Última atualização: 31/05/2018

Capítulo Único

permanecia de olhos fechados, sentindo a leve brisa que entrava pela janela acariciar seu peito descoberto. Sorriu levemente, aproveitando todo o prazer que aquele arrepio causava à sua pele. Desde pequena, tinha uma paixão inexplicável pelo frio contra seu corpo.
- Pensei que estivesse dormindo - a voz masculina ecoou pelo ambiente.
- Não. Estava só aproveitando o tempo.
levantou seu corpo, apoiando os braços na cama a fim de levantar o tronco o suficiente para vê-la. Poderia passar dias inteiros apenas apreciando todos os minuciosos detalhes de seu rosto. Usaria todos os segundos que o destino lhe permitisse só para memorizar as marcas em sua testa e as dobras que os lábios dela faziam quando gargalhavam. Todo o tempo do mundo não seria o suficiente para que fitasse aqueles olhos brilhantes e a ponta tão levemente torta de seu nariz que quase ninguém percebia aquele detalhe. Mas ele sabia. Ele percebia. Ele se lembrava de cada marca de expressão e de cada variação de cor de suas bochechas com uma facilidade imensa.
O rapaz sorriu, enquanto corria as pontas de seus longos dedos pela barriga nua dela, desenhando caminhos abstratos por todo seu corpo. Os dois riam quando ela sentia arrepios ou mesmo cócegas. Os toques eram íntimos de um jeito não sexual - por mais que muitas vezes também os fossem. Eram como velhos exploradores redescobrindo o mapa do tesouro.
-Tem uma garrafa de Dom Perignon Rosé aqui no quarto - segredou.
- E quando não tem? - perguntou entre risadas ao se levantar e procurar suas roupas. - Sabemos bem que um desses não pode faltar para Vossa Alteza.
mostrou um dedo do meio sobre os próprios seios.
- Mas você bem adora essas pequenas vantagens da minha realeza não real.
- E odeio profundamente várias outras. - Ele bufou, frustrado. - Incluindo ter que sair como um fugitivo em plena madrugada. É ridículo ter que me comportar o tempo todo como um criminoso por causa do preconceito idiota da sua família.
se virou sobre o colchão, bufando por saber que ele estava certo e ela não tinha meios - e nem vontade - de defender o comportamento idiota dos próprios pais.
- Eu sei, mas nós ainda vamos dar um jeito de mudar isso.
- Não vamos. Nada que você diga vai fazer com que eles de repente aceitem que a filha perfeita dá mais alta patente social mantenha um relacionamento com o filho do jardineiro da família.
- Só precisamos chegar ao ponto em que a opinião deles seja verdadeiramente descartável. Tenho dois meses até que todas as pendências financeiras e burocráticas da agência se resolvam, daí estarei oficialmente livre de toda a chatice manipuladora dessa família. Quero distancia dos assuntos políticos do meu pai.
- Sei que a imagem de primeira filha deve ser complicada - caçoou -, mas tenho a leve impressão de que você está tentando apagar a pior parte disso tudo.
- A minha mãe. Eu sei. - soltou a cabeça com força contra o travesseiro. - Também darei um jeito nisso. Por favor, meu amor, só confie em mim. Eu sei que é difícil, mas eu posso consertar e criar um ambiente em que possamos ficar juntos e enfrentar seja lá quem for. Tudo o que eu preciso é de mais esse tempo.
- Se já te dei tantos anos, por que não esperaria mais dois meses? Mas não vou ficar aqui por mais tempo que isso, sendo mais um de seus empregados que vêm na hora que você bem entende e você trata como bem entende.
- , pelo amor de Deus, sabe que você é tudo que eu tenho! Jamais te trataria assim. Eu sequer trato os funcionários da casa e da agência dessa forma e você sabe bem disso. Está sendo injusto comigo.
O rapaz respirou fundo, esfregando as pálpebras com tanta força que quase sentia sua irritação pulsar sobre seus globos oculares. Sua própria circulação estava lhe dando nos nervos.
- É melhor eu ir. Amanhã nos falamos - anunciou, virando-se para a varanda já tão conhecida por seus pés.
sequer teve tempo de dizer que sim ou não ou qualquer outra coisa que a fizesse parecer menos horrível. Ele simplesmente se foi e ela não poderia jamais dizer que não estava acostumada com aquilo.

*****

estaria extremamente estressada se não estivesse tão ansiosa. Precisaria ter uma conversa com seus funcionários sobre o uso correto de uma antiga tecnologia muito útil: o relógio. Digital, analógico, fosse o do celular ou o do tablet, ele marcava as horas por todo canto e não era nem um pouco difícil estar pronto para uma reunião marcada para as dez da manhã com uma antecedência de duas semanas. Perguntava-se se deveria ser uma chefe mais rígida e aplicar medidas corretivas, mas logo afastava seus pensamentos por saber que aquela jamais seria sua postura. Talvez sua mãe estivesse certa ao dizer que ela não servia para cargos de chefia. Talvez ela não tivesse a disciplina e a postura necessária para ser verdadeiramente respeitada e obedecida.
