cemitério foi silencioso e, quando chegamos lá, não tinha certeza se eu conseguiria ficar até o fim. Era muito forte. Muito angustiante.
- Ela era uma criança adorável... - eu ouvia a voz do padre ao longe, já que estávamos distantes da multidão, uma vez que eu não tinha coragem de olhar nos olhos dos pais de Charlotte naquele momento. Não sabia se seria capaz de fazer isso de novo. A minha respiração era pesada e eu tentava não chorar. Os olhos preenchidos de dor de Charlotte eram as únicas coisas que se passavam em minha mente e eu sabia que, se continuasse lembrando deles, eu não conseguiria suportar.
Após o fim do enterro, a multidão se dispersou e eu continuei longe, esperando para poder colocar as flores no túmulo da garotinha. As lágrimas de meus olhos não paravam e eu sabia que minha cabeça doeria muito, mais tarde, mas eu queria ir até o fim. Eu devia isso a Charlotte. Eu não a abandonaria de novo.
- Olá, querida. - disse, quando cheguei próxima ao túmulo, colocando as flores perto da lápide. me dera espaço para ir até lá sozinha. Aquele era meu momento de despedida. Eu não queria ninguém ao meu lado. - A tia sente muito... - engoli em seco, tentando secar as lágrimas. - muito mesmo, por não ter conseguido te salvar, ok? Eu sinto muito por não ter conseguido cumprir minha promessa. Eu sou uma péssima pessoa por isso.
Não havia palavras no mundo que conseguissem expressar o que eu estava sentindo. Era impossível. Eu não aguentaria mais. Levantei-me trêmula e respirei fundo. Era aquilo, eu tinha que ir embora antes de desabar.
- Eu não acredito que ela teve essa coragem! - ouvi uma voz masculina atrás de mim. Virei-me rapidamente, colocando meu cabelo atrás da orelha, tentando me recompor.
- Olá, senhor e senhora. - cumprimentei assim que percebi que eram os pais de Charlotte. O ódio era evidente nos olhos do homem e tudo o que conseguia ver no semblante da mulher era dor. Respirei fundo novamente, tentando achar palavras para me desculpar pelo pior erro de minha vida. - Eu sinto muitíssimo por...
Aquilo foi tudo o que consegui falar antes de sentir um tapa em meu rosto. O local ardia intensamente e eu sabia que não conseguirei suportar olhar nos olhos do homem que acabara de me bater. Era ridículo pensar assim, mas eu merecia. Eu era culpada pela morte da filha dele.
- Sua assassina. Você abandonou nossa filha! - o ar não chegava em meus pulmões e eu não conseguia mais enxergar, devido as várias lágrimas que tomaram conta dos meus olhos. Alguém finalmente tinha falado em voz alta o que eu sentia. Eu era uma assassina. A culpa era minha. Será que todo mundo pensava assim também e só não tiveram coragem de falar?
- Opa, opa, opa. - chegou ao meu lado empurrando o pai de Charlotte, que aumentara seu tom de voz. Eu não prestei atenção na briga que se sucedeu. Apenas segurei o braço do meu namorado e o implorei para me tirar daquele lugar.
Já havia se passado duas semanas desde o fatídico acidente. Eu necessitava voltar ao trabalho para me recompor. Eu tinha acabado de bater meu recorde: um dia inteirinho sem chorar e sem pensamentos culpados. Quem sabe se, ao retornar com minha rotina, eu conseguisse retirar minha mente de todas aquelas lembranças ruins?
- Eu não sei o que fazer, mãe. - escutei a voz de quando comecei a descer a escada, um pouco mais forte, sentimentalmente, do que estava no dia anterior. A frustração na voz dele era palpável. Eu quase conseguia vê-lo bagunçando o cabelo, coisa que ele sempre fazia quando nervoso. - Ela está tão...tão... quebrável? - a última palavra foi dita como se fosse uma pergunta, como se ele estivesse em dúvida se aquela era a palavra certa para descrever a pessoa que, no caso, era eu. - Eu estou com tanto medo...
A bolsinha que estava carregando em cima dos livros que eu levaria para a escola caiu, e cessou sua fala.
- Eu resolvi dar aula hoje. - disse quando apareceu na sala, olhando-me com curiosidade. Nem mesmo as escadas eu descera com frequência naqueles dias, portanto, era compreensível a surpresa nos olhos de e Delphine quando escutaram que faria algo tão repentino naquela tarde.
- Isso é ótimo, querida. - Delphine disse assim que escutou minha fala. O sorriso em seu rosto e no de me fizeram querer retribuí-los, mas não sei se consegui alcançar meu objetivo de maneira adequada.
- Eu vou te levar. - disse, pegando a chave do carro.
- Eu estava pensando se eu não poderia dirigir hoje... - mordi meu lábio. - Acho que me fará bem. Sempre me sinto livre quando dirijo no outono, assistindo as flores caindo.
- Claro. - meu namorado disse, após considerar por um minuto. - Se vai te fazer bem, você deve dirigir.
- Tenho certeza que vai me fazer bem. - dei um selinho nele e um tchau para Delphine antes de sair em direção a escola.
Enquanto dirigia pelas ruas desertas da cidadezinha, percebi que, realmente, eu precisava daquele momento. Eu estava cansada de ficar me escondendo debaixo dos cobertores. Já passara da hora de eu voltar a ser eu mesma. Eu não era culpada. Eu não era ... não era culpada!
- Continue repetindo, . Talvez, ao menos este pensamento positivo vire realidade. - gargalhei morbidamente de mim mesma, olhando para a estrada.
As folhas de outono caiam e coloriam o chão, como usualmente. No entanto, as cores vermelhas me lembravam da perna de Charlotte coberta de sangue. As cores alaranjadas e amareladas me faziam recordar das labaredas enormes de fogo, que impedia que eu saísse do teatro. Até mesmo o outono, minha estação preferida, estava sendo capaz de me lembrar dos momentos mais desesperadores que eu já vivenciara. Ótimo.
- Tudo vai ficar bem, . - minha fala ecoou no carro, enquanto eu o estacionava na escola. Era hora de encarar minha vida.
O estacionamento já estava vazio, já que eu estava um pouco atrasada. A diretora estava assumindo minha classe até que eu me sentisse à vontade para retornar, portanto, não haveria empecilhos para minha volta.
Nos corredores, eu via algumas crianças olhando para mim com olhares estranhos e, até mesmo, membros do corpo docente me lançavam feições preocupadas. Você não é um monstro, . Eles só não sabem pelo o que você passou. Aquele foi meu pequeno mantra, que eu repetia interminavelmente em minha cabeça, enquanto seguia para o meu destino. Quando adentrei a sala, a diretora já estava iniciando a aula e deu um sorriso ao me ver.
Finalmente alguém que não parecia estar com medo de mim.
- Olá, ! Como é bom tê-la conosco novamente. - ela disse e conversou comigo por alguns minutos, antes de, finalmente, me deixar sozinha com minha classe.
- Bom dia, turma. - percebi que minha voz não estava nem um pouco próxima da animação que sempre era evidente nela. - Eu senti muita saudade de vocês. - aquilo não era mentira. Eu odiava ficar longe daqueles baixinhos.
Após uma conversa mais descontraída com os alunos, decidi começar a aula em si. Comecei a pegar alguns desenhos que trouxera em uma pasta para que pudesse distribuir na turma. Eu evitava olhar para um lugar em especial na classe. Eu não podia nem pensar em desmoronar em frente aos meus alunos, o que aconteceria caso eu olhasse para o local proibido.
- Ai! - um gritinho fino me alertou e deixei os desenhos de lado, olhando ávida para a classe, perguntando, com os olhos, o que tinha acontecido. - Eu furei com a tesoura. - a voz que gritara disse, olhando para a mão na qual sai um pouquinho de sangue.
Fui até o menininho para ajudá-lo a cuidar do machucado. Ele estava relutante para dar-me sua mão e eu pensei que ele estava com medo de que fosse doer. Levantei meus olhos, com um sorriso pequeno, tentando lhe falar, com os olhos, que tudo ia ficar bem. No entanto, quando olhei bem no fundo dos olhos da criança e vi o terror dentro deles, percebi que interpretara tudo errado. Ele não estava com medo de doer. Ele estava com medo de mim.
Ergui-me rapidamente e senti um pequeno ardor nos meus olhos. Eu era sim, um mostro. As crianças agora tinham medo de mim porque eu matara uma delas. O que eu estava fazendo ali, meu Deus? Qual era o meu problema? Não consegui mais evitar e acabei olhando para o lugar proibido da sala: a mesa de Charlotte. Vazia. Como para sempre iria ficar. Por minha culpa.
Eu não peguei meus materiais em cima da mesa do professor, não me despedi da turma, não olhei para trás. Eu apenas saí da sala, correndo em direção ao carro. Eu nunca deveria ter saído de debaixo do cobertor.
- Eu queria conversar algo sério com você, . - me chamou naquela noite, enquanto me abraçava.
Concordei com a cabeça, dando-lhe a entender que eu estava escutando.
- Eu quero que você saiba que eu estou aqui por você. - ele me fez olhar em seus olhos, acariciando minhas bochechas, do jeito que ele sabia que eu amava. - Sempre estarei, ok?
- Eu sei. - concordei com um sorriso pequeno.
- Mas eu acho que você precisa de mais alguém para te ajudar a passar por isso, sabe? - ele estava cuidadoso, com medo de me quebrar. - Alguém que entenda mais sobre essa situação. Um profissional.
- Não vai adiantar. - dei de ombros, encolhendo-me envolta de mim mesma, tentando me proteger. Eu tinha que juntar os pedaços que haviam sido quebrados novamente naquela tarde, quando decidira ir à escola, mas estava sendo impossível. - Eu não consigo falar sobre isso. É como se fosse irreal eu dizer em voz alta tudo o que estou sentindo.
- Meu amor. - ele encostou sua testa na minha, ainda acariciando minha bochecha e, consequentemente limpando minhas lágrimas. - Você tem que tentar. Eu quero que você fique bem de novo, feliz de novo. Ao menos pense no assunto, ok?
Concordei com a cabeça. Eu iria pensar. Eu tinha que me dar uma chance. Se pensava que seria melhor, eu precisava considerar os pós e os contras, afinal, ele só tentava fazer o melhor para mim.
- Mamãe decidiu fazer uma sopa hoje. - sorriu quando viu meus olhos brilharem um pouco. Eu amava a sopa que Delphine fazia. - Vou trazer um prato bem quente para você.
Quando saiu, eu me recostei na cabeceira da cama e fechei meus olhos. Minha cabeça doía fortemente. Eu queria muito ao menos cochilar um pouco.
Era fato que eu não dormira muito bem nos últimos dias. Era como se bastasse eu fechar os olhos para os monstros chegassem até a parte mais profunda da minha mente, roubando-me de mim mesma.
Não havia sido diferente naquela noite. Eu cochilara, não sabia por quanto tempo, mas acordara trêmula e totalmente assustada. Eram meus piores pesadelos colocados uns atrás dos outros, me amedrontando até que eu não conseguisse mais suportar.
" - Não me deixa, tia. Por favor, não me deixa."
A voz de Charlotte ainda ecoava em meu subconsciente. Percebi que estava aos prantos novamente e procurei por , para abraçá-lo e tentar esquecer de tudo aquilo, porém, ele não estava na cama.
- ? - sussurrei, levantando-me e tateando no escuro. Eu não conseguiria ficar no quarto, pois estava me sentia mais fraca do que nunca naquele momento. Para piorar, chovia fortemente do lado de fora da janela e, como eu morria de medo de trovão, era sensato que eu saísse dali o mais rápido possível antes que acordasse a vizinhança inteira com meus gritos de pavor.
