Última atualização: 13/10/2018



Capítulo Único


“Now I feel like I'm broken. Now I feel like I'm choking”
Encarei o teto de meu quarto, viajando na melodia que fluía por meus fones de ouvido. Sentia como se estivesse flutuando de meu colchão ortopédico. Franzi o cenho, fazendo um biquinho pensativo. Talvez fosse a influência do cannabis... Levantei minhas mãos à direita e acima de meu rosto observando os contornos e sombras que os raios de luz lançavam sobre minha parede oposta à janela.
Não sabia se ria mais ou fazia sinais de silêncio, como “shiu”, para ninguém em particular. Meu corpo claramente não estava acostumado com o efeito de ervas como a Maconha, uma das plantas do gênero cannabis. Muito menos minha mente. Não é como se houvesse uma preparação para isso. Ali, sozinho em meu quarto, eu conseguia sentir tudo de forma amplificada.
-Hey, sou que nem um vampiro! –Murmurei para mim mesmo.
Pensando bem, posso ter berrado, mas agora não saberia distinguir meu tom de voz. Nem sei se saberia dizer meu nome sem cair na risada ou no choro. Até o cheiro amadeirado de minha cômoda chegava a mim mais intensamente. Se eu fechasse os olhos nesse momento, seria como se estivesse numa floresta densa.
Os sons da canção Believer do Imagine Dragons preenchiam meus ouvidos me assustando a cada berro de “Pain!” do cantor. Meu coração acelerava e desacelerava a partir de sua própria vontade, ou pensando bem, talvez fosse só a impressão que estava tendo. Mas por hora, fingiremos que é real. Nesse caso, a única outra coisa no mundo, além da droga psicoativa cheia de tetrahidrocanabinol, que conseguia mexer com meu órgão pulsante dessa forma era Isabella. Meu deus, essa frase teve totalmente um duplo sentido. Gargalhei descontroladamente dando um tapinha em minha testa. Quando Izzy souber que pensei nisso eu estarei enrascado.
Se ela soubesse eu estaria enrascado. Corrigi, voltando a franzir o cenho e murchando minha expressão. Agora não importava mais. Esperei a vida toda por uma mulher como ela e conseguira estragar tudo em menos de uma semana. O paradoxo é que a escolha que me fizera conhecê-la em primeiro lugar estava diretamente ligada ao motivo de havê-la perdido.
E assim como todo evento dramático na história, tudo começou em uma tarde chuvosa...


Sexta-feira a.k.a Um dia antes do começo da Aposta.
“If I could change your mind then I would for sure, no doubt”
Entrei na cafeteria da Rua Parsons molhado da cabeça aos pés. Caminhei até minha cabine habitual, pingando e xingando o meteorologista até sua quinta geração por ter anunciado somente vinte por cento de probabilidade de chuva. Apesar de viver no Café 24, a república em que morava não ficava exatamente perto dali. Ter deixado o guarda chuva em casa ainda me daria muita dor de cabeça durante aquele dia. Para completar a catástrofe eu ainda estava carregando um trabalho de conclusão de minha matéria eletiva, neoconstitucionalismo, de nada mais que duzentas páginas sobre arbitrariedade dos juízes. Digamos que minha mochila não era exatamente a prova d’água... Pode me chamar de otimista ou simplesmente estúpido, mas assim que imprimi minha resenha, apaguei-a do computador. Não queria que continuasse ocupando espaço no notebook que eu carregava para cima e para baixo na Universidade Boulder, onde cursava Direito já há alguns anos.
Tão logo me acomodei no banco acolchoado como uma espécie de sofá, a atendente veio cumprimentar-me no auge de sua educação.
-Não fode, Andrew! – Suspirou a garçonete de meio período, mal humorada. –Agora o Wally vai ter motivos para ficar falando na minha cabeça o dia todo! Você molhou tudo!
Levantei uma sobrancelha e montei uma careta ofendida.
-Cornellia... É esse o jeito que cumprimenta todos os seus clientes? –Perguntei para minha melhor amiga, balançando a cabeça em reprovação. –Se for, tá explicado por que não ganha muita gorjeta.
-Não Drew, só meus clientes especiais mesmo. –Deu a língua.
-Fofa. –Sorri em minha melhor expressão de desculpas e estendi a mão para ela.
Meu braço pendeu no ar por alguns segundos até que ela revirasse os olhos e batesse em minha palma, realizando a sequencia de gestos que se tornara nosso cumprimento único. Fora seu murmúrio de “canalha” tenho certeza de que me perdoara pelo deslize.
-Tudo bem, agora fala logo o que quer que tenho outras mesas para atender, cabeça de batata.
-O de sempre. –Repliquei, me divertindo com seu encarar sério.