- Droga, pare de pensar nisso - murmurou para si mesma. - É só a sua ansiedade falando. Hoje é um dia importante e você vai se sair bem.
Respirou profundamente, soltando o ar da forma mais controlada que pôde, na tentativa de corrigir também a sua frequência cardíaca. Repetiu o processo até se sentir minimamente mais tranquila. Por sorte, seu tempo coincidiu com a entrada de sua secretária que vinha anunciar a chegada dos funcionários com uma voz melodiosa que quase a fez se esquecer de toda a seriedade que aquele momento propiciava. Às vezes, sentia uma gigantesca vontade de descobrir a fórmula da felicidade dela e engarrafar para situações complicadas. Com certeza lhe traria bem mais lucros e reconhecimento que a agência, mas a paciência de um laboratório e a credibilidade de uma invenção mirabolante daquelas ainda não estava ao seu alcance.
Quando todos se sentaram, a mulher respirou fundo, entregando um a um versões grandes e intensamente coloridas do novo logotipo da agência. Alguns cochicharam algo entre si, outros apenas observaram com surpresa e satisfação ou total descaso como se toda aquela coisa fosse incrivelmente entediante.
- Gostaria de apresentar a vocês a nova imagem de nossa agência. Essa será a nossa marca para as propagandas e eu espero que todos estejam satisfeitos com ela.
- Quem fez a arte? - Um deles perguntou, ajustando a armação dos próprios óculos ao rosto.
- Um amigo que tem mostrado muito talento na área. Julgo seu trabalho suficientemente bom para representar a agência - a chefe se impôs, sem titubear. Não aceitaria ser contrariada após todo o seu esforço para fazer com que cedesse e usasse de seu talento com os pincéis.
- Não discordo - o outro respondeu. - Na verdade, creio que todos aqui concordam. Foi um ótimo trabalho. Deveria parabenizar o artista.
sorriu, acenando com a cabeça em concordância. Jamais poderia negar o orgulho que sentia do amado.
- Pode ter a mais completa certeza de que eu irei - afirmou. - Estão dispensados. E vamos de volta ao trabalho que temos muitas coisas para organizar antes do próximo desfile.
Ao ver a sala novamente vazia, ela finalmente pôde deixar seu corpo ceder milimetricamente, sentindo grande parte do peso que sustentava sobre os ombros ir embora. Jamais seria capaz de deixar de sentir o mais pleno alívio após o fim de dias importantes no trabalho.
- Senhorita - a secretária chamou, colocando a cabeça para o lado de dentro do cômodo -, sua mãe pediu para que lhe recordasse do jantar que sua família dará aos amigos nessa noite.
- Amigos - ironizou com uma risada amarga. - Sei bem que tipo de amigos os meus pais têm. Se ela ligar mais uma vez, diga que já estou ciente e comparecerei. Também peça gentilmente para que ela vá me procurar na esquina já que não estou à toa.
- Não posso tratá-la dessa forma, senhorita, mesmo que às vezes eu deva admitir que tenha vontade.
sorriu para a secretária, sabendo exatamente o que ela queria dizer. Se havia alguém difícil de lidar no mundo, esse alguém definitivamente tinha que ser a sua mãe.
- Entendo. Bom, tem a minha permissão de dizer que fui eu quem mandou que ela parasse de atrapalhar o trabalho da equipe com telefonemas inúteis.
Quando finalmente conseguiu começar a trabalhar, suas revisões de arquivos e fechamentos de orçamentos para os eventos funcionaram com uma fluidez que ela desejava poder ter todos os dias do ano. Infelizmente, aquela felicidade lhe dava uma falsa ilusão de que o dia seria bom. O dia, na verdade, foi bom. O problema sempre vem à noite.

*****

- O que acha? - A mulher virou a câmera do celular para o espelho, permitindo que analisasse o longo vestido verde que sua mãe escolhera para o jantar por meio da ligação de vídeo do whatsapp.
- Você está maravilhosa - ele admitiu, enquanto via se arrumar incomodada dentro da peça. - Na verdade, até parece uma princesa.
- Tem razão - ela concordou. - É exatamente esse o problema. Sabia que tinha alguma coisa que não fazia sentido.
riu do outro lado, meneando a cabeça por perceber que estava certo ao pensar que ela se incomodaria com a relação de realeza que ela tanto odiava.