Eu lembrava de que, quando eu era pequena, quando algo me assustava, eu me escondia no armário da escada. Nem sempre meus pais estavam em casa para que eu pudesse me arrastar até a cama deles, então o armário era sempre minha alternativa de confiança para esconderijo de trovões, monstros, ladrões etc. Eu me sentia como o próprio Harry Potter quando fugia para lá e, por isso, decidi seguir para lá.. Eu precisava me sentir como uma criança inocente novamente e não havia jeito melhor para isso.
- Brilha, brilha estrelinha... - a voz de Max vinha de dentro do armário, cantando uma das músicas que eu mais gostava, quando criança. Eu não tinha ideia de que o encontraria por lá naquela hora da noite. Se Delphine o visse fora da cama, com certeza ela iria ter um ataque.
- Max? - chamei na porta, ao bater no batente.
- Oi. - ele abriu-a, após alguns segundos, sorrindo para mim e deixando-me passar.
- O que você está fazendo no armário nesse horário?
Ele ficou em silêncio por alguns segundos e acabou suspirando de frustração quando percebeu que eu não desistiria:
- Jura que não conta pra mamãe? - ele me olhou com os olhos pidões, com medo de ser descoberto. Qual a pior coisa que um menino de 7 anos podia fazer?
- O que você está escondendo, Max? - não ser curiosa nunca foi uma opção na minha personalidade.
O garotinho retirou suas mãos das costas, revelando um filhotinho de gato ao qual ele acariciava os pelos com carinho.
- Mamãe não deixa a gente ter bichinhos aqui porque eles fazem muita bagunça. - Max deu de ombros. - Mas eu faço muita bagunça e continuo morando aqui.
Aquela foi a primeira vez que sorrira de verdade desde o acidente.
- Ele estava sozinho lá fora e eu o trouxe para dentro. Mamãe ainda não percebeu. - ele deu uma risadinha. - Sou muito bom escondedor. Acho que vou virar um espião quando crescer.
Okay. Eu, definitivamente, gostava de passar o tempo com Max. A pureza da mente dele parecia amenizar um pouco o peso que eu carregava em meus ombros.
- O que você está fazendo aqui, ? - ele perguntou.
- Ahn...- como explicar para ele? - quando eu ficava com medo, quando eu era do seu tamanho, eu me escondia no armário para os monstros não me pegarem. Hoje fiquei com medo e corri pra cá.
- Você ainda tem medo de monstros? - a face de surpresa dele era maravilhosa. - Eu posso matar eles pra você. - ele disse, confiante. - Não precisa se esconder mais.
- Meus monstros não são desse tipo. - tentei explicar. - Eles não vivem debaixo da cama.
- Não?
- Eles estão presos na minha mente, sabe?
- Ah! - Max ficou um tempinho em silêncio, mas logo voltou com uma pergunta bem séria: - Por que você não solta os monstros da sua cabeça? Seria mais fácil de matar eles, .
- Seria sim, meu amor. - sorri e senti um abraço forte e repentino de Max. Ele não tinha medo de mim. Ele não me considerava uma assassina. Sorri com a percepção. - Você acredita que eu consiga lutar com os monstros sozinha? - perguntei, brincando com ele e mexendo em seus cabelos encaracolados. Era bom ter a confiança de uma criança. Eu me sentia mais forte.
- Quem disse que você está sozinha? Eu, , mamãe e o gatinho de botas - ele apontou para o filhote quando disse o último nome - vamos ajudar você a matar todos eles.
Meus olhos encheram de lágrimas.
- Eu te amo muito, sabia, dinossaurozinho? - o apartei mais em meu abraço.
- Eu também te amo, dinossaurozona.
Gargalhei. Que som estranho! A quanto tempo não sentia aquele trovão gotoso em minha garganta? Respirei fundo. Eu iria procurar ajuda. Eu não estava sozinha. Eu iria ser feliz de novo e Charlotte estaria no céu, balançando suas tranças enquanto corria em um campo cheio de flores.
Ok, era um exagero, mas eu sabia que, ao menos um pouco daquele pensamento positivo, podia virar realidade.
Eu já estava na terapia há exatas duas semanas. Em comparação com a maneira que eu me sentia dias atrás, eu estava infinitamente melhor. Eu sorria mais, me alegrava mais e amava mais. Eu não chorara ou tivera pensamentos destrutivos a quase uma semana e, por isso, já me sentia vitoriosa.
Naquele dia, me buscara na psicóloga. Ele conversara com ela em particular por alguns minutos antes de irmos embora. Eu estava ansiosa para poder voltar definitivamente a dar aula, daqui a uma semana - de acordo com a doutora que me atendia. Enquanto voltávamos para casa, eu observava as cores do outono. Finalmente eu não via mais dor nas cores das folhas secas. Eu estava, aos poucos, voltando a ver a vida como sempre a vira.
- Eu estava conversando com a doutora sobre a gente ir visitar o túmulo da Charlotte hoje. - disse algum tempo depois que o silêncio se instalara no carro. - Você lembra que tinha me perguntado se seria algo bom de se fazer?
- O que ela disse? - perguntei, curiosa. Agora que eu estava um pouco melhor, eu queria me despedir de Charlotte da maneira correta. Com dignidade e lhe pedindo perdão do modo como ela merecia.
- Ela disse que a gente podia ir sim. Parece que é um ótimo momento pra ajudar no seu tratamento. - ele deu de ombros.
- Vamos, então? - perguntei, um pouco animada demais para visitar um cemitério.
- Claro. Eu trouxe o violão para cantar algumas músicas para ela, o que acha? - perguntou, um pouco constrangido.
- Seria perfeito. Ela sempre amava as aulas de música da escola. - sorri ao lembrar-me do sorriso enorme de Charlotte. Ela não morrera por minha culpa. Eu fizera o máximo para salvá-la. Eu sabia disso agora. Mas, ainda assim, era difícil concordar em cem por cento com aquilo.
Quando chegamos ao túmulo de Charlotte, sentei-me na grama, perto de sua lápide. Silenciosamente, disse tudo aquilo que queria ter dito antes dela ter morrido. Eu pedi perdão por não ter sido forte o suficiente, por não ter ficado com ela o tempo todo. Era reconfortante, sem sombra de dúvidas, me sentir menos culpada por tudo.
começou a cantar algumas canções de criança e eu não consegui impedir algumas lágrimas de descer em meu rosto. Era impossível segurar em uma situação daquelas.
Eu não sou culpada, lembrei-me. Eu fizera tudo o que estava a meu alcance.
- Eu compus uma música para você alguns dias atrás, ursinha. - disse, tirando-me dos meus devaneios.
- Sério? - eu sempre amava as composições dele. Eram maravilhosas. - Será que você pode cantá-la?
Ele sorriu e concordou, um pouco relutante. Ele sempre sentia vergonha em mostrar suas músicas originais e eu sempre tinha vontade de apertar as bochechas dele quando elas começavam a enrubescer.
Os acordes da melodia eram suaves como o vento. Eu sentia a brisa de outono balançando meus cabelos e conseguia sentir o cheiro de grama do cemitério. Não era o lugar ideal para que eu escutasse uma música dedicada a mim, mas era o lugar onde eu precisava estar.
"I guess you really did it this time
Left yourself in your war path
Lost your balance on a tightrope
Lost your mind trying to get it back"
A música, em seu total, descrevia toda o medo que sentira nas últimas semanas. Toda a dor e todo o receio que estava escondido, com as garras fincadas em meu coração.
"[…] It's alright, just wait and see
Your string of lights are still bright to me
Oh, who you are is not where you've been
You're still an innocen"
Eu era inocente. A culpa não havia sido minha. Era ótimo ouvir alguém em quem eu confiava tanto afirmar isso para mim. Minha luz não havia se apagado junto com o fogo do incêndio. Eu ainda era eu mesma. Eu ainda existia. Ele ainda me amava, eu tinha certeza, mas, mais importante: eu voltara a me amar.
"[...] Lost your balance on a tightrope
It's never too late to get it back"
Todas as estrofes possuíam partes de mim que eu nunca esqueceria. Eu passara por tudo aquilo, mas quem eu era não era definido pelo o que eu tinha feito. Os monstros não me amedrontavam mais. Eu tinha perdido equilíbrio, mas eu o estava recuperando. Era assim que eu voltaria com minha vida aos trilhos: acreditando, do mesmo modo que uma criança acredita.
- Você é tão forte, ursinha. - disse, alguns minutos depois de me abraçar forte. Havia lágrimas nos meus olhos, mas eram apenas de felicidade. Eu estava contente por perceber que eu recuperaria tudo o que tinha perdido. - Eu te amo tanto.
- Eu também te amo, . Muito.
Eu sabia que não estava curada. Depressão não era algo que desaparecia da noite para o dia. Mas, com ali me abraçando e com a certeza de que minha família - , Max e Delphine - nunca iria me abandonar, eu podia afirmar que eu já estava extremamente feliz. E acredite em uma coisa: uma felicidade dessas não era fácil de se encontrar em qualquer lugar.
No entanto, mesmo com vinte e três anos e com uma mentalidade extremamente diferente, o outono continuava sendo minha estação favorita. Não pelos mesmos motivos de alguns anos atrás. Agora, eu amava o outono pelo fato de essa ser a única época do ano em que eu podia ver a pessoa por quem desenvolvera uma paixão platônica dolorosa e, ao mesmo tempo, prazerosa. Meu colega, parceiro de crime e melhor amigo, .
Quando conheci , ainda no jardim de infância, nunca imaginara que eu passaria a amá-lo tão intensamente. Éramos melhores amigos desde o primário e não nos separávamos nem ao menos para viajarmos nas férias de fim de ano e de verão - sempre combinávamos um modo de ambas as famílias se reunirem em um mesmo local, para que não passássemos mais do que um mês longe um do outro. Em algum momento durante aqueles longos anos de amizade, vi-me me apaixonando pelo garoto maluco que adorava gibis e física e percebi que, talvez, ele pudesse vir a ser o homem da minha vida.
Observando agora, percebo como era sonhadora na minha adolescência. Não imaginava que, sem nem mesmo perceber, toda minha vida viraria de cabeça para baixo e se tornaria algo muito diferente do que eu almejava. Em pouco tempo, os amigos inseparáveis se afastaram devido aos sonhos de faculdade diferentes: queria se formar em física pelo MIT e eu, em arquitetura por Stanford. Quem diria que eu mudaria de perspectiva e começaria a lecionar na escola primário de Michigan - minha cidade natal - enquanto terminava seu mestrado em física? Quem poderia pensar que os amigos que não gostavam de ficar longe um do outro no curto período de um mês, agora lutavam contra a distância - com a ajuda do maravilhoso Skype - e só se viam realmente de ano em ano?
Naquele dia eu tentava esquecer todos os problemas e todas as reclamações que rodavam minha mente. Faltavam pouquíssimos minutos para que o avião de pousasse e eu já estava chegando no aeroporto com Max, o irmão mais novo do meu melhor amigo, para podermos lhe dar as boas vindas. O garoto de quase 5 anos estava tão animado quanto eu. Todos nós considerávamos um ano um período muito longo. Se não fosse pelas minhas crianças da escola e, se eu tivesse dinheiro suficiente para ficar esbanjando por aí, eu iria ao menos, de mês em mês me encontrar com , para podermos matar a saudade com mais frequência.
- Sua mãe contou que está fazendo macarrão com queijo, Max? - perguntei ao garotinho, que assentiu animadamente.
