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Capítulo Único

Os gritos da torcida preenchia o ambiente. O frio do gelo misturado com o calor do exercício físico sempre causava uma sensação estranha, e naquele dia ainda existia a euforia de mais uma Stanley Cup em mãos. Vários dos seus companheiros de times vinham cumprimentá-lo, mas não se sentia o responsável por aquilo.
Nenhuma daquelas sensações eram novidades para ele. Hockey estava em seu sangue desde que se entendia como gente e, apesar de saber que estaria estampado em diversas mídias sua foto levantando a taça, o capitão do Pittsburgh Penguins não sentia que era ele ali. A impressão era de que ele estava assistindo outra pessoa naquela festa. Seu corpo estava ali, mas sua alma estava longe.
Naquele momento, se sentiu que não pertencia a si mesmo. Era estranho pensar que uma lenda viva aos 30 anos de idade não se reconhecia ao olhar no espelho. Tinha algo errado e ele só estava cansado de todos apontarem para ele como se ele fosse algum ser místico ou talvez um super herói.
Na verdade, fazia um bom tempo que não sabia o que era ser humano. Sair pelas ruas e sentir o ar fresco, tomar uma cerveja em um bar ou até mesmo ir ao cinema. Parecia que cada mínima coisa da sua vida precisava ser milimetricamente programada. Nada poderia sair do lugar da vida do que talvez fosse o maior jogador de hockey de sua geração.
Ele respirou fundo mais uma vez antes de ir para o vestiário e deixar aquela festa para trás. Aquilo não poderia ser para ele. O Pittsburgh Penguins era maior do que .
Sem ninguém notar, ele tomou banho, pegou sua mochila e saiu pela porta da frente usando um boné e um moletom para se disfarçar. Por sorte, conseguiu pegar o taxi sem ser reconhecido.
— Para onde? — o simpático velhinho perguntou.
— Não faço ideia. Só continua dirigindo, por favor.
— Parabéns pelo título. — o taxista tinha reconhecido o jogador que apenas murmurou um “obrigado” e continuou em silêncio como se aquilo não fosse grandes coisas.
Todos os dias tinha de ouvir crianças o elogiando, dizendo que ele era um ídolo e que queria ser como ele quando crescessem. Ao mesmo tempo que isso era revigorante também era assustador. Eles o olhavam da mesma forma que olhavam para o Capitão América, e nem sequer era americano.
— Você conhece algum bar em um subúrbio que não seja frequentado a essa hora? — disse finalmente dando um direcionamento para o taxista. Teoricamente ele já estava de férias e poderia se permitir algumas cervejas.
— Conheço um lugar há uns 40 minutos daqui. Ele fica aberto a noite toda, mas não posso te prometer que não será reconhecido.
— Tudo bem.
O resto do caminho foi percorrido em silêncio. se concentrou no barulho das rodas do carro passando no asfalto e tentou de tudo para não pensar. Ele sabia que aqueles pensamentos não eram justos, mas era difícil controlar o que estava tão impregnado em sua mente.
XxxX