- Onde já se viu uma mulher que trabalha com moda atual se vestir desse jeito? Eu tenho uma reputação para zelar.
Dito isso, ela se virou para procurar sua caixa de primeiros socorros de costura e customização. Sentou-se na própria cama, puxando a barra do vestido para que a alcançasse com mais facilidade.
- Um tecido tão nobre e fino prestes a ser destruído - comentou, rindo. - Sua mãe vai te matar.
- Pois bem, avise-a de que quero um daqueles caixões novos cheios de glitter. Minha primeira opção é o branco. Mas pode ser o cor de rosa também.
A tesoura tinha seu corte preciso e em poucos minutos já tinha desfiado toda a barra do vestido e criado uma fenda curta na altura do joelho esquerdo. Mais algumas dobras e pontos de segurança e o tecido espalhado pelo chão a deixaram plenamente satisfeita por ver mais uma das escolhas de sua mãe sendo destruídas.
- Agora sim. - O homem sorriu, reconhecendo exatamente a força e personalidade da mulher que ele tanto amava naquela peça. Uma atitude tão simples e, de repente, ela já reluzia com toda a sua magnitude.
- Não sou uma princesa e nem pretendo ser. Infelizmente, preciso descer e fazer sala para os amigos horríveis e tediosos do meu pai. Deseje-me sorte porque eu com certeza vou precisar.
- Boa sorte, linda. Acabe com eles.
- Com todo o prazer - ela declarou, entre risos e desligou o celular, guardando-o na pequena bolsa preta de mão.
Respirou fundo ao descer as longas escadas de granito da mansão da família. Seus sapatos de salto alto batiam com força nos degraus, ecoando sobre o ritmo da música clássica ambiente e do tilintar das taças de cristal repletas de algum vinho caro demais que deveria estar guardado há muito tempo na adega que seu pai protegia com todo o cuidado do mundo. Provavelmente, ligava mais para aquelas garrafas caras do que para qualquer membro da família. Não que ela ligasse. Com o tempo, tinha aprendido a não se importar com esse tipo de coisa. Não sentia falta alguma ou carecia dá atenção dele. Era melhor ter um pai completamente alheio à sua existência do que ter uma mãe que a azucrinava, tentando tratá-la como um pequeno fantoche totalmente submisso às suas vontades aplicadas nas finas cordas.
Cumprimentou a todos com um sorriso largo e plástico, como o de uma boneca Barbie com cabelos que a Mattel provavelmente desaprovaria. Foi educada e cordial mesmo com os convidados que no fundo detestava com todas as suas forças. As relações por interesse de sua família tinham lhe ensinado a recepcionar a todos sempre com a maior falsidade escancarada do mundo. Todos os castigos que recebera na infância por se recusar a dar abraços e sorrir para as visitas lhe ensinaram o detestável dom de fingir. Tantos anos depois, poderia se considerar uma grande mestre dessa arte.
- Minha filha linda! - Sua mãe apareceu deslumbrante como sempre, sem aparentar sequer a metade da idade que tinha. O mundo das cirurgias plásticas e dos cosméticos era realmente maravilhoso. - Que bom que decidiu nos acompanhar nessa noite maravilhosa entre amigos. Com licença - pediu para o grupo próximo e apertou o pulso da filha com uma força um tanto exagerada enquanto a arrastava para um canto da cozinha. - Mas que droga de vestido é esse?!
- É o vestido que a senhora escolheu, mãe - respondeu com cinismo. - O que é? Não acha que a forma tenha caído bem no meu quadril?
A mais velha a fuzilou com o olhar. Se seu ódio fosse palpável, provavelmente teria criado faíscas piores que as trovoadas de uma tempestade.
- Eu comprei um vestido incrível e você simplesmente corta milhares de dólares por capricho. Era para estar vestida como uma dama da alta sociedade, mas parece uma adolescente de mentalidade fraca no baile de formatura do ensino médio.
- Pelo menos, seria uma adolescente feliz, coisa que infelizmente não posso dizer que fui. A senhora se lembra do meu baile de formatura, mãe? Porque eu não me lembro. Talvez seja porque a senhora decidiu que eu não deveria me misturar com as outras pessoas da minha idade, já que eles não tinham uma poupança milionária para emergências. Eles não eram bons o suficiente para o seu padrão.
- Não ouse me desrespeitar. Essa noite é muito importante para a nossa família e você já causou o suficiente por hoje.
- Fique tranquila, mãezinha. Subirei para o meu quarto pelo acesso dos fundos. Tenho certeza de que ninguém vai sentir a minha falta por aqui.
- Não, não vai. Esse jantar está sendo feito para que eu e seu pai possamos realizar um grande anúncio de nossa família. Você precisa estar presente para também receber a notícia.