- Ela disse que é o preferido do . - o menininho disse, soltando o tiranossauro rex de brinquedo que ganhara do irmão para desfivelar o cinto.
Desci do carro e dei a mão para Max, que a segurou fortemente. Rapidamente já estávamos no setor de desembarque e esperávamos, sentados nas cadeiras desconfortáveis.
- Você acha que ele vai gostar do meu desenho, ? - a voz do garoto se fez audível, me tirando dos meus devaneios. Era normal eu me pegar sonhando acordada, imaginando que, finalmente, contara a tudo o que sentia e que ele correspondia minha afeição. Era bom idealizar, mas era quase impossível algo do tipo acontecer.
- É claro que ele vai, Max. Você sabe que ele ama todos os seus desenhos. - aquele em particular era surpreendentemente bem elaborado. Para uma criança de 5 anos, quero dizer. era retratado ao lado de Max no formato de bonequinhos de pau, que não estavam completamente tortos, como costumavam estar, nos desenhos do garoto. O menino, com certeza, colocara um empenho enorme para completar aquela carta em formato de desenho. - Você se lembra da caixa enorme que tem? Ela é cheia com seus desenhos.
Eu achava magnífico a maneira como as crianças, ao desenhar algo simples, como ela, de pé, ao lado de um sujeito, conseguiam dizer um "eu te amo" tão puro para tal pessoa. Acreditava que era por esse motivo que eu decidira dar aula para crianças. Era mágico imaginar aquele mundo particular delas e era extremamente maravilhoso aprender a se sentir parte daquele universo novamente, com os olhos mais experientes.
- Naquela caixa também tem muitas fotos. - Max sorriu travesso. - Um montão é sua com ele. Vocês faziam muita bagunça.
- Eu era super comportada! - fingi indignação.
- Não era não. Eu vi uma foto de vocês nadando sem roupa. - arregalei os olhos naquele segundo. Aquela foto, prova de minha primeira travessura de adolescência, era para ter sido rasgada há anos. me jurara que havia se livrado dela! - Mamãe disse que não pode nadar sem roupa. Por que vocês nadaram, ?
Naquele momento a situação ficara muito crítica. Como explicar para um garoto daquele tamanho que desobedecer os pais naquele dia tinha sido divertido? A mãe dele me mataria na hora, sem sombra de dúvidas. Ainda estava pensando em desculpas esfarrapadas ou em algo para desviar a atenção do menino quando meu celular começou a tocar, salvando-me.
- Ele já chegou? - Delphine me perguntou assim que atendi o celular.
- Ainda não, mãe coruja. Você tem que parar com esse medo de avião. Ele já deve estar quase pousando.
- Ok. - ouvi a risadinha da mãe de do outro lado de telefone. Eu até podia vê-la rolando os olhos por eu tê-la chamado de mãe coruja. - Não demorem muito, tudo bem? O jantar já está quase pronto.
Não se passara nem ao menos dois minutos quando percebi que já era o horário previsto, no painel de voos, para a chegada de . Levantei-me com Max e ficamos esperando nosso garoto chegar. Eu enxergava várias cabeças e não reconhecia nenhuma. O voo de não atrasara, portanto, era seguro de se dizer que, a qualquer minuto, veríamos seu rosto entre a multidão e poderíamos abraçá-lo tão apertado que seria perigoso esmagá-lo. Nossa, eu realmente estava morta de saudades do meu melhor amigo.
- ! - Max soltou minha mão de repente, correndo em direção a multidão. Procurei, avidamente, pelo rosto de e não conseguia encontrá-lo. Onde Max estava vendo o irmão?
Mas, após alguns segundos, meus olhos finalmente o encontraram e naquele instante parecia que minhas pernas haviam virado gelatina. Ele estava mais lindo do que me lembrava. Seu corpo estava mais definido do que o Skype conseguia mostrar, seu cabelo, mais curto e mais escuro. continuava com aquele sorriso sensual e com aquela postura encantadora. Como se trazia oxigênio para o pulmão, mesmo?
- E aê, macaquinho? - ele cumprimentou o irmão com a voz doce, pegando-o no colo e abraçando-o fortemente. - Você cresceu quantos metros enquanto eu estive fora?
- A última vez que medi, eu tinha um metro e trinta! Você acredita? Já sou quase mais grande do que você.
- Mais grande? Estou vendo. Vou ficar para trás. - beijou o topo da cabeça de Max, se aproximando de onde eu permanecia. - Eu estava morto de saudade de você, garotão.
- Eu também. - Max abraçou-o com os bracinhos finos e desceu do colo de , dando a mão para ele segurar enquanto percorriam a curta distância até mim.
- Saudades de mim, ursinha? - disse meu apelido e abriu os braços, convidando-me para um abraço. Eu não consegui esperar nem mesmo um segundo para tentar disfarçar minha ansiedade. Apenas corri até seus braços e o abracei apertado.
- Você não tem ideia do quanto. - respirei fundo, deixando o cheiro de penetrar minhas narinas. Eu o amava, caramba. Eu o amava tanto! Percebi quando meus olhos se encheram de lágrimas e me afastei um pouco da pele quente do meu melhor amigo, para secar meus olhos. Droga. Sem ser sentimental demais, né, . Por favor!
- Você está ainda mais linda do que eu me lembrava. - ele disse, passando os dedos em minha bochecha, ajudando-me a limpar minhas lágrimas. - Eu não sei como consigo passar tanto tempo longe de você.
Sorri fracamente e respirei fundo, me recompondo. Aquela voz rouca tão perto não fazia bem algum para minha sanidade. Perpassei meus olhos pelo seu rosto, desde o contorno de seus lábios até o brilho de seus olhos e parei por ali, encarando-o. Ah, se ele conseguisse ler meu olhar... ele saberia há décadas que eu o amava não apenas como amigo.
- Sua mãe pediu para não demorarmos. - eu disse após alguns segundos, desviando os olhos, um pouco constrangida. - É melhor a gente ir.
Ele concordou, retirando a palma da mão de minha bochecha e pegando Max no colo novamente. Quando começamos a andar, ele me puxou pela cintura, para permanecermos perto um do outro e eu abri um sorriso enorme com sua ação.
A conversa no carro tinha sido maravilhosa. Max insistira que fizesse a imitação de um tiranossauro rex e, após a vergonha que ele passara com a tentativa, aproveitamos o tempo para colocar a conversa em dia.
Não foi diferente no jantar. Delphine era uma cozinheira dos deuses. Seu macarrão estava maravilhoso e eu me empanturrei de comida. Conversamos por horas na sala de jantar e, depois, decidimos assistir um programa de tv na sala (foi nesse momento que Max sucumbiu ao sono e desmaiou feito uma pedra no sofá e Delphine decidiu ir dormir, antes que fizesse o mesmo que seu filho mais novo).
- Nossa! Você deve estar morto de cansaço, . - disse, após perceber que já se passava das dez. - Eu acho que vou embora.
- Você enlouqueceu, é? - ele riu da minha cara de desentendida. - Não estou nada cansado. E a gente combinou de ir na boate do centro, lembra? Ou é você quem está cansada? - ele levantou uma sobrancelha, não acreditando que aquilo fosse possível.
- Não! É só que eu achei que você ia querer dormir, ué. Se você quiser a gente pode deixar para outro dia sem problema.
Ele negou com a cabeça.
- Só terminar esse episódio e a gente vai, pode ser?
Dei de ombros e, juntos, assistimos ao episódio de The Flash que passava na tv.
A boate estava cheia, como sempre. Eu não ia lá com muita frequência por não saber dançar muito bem, mas, quando voltava a Michigan, ir àquele lugar era nosso ritual para lembrarmos dos velhos tempos. Fui pegar meu celular para ver as horas - eu não podia ficar até tarde, pois daria aula na parte da manhã - , porém não o encontrei no meu bolso.
- Droga! - eu disse irritada. - Você pega algo para eu beber, por favor? Esqueci meu celular no carro.
- Claro. - gritou, para que sua voz fosse escutada.
A merda do aparelho devia ter caído enquanto eu dirigia, pois ele estava no chão do carro. Foi quase impossível encontrá-lo. Demorei vários minutos e até cheguei a pensar na possibilidade de tê-lo esquecido na casa de .
- Estava lá? - meu melhor amigo perguntou quando voltei, me entregando uma garrafa de cerveja. Ele não lembrava que eu não gostava muito de álcool?! Que boa memória, . Contudo, naquela noite, eu queria beber, por isso não reclamei da escolha.
- Sim. No chão. - revirei os olhos e bebi uma grande quantidade do líquido. Eu tinha que me lembrar de ir com calma, pois, por não beber com constância, eu ficava bêbada com pouca coisa.
O som da música estava totalmente alto. Eu amava aquilo, pois o barulho exterior conseguia diminuir um pouco a inquietação de minha mente. No fim da primeira canção eu já tinha bebido a garrafa inteira de cerveja, enquanto estava sentada conversando com no balcão. Assim que terminei o líquido, pediu outro. Eu já estava começando a me sentir mais aérea. Era como se eu estivesse morta de sono.
- Eu sei que você não curte muito, mas você quer dançar? - me perguntou depois de tomar mais um pouco de sua própria cerveja.
- Eu amo dançar! - eu gritei, jogando os braços para cima. Com certeza era o álcool falando. Eu nunca admitira para ninguém que eu amava dançar e que apenas tinha vergonha de fazer isso em público. Nem mesmo para . A verdade era que eu parecia um pato com diarreia quando dançava e, por isso, fazia todos acreditarem que eu odiava fazê-lo.
- Que milagre! - ele riu, pegando-me pela mão e nos levando à pista de dança.
era muito desengonçado quando dançava. Era super fofo. Por isso e por causa do álcool que corria me minhas veias, decidi me soltar e dançar como gostava de fazer em frente ao espelho do meu quarto.
- Eu adoro essa música. - eu gritei e comecei a fazer alguns passos bem estranhos. Primeiro, eu começava fingindo que estava chutando algo atrás de mim enquanto balançava minha mão feito louca ao lado do meu corpo. Depois, eu inventava de fechar minhas mãos e fingir que estava numa luta de MMA e que estava espancando um outro jogador. Na verdade, acho que eu não era tão ruim assim enquanto dançava. Eu era ótima! Deveria ganhar dinheiro com isso. Ok. Alerta de bêbada tocando no fundo de minha mente.
- Eu também. - concordou e riu, olhando meus movimentos. - Onde aprendeu essa dança?
- Sozinha.
- Eu acho que somos o casal mais desengonçado da vida.
Casal. Meu coração parou por um milésimo de segundo. Dei uma risada e engoli em seco. Bebi mais um pouco da minha cerveja para que o bolo que se formara em minha garganta fosse capaz de descer, mas quem disse que funcionou? Era bem provável que eu acordaria com ressaca no outro dia e que, por isso, que acabaria esquecendo da fala de . Não sabia se aquilo era bom ou ruim. Por um lado, se eu lembrasse, poderia ter um pouco mais coragem de dizer o que sentia, mas, talvez, aquela frase simples estava apenas me dando falsas esperanças e eu quebraria a cara se tentasse qualquer coisa. Preferia não me lembrar do termo usado, então. Preferia um milhão de vezes.
Após a dança, sentamos novamente no balcão e pediu mais uma garrafa de cerveja. Ok, com certeza eu estava bêbada e iria morrer de dor de cabeça pela manhã. Ótimo. Para melhorar a situação, amanhã era dia de semana, o que implicava em ter que dar aula para criancinhas de ressaca. Extraordinário!
- , já são duas da manhã. - ri, um pouco assustada. - Eu tenho que dar aula daqui a pouco.