Nelly nunca conseguia lembrar os pedidos de quem servia. Não importava quantas vezes eu fosse lá, ou o tempo que nos conhecêssemos, mesmo assim a mulher nunca acertava. Essa era a razão primária de seu chefe Walter ficasse reclamando de seus repetidos erros de entrega. O único motivo de ainda não ter sido despedida era o café que somente ela sabia preparar, com um toque especial que sua avó lhe ensinara, mas espertamente ela nunca compartilhara. Era a bebida que atraía grande parte dos clientes do Dinner, então perdê-la como funcionária seria muito mais maléfico aos negócios.
-Um café especial com dois cubos e meio de açúcar, uma porção de Java Jives sem ketchup e donuts açucarados de Cranberry com cobertura de coco e raspas de limão. –Recitei como se entoasse meu próprio nome, acabando com sua agonia.
Tudo bem que eu não era a pessoa mais simples quando se tratava do que eu comia.
-É pra já... Espertinho. –Replicou anotando tudo e partindo para a dama insistente da mesa ao lado.
A mulher elevava tanto o braço que eu temia que sua blusa de linho com mangas compridas pudesse arrebentar de tanto que se esticava. Também havia assobiado para chamar a atenção da Nelly, mas assim como eu, minha amiga fingira não escutá-la.
Como de costume, passei uma manhã agradável no café, aproveitando-me do aquecimento e das gostosuras que lá eram vendidas, enquanto tirava o atraso de minhas leituras no manual de Direito Processual Civil. Meio dia em ponto Cornellia apareceu em um traje mais estiloso e agasalhado para que fizéssemos nosso caminho até a Faculdade.
O prédio Ella Turner era o mais próximo da entrada da Universidade Boulder, o que veio a calhar com a volta da chuva, mas de forma menos intensa, enquanto caminhávamos até sua fachada. Do Café 24 até lá bastava seguir a rua e virar a segunda direita, então amém que meu trabalho pudera ser entregue intacto ao ser retirado de minha pasta, já em sala de aula.
Nelly também cursava direito, mas era um semestre atrasada. Esse era o motivo pelo qual todas as noites e em algumas manhãs eu participava de um programa de estágio voluntário e ela ainda tinha meio período para ganhar uma grana extra na Cafeteria. Morávamos em uma espécie de residência estudantil, compartilhada com mais três estudantes de cursos diversos em Boulder.
Anna era a mais velha, estando a um ano de se formar em Medicina. Quase não parava em casa e se estivesse, era mais provável encontra-la em seu quarto estudando ou hibernando após o plantão do internato. Youseff era um jovem intercambista, que falava muito mal nossa língua e vivia em seu próprio mundo, jogando seus vídeo-games e sendo um visitante em suas aulas de eletrônica.
Fora Cornellia, Jackson (a mais nova adição à família) era com quem eu mais tinha contato. Estudando os primeiros anos de Psicologia, Jack era o que mais ficava em casa. Seu curso, por mais exigente que ainda fosse se tornar, assim como o Direito, começava com uma carga horária bem tranquila. Nossos debates sobre o impulso por trás do cometimento de crimes eram muito enriquecedores intelectualmente e o mais importante: divertidos.
Após meu último dia de aula e de estágio eu saí aliviado e me arrastando de volta para casa. Quando cheguei e passei pela porta aberta do quarto de Cornellia, fui puxado para dentro instantaneamente. Gemi, me jogando em sua cama extremamente cansado e esgotado demais para resistir à conversa que estava sendo recorrente nas últimas semanas. A menina estava com um vestido curto preto e saltos tão finos que poderiam furar o olho de alguém.
-Vai sair? –Perguntei já sabendo a resposta, mas me rendendo à sua vontade como sempre.
-Sim, Drew, e sabe por que?
-Não quero saber, mas você vai dizer mesmo assim, então vá em frente... –Suspirei, estendendo os braços e me ajeitando nos travesseiros de sua cama. Será que ela perceberia se eu cochilasse por uns míseros segundos?!
-O assunto é sério, Andrew. Não ouse cair no sono! –Disse, lendo meus pensamentos, enquanto apontava seu brilho labial para mim.
Resmunguei, reabrindo os olhos, que eu nem percebera haver fechado em primeiro lugar.
-Olha, você vem me preocupando muito, Drew. Há muito mais do que a vida na faculdade e no estágio. Eu sei que você rala muito e será um ótimo litigante no futuro. Já te imagino naquelas grandes firmas escalando seu caminho até o topo, como parceiro nominal.
-Greyson, Smith e Walker associados, como isso soa?! –Sorri, me incluindo em uma das maiores escritórios advocatícios americanos da atualidade.
Nelly mordeu seu lábio inferior, segurando seu sorriso ao perceber que eu mordera sua isca e ela tinha minha total atenção.