- O que é? Terei um novo irmãozinho para vocês fazerem de fantoche como fizeram comigo?
- Nós vamos voltar para aquela sala agora. E você vai se comportar - sua mãe decretou, com o tom de voz grave o suficiente para demonstrar que ela não estava aberta a discussões.
engoliu em seco, seguindo a mãe de volta para o meio de todos os grã-finos. Seu pai estava já no meio de todos, recebendo plena atenção dos convidados. Ao seu lado, estava um de seus maiores colaboradores: um grande empresário diretamente ligado às campanhas políticas de seu querido progenitor. Ambos sorriam a todos, com suas taças cheias já prontas para propor um brinde. Aquilo com certeza não parecia bom.
- Bom, reunimos todos vocês aqui hoje para fazer um anúncio muito importante para nós - seu pai começou, com aquela voz de locutor que ele adorava usar em seus comícios. revirou os olhos. - Gostaríamos de convidar todos vocês para prestigiar a união de nossas famílias que por tanto tempo foram tão próximas. Hoje, saudamos esse laço definitivamente com o noivado de nossos filhos. e serão o nó final daquilo que construímos ao longo de todos esses anos.
Todos aplaudiram com alegria - real ou não - e gosto. sentiu seu mundo desabar sob seus próprios pés. Não tinha força sequer para esboçar qualquer tipo de reação. Sua voz não saía. O nó em sua garganta parecia ter amarrado suas cordas vocais e retirado qualquer chance de que ela se pronunciasse frente àquela injustiça horrenda. Não acreditava; não podia e não queria acreditar em um absurdo daquele porte. Em um dos momentos mais frustrantes e vergonhosos, correu de volta para o próprio quarto, arremessando-se à própria cama com um avassalador sentimento de incompetência e inutilidade. Aquela sensação a assolava de uma forma que ela jamais seria capaz de verbalizar. Não seria capaz de encontrar no mundo palavras fortes o suficiente para definir o que estava sentindo.
Com o resquício de forças que lhe restara, decidira arrancar aquele vestido e colocar uma calça larga e uma blusa do Star Wars que havia deixado em seu guarda-roupa. A peça ainda tinha o cheiro dele misturado a sabonete e isso só fez com que ela quisesse ainda mais chorar. Sabia que sua mãe suspeitava que o relacionamento entre os dois não tinha sido interrompido como ela ordenara, mas manipular um casamento com alguém que ela sequer conhecia parecia um golpe baixo demais até mesmo para ela.
Quando ouviu a sua porta abrir, agarrou num impulso o vaso que decorava seu criado-mudo, querendo arremessar aquela porcaria de porcelana asiática na cabeça de seja lá quem tivesse decidido aparecer para destruir ainda mais o pouco que restara de sanidade e dignidade dentro dela. Ao perceber uma figura jovem masculina que ela nunca antes tinha visto, apertou o vaso com mais força.
- Não é educado invadir o quarto dos outros, ainda mais de desconhecidos. Tem um banheiro na ala de visitas, não precisa ser inconveniente na suíte de alguém.
- Não era a minha intenção incomodar, mas a sua mãe mandou que eu subisse e eu fui meio encurralado pelos nossos pais - o rapaz contou, afundando as mãos nos bolsos da calça cinza riscada. - Oi, eu sou o . É uma droga que tenhamos que nos conhecer desse jeito tão conturbado. Eu realmente sinto muito. Não fazia ideia de que nossas famílias estavam preparando algo desse tipo.
-Eles destruíram a minha vida, tomando uma decisão absurda como se eu fosse incapaz de fazer minhas próprias escolhas - reclamou. - Não é como se fosse a primeira vez, mas definitivamente foi a pior delas. Sem ofensas, mas me casar contigo com certeza não estava na minha lista de planos e muito menos na de desejos.
- Não ofende. Na verdade, eu também não estou feliz em me casar contigo. Sabe como é, você não faz muito o meu tipo.
o encarou se sentindo completamente ofendida.
- Eu sou o tipo de todo mundo. Você está dizendo isso com total despeito porque sabe que sou bonita demais para você.
riu alto, só deixando a mulher ainda mais perdida com toda aquela situação.
- Você não está entendendo. Eu sou gay, . Você poderia literalmente ser escolhida a mulher mais linda e sexy do universo que mesmo assim não seria do meu agrado. Mas, se serve de consolo, minha orientação sexual não me impede de reconhecer uma mulher bonita.
- Eu não estava esperando por isso - ela admitiu.