- Nossa. Nem vi que já era tão tarde. Vamos, vou te levar para casa.
Levantei-me do banquinho alta, mas minhas pernas estavam bambas e eu quase cai no chão no meio de um bocejo, não fosse me agarrar pela cintura para me ajudar a chegar até o carro. Estávamos muito próximos e eu encostei a cabeça em seu ombro, sentindo o cheiro maravilhoso do perfume amadeirado dele.
De repente, uma ideia não muito inteligente veio a minha mente enquanto eu passava minha bochecha pelo ombro de . Ok, a ideia não era nada inteligente, mas não custava tentar, não é mesmo? Eu estava bêbada. Se desse algo errado e ele não correspondesse, eu podia fingir que não lembrava e culpar o álcool, continuando com nossa amizade quase intacta. Ele não se irritaria, não é? Claro que não.
Estávamos quase chegando no carro. Era agora ou nunca. Entre em ação ou esqueça isso para sempre, . Decidi-me por seguir minha intuição e parei nossa caminhada, ficando de frente a . Mas as palavras "Eu te amo" não saíram pelos meus lábios. Ficaram presas em minha garganta enquanto ele me encarava em dúvida do que eu queria.
- O que aconteceu, ursinha? - colocou a palma de sua mão em minha bochecha. Deus, eu amava quando ele me acariciava daquele jeito.
Respirei fundo e fechei os olhos. Meu rosto estava próximo do dele, apenas alguns poucos centímetros nos separavam. E se eu o beijasse? Ele me impediria? Eu quebraria meu coração se ele não me correspondesse? Se ele não corresponder, você vai esquecer. Foi com esse último pensamento que me decidi. Aquela era a hora. Abri meus olhos rapidamente e olhei direto para as íris brilhantes do meu melhor amigo. Ele estava preocupado com o que me agitara e eu me aproximei ainda mais. Vi a surpresa nos olhos de antes de fechar os olhos novamente e encostar meus lábios nos dele.
Foi rápido. Apenas um selinho. Mas eu nunca me sentira mais maravilhada. Era como se um raio tivesse passado por meu corpo desde os lábios até a ponta dos dedos do pé.
- Desculpa, eu estou meio bêbada. - me afastei, já arranjando um motivo para ter feito algo tão embaraçoso. Eu não tinha coragem de olhar o rosto de , então, estava encarando minhas mãos completamente nervosa. Droga, . Pensa direito da próxima vez que for faze algo estupido.
- Bêbada? - a voz dele estava incrédula. Era errado eu querer mais um beijo?
- Bebi mais do que imaginei. - olhei para o lado, mordendo o lábio para não gritar. Eu queria muito repetir. Por que eu fizera aquilo, merda?
- , olha para mim. - ele colocou a mão em meu queixo e eu desviei o olhar. Eu não conseguiria ver a recusa nos olhos dele. Não conseguiria. - Você não bebeu álcool nenhum hoje. Não tem como estar bêbada.
Arregalei os olhos. Não! Eu tinha bebido quase 5 garrafas de cerveja. Eu estava bêbada. Não teria coragem de ter feito aquilo se não estivesse.
- Estou sim. Eu bebi muita cerveja e...
- Eram cerveja sem álcool. - ele disse, como se fosse óbvio. - Você não gosta de beber álcool, principalmente em dia de semana.
Ele lembrou! É claro que ele ia lembrar, sua tonta. Segurei uma mão na outra fortemente, percebendo a burrada que tinha feito. Não tinha mais como inventar uma desculpa. Eu estava completamente ferrada.
- Eu... - engoli em seco e respirei fortemente. Diga. Vai. Fala para ele o que você sente. Agora, caramba! - Eu gosto de você, . Tipo, muito. Mais que como amigos.
Foi assim, de uma só vez. Rápido como tirar band-aid de machucado. Apenas depois de toda essa declaração que, finalmente, tive coragem de encará-lo. Eu procurava pena, vergonha e até um pouco de frustração em seus olhos, mas, tudo o que percebi foi a expressão de surpresa estampada em seu rosto dar lugar a de determinação. Fiquei pasma quando ele segurou minha cintura fortemente e se aproximou ainda mais, me beijando novamente, com muito mais paixão.
Pernas, o que acham de não bambearem em um momento como esse? Obrigada. Meu Deus. Eu nunca imaginara que seria assim. Nunca imaginara que ele corresponderia meu beijo de uma forma tão, tão, apaixonado. Quando senti sua língua em minha boca, era como se eu tivesse morrido e voltado a viver. Seu beijo era como se fosse um despertador, que fazia com que muitas partes do meu corpo começassem a funcionar pela primeira vez (meu coração, com toda certeza, fazia parte dessa fração louca que começara a exercer sua função naquele momento). Minhas mãos não tinham um lugar fixo. Ora perpassam os largos ombros de , ora bagunçam o cabelo já desajeitado dele e eu não sabia mais como me mantinha em seus braços sem me enlouquecer. Meus pulmões pareciam arder por falta de ar, mas eu não queria me afastar. Nem mesmo por um minuto. Não queria perder a mágica. Sentia que podia até mesmo flutuar.
- Uau. - diz, um pouco ofegante, após pararmos o beijo. - Eu, nossa, uau.
- É... - foi a única coisa que consegui dizer enquanto estava agarrada à ele. Nem raciocinar direito eu estava conseguindo mais! Não percebi exatamente quando comecei a gargalhar, só sei que eu amei escutar me seguindo naquela liberação de endorfina e serotonina. Aquilo era um sonho e, acordar estava fora de possibilidade.
Fazia exatamente duas semanas que eu e estávamos nos... bem... divertindo juntos. Ok, a gente não tinha definido nada ainda. Só nos beijávamos quando tínhamos vontade (o que era, praticamente o tempo todo). Houve até um momento de agarração no quarto dele na noite passada, mas, Delphine e Max não sabiam de nada ainda e, era melhor encararmos a situação com mais calma.
- Você viu que vai ter uma peça de teatro do Rei Leão aqui na cidade? - me perguntou naquela tarde, enquanto estávamos deitados no colchão da sala de minha casa. - Estava pensando em levar o Max para assistir. Ele está louquinho. Quer ir? É esta noite.
- Rei Leão? - perguntei, surpresa. O filme era super antigo. - Claro que quero! Lembra de quando brincávamos de animais por causa desse filme?
- Aham. - ele disse, distraído, mexendo em meus cabelos. - Você foi vestida de leão em um Halloween porque queria ser forte que nem o Simba. - ele gargalhou, lembrando da cena. A fantasia havia ficado mais do que estranha em mim. Ela era ridícula!
- Você está rindo por quê, garotão? - indaguei, indignada. - Você não lembra da vez que você se vestiu de vaquinha não? - arqueei a sobrancelha, vitoriosa. - Até hoje eu me lembro de você com aquele sininho no pescoço. Melhor cena da vida.
Eu alcancei meu objetivo, com toda certeza. As bochechas de estavam completamente vermelhas - ele tinha odiado aquele Halloween por causa da sua fantasia - e eu comecei a gargalhar, sem conseguir me controlar.
- Quer rir, é? Vou fazer você rir. - ele sentenciou, com o olhar maligno. Quando ele fazia aquela expressão, eu tinha que me preparar para correr. O filho da mãe ia me matar de cócegas, eu tinha certeza.
Levantei-me correndo do colchão e sai de perto do alcance das mãos de .
- Você não consegue me pegar. - aticei, como se fosse uma criancinha. Eu amava brincar como criança às vezes. Não tinha porque negar.
- Pode se preparar para correr, senhorita . Porque, senão, você irá sofrer.
Eu já estava na cozinha quando ele se levantou do colchão. Quando ele chegou por lá, eu já corria em direção ao banheiro. Talvez, se eu me trancasse lá dentro, seria impossível para ele concluir seus planos malignos. No entanto, as pernas de eram tão longas e ele corria tão rápido que, quando estava prestes a fechar a porta, ele colocou uma perna para impedir minha ação. Droga!
- Você é um frangote. Tira a perna. - eu ria, já sem fôlego da pequena corrida.
- Não tiro enquanto você não abrir a porta.
- Para, !
- Abre a porta! - ele fingiu irritação com a demora, mas a risada ainda estava completamente presente em sua voz. começou a fazer um pouco de força na porta, simulando insatisfação. - Se você não abrir, eu vou empurrar! Você merece essa sessão de cosquinhas!
- Não mereço não. - gritei.
- Um, dois, três. - quando ele contou até três, eu me afastei da porta de repente e, por estar um pouco apoiado nela, ele caiu direto no chão. Ai meu Deus. Minha barriga já estava dolorida de tanto rir.
- Você é tão idiota! - não conseguia parar de rir nem mesmo para dizer a frase. Claro que ele não havia machucado mas, pela expressão dele, eu sabia que ele me faria pagar pela artimanha. - Agora, paremos de criancice e vamos assistir ao filme que já vai começar por favor.
Comecei a sair do banheiro, passando um pé por cima de seu corpo esticado no chão. Fiquei observando ele durante toda minha ação, com medo do que ele estava aprontando. estava muito quieto para meu gosto. Quando dei mais um passo para longe de seu corpo, eu o vi se levantar rapidamente e, por isso, corri a toda velocidade para a sala.
Ele estava atrás de mim. Muito próximo. Eu sabia disso. Senti o exato segundo quando ele conseguiu me alcançar e nós dois tropeçamos, caindo de volta no colchão macio. A força do baque me deixou desnorteada por um tempo e eu comecei a rir novamente. Minha gargalhada aumentou cem vezes quando decidiu ser malvado e começou a fazer cócegas em minha barriga. Eu clamava por ar. Clamava por uma pausa. Eu estava levantando bandeira branca.
- Chega! - eu gritei, me debatendo de um lado para o outro. Era tão horrível! - Eu te imploro. Pelo amor de Deus!
Ele parou após mais alguns segundos de tortura e saiu de cima de mim, deitando-se no colchão. Pela respiração ofegante, percebi que ele estava completamente cansado da brincadeira, por isso, virei-me, encarando o corpo maravilhoso dele esticado. Eu ainda estou ofegante, porém, haviam mais motivos - até mais interessantes - por trás de minha falta de ar.
Ele conseguiu se recuperar e olhou para mim novamente. Seus olhos brilhavam e o sorriso enorme mostrava que ele estava feliz. Como eu sentira saudades daquele sorriso. Como eu sentira saudades de tudo.
- Eu já te disse que amo seus olhos? - ele perguntou, de repente, tirando-me de meus devaneios.
- Não que eu me lembre.
- Bem, eles são lindos. - ele colocou a mão em minha bochecha, naquele carinho que sempre fazia-me derreter em seus braços. - Grandes globos oculares maravilhosos. Eles conseguiriam iluminar uma cidade inteira com esse brilho.
Nossa. Meu coração sofreu um pequeno disparo. Eu sei que sempre me fazia alguns elogios assim, do nada, quando éramos apenas amigos - naquela época eu ficava completamente sem fala também. Porém, naquela situação, eu conseguia interpretar o elogio de uma forma completamente nova e inesperada. Era um sentimento tão bom e tão puro. Eu o amava tanto que era difícil respirar.
continuava a acariciar minha bochecha. Eu sentia como se essa parte do meu rosto estivesse mandando um formigamento maravilhoso por todo o meu corpo. Fechei os olhos e respirei profundamente, ansiando para o que vinha em seguida.