A fachada do bar era extremamente rústica. A luz de neon vermelha brilhava com o A do “Bar” de ’s bar faltando. Ao colocar o pé no degrau que dava para a porta, a tábua de madeira rangeu. estava com medo de onde estava se enfiando e como voltaria para casa, mas talvez aquele fosse o lugar que lhe mostraria como voltar a ser humano.
Por dentro, o ’s bar não lembrava em nada a sua parte externa. O lugar era extremamente bem cuidado com mesas de madeira distribuídas em um grande salão. A maioria delas estava vazia, um grupo de amigos bêbados riam alto a esquerda e um senhor de idade dormia em cima da sua caneca de chop à direita. olhou para o balcão à sua frente e resolveu ir direto até ele. O máximo que iria acontecer era tomar uma cerveja quente e ir embora.
Mas, assim que se sentou no banquinho de alumínio, percebeu que talvez estivesse exatamente onde deveria estar.
— Eu sou a e comando isso aqui. O que você deseja? — Uma moça sorridente com o cabelo castanho batendo quase na cintura segurava um copo de vidro o secando. Ela não parecia nada como uma dona de bar, muito menos um no meio do nada.
não sabia se ela o tinha reconhecido e simplesmente ignorado o fato que ele definitivamente não deveria estar ali, ou se aquele era o tipo de lugar que simplesmente não se perguntava o que você queria à uma da manhã.
— Uma cerveja, por favor.
— Tem certeza? Você está com cara de quem precisava de algo mais forte.
— Só a cerveja mesmo. Ah, você não teria um saco de gelo, não é? — ele começava a sentir as dores recorrentes a uma partida de hockey e logo mais sentiria seu olho roxo por causa da briga.
Finais de Stanley Cups nunca eram fáceis. Sempre teria alguma briga e, se eram os Pens a jogar, certamente estariam no meio. Ele era conhecido pela sua genialidade no gelo, mas também por não pensar duas vezes em largar as luvas e ir para cima do adversário. E, por ser , a NHL costumava deixar passar batido. Mais uma vez ele era tratado como se fosse algo além de humano, como se o que ele fazia no gelo o dava direito a algumas regalias, como a vez em que arrancara um dedo de outro jogador e o jogo continuou como se nada tivesse acontecido.
Por muito tempo ele aceitara todos aqueles benefícios, mas por algum motivo, naquela noite ele não queria ser , o gênio. Ele queria ser apenas , o humano.
— Aqui. — colocou o caneco com cerveja e o saco de gelo em sua frente.
Primeiro colocou o gelo na sua mão direita. O frio fez com que os pequenos cortes ardessem um pouco, mas ele já estava acostumado. Era melhor arderem agora do que a mão acordar tão inchada que não seria possível usar a luva no treino. E ainda assim, ele não levaria bronca do treinador.
Experimentou a cerveja que parecia algo completamente diferente do que já tomara na vida. Tinha um gosto de liberdade misturado com desobediência. poderia ser um garoto brigão, mas ele jamais havia sido desobediente. Ele nunca tinha fugido, até aquela noite.
, é não é? — a garota confirmou olhando atentamente para o jogador. — Essa é a melhor cerveja que eu já tomei na vida.
— Obrigada. É da cervejaria da minha família. — pela primeira vez na noite pareceu tímida. Ela não estava acostumava a receber elogios, principalmente vindo de clientes novos. Quando faziam comentário, geralmente era sobre sua beleza, sobre ela ser uma mulher administrando o bar (mas não como se isso fosse uma coisa positiva). Aquela era a primeira vez que um homem elogiava seu trabalho. — Meu avô inventou essa receita e ela foi passada de pai para filho. Infelizmente meu pai não pode mais continuar administrado o bar por causa de um acidente. Tive que largar a faculdade e voltar para cá e dar sequencia no negócio. Mas eu não reclamo sabe? Às vezes acho que sou mais feliz aqui do que se tivesse dado continuidade à faculdade de medicina.
assustou com a fala da garota. Não sabia se tinha sido a forma tão natural como ela contara sua história de vida, como ela tinha se aberto para um estranho ou se tinha sido o tom banal em sua voz. Para , parecia que era uma coisa normal abandonar uma faculdade de medicina e passar todas as noites sozinha em um bar, talvez até mesmo correndo risco de vida.
era a heroína ali, não ele. Mais uma vez, ele sentiu que não merecia toda a atenção que recebia.
— Por que ? — perguntou.
Do outro lado do balcão puxou um banquinho e uma garrafa d’água. Ela conhecia aquele tipo de cliente: alguém que estava fugindo da sua realidade e precisava conversar. Talvez aquele homem tenha encontrado a sua esposa com outro e se sentisse o pior ser humano do planeta, ou talvez tenha sido mandado embora e não sabia mais como seguir sua vida. De qualquer forma, sabia que era alguém que não estava afim de desabafar, ele queria escutar. Queria que alguém lhe dissesse que não era a pior pessoa do planeta terra.
Em hora nenhuma passou pela cabeça de que quem estava a sua frente era . Muito menos que o que se passava em sua cabeça não tinha nada a ver com problemas, muito menos por ele estar se sentindo um ser humano ruim. A verdade era que ele mal se sentia humano.
era o nome da minha avó. Ela era a alma gêmea do meu avô. Diziam que o quanto ele era teimoso, ela era paciente. O quanto ele era brigão, ela buscava manter a paz. Quando ela morreu no parto do terceiro filho, meu pai, meu avô perdeu o rumo. Ele bebia demais e até ameaçaram tirar a guarda dos filhos. Então ele percebeu que não poderia perder a sua família também e abriu o ’s. Desde então esse bar existe para acolher todos que precisem de um porto seguro por uma noite.
não sabia o que dizer. Talvez não tinha sido por acaso que ele encontrara aquele bar.
— Você tem uma história de vida curiosa, .
— Ah, não tenho não. Tenho duas pernas, dois braços, saúde, uma casa e um trabalho que me dá tudo que eu preciso. Não era o que eu planejava para minha vida, mas as coisas ás vezes dão certo por linhas tortas. — ela colocou a franja atrás da orelha e tomou um gole da sua água.— E você? O que te traz aqui essa noite?
— Eu acabei de ganhar um jogo.
— Parabéns! O que você joga? — tudo sobre aquele homem de cabelos escuros e olhos castanhos era um mistério para ela.
riu de forma irônica frente à pergunta. Ela realmente não sabia quem ele era. Provavelmente era a única americana que não fazia ideia de quem era .
— Alguma vez você já sentiu que não era humana? Como se não merecesse todas as coisas boas que acontecem na sua vida? — olhou para de uma forma que ela pode sentir a dor que ele emanava e não tinha nada a ver com a mão machucada.
— Ser humano não é questão de merecer ou não. Ser humano é saber que você não está sozinho no mundo e fazer algo a respeito disso. É sair da sua zona de conforto e fazer o que é certo para as pessoas ao seu redor. Às vezes, é permitir que a felicidade de outra pessoa seja mais importante que a sua.
Algo naquelas palavras de fez com que sorrisse. Não era porque ele era privilegiado que ele não era humano. Ele deixaria de ser no momento em que aquilo fosse a única coisa importante da sua vida, mas ele sabia que não era. Hockey era grande parte do que era, mas ele também tinha uma parte que a mídia não sabia, algo que ele deixava bem longe dos holofotes.
, qual a chance de você viajar comigo para o Canadá? — ele deu o melhor sorriso que poderia para tentar convencer a mulher na sua frente.
— É o que?
— Eu sei que acabamos de nos conhecer, mas eu sinto que preciso te mostrar uma coisa.
começou a rir tão alto que o velho que dormia em cima da caneca de cerveja acordou. Ela o mandou para casa ainda rindo das palavras de e aproveitou que tinha saído de trás do balcão e resolveu fechar o bar, pedindo que o grupo de jovens também fossem embora.
Portas trancadas, ela virou para de braços cruzados e perguntou:
— Qual o seu nome mesmo? — até aquele momento ele não tinha percebido que não se apresentara. Ponderou em mentir, mas sabia que não teria motivos para isso, principalmente se queria convencer a fazer aquela viagem.
. — esperou que seu nome fosse fazer algum efeito na mulher, mas ela nem sequer arregalou os olhos.
— Escuta aqui, senhor , eu não faço ideia do que está se passando com você, mas nada te dá o direito de chegar em uma desconhecida a convidando para uma viagem. Canadá? Por um acaso você é um sequestrador ou algo do tipo?
— Algo do tipo. — foi tudo que ele se limitou a dizer antes de cair na gargalhada. — Me desculpe, você tem razão. E eu devo estar parecendo ainda mais louco, mas não se preocupe. Não sou nenhum assassino, sequestrador, pedófilo ou qualquer coisa que possa aparecer nas manchetes amanhã. — ele respirou lembrando-se que aquilo não era verdade. — Para ser sincero, meu nome vai sim aparecer nas manchetes dos jornais amanhã, mas é apenas porque meu time ganhou um jogo.
— De novo você com esse jogo. Jogo de quê, pelo amor de Deus?
Ele pegou o celular do bolso e entregou para ela com a tela desbloqueada.
— Vai ser melhor se você jogar meu nome no Google.