- Ninguém nunca está. Mais um motivo para os meus pais arranjarem esse casamento sem noção. Eles se recusam a ter um filho homossexual. Acredita que tentaram fazer com que uma casa de repouso me aceitasse como portador de doenças psicológicas? Quando a terapeuta me ajudou com a depressão e foi bem clara ao dizer que a orientação sexual não era uma doença e por isso jamais poderia ser tratada, eles decidiram subornar alguém para me internar. Por sorte, aparentemente, todas as clínicas da região têm ética o suficiente para não aceitar uma merda dessas. Ou meu pai simplesmente não pagou bem o suficiente. Não que eu me importe.
- Não deveria mesmo. Bom, parece que temos isso em comum, não? Pais idiotas o suficiente para não aceitarem quem queremos ser e tentarem incessantemente destruir as nossas vidas.
- Credo, mulher! Eu nem sou tão ruim assim! - se fez de ofendido, arrancando alguns risos dela. - Como eu disse, sinto muito mesmo por terem nos colocado nessa enrascada.
- Eu já tenho alguém, . Alguém que eu amo com todo o meu coração e alma. Tudo o que eu mais quero e preciso nessa vida é ficar ao lado dele.
- Como ele chama?
- .
- Um cara bem alto, com o cabelo castanho escuro meio bagunçado e uma barba rala nas bochechas e no queixo? Com um sorriso incrível e olhos em um tom meio mel?
o encarou com a sobrancelha arqueada, completamente cismada com aquilo.
- Como sabe?
- Acho que é uma péssima hora para dizer que ele está lhe traindo e vivendo uma linda história de amor comigo.
- O QUÊ?! - conseguiu atingir vários tons acima daquele a que sua voz estava acostumada.
- Só estava brincando. Tem uma foto de vocês dois no seu celular. Acho que é ele ligando - concluiu, fazendo com que a mulher arremessasse uma almofada em seu peito.
- Não vai atender o meu amante?
- Agora não. Sem chance. Não tenho humor algum para discutir. Preciso de um tempo para digerir essa avalanche de merda que jogaram na minha cabeça.
- Posso me sentar? - perguntou, apontando para a ponta da cama.
- Você é meu noivo - zombou. - Tire os sapatos e venha para cá. Precisamos pensar em como nos livrar disso.
deixou seus sapatos pretos ao lado da cama, arrumando-os cuidadosamente. Sua mania de organização não o abandonava nem naqueles momentos. Subiu na cama, sentando-se com uma postura invejável e encostando sua coluna à cabeceira acolchoada com um conforto incrível. jamais seria capaz de ver uma cama e não arremessar o próprio corpo como se estivesse prestes a morrer.
- Já sei! - O rapaz parecia animado demais com a genialidade da própria ideia. - Nós deveríamos contratar um ator para se passar por padre e organizar os documentos de uma forma que não seja possível nos considerar verdadeiramente casados.
- Isso não faz sentido algum - analisou.
- Não sei. Vi em uma novela. - deu de ombros. - Não parecia uma ideia tão ruim.
- Talvez nós possamos simplesmente dizer não, sabe? Poderíamos fazer uma cena enorme para que eles morram de vergonha na frente de todos aqueles amigos metidos. Seria bem mais simples e possivelmente bem mais satisfatório para o ódio que eu cultivo com tanto carinho.
- Ou podemos descer agora e acabar com o showzinho de uma vez.
pensou sobre aquilo, bufando ao se lembrar do maldito prazo de dois meses para que estivesse totalmente independente financeiramente da família. Qualquer passo em falso nesse meio tempo e sabia que sua mãe daria um jeito de tomar a agência de suas mãos em um piscar de olhos. Não poderia correr esse risco.
- Não posso contrariar meus pais enquanto o resto da documentação da minha agência não sair. Minha mãe já ameaçou tomá-la de mim uma vez, não posso arriscar que isso deixe de ser uma ameaça e se torne algo real. Preciso fingir que estou de acordo com essa merda toda pelos próximos dois meses.
- Terei que ser seu príncipe heterossexual por dois meses então?
riu alto com o comentário do rapaz que de repente já parecia um grande amigo de longa data.
- Isso mesmo. Até lá teremos que ser dois robôzinhos. Mas, depois disso, nós chutamos as bundas deles com gosto. Deus, como eu estou ansiosa por esse momento!
Continuaram batendo papo até tarde da noite, variando entre os planos falsos e alguns assuntos aleatórios. A mulher não poderia dizer que estava decepcionada. De todo aquele caos, havia arranjado algo cujo significado ela desconhecia há um bom tempo: um amigo.

*****

- Isso tem gosto dos bolos de caixinha que eu faço quando estou com preguiça - reclamou.
- Na verdade, senhor, essa é uma massa de limão siciliano com toque de macadâmia - Lindsey, a chefe e coordenadora da degustação de bolos de casamento dizia, com um sorriso tão largo que pensou que ela fosse engoli-la.