O beijo começou muito calmo, como se estivéssemos sentindo, experimentando, nossos lábios pela primeira vez. Em pouco tempo já estávamos em uma fúria para tentarmos aproximar nossos corpos mais e mais - mesmo isso sendo humanamente impossível. Eu amava sentir os lábios dele nos meus. Amava não conseguir pensar e só seguir meus instintos quando estava agarrada assim à . Era perfeito.
Perfeito e, como sempre, era interrompido.
O celular de começou a tocar em uma altura desconcertante e nos separamos - com muito custo - para que ele pudesse atender. Uma mão dele continuava em meu quadril enquanto ele tentava tirar o aparelho do bolso. Ele continuava com um risinho sapeca no rosto e eu mantinha minha respiração acelerada. Como acalmar a respiração com um gato daqueles em cima de mim? Impossível.
- Oi, Max. - ele esperou o irmão falar por alguns segundos do outro lado da linha. - Eu disse que vou levar. - ele riu, esperando mais uma vez. - Aham. Ela vai com a gente. Daqui a pouco eu já estou indo. - Eu disse que ele estava maluco para ir. - disse após desligar o celular, rolando os olhos.
- Acho melhor eu ir me arrumando então. - comentei, levantando-me do colchão.
- Não mesmo. - ele me puxou de novo. - O show é só daqui a três horas.
- E? - perguntei, curiosa.
- É tempo suficiente para dois amigos brincarem, você não acha? - com aquele sorriso safado, quem iria negar?
A fila estava enorme, sem brincadeira. Não imaginava que um evento com uma atração tão antiga poderia trazer tantas crianças para participar. Acho que nem mesmo na escola em que dava aula eu vira tantos baixinhos juntos de uma vez só. Era encantador.
- , eu posso comer muita pipoca? Eu gosto muito de pipoca. - Max começou a conversar com o irmão mais velho, já planejando o que comeria enquanto assistíamos a peça e teatro. Aquele garoto pensava mais em comida do que eu (se é que isso era possível).
- Claro que pode, Max. - o mais velho respondeu. Ele estava me abraçando por trás, descansando sua cabeça em meu ombro, quando sussurrou: - Eu acho que nunca disse isso mas eu estava com saudades até desse seu perfume de baunilha.
- Só admite, . Você não consegue viver longe de mim. - ri um pouco do ar que ele soltou no meu pescoço, fazendo cócegas.
- Sabe, ... - ele começou, com a voz um pouco cautelosa, que fez com que minha espinha congelasse de expectativa. - eu meio que te...
- Tia . - uma vozinha fina, conhecida, gritou meu nome. - Eu não sabia que você gostava de Rei Leão.
A garotinha de 6 anos de idade, que estava na parte da frente da fila, tinha acabado de me reconhecer no meio da multidão e viera correndo me abraçar. Era uma das minhas alunas preferidas e eu adorava passar um tempo a mais com ela (os pais dela sempre atrasavam ao menos 10 minutos para buscá-la após a aula, o que nos dava tempo de ter longas conversas).
- Olá, Charlotte. - sorri ao sentir o cheiro delicioso do cabelo trançado da menina. - Como você está?
- Eu estou muito feliz. Papai veio assistir Rei Leão comigo! - ela disse completamente animada, apontando para o homem nervoso com celular no ouvido, que acenou sem jeito para mim. - E você, tia ? Veio com o seu namorado?
Minhas bochechas arderem em um segundo. A gente não tinha discutido isso ainda!
- É... - pigarreei e engoli em seco, tentando desviar da pergunta dela. - eu vim hoje para acompanhar o e o Max. - apontei para os dois, apresentando-os a ela.
- Eu vou comer muita pipoca hoje. - Max disse para Charlotte e me esforcei para segurar o riso. Ele tinha comido um prato enorme de comida em casa antes de vir para cá. Não era possível que ele estivesse tão fissurado em comer novamente.
- Eu também. - ela sorriu para o garotinho e virou-se para . - Eu sou Charlotte. Você é o namorado da minha professola?
Droga. Não tinha funcionado. Esquecera como Charlotte era persistente. Mas, na verdade, ao perguntar à , ela me ajudou um pouco. Eu não precisava perguntar mais tarde. Ele iria responder agora.
- Sim, Charlotte. - ele disse, sem mesmo parar para pensar. - Meu nome é .
Meu coração parou (isso vem acontecendo muito desde que voltou para Michigan) e eu sinto meus pelos se arrepiarem. A gente está namorando. Ok. Grande passo.
Virei-me para e, em seu olhar estava explicito a pergunta: "a gente está namorando, certo?". Meus lábios se abriram em um enorme sorriso e pareceu relaxar um pouco. Pelo visto, ele percebera, um pouco mais tarde, que não tínhamos tocado naquele assunto ainda.
O pai de Charlotte, de repente, chegou ao nosso lado, nos cumprimentando secamente. Ainda com o celular na mão ele disse para a filha:
- Não vai dar pra gente assistir à peça, filha. - ele era um pouco direto demais com uma criança daquela idade. - Eu tenho que voltar para a empresa nesse minuto.
Assim que ele começou a falar diretamente com Charlotte, eu soube o que ia acontecer. Eu conseguia perceber a mudança da feição da garotinha: de animação, ela foi a tristeza profunda, em poucos segundos.
- Mas, papai... - eu via as lágrimas se formarem nos olhos castanhos dela.
- Sem mais. - ele deu o ultimato.
Eu a escutei fungar e sussurrar um por favor tão baixo que quase ninguém ouviu. O clima do ambiente estava tão pesado e eu me sentia tão inútil, que tudo o que consegui fazer foi me oferecer para fazer a primeira coisa que me viera a mente:
- Senhor. - interrompi o olhar de irritação que ele lançava a Charlotte quando ela começara a andar muito devagar. - Eu não sei se me reconhece, mas eu sou a professora de sua filha. Será que não seria possível você deixá-la sobre a minha responsabilidade enquanto você resolve o problema na empresa? Ela parece querer tanto ver a peça... - deixei a frase solta, torcendo para que ele escutasse a voz da razão e deixasse a filha se divertir. Eu não era o pai dela e eu sabia que ela estava mais animada pela companhia do pai do que pelo espetáculo, mas, pelo menos, algo de bom eu faria a ela. Ao menos um pouco de alegria ela teria, se ele permitisse.
- Por favor, moço. - Max disse, com a voz pidona.
O senhor pareceu ponderar rapidamente e, após um longo suspiro, permitiu que Charlotte ficasse comigo.
- Eba! - a garotinha gritou, voltando para o meu lado e segurando minha mão. - Muito obrigada. - ela encostou a cabeça na minha cintura, secando suas lágrimas rapidamente.
- Não por isso, meu amor. - retribui o sorriso que me lançou, orgulhoso com a situação. - A gente vai se divertir pra caramba.
Realmente, eu não podia mentir: a peça era maravilhosa! Os efeitos especiais, as cortinas... eu não imaginava que um evento poderia ser tão bem organizado em uma cidadezinha no interior de Michigan. Eu chorei em algumas partes (quando o Mufasa morreu eu abri o berreiro mesmo. Não deu para segurar), ri em outras (Hakuna Matata, melhor música) e até fiquei encantada em como seres humanos, por causa da boa atuação e boa fantasia, conseguiram parecer com os animais do filme. Foi maravilhoso do começo ao fim.
- Tia , eu quero muito ir no banheiro. - a vozinha fina de Charlotte disse, quando o show acabou.
Procurei pelo banheiro dentro do teatro e o achei. Ele era bem longe da porta de saída, do outro lado do teatro. Teríamos que ir contra uma multidão para conseguirmos chegar lá. Será que ela conseguiria esperar? Olhei para a garotinha e percebi o esforço que ela fazia para segurar o xixi.
- , eu vou ao banheiro com a Charlotte. Eu encontro você e o Max lá fora, ok? - dei-lhe um selinho e segurei a mão da garotinha, enfrentando a multidão.
- Tia, eu não sei se vou conseguir segurar! - a menina de cabelos castanhos encaracolados desabafou quando estávamos chegando ao nosso destino.
- Calma, meu amor. Já estamos quase chegando. - começamos a andar um pouco mais rápido e, finalmente, conseguimos entrar no banheiro antes que Charlotte fizesse xixi na roupa.
Eu escutei alguns gritos do lado de fora enquanto auxiliava a garotinha a tirar a calça. O zíper estava preso e fez com que eu gastasse alguns minutos na tarefa. Sentei-me no chão, gargalhando após finalmente ter terminado de ajudá-la. Que dificuldade! Ouvi mais gritos e um barulho estrondoso. O que estava acontecendo? Alguma brincadeira com os atores da peça?
Esperei Charlotte adentrar a cabine e a auxiliei com sua higiene. Enquanto a garota lavava as mãos, decidi conferir o que estava ocorrendo do lado de fora com todo aquele alvoroço. Devia ser alguma brincadeira de mal gosto com as crianças que estavam assistindo ao espetáculo. Com o Halloween chegando, podia-se imaginar de tudo naquela cidade. Assim que abri a porta do banheiro, não consegui mais pensar em nada, não consegui mover nem mesmo um músculo de meu corpo. Aquilo não podia estar acontecendo! Eu só via fogo e fumaça por todo canto! Tudo estava pegando fogo! E, pelo visto, eu e a pequena menininha do banheiro éramos as únicas que ainda estavam dentro do teatro em chamas.
Ai. Meu. Deus. Eu não conseguia respirar. Haviam labaredas de fogo por todo o local - que se espalhando em uma velocidade inacreditável - atrapalhando a passagem de qualquer pessoa. Eu sentia o calor chegando em meu corpo e não tinha a mínima ideia de como poderia sair dali ou como encontrar uma brecha na muralha de calor. Parecia que a cada segundo tudo piorava e percebi que precisava agir naquele instante se desejasse sair com Charlotte ilesa do incêndio.
- Charlotte. - chamei, quando adentrei o banheiro novamente. Minha voz estava surpreendentemente calma, considerando a situação e a tremura que tomava conta do meu corpo. O treinamento que eu fizera de como lidar em situações estressantes parecia estar funcionando. - A gente tem que sair daqui agora, mas eu preciso que você não fique nervosa, ok?
A menininha, que estava lavando suas mãos, parou a ação e concordou, com medo no olhar. Pelo visto eu não estava aparentando tanta calma quanto imaginara. Saímos mais uma vez do banheiro e eu vi o medo da garota crescer ainda mais em seus olhos, quando ela percebeu com o que estávamos lidando.
O teatro não era grande, então, a maior parte do ambiente já estava completamente tomada pelo fogo. Eu não conseguia ver nenhuma brecha, nenhum local por onde pudéssemos passar. Eu não tinha nenhuma ideia de como salvar a pequena menina, encolhida de medo, que contava comigo para sobreviver.
- Tia, tem um lugar sem fogo! - Charlotte gritou, apontando para um lugar completamente arriscado de se passar. Havia pedaços do teto que estavam quase caindo no chão naquela parte do teatro. Não havia possibilidades de não nos machucarmos durante a travessia. Tinha que ter outra saída.
Eu não percebi. Foi muito rápido. Em um momento, eu estava procurando outras alternativas com Charlotte do meu lado, no outro, a menininha pôs-se a correr na direção que tinha apontado, sem minha permissão.
- Charlotte, não! - gritei quando a vi chegando próximo ao teto danificado e comecei a correr como nunca em minha vida.
No entanto, eu não cheguei a tempo. O fogo começou a chegar naquela parte e, o pedaço do teto começou a despencar. Eu não enxergava ou respirava direito devido a fumaça. Tudo o que consegui fazer foi ouvir um grito de dor, que me impulsionou a correr - não tenho ideia de como - ainda mais rápido em direção ao local mais perigoso do teatro.