Na próxima meia hora tudo que fez foi rolar a tela do celular. Ela não conseguia acreditar quem era aquele homem e muito menos as circunstâncias que o levara até seu bar. tomou mais duas cervejas e ele começava a sentir o efeito do álcool. Ele estava com medo da reação que ela teria ao descobrir que ele não era um humano comum, ele era uma lenda. Ele estava fazendo história.
— Então? — ele perguntou quando ela finalmente abaixou o celular e olhou para ele sem uma expressão de verdade no rosto.
— Você é uma lenda do hockey. Você está fazendo algo que a maioria de nós jamais iremos fazer. Você está fazendo história, .
— De que adianta fazer história se eu nunca me senti tão sozinho? Meus companheiros de time estão celebrando mais uma taça da Stanley Cup e tudo que eu consegui fazer foi fugir.
— Você não deveria. E fazer história não te faz mais ou menos humano do que qualquer um de nós, apenas significa que, daqui a cem anos, as pessoas ainda vão ler sobre você. Todas essas figuras histórias que lemos hoje também foram humanos. Eles também se cortaram em brigas, também tiveram seus corações partidos e com certeza tomaram um porre em um bar. Nada disso te faz diferente do resto de nós. Aliás, essas diferenças que nos fazem humanos.
— Quais diferenças?
pegou uma caneta e um guardanapo e começou a desenhar círculos. Um deles ela coloriu de preto e o outro fez risquinhos na transversal.
— Esse círculo é você. Você, em algum momento, escolheu ser um jogador de hockey. Você, por algum motivo, foi escolhido para inspirar diversas crianças a não desistirem dos seus sonhos, seja se tornarem um atleta profissional ou um médico. Todos esses outros círculos são as pessoas que você conviveu até chegar aqui. Seus pais que com certeza foram os primeiros a te apoiarem, seus irmãos, seus amigos e até mesmo seus companheiros de times. hockey é um esporte coletivo e, como tal, não se constrói sozinho. Você não está sozinho Sid, você está cercado de pessoas tão humanas quanto você. Tão incríveis quanto você.
— E este outro círculo? — ele apontou para o círculo listrado.
— Este representa as pessoas que você ainda vai conhecer. Aquelas que você ainda vai inspirar e vidas que irão mudar porque um dia, um garoto acreditou que ele poderia fazer o impossível e, ao invés de ficar sentado na frente da televisão como o resto de nós, ele foi lá e fez. Você é humano e exatamente por isso que você não precisa aguentar tudo isso sozinho.
sorriu e agradeceu à . Ele agora não se sentia mais tão sozinho. Ele só precisava aprender a pedir ajuda.