- Um bolo de limão siciliano de caixinha - reafirmou. - Próximo sabor. Credo!
Lindsey meneou a cabeça a contragosto, tentando sem sucesso esconder sua raiva pelo comentário do cliente. Mas sabe o que eles dizem: o cliente tem sempre a razão. Mesmo que fosse um homem insuportável e sem um pingo de refinamento no paladar para apreciar um de seus bolos maravilhosos. Ao menos, era isso que seu cérebro lhe dizia. Talvez fosse uma forma de autoconsolo. Até aquele dia, apenas uma pessoa tinha mostrado um gosto requintado o suficiente para consumir com prazer aquele bolo de limão siciliano. Era nesse cliente que Lindsey confiaria e não na opinião das outras centenas. Ela ainda faria o bolo de limão siciliano se tornar uma tendência matrimonial.
Enquanto ela buscava os outros sabores, e debatiam sobre as flores da decoração das mesas.
- Eu gosto de tulipas - ela afirmou, mostrando alguns arranjos que tinha encontrado na internet.
- Eu prefiro esses buquês de cupcake - mostrou algumas fotos que tinha encontrado em uma página qualquer do facebook.
Quando estava prestes a discordar fervorosamente, ouviu o irritante sininho tocar, avisando que alguém estava passando pela porta de entrada. Ao olhar para entrando na loja, ela sentiu seu corpo aquecer por completo. Queria sair daquela cadeira e correr para seus braços como um corredor de cem metros livres. O semblante de total confusão dele, no entanto, alertava-a de que talvez aquela não fosse uma ideia muito boa.
- Que droga está acontecendo aqui? Quem é esse cara?
- - começou -, você precisa ter calma. Acho melhor se sentar. A história não é das melhores, mas nós já temos planos para reverter tudo isso.
O rapaz se sentou, ainda ressabiado com aquilo tudo. Ouviu toda a história que e contavam, tentando ao máximo manter a calma com aquela loucura.
- Vocês estão brincando comigo, não é? - perguntou descrente.
- Não - respondeu. - É sério que os nossos pais são babacas colossais. É realmente surpreendente que eu seja tão maravilhoso. Já sei, eu sou adotado.
tentou segurar o riso, sabendo que a situação era crítica, mas não conseguia se conter perto de . se permitiu rir um pouco também, relaxando minimamente.
- Não vai roubar minha namorada, então?
- É mais fácil ele roubar você de mim - ela analisou, recebendo uma confirmação de . - De quebra, ainda faço questão de que você esteja presente no dia da nossa cerimônia para ouvir nosso magnífico não para o padre. Será um momento épico. Nossos netos estudarão isso em história nacional.
- Não acredito que vou apoiar essa loucura. - bufou. - Mas vocês têm meu apoio.
e pularam em seu pescoço, dando um abraço duplo completamente desajeitado exatamente no momento em que Lindsey passava pela porta com a nova leva de bolos para degustação.
- Quem é esse senhor? - Seu sorriso nervoso esclarecia seu pânico por saber que tinha trazido apenas duas fatias de cada sabor.
- Nosso amante compartilhado - explicou. - Pode ficar tranquila, os dois vão dividir o pedaço deles. Menos o de chocolate branco. Nesse caso, as duas fatias são minhas.

*****


e estavam sentados no meio da sala de troca ainda trajando seus roupões brancos - agora gravados em dourado com suas iniciais - e com toalhas enroladas em seus cabelos.
- Quão idiotas os meus pais são de nos trancar junto com os nossos presentes de casamento? - Era a pergunta que ela fazia, rindo enquanto puxava outro pacote para rasgar seu embrulho com fervor. Estavam se divertindo, começando por aqueles que eram maiores e, portanto, muito mais chamativos.
- Um quadro - analisou com uma careta de desgosto. - Um bem feio por sinal. Por que raios alguém dá um quadro feio de presente de casamento? É a coisa mais inútil que eu já vi. O pior é que deve ter custado uma fortuna.
- Cheque a assinatura - sugeriu. - Se for algum artista famoso, nós leiloamos e dividimos a grana.
Foi o rapaz quem puxou um embrulho menor e rasgou todos os laços como se não houvesse uma maneira incrivelmente mais fácil de desfazê-los.
- MEU DEUS! , você precisa ver isso - ele estava em êxtase.
- Uma cafeteira da Nespresso. - abriu a boca em um perfeito semblante de surpresa. - Essa eu quero.
- Eu também quero. - deu de ombros. - Acho que teremos que entrar em um modo de guarda compartilhada.
Com um empurrão, a porta se abriu, assustando os noivos.
- Acho que existe alguma regra cerimonial sobre a bruxa má não poder ver a filha antes do casamento - comentou, recebendo um olhar de completa repreensão de sua mãe.