- Charlotte! - gritei assim que cheguei no local, próximo ao palco. - Ai meu Deus! - engoli em seco quando vi a menina se contorcendo de dor, com um pedaço enorme da madeira do teto, prendendo uma de suas pernas ao chão.
- Tá doendo muito! - ela chorava e eu sabia que minha suposta feição de calma tinha sumido há tempos.
- Calma, meu amor. Vai ficar tudo bem, ok? Eu prometo. - eu disse com as mãos tremendo, tentando ver qual seria a melhor maneira de tirar a madeira sem machucá-la ainda mais. Era impossível algo assim estar acontecendo. Tinha que ser um sonho. Aquilo tinha que ser um sonho!
- Eu quero minha mamãe! Eu quero meu papai, tia. - os olhos cheios de lágrimas da garota começaram a me deixar ainda mais nervosa. Com uma força não natural, comecei a puxar a madeira. Nós sairíamos vivas dali. Eu não aceitava outra opção.
No entanto, a madeira era extremamente pesada. Eu não conseguia mover nem mesmo um centímetro dela e, toda vez que a puxava, Charlotte urrava de dor, totalmente indefesa. Eu não conseguia mais evitar as lágrimas que apareciam em meus olhos. Calma, . Por favor, calma.
Havia uma única saída livre do fogo, que agora, finalmente, eu conseguia ver. Tínhamos que nos retirar dali o mais rápido possível e aproveitar a única brecha que poderíamos usar. Como eu conseguiria fazer isso? O choro de Charlotte era alto e eu tentei, mais uma vez, retirar a madeira de cima de sua perna. Meu Deus, o que eu faria? Eu não tinha força o suficiente para retirar aquilo sozinha.
- Socorro! - gritei o mais alto que consegui, o que não foi muito, devido minha voz estar muito enfraquecida por causa da fumaça. - Alguém nos ajude. - eu vi que o choro de Charlotte começava a cessar e que ela estava prestes a desmaiar.
Eu não iria abandoná-la. Isso estava fora de possibilidade.
- Charlotte, meu anjo. Olha para mim. - ela abriu os olhos com dificuldade, ainda fungando. - Por favor. Eu preciso que você continue acordada, está me ouvindo?
- Tia . - a voz dela estava mais fraca do que a minha. - A gente vai morrer?
Meus olhos arderam e o medo na voz dela fez com que um arrepio subisse pela minha espinha. Não. A gente não iria morrer. Eu não a deixaria morrer!
- Não, meu amor! - neguei veementemente. - Eu prometo que não. Eu vou te tirar daqui, ouviu?
- Eu quero minha mãe, tia. Eu amo muito ela. Eu quero minha mãe. - segurei o rosto da menina, acariciando-o.
- Você vai vê-la daqui a pouco. - eu tinha que arrumar um jeito. Eu tinha que pedir ajuda. - Olha para mim, Charlotte. A titia vai ter que sair para pedir ajuda pra tirar essa madeira do seu pé, ok?
- Não me deixa, tia. Por favor, não me deixa. - ela me interrompeu, desesperada.
- Xiii. - eu a confortei sem força para mais nada. A dor em seus olhos me dilacerava. - Eu não vou te deixar, meu amor. Eu te prometo que eu vou voltar em pouco tempo. Charlotte, eu te prometo que nós duas vamos sair daqui. É só um segundo, ok? Eu prometo. - eu sabia que minha voz estava tremula. Sabia que não parecia confiante, mas a garota concordou e eu sai em disparada em direção a brecha. Eu tinha que agir o mais rápido possível.
Eu fizera uma promessa. Eu a cumpriria. Eu não deixaria aquela menina morrer. Não mesmo.
- Socorro! - eu comecei a gritar quando passei da porta. Fora do estabelecimento, uma multidão, muito maior do que a que estava presente no teatro esperava atrás de uma faixa amarela, daquelas que se vê em filmes policiais. Havia bombeiros se preparando para entrar no estabelecimento por todo lugar. Com minha visão periférica, vi sendo impedido de passar através da faixa por alguns policiais. Ele estava com Max e Delphine ao seu lado, todos eles com olhares desesperados em minha direção.
- Socorro. - gritei novamente e um dos bombeiros chegou perto de mim. Finalmente! Charlotte não iria morrer. Eu não iria morrer. Nós ficaríamos sã e salvas! - Tem uma garota presa debaixo de uma madeira lá dentro. O fogo já está chegando perto dela. Vamos rápido, por favor. - nunca tinha falado tão rápido em toda minha vida.
- Acalme-se, senhorita. - um bombeiro me parou, quando comecei a correr de volta para dentro do teatro. - A gente cuida da situação agora, ok? Você precisa ir para aquela ambulância.
- Não! - interrompi a fala do homem. - Eu prometi a ela que iria voltar. Eu tenho que salvá-la. Alguns bombeiros já estavam entrando lá dentro e quase bati no homem que estava impedindo a minha passagem. Eu tinha que voltar, caramba!
- Não podemos permitir civis dentro do estabelecimento, senhorita. - a voz dele estava inacreditavelmente calma, enquanto eu me derramava em lágrimas.
- Já tem uma pessoa lá dentro! - gritei exasperada. - Uma criança! Eu sou a única que sei onde ela está! Eu tenho que voltar lá!
- Você disse que ela está atrás do palco, senhorita. O nosso pessoal já foi resgatá-la.
Eu havia dito? Não me lembrava. O que importava? Eu tinha prometido à Charlotte. Eu tinha que voltar para ajudá-la. Minhas pernas tremiam e eu sabia que se não fizesse algo, iria desmaiar. E se os bombeiros não a encontrarem? E se a madeira estiver muito pesada para eles também?
- Calma, . Vai ficar tudo bem. - senti os braços de ao meu redor e instantaneamente me acalmei um pouco. Vai ficar bem. Tem que ficar bem. Virei-me para ele e encostei minha cabeça em seu ombro, manchando sua camisa branca de lágrimas e lápis creon.
- Ela não pode morrer, . Ela não pode. - funguei, completamente desamparada. Uma vez fora da fumaça, eu conseguia respirar melhor, mas isso não significava que não doía. A cada vez que respirava, mais destroçado meu coração ficava.
Eu continuava repetindo frase otimistas na minha cabeça a todo tempo. Eu não podia me desapegar da crença de que tudo ficaria bem e que eu não seria o monstro que fizera Charlotte ser morta. Ela tinha que ficar bem, não é mesmo? Olha o tanto de gente que fora salvá-la. É claro que ela ficaria bem.
Quando acabei de concluir meu pensamento, dois dos vários bombeiros que entraram no teatro começaram a sair do local, carregando Charlotte. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu corri em direção a eles, com um sorriso enorme.
- Meu amor, você está bem? - coloquei a mão no rosto dela. Sua perna estava sangrando muito e eu não via sinal de movimento algum no corpo dela.
Vários paramédicos me tiraram do caminho, rapidamente, e começaram a levar a garotinha para a ambulância. Eu corri atrás deles, junto a e conseguimos entrar no veículo, pouco antes das portas se fecharem e o carro entrar em movimento.
Era uma mistura de vozes ecoando pela ambulância e várias mãos perpassando o corpo da garota. Eu sabia que estava tremendo e sabia que minhas lágrimas não ajudavam em nada. No entanto, eu não conseguia parar de chorar ou de tremer ou, até mesmo, de me agarrar à de forma completamente indefesa.
- Ela vai ficar bem, não é? - perguntei para a paramédica ao meu lado.
- Faremos o máximo. - e foi naquele momento, olhando para os olhos de pena da mulher e segurando a mão, já fria, de Charlotte, que soube que todos meus pensamentos positivos não serviram para nada.
Havia, exatamente, cinco dias desde que eu tivera uma noite de sono decente. Aquela era a mesma quantidade de dias que eu passara não comendo direito e só pensando no acidente que desmoronara minha vida.
Eu levantara da cama naquela manhã, sem forças para ao menos ir ao banheiro. Eu não queria fazer nada, eu não queria ir a lugar algum. Tudo o que eu desejava era deitar em baixo do meu cobertor - mesmo que não estivesse fazendo frio - e chorar o dia inteiro.
- Minha mãe fez panquecas para o café, . Suas favoritas. - me obriguei a sorrir para , mas não fiz sucesso com a ação.
Eu não voltara para minha casa desde que tudo aconteceu. implorara para que eu ficasse na casa dele, pelo menos por alguns dias, e eu não sabia como negar. Eu achava que precisaria de companhia, mas tudo o que eu gostaria era não ter aceitado o convite. Eu precisava ficar sozinha, sem forças sorrisos ou sem ser obrigada a comer.
- Estou sem fome. - meus olhos estavam cheios de lágrimas novamente. Eu era uma assassina. Não merecia comer. Não queria comer.
- Você tem que estar forte para hoje, meu amor. - entrou no banheiro onde eu estava olhando para o espelho, sem realmente enxergá-lo.
Engoli em seco e sai do cômodo, entrando debaixo das cobertas de novo.
Eu nunca ficaria forte o suficiente para o que aconteceria hoje. O enterro de Charlotte não era algo para o qual eu conseguiria me sentir melhor por causa de comida. Além de fazer-me lembrar de toda a noite fatídica, aquele dia seria a primeira vez que veria os pais da garota, desde o hospital. Aquilo tudo era minha culpa.Eu era a culpada pela morte de uma criancinha de 5 anos de idade, que acreditara em mim para salvá-la.
- . - chamou com cuidado, após alguns segundos, retirando a coberta de meu rosto. - Você tem certeza que quer ir?
Concordei, um pouco relutante. Eu precisava daquele "fechamento".
- Já está quase na hora. Vou te deixar se trocar. Tenta comer pelo menos uma das panquecas, ok? - ele apontou para a bandeja na cômoda ao lado da cama. Concordei enquanto ele saia do quarto.
Sequei minhas lágrimas mais uma vez e tentei afastar os olhos de dor de Charlotte de minha mente. Peguei um pedaço da panqueca e, quando o engoli, senti vontade de vomitar. Estava ótima, não podia negar, mas qualquer coisa no meu estômago parecia fazer com que tudo se revirasse dentro do meu corpo.
Voltei para o banheiro, com intenção de tomar um banho e me livrar daquela bambeza, mas, ao chegar no cômodo novamente, senti-me ainda pior do que antes. Era como se tudo eu visse pela frente me lembrasse de como eu era um ser humano terrível. Eu não merecia ter saído do teatro. Eu deveria ter morrido...tinha que ter sido eu no lugar de Charlotte! Ah, se eu não tivesse tentado ser uma boa moça e pedido que o pai dela a deixasse assistir ao show comigo... se eu tivesse prestado mais atenção e percebido que Charlotte iria correr em direção a sua morte... pelo menos se eu tivesse sido capaz de levantar aquela merda de madeira! A garotinha estaria viva, na sala de aula, com seu olhar brilhante, ansiosa para mais um dia de aprendizado.
- É tudo minha culpa. - comecei a sentir a raiva percorrendo meu corpo. Eu era a pessoa mais idiota e irresponsável. - Sua assassina! - gritei para o espelho e, com uma fúria repentina, dei um soco no objeto.
Eu nem mesmo sentira a dor do machucado que o vidro quebrado causara em minha mão. Eu nem ao menos percebera o estrago até ver o sangue e vários pedaços de vidro caindo em cima da pia. entrou correndo no quarto, com aflição evidente em suas ações.
- Santo Deus, ! - ele chegou perto de mim, olhando o machucado em minha mão e me ajudando a tratá-lo. - O que aconteceu?