Na manhã seguinte acordou com uma dor de cabeça insuportável. Ele estava no seu quarto de hotel e, ao olhar o celular, descobriu que tinha diversas chamadas não atendidas do técnico. Estava atrasado para entrar no ônibus!
O tão necessário banho teria que ficar para quando chegasse a Pittsburgh, naquele momento ele só conseguiu fechar a mala e descer o elevador. Sentou-se ao lado do técnico pedindo desculpas. Ele não foi repreendido e ninguém o olhou com uma cara estranha. Aquela era a vantagem de ser e era algo que ele simplesmente precisava aceitar.
No caminho para o aeroporto reconheceu a fachada daquele bar, mas agora nenhuma luz estava na porta e tudo parecia muito mais abandonado do que na noite anterior. Ele sorriu ao se lembrar de e comentou com a comissão técnica à sua volta.
— Este bar é um dos melhores que já fui em minha vida.
— Quando você foi aí? — o motorista do ônibus escutou o jogador comentado e achou estranho.
— Ontem à noite. Ele parece abandonado, mas por dentro tem uma vibração completamente diferente. E a dona, , é sem dúvida uma pessoa iluminada.
, você deve ter sonhado, amigo. Esse bar está abandonado desde a década de 40. Ninguém nunca conseguiu vender o imóvel. Parece que ele pertencia a um ex-militar que voltou da guerra paraplégico. Só existem boatos sobre os donos originais.
tentou explicar que nada daquilo fazia sentido, que ele tinha ido ali à noite anterior, mas se conteve a pegar o celular e digitar ’s Bar. Toda a história checava com o que o motorista do ônibus tinha acabado de contar.
olhou para a janela, eles já tinham muito se afastado de onde deveria ser o bar, já era apenas uma das suas memórias. Talvez ele tivesse sonhado com tudo aquilo. Ou talvez, não fosse humana. Nada daquilo jamais faria sentido, - a não ser as palavras da garota: Ser humano não é questão de merecer ou não. Ser humano é saber que você não está sozinho no mundo e fazer algo a respeito disso.

Seu primeiro destino de férias foi Cole Harbour, no Canadá. Sua cidade natal. Era para lá que ele queria ter levado e, por algum motivo, ele sabia que ela estava ali com ele. Bateu a campainha na casa de seus pais e esperou até que sua mãe abrisse a porta com um sorriso.
Ali estavam as pessoas que tinham lhe dado a vida. E então ele soube, ele era sim humano, poderia ter algumas habilidades excepcionais, mas apenas porque aquelas duas pessoas a sua frente o tinham proporcionado isso.
Como é se sentir humano? É se sentir amado.




Fim!



Nota da autora:Confeso que escrever uma história com um time que você odeia não é fácil, mas ao mesmo tempo, está música pareceu se encaixar. A primeira vez que escutei ela, eu estava no carro da minha mãe e imeditamente veio um roteiro inteiro na cabeça. Mas é claro que, como sempre, não anotei e esqueci depois. Deixei passar o tempo para escrever esta história e tudo saiu o oposto do que eu tinha planejado! Espero que vocês tenham gostado dessa história que é muito mais uma reflexão do que um conto em si.



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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