A mais velha simplesmente pendurou o longo vestido branco de mangas compridas e gola alta, com um véu que esbarrava no chão. torceu a boca de desgosto.
- É um vestido caro e recatado, exatamente o que uma dama deveria vestir - sua mãe disse. - Já passou da hora de você tomar um jeito, então começaremos agora. , vá se arrumar. Vocês entram em quarenta minutos. - Saiu.
- Seu vestido é horrível - o rapaz admitiu.
- Não - ela começou. - Meu vestido é maravilhoso. Não é essa coisa que eu vou vestir.
caminhou até o armário que ficava no canto da sala, tirando de lá um vestido delicado em um tom de azul tão claro quanto o céu ensolarado. As mangas curtas cobriam os ombros com um tecido leve, encontrando-se em um decote nas costas. A saia ia até a altura dos joelhos, terminando em uma barra rendada a mão.
- Agora se parece mais contigo. Bom, vou me trocar e treinar o meu show para mais tarde. - disse e piscou para antes de se retirar, deixando a garota a sós para se vestir.
colocou o seu vestido de noiva quase em câmera lenta. Respirava fundo e soltava o ar da forma mais vagarosa que seus pulmões permitiam, na tentativa de controlar toda aquela adrenalina que corria pelo seu corpo. Havia aprendido nos tempos de escola que a respiração lenta e profunda ajudava a controlar seu próprio corpo e destruir a noção que ele próprio criava de perigo. Ao menos, era isso que ela lembrava sobre as aulas de biologia. Não que suas memórias estudantis significassem muita coisa, na verdade. Não é como se ela tivesse sido uma aluna exemplar o suficiente para que seus conhecimentos acadêmicos fossem lá muito confiáveis.
Ao se olhar no espelho, acabou esboçando um pequeno sorriso satisfeito, apesar de nervoso. Estava exatamente da forma que se imaginara por anos em seu casamento. Só doía saber que aquele momento era uma encenação e, apesar de estar planejado para ter um final feliz, não era aquele o seu final feliz. Era que deveria estar naquele altar improvisado no grande quintal, esperando por ela em meio às árvores floridas com rosados botões. Tantos anos sonhando com aquele momento tão especial...
Sacudiu a cabeça, evitando pensar sobre aquilo. Relembrar era sofrer mais uma vez e não tinha tempo para isso. A cerimonialista já tinha aberto as portas para ela e a marcha tocava, esperando seu primeiro passo sobre o tapete vermelho que sua família estendera por entre os bancos dos convidados.
Assim que pisou na área externa, todos os olhares se viraram para ela ao mesmo tempo em que se levantavam para recebê-la. percebeu o olhar de ódio de sua mãe para o seu vestido instantaneamente.
- Você mal sabe o que te espera - sussurrou enquanto caminhava. - O vestido é o de menos.
piscou para ela do altar, quase fazendo com que ela se esquecesse dos sorrisos falsos de todos aqueles convidados que ela sequer se lembrava de conhecer. O noivo beijou sua bochecha, segurando o riso, antes de se ajoelharem de frente ao padre. Ouviram todo o sermão e os discursos como se tudo estivesse na mais perfeita harmonia. Foi apenas quando a troca de alianças estava prestes a começar que eles se levantaram e se olharam de forma cúmplice, assinalando que era a hora de começar o show.
- Com licença, eu preciso dar uma voltinha - anunciou, surpreendendo a todos. - Sabem como é, não? Emergências estomacais não podem esperar.
puxou o rapaz pela manga do paletó quando ele já estava prestes a se virar, fazendo com que a encarasse.
- O que você está fazendo? - Perguntou entre os dentes.
- Colocando o meu plano em ação - ele respondeu. - Sinto muito por te tirar da jogada, prometo que vai dar certo. Confia em mim.
ficou sozinha no altar, recebendo uma mistura entre os olhares confusos da multidão e alguns semblantes de pena como se ela tivesse sido abandonada e envergonhada publicamente. Aquilo era tão incômodo que parecia ter feito o tempo desacelerar exponencialmente, como se cada mísero milésimo de segundo devesse ser sentido por completo. Ela só conseguia pensar em como queria esmagar o pescoço do amigo em suas mãos por fazê-la passar tanto nervoso na frente de todos ao mudar os planos.
Foi então que ele apareceu e, ao vê-lo, descobriu que seu coração poderia bater ainda mais rápido do que ela pensava. acompanhava dois homens muito bem vestidos: um desconhecido para ela e um conhecido até bem demais.
- - murmurou para si mesma, como se seu cérebro precisasse de alguma confirmação de que aquilo tudo não era apenas uma ilusão montada por sua cabeça.