- Desculpa. - por incrível que pareça, eu não chorei. Parecia que a dor da mão estava amenizando a dor que perpassava pelo resto do meu corpo.
- Eu acho que seria melhor você não ir, ursinha. - ele me olhou, sincero.
- Eu tenho que ir, .
Era evidente que ele não concordava. Que ele preferiria que eu ficasse em casa, sã e salva.
- Você quer que eu te ajude a se trocar? - ele perguntou após alguns segundos, apontando para minha mão machucada. - Ou você quer que eu chame minha mãe?
- Eu consigo sozinha. - forcei um sorriso que não pareceu nada real, mas foi o melhor que consegui.
Em poucos minutos eu terminei de me arrumar e já estava no pé da escada, esperando pegar a chave do carro. O caminho para o cemitério foi silencioso e, quando chegamos lá, não tinha certeza se eu conseguiria ficar até o fim. Era muito forte. Muito angustiante.
- Ela era uma criança adorável... - eu ouvia a voz do padre ao longe, já que estávamos distantes da multidão, uma vez que eu não tinha coragem de olhar nos olhos dos pais de Charlotte naquele momento. Não sabia se seria capaz de fazer isso de novo. A minha respiração era pesada e eu tentava não chorar. Os olhos preenchidos de dor de Charlotte eram as únicas coisas que se passavam em minha mente e eu sabia que, se continuasse lembrando deles, eu não conseguiria suportar.
Após o fim do enterro, a multidão se dispersou e eu continuei longe, esperando para poder colocar as flores no túmulo da garotinha. As lágrimas de meus olhos não paravam e eu sabia que minha cabeça doeria muito, mais tarde, mas eu queria ir até o fim. Eu devia isso a Charlotte. Eu não a abandonaria de novo.
- Olá, querida. - disse, quando cheguei próxima ao túmulo, colocando as flores perto da lápide. me dera espaço para ir até lá sozinha. Aquele era meu momento de despedida. Eu não queria ninguém ao meu lado. - A tia sente muito... - engoli em seco, tentando secar as lágrimas. - muito mesmo, por não ter conseguido te salvar, ok? Eu sinto muito por não ter conseguido cumprir minha promessa. Eu sou uma péssima pessoa por isso.
Não havia palavras no mundo que conseguissem expressar o que eu estava sentindo. Era impossível. Eu não aguentaria mais. Levantei-me trêmula e respirei fundo. Era aquilo, eu tinha que ir embora antes de desabar.
- Eu não acredito que ela teve essa coragem! - ouvi uma voz masculina atrás de mim. Virei-me rapidamente, colocando meu cabelo atrás da orelha, tentando me recompor.
- Olá, senhor e senhora. - cumprimentei assim que percebi que eram os pais de Charlotte. O ódio era evidente nos olhos do homem e tudo o que conseguia ver no semblante da mulher era dor. Respirei fundo novamente, tentando achar palavras para me desculpar pelo pior erro de minha vida. - Eu sinto muitíssimo por...
Aquilo foi tudo o que consegui falar antes de sentir um tapa em meu rosto. O local ardia intensamente e eu sabia que não conseguirei suportar olhar nos olhos do homem que acabara de me bater. Era ridículo pensar assim, mas eu merecia. Eu era culpada pela morte da filha dele.
- Sua assassina. Você abandonou nossa filha! - o ar não chegava em meus pulmões e eu não conseguia mais enxergar, devido as várias lágrimas que tomaram conta dos meus olhos. Alguém finalmente tinha falado em voz alta o que eu sentia. Eu era uma assassina. A culpa era minha. Será que todo mundo pensava assim também e só não tiveram coragem de falar?
- Opa, opa, opa. - chegou ao meu lado empurrando o pai de Charlotte, que aumentara seu tom de voz. Eu não prestei atenção na briga que se sucedeu. Apenas segurei o braço do meu namorado e o implorei para me tirar daquele lugar.
Já havia se passado duas semanas desde o fatídico acidente. Eu necessitava voltar ao trabalho para me recompor. Eu tinha acabado de bater meu recorde: um dia inteirinho sem chorar e sem pensamentos culpados. Quem sabe se, ao retornar com minha rotina, eu conseguisse retirar minha mente de todas aquelas lembranças ruins?
- Eu não sei o que fazer, mãe. - escutei a voz de quando comecei a descer a escada, um pouco mais forte, sentimentalmente, do que estava no dia anterior. A frustração na voz dele era palpável. Eu quase conseguia vê-lo bagunçando o cabelo, coisa que ele sempre fazia quando nervoso. - Ela está tão...tão... quebrável? - a última palavra foi dita como se fosse uma pergunta, como se ele estivesse em dúvida se aquela era a palavra certa para descrever a pessoa que, no caso, era eu. - Eu estou com tanto medo...
A bolsinha que estava carregando em cima dos livros que eu levaria para a escola caiu, e cessou sua fala.
- Eu resolvi dar aula hoje. - disse quando apareceu na sala, olhando-me com curiosidade. Nem mesmo as escadas eu descera com frequência naqueles dias, portanto, era compreensível a surpresa nos olhos de e Delphine quando escutaram que faria algo tão repentino naquela tarde.
- Isso é ótimo, querida. - Delphine disse assim que escutou minha fala. O sorriso em seu rosto e no de me fizeram querer retribuí-los, mas não sei se consegui alcançar meu objetivo de maneira adequada.
- Eu vou te levar. - disse, pegando a chave do carro.
- Eu estava pensando se eu não poderia dirigir hoje... - mordi meu lábio. - Acho que me fará bem. Sempre me sinto livre quando dirijo no outono, assistindo as flores caindo.
- Claro. - meu namorado disse, após considerar por um minuto. - Se vai te fazer bem, você deve dirigir.
- Tenho certeza que vai me fazer bem. - dei um selinho nele e um tchau para Delphine antes de sair em direção a escola.
Enquanto dirigia pelas ruas desertas da cidadezinha, percebi que, realmente, eu precisava daquele momento. Eu estava cansada de ficar me escondendo debaixo dos cobertores. Já passara da hora de eu voltar a ser eu mesma. Eu não era culpada. Eu não era ... não era culpada!
- Continue repetindo, . Talvez, ao menos este pensamento positivo vire realidade. - gargalhei morbidamente de mim mesma, olhando para a estrada.
As folhas de outono caiam e coloriam o chão, como usualmente. No entanto, as cores vermelhas me lembravam da perna de Charlotte coberta de sangue. As cores alaranjadas e amareladas me faziam recordar das labaredas enormes de fogo, que impedia que eu saísse do teatro. Até mesmo o outono, minha estação preferida, estava sendo capaz de me lembrar dos momentos mais desesperadores que eu já vivenciara. Ótimo.
- Tudo vai ficar bem, . - minha fala ecoou no carro, enquanto eu o estacionava na escola. Era hora de encarar minha vida.
O estacionamento já estava vazio, já que eu estava um pouco atrasada. A diretora estava assumindo minha classe até que eu me sentisse à vontade para retornar, portanto, não haveria empecilhos para minha volta.
Nos corredores, eu via algumas crianças olhando para mim com olhares estranhos e, até mesmo, membros do corpo docente me lançavam feições preocupadas. Você não é um monstro, . Eles só não sabem pelo o que você passou. Aquele foi meu pequeno mantra, que eu repetia interminavelmente em minha cabeça, enquanto seguia para o meu destino. Quando adentrei a sala, a diretora já estava iniciando a aula e deu um sorriso ao me ver.
Finalmente alguém que não parecia estar com medo de mim.
- Olá, ! Como é bom tê-la conosco novamente. - ela disse e conversou comigo por alguns minutos, antes de, finalmente, me deixar sozinha com minha classe.
- Bom dia, turma. - percebi que minha voz não estava nem um pouco próxima da animação que sempre era evidente nela. - Eu senti muita saudade de vocês. - aquilo não era mentira. Eu odiava ficar longe daqueles baixinhos.
Após uma conversa mais descontraída com os alunos, decidi começar a aula em si. Comecei a pegar alguns desenhos que trouxera em uma pasta para que pudesse distribuir na turma. Eu evitava olhar para um lugar em especial na classe. Eu não podia nem pensar em desmoronar em frente aos meus alunos, o que aconteceria caso eu olhasse para o local proibido.
- Ai! - um gritinho fino me alertou e deixei os desenhos de lado, olhando ávida para a classe, perguntando, com os olhos, o que tinha acontecido. - Eu furei com a tesoura. - a voz que gritara disse, olhando para a mão na qual sai um pouquinho de sangue.
Fui até o menininho para ajudá-lo a cuidar do machucado. Ele estava relutante para dar-me sua mão e eu pensei que ele estava com medo de que fosse doer. Levantei meus olhos, com um sorriso pequeno, tentando lhe falar, com os olhos, que tudo ia ficar bem. No entanto, quando olhei bem no fundo dos olhos da criança e vi o terror dentro deles, percebi que interpretara tudo errado. Ele não estava com medo de doer. Ele estava com medo de mim.
Ergui-me rapidamente e senti um pequeno ardor nos meus olhos. Eu era sim, um mostro. As crianças agora tinham medo de mim porque eu matara uma delas. O que eu estava fazendo ali, meu Deus? Qual era o meu problema? Não consegui mais evitar e acabei olhando para o lugar proibido da sala: a mesa de Charlotte. Vazia. Como para sempre iria ficar. Por minha culpa.
Eu não peguei meus materiais em cima da mesa do professor, não me despedi da turma, não olhei para trás. Eu apenas saí da sala, correndo em direção ao carro. Eu nunca deveria ter saído de debaixo do cobertor.
- Eu queria conversar algo sério com você, . - me chamou naquela noite, enquanto me abraçava.
Concordei com a cabeça, dando-lhe a entender que eu estava escutando.
- Eu quero que você saiba que eu estou aqui por você. - ele me fez olhar em seus olhos, acariciando minhas bochechas, do jeito que ele sabia que eu amava. - Sempre estarei, ok?
- Eu sei. - concordei com um sorriso pequeno.
- Mas eu acho que você precisa de mais alguém para te ajudar a passar por isso, sabe? - ele estava cuidadoso, com medo de me quebrar. - Alguém que entenda mais sobre essa situação. Um profissional.
- Não vai adiantar. - dei de ombros, encolhendo-me envolta de mim mesma, tentando me proteger. Eu tinha que juntar os pedaços que haviam sido quebrados novamente naquela tarde, quando decidira ir à escola, mas estava sendo impossível. - Eu não consigo falar sobre isso. É como se fosse irreal eu dizer em voz alta tudo o que estou sentindo.
- Meu amor. - ele encostou sua testa na minha, ainda acariciando minha bochecha e, consequentemente limpando minhas lágrimas. - Você tem que tentar. Eu quero que você fique bem de novo, feliz de novo. Ao menos pense no assunto, ok?
Concordei com a cabeça. Eu iria pensar. Eu tinha que me dar uma chance. Se pensava que seria melhor, eu precisava considerar os pós e os contras, afinal, ele só tentava fazer o melhor para mim.
- Mamãe decidiu fazer uma sopa hoje. - sorriu quando viu meus olhos brilharem um pouco. Eu amava a sopa que Delphine fazia. - Vou trazer um prato bem quente para você.
Quando saiu, eu me recostei na cabeceira da cama e fechei meus olhos. Minha cabeça doía fortemente. Eu queria muito ao menos cochilar um pouco.
Era fato que eu não dormira muito bem nos últimos dias. Era como se bastasse eu fechar os olhos para os monstros chegassem até a parte mais profunda da minha mente, roubando-me de mim mesma.
Não havia sido diferente naquela noite. Eu cochilara, não sabia por quanto tempo, mas acordara trêmula e totalmente assustada. Eram meus piores pesadelos colocados uns atrás dos outros, me amedrontando até que eu não conseguisse mais suportar.
" - Não me deixa, tia. Por favor, não me deixa."
A voz de Charlotte ainda ecoava em meu subconsciente. Percebi que estava aos prantos novamente e procurei por , para abraçá-lo e tentar esquecer de tudo aquilo, porém, ele não estava na cama.
- ? - sussurrei, levantando-me e tateando no escuro. Eu não conseguiria ficar no quarto, pois estava me sentia mais fraca do que nunca naquele momento. Para piorar, chovia fortemente do lado de fora da janela e, como eu morria de medo de trovão, era sensato que eu saísse dali o mais rápido possível antes que acordasse a vizinhança inteira com meus gritos de pavor.
Eu lembrava de que, quando eu era pequena, quando algo me assustava, eu me escondia no armário da escada. Nem sempre meus pais estavam em casa para que eu pudesse me arrastar até a cama deles, então o armário era sempre minha alternativa de confiança para esconderijo de trovões, monstros, ladrões etc. Eu me sentia como o próprio Harry Potter quando fugia para lá e, por isso, decidi seguir para lá.. Eu precisava me sentir como uma criança inocente novamente e não havia jeito melhor para isso.
- Brilha, brilha estrelinha... - a voz de Max vinha de dentro do armário, cantando uma das músicas que eu mais gostava, quando criança. Eu não tinha ideia de que o encontraria por lá naquela hora da noite. Se Delphine o visse fora da cama, com certeza ela iria ter um ataque.
- Max? - chamei na porta, ao bater no batente.
- Oi. - ele abriu-a, após alguns segundos, sorrindo para mim e deixando-me passar.
- O que você está fazendo no armário nesse horário?
Ele ficou em silêncio por alguns segundos e acabou suspirando de frustração quando percebeu que eu não desistiria:
- Jura que não conta pra mamãe? - ele me olhou com os olhos pidões, com medo de ser descoberto. Qual a pior coisa que um menino de 7 anos podia fazer?
- O que você está escondendo, Max? - não ser curiosa nunca foi uma opção na minha personalidade.
O garotinho retirou suas mãos das costas, revelando um filhotinho de gato ao qual ele acariciava os pelos com carinho.
- Mamãe não deixa a gente ter bichinhos aqui porque eles fazem muita bagunça. - Max deu de ombros. - Mas eu faço muita bagunça e continuo morando aqui.
Aquela foi a primeira vez que sorrira de verdade desde o acidente.
- Ele estava sozinho lá fora e eu o trouxe para dentro. Mamãe ainda não percebeu. - ele deu uma risadinha. - Sou muito bom escondedor. Acho que vou virar um espião quando crescer.
Okay. Eu, definitivamente, gostava de passar o tempo com Max. A pureza da mente dele parecia amenizar um pouco o peso que eu carregava em meus ombros.
- O que você está fazendo aqui, ? - ele perguntou.
- Ahn...- como explicar para ele? - quando eu ficava com medo, quando eu era do seu tamanho, eu me escondia no armário para os monstros não me pegarem. Hoje fiquei com medo e corri pra cá.
- Você ainda tem medo de monstros? - a face de surpresa dele era maravilhosa. - Eu posso matar eles pra você. - ele disse, confiante. - Não precisa se esconder mais.
- Meus monstros não são desse tipo. - tentei explicar. - Eles não vivem debaixo da cama.
- Não?
- Eles estão presos na minha mente, sabe?
- Ah! - Max ficou um tempinho em silêncio, mas logo voltou com uma pergunta bem séria: - Por que você não solta os monstros da sua cabeça? Seria mais fácil de matar eles, .
- Seria sim, meu amor. - sorri e senti um abraço forte e repentino de Max. Ele não tinha medo de mim. Ele não me considerava uma assassina. Sorri com a percepção. - Você acredita que eu consiga lutar com os monstros sozinha? - perguntei, brincando com ele e mexendo em seus cabelos encaracolados. Era bom ter a confiança de uma criança. Eu me sentia mais forte.
- Quem disse que você está sozinha? Eu, , mamãe e o gatinho de botas - ele apontou para o filhote quando disse o último nome - vamos ajudar você a matar todos eles.
Meus olhos encheram de lágrimas.
- Eu te amo muito, sabia, dinossaurozinho? - o apartei mais em meu abraço.
- Eu também te amo, dinossaurozona.
Gargalhei. Que som estranho! A quanto tempo não sentia aquele trovão gotoso em minha garganta? Respirei fundo. Eu iria procurar ajuda. Eu não estava sozinha. Eu iria ser feliz de novo e Charlotte estaria no céu, balançando suas tranças enquanto corria em um campo cheio de flores.
Ok, era um exagero, mas eu sabia que, ao menos um pouco daquele pensamento positivo, podia virar realidade.
Eu já estava na terapia há exatas duas semanas. Em comparação com a maneira que eu me sentia dias atrás, eu estava infinitamente melhor. Eu sorria mais, me alegrava mais e amava mais. Eu não chorara ou tivera pensamentos destrutivos a quase uma semana e, por isso, já me sentia vitoriosa.
Naquele dia, me buscara na psicóloga. Ele conversara com ela em particular por alguns minutos antes de irmos embora. Eu estava ansiosa para poder voltar definitivamente a dar aula, daqui a uma semana - de acordo com a doutora que me atendia. Enquanto voltávamos para casa, eu observava as cores do outono. Finalmente eu não via mais dor nas cores das folhas secas. Eu estava, aos poucos, voltando a ver a vida como sempre a vira.
- Eu estava conversando com a doutora sobre a gente ir visitar o túmulo da Charlotte hoje. - disse algum tempo depois que o silêncio se instalara no carro. - Você lembra que tinha me perguntado se seria algo bom de se fazer?
- O que ela disse? - perguntei, curiosa. Agora que eu estava um pouco melhor, eu queria me despedir de Charlotte da maneira correta. Com dignidade e lhe pedindo perdão do modo como ela merecia.
- Ela disse que a gente podia ir sim. Parece que é um ótimo momento pra ajudar no seu tratamento. - ele deu de ombros.
- Vamos, então? - perguntei, um pouco animada demais para visitar um cemitério.
- Claro. Eu trouxe o violão para cantar algumas músicas para ela, o que acha? - perguntou, um pouco constrangido.
- Seria perfeito. Ela sempre amava as aulas de música da escola. - sorri ao lembrar-me do sorriso enorme de Charlotte. Ela não morrera por minha culpa. Eu fizera o máximo para salvá-la. Eu sabia disso agora. Mas, ainda assim, era difícil concordar em cem por cento com aquilo.
Quando chegamos ao túmulo de Charlotte, sentei-me na grama, perto de sua lápide. Silenciosamente, disse tudo aquilo que queria ter dito antes dela ter morrido. Eu pedi perdão por não ter sido forte o suficiente, por não ter ficado com ela o tempo todo. Era reconfortante, sem sombra de dúvidas, me sentir menos culpada por tudo.
começou a cantar algumas canções de criança e eu não consegui impedir algumas lágrimas de descer em meu rosto. Era impossível segurar em uma situação daquelas.
Eu não sou culpada, lembrei-me. Eu fizera tudo o que estava a meu alcance.
- Eu compus uma música para você alguns dias atrás, ursinha. - disse, tirando-me dos meus devaneios.
- Sério? - eu sempre amava as composições dele. Eram maravilhosas. - Será que você pode cantá-la?
Ele sorriu e concordou, um pouco relutante. Ele sempre sentia vergonha em mostrar suas músicas originais e eu sempre tinha vontade de apertar as bochechas dele quando elas começavam a enrubescer.
Os acordes da melodia eram suaves como o vento. Eu sentia a brisa de outono balançando meus cabelos e conseguia sentir o cheiro de grama do cemitério. Não era o lugar ideal para que eu escutasse uma música dedicada a mim, mas era o lugar onde eu precisava estar.
Left yourself in your war path
Lost your balance on a tightrope
Lost your mind trying to get it back"
A música, em seu total, descrevia toda o medo que sentira nas últimas semanas. Toda a dor e todo o receio que estava escondido, com as garras fincadas em meu coração.
Your string of lights are still bright to me
Oh, who you are is not where you've been
You're still an innocen"
Eu era inocente. A culpa não havia sido minha. Era ótimo ouvir alguém em quem eu confiava tanto afirmar isso para mim. Minha luz não havia se apagado junto com o fogo do incêndio. Eu ainda era eu mesma. Eu ainda existia. Ele ainda me amava, eu tinha certeza, mas, mais importante: eu voltara a me amar.
It's never too late to get it back"
Todas as estrofes possuíam partes de mim que eu nunca esqueceria. Eu passara por tudo aquilo, mas quem eu era não era definido pelo o que eu tinha feito. Os monstros não me amedrontavam mais. Eu tinha perdido equilíbrio, mas eu o estava recuperando. Era assim que eu voltaria com minha vida aos trilhos: acreditando, do mesmo modo que uma criança acredita.
- Você é tão forte, ursinha. - disse, alguns minutos depois de me abraçar forte. Havia lágrimas nos meus olhos, mas eram apenas de felicidade. Eu estava contente por perceber que eu recuperaria tudo o que tinha perdido. - Eu te amo tanto.
- Eu também te amo, . Muito.
Eu sabia que não estava curada. Depressão não era algo que desaparecia da noite para o dia. Mas, com ali me abraçando e com a certeza de que minha família - , Max e Delphine - nunca iria me abandonar, eu podia afirmar que eu já estava extremamente feliz. E acredite em uma coisa: uma felicidade dessas não era fácil de se encontrar em qualquer lugar.
Fim.
Nota da autora: Olá, gente! Como estão?
Essa minha short tinha começado com uma ideia completamente diferente, mas, um pouco antes de eu me sentar para escrevê-la, algo mudou em minha perspectiva. Eu estava na fila do show de Frozen com minha irmãzinha e percebi, após um acontecimento super comum, que havia outra ideia que se esgueirava em meu subconciente, a qual seria o novo fio para a história de Innocent. Eu não posso mentir. Eu realmente amei descrever todos os sentimentos dessa principal. Amei cada detalhe, cada personagem dessa fic. Foi uma experiência mais do que especial.
Gostaria de agradecer a minha melhor amiga, Madu, por sempre me ajudar em meus surtos, dizendo-me que escrevo bem (mesmo eu sabendo que isso é mentira) e a você, leitor(a), que dedicou um tempinho do seu dia para ler minha fic. De verdade, isso significa o mundo para mim.
Meu muito obrigada e comentem, para deixar uma escritora feliz! <3
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Essa minha short tinha começado com uma ideia completamente diferente, mas, um pouco antes de eu me sentar para escrevê-la, algo mudou em minha perspectiva. Eu estava na fila do show de Frozen com minha irmãzinha e percebi, após um acontecimento super comum, que havia outra ideia que se esgueirava em meu subconciente, a qual seria o novo fio para a história de Innocent. Eu não posso mentir. Eu realmente amei descrever todos os sentimentos dessa principal. Amei cada detalhe, cada personagem dessa fic. Foi uma experiência mais do que especial.
Gostaria de agradecer a minha melhor amiga, Madu, por sempre me ajudar em meus surtos, dizendo-me que escrevo bem (mesmo eu sabendo que isso é mentira) e a você, leitor(a), que dedicou um tempinho do seu dia para ler minha fic. De verdade, isso significa o mundo para mim.
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