Quando o homem sorriu de volta para ela, seu coração amoleceu instantaneamente. Ele era real. Tudo aquilo era. Aquele momento era tão lindo que deveria ser congelado pela eternidade.
- Lamentamos pela interrupção - praticamente gritou, tirando o casal do transe e conseguindo para si a total atenção do recinto. - Acontece que eu não sou o noivo dela, mas esse rapaz muito bem apessoado, com um cabelo incrível e um porte de cair o queixo é. Esse é , o verdadeiro namorado e futuro marido de . Eles se amam de verdade e é um dos amores mais puros e incríveis que eu tive o prazer de conhecer. É a eles que espero que vocês deem todo o amor e a compreensão possíveis nesse dia tão especial.
Todos estavam boquiabertos, embasbacados com toda aquela história.
- Bom, mais uma coisa antes de seguirmos - anunciou. - Esse casamento foi uma farsa criada por dois casais de pais completamente alheios às vontades dos próprios filhos. Os pais dela recusaram o casamento com porque ele era pobre demais para eles. Os meus pais, por sua vez, acham uma vergonha gigantesca ter um filho homossexual e acharam que seria melhor me esconder e me forçar a viver em um relacionamento de fachada. Sinto muito, papai e mamãe, mas não foi dessa vez. Aliás, esse é Ryan, o meu namorado - disse, apresentando finalmente o outro rapaz que lhe acompanhara até o altar.
sorriu abertamente, cheia de orgulho pelo amigo. O olhar de choque de todos compensava todo o tempo que guardaram aquilo para si mesmos.
- Agora que nos acertamos, continuemos com o casamento - declarou, posicionando ao lado de no altar e descendo para ocupar com Ryan a posição de padrinho do casamento.
- Isso jamais vai acontecer - a mãe da moça disse, interrompendo mais uma vez a cerimônia. - Você nunca vai se casar com esse rapaz.
endireitou a sua coluna e ergueu o queixo, pronta para, enfim, enfrentar aquela que fora sua tortura por vários anos.
- Eu vou, mãe. Vou casar com e o farei agora. Você pode presenciar a felicidade de sua filha ou sair da frente e não atrapalhar. Eu cansei de tudo isso. Você pensou que eu seria o seu robô para sempre, fazendo exatamente o que você mandava. - Ela riu ironicamente. - Não mais. Eu sei tomar minhas decisões, sei amar, sei sentir, sei fazer o meu trabalho e, incrivelmente, sei viver a minha vida e ser muito feliz assim. Não preciso de ninguém me manipulando como se eu fosse um mero fantoche. Eu sou um ser humano e, daqui para frente, mais do que nunca, serei eu mesma. Agora a decisão é sua: pode ficar ou ir embora; mas eu ainda me casarei com quem eu amo aqui e agora. Padre, pode seguir com a cerimônia.
O padre, um pouco constrangido com a situação, seguiu como pediam os costumes.
- , aceita como sua legítima esposa?
- Aceito - ele respondeu sorrindo, enquanto segurava as mãos trêmulas da mulher que tanto amava.
- , aceita como seu legítimo esposo?
- Aceito - respondeu, apertando um pouco mais forte os dedos dele.
- Então eu os declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva.
Todos comemoraram com gritinhos, enquanto e trocavam o beijo pelo qual aguardaram por tanto tempo. pulou ao redor dos dois, embrenhando-se em um abraço coletivo para o qual não havia sido convidado. O mais novo casal retribuiu, abraçando o amigo com força ao agradecer pelo que tinha feito por eles.
- Eu te amo. Obrigada por ter feito isso - a mulher agradeceu.
- Eu que agradeço, linda. Você merece toda a felicidade do mundo - declarou. - Inclusive, quero propor um brinde aos noivos. Um brinde a nunca mais sermos robôs manipuláveis!
e riram, abraçando-se. Todos gritaram um "Viva!" sem entender bem o que estava havendo. Como na maioria das festas, estavam apenas seguindo o fluxo da maioria.
Tiveram uma festa linda e dançaram juntos até o fim da madrugada, comemorando como mereciam. Finalmente, tinham tudo o que precisavam: um ao outro. E não havia mãe, pai, preconceito ou sociedade para lhes impedir de viver a mais plena felicidade que o universo poderia proporcionar.




FIM



Nota da autora: Confesso que esse amigo era para ser completamente secundário, mas o personagem saiu totalmente do meu controle e se tornou tão ou mais importante do que os próprios protagonistas. Ele realmente ganhou vida própria, haha.
Espero que tenham gostado da história e, por favor, digam o que acharam aqui nos comentários.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo.







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13. See Me Now
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4th of the July
Dark Moon
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