-Esse é o espírito, Drew. E você está quase acabando a faculdade, realizando seus sonhos e tudo mais. Mas sabe qual é o problema disso tudo? Quando começar a trabalhar em um escritório, todo o seu tempo vai ser sugado para o emprego, ao menos inicialmente. Entendo que enquanto a faculdade está rolando você tenha que se concentrar, além do mais, você já estagia. Mas amigo, mesmo nas férias, você tem que ficar trancado em casa? Onde está o tempo para a diversão?
-Eu me divirto sim! Jogo como Youseff e vejo umas partidas de futebol com a Anna e também discuto paradoxos com o Jack! –Disse exasperado, tentando me defender, mas fazendo internamente a mesma careta que agora Cornellia direcionava a minha pessoa.
-Olha, não vou discutir sobre sua escolha muito questionável de atividades consideradas divertidas, mas querido, você nunca sai, sempre diz não para todos que te chamam para fazer algo legal. Eles se importam contigo Drew, mas chega uma hora que todo mundo vai cansar da sua negação e simplesmente parar de perguntar.
-Primeiro: eu saio sim! Ok, não saio, mas é por que eu curto ficar em casa e virar uma ameba alienada enquanto não tenho nada para decorar ou estudar. E segundo: eu não digo não toda a hora!
-Ah, é?! Então me diz a última vez que topou alguma loucura só por diversão.
Fiquei em silêncio sabendo que Nelly havia vencido. Eu podia ser um bom projeto de advogado, mas contra Cornellia, minha mente virava gelatina e eu não ganhava uma mísera discussão.
-O que você quer que eu faça?- Indaguei, querendo que ela andasse logo com o ponto que queria fazer para eu poder finalmente dormir.
Ela torceu os lábios em um meio sorriso maligno e eu quase podia enxergar uma lâmpada acima de sua cabeça com a chegada de uma de suas ideias malucas.
-Eu proponho uma aposta.
-Quais os termos? –Indaguei, sem resistir a esse tipo de coisa.
Aquela mulher sabia exatamente o que fazer para me dobrar.
-Você tem que dizer sim a todas. Eu repito: TODAS as oportunidades que aparecerem em seu caminho durante uma semana. Se vencer, eu juro que paro de discutir sobre isso com você para sempre. Agora se você disser a palavra não apenas uma única vez, terá que fazer minhas tarefas por um mês.
-Isso não me parece justo. Há muitas falhas aí. E se eu for usar a palavra não em uma frase qualquer? Vamos proibir o uso do não só quando em resposta a alguma pergunta ou oportunidade. – Comecei, enquanto redigia nosso pequeno contrato, entrando no modo advogado. – Segunda coisa, se eu ganhar você também terá que me dizer o ingrediente secreto do café, mas eu estarei atado a guardar segredo, não se preocupe quanto a isso. E por último, esse contrato só terá validade a partir de amanhã, por que agora eu preciso dormir urgentemente.
-Fechado, Walker. – Pontuou, assinando seu nome ao lado do meu no final da folha arrancada de meu caderno.


Sábado a.k.a. Primeiro dia de Aposta.
“I'm way too serious. But I've always been that way. Too serious. I never found time to play”
Já acordou com o som do liquidificador tocando? Se conhece a sensação, vai entender do que estou falando. É quase como ter uma britadeira ligada em seu cérebro. Se para mim já era ruim, deve imaginar como Cornellia devia estar se sentindo após sua noitada de bebedeira. Quando em fim resolvi levantar, foi para impedir um assassinato e a dita cuja já berrava com a pobre da Anna sobre limites. Tudo bem que dizer berrava é uma tremenda de uma hipérbole. Deixe-me explicar... Nelly era uma frequentadora assídua do Clube Elation, uma espécie de clube que tinha isolamento acústico muito bom e colocava o volume das músicas nas alturas. Lá não tinha a opção de conversar tranquilamente em um canto do bar. Se fosse era para ficar com alguém ou dançar e ponto. Resumindo, Cornellia não só devia estar com uma puta dor de cabeça como também suas cordas vocais pareciam permanentemente danificadas de tanto berrar.
-Qual o seu problema, Anna? Respeita quem não tem horários malucos como o seu! – Bufou Nelly, falando o mais alto que sua garganta permitiu.
-Desculpa, eu não sabia que tinha chegado tarde. Mas a cozinha faz parte da área comum, Nelly. Você sabe o quanto preciso de minhas vitaminas para estar em pé e você sabe... Salvar vidas. –Terminou Anna com um dar de ombros, como se fosse a Madre Teresa.
-Você nem se formou ainda, pelo amor de deus! Provavelmente só faz exames retais ou prescreve remédio pra virose por enquanto.
O rosto de Anna ficou em um tom tão vermelho que comecei a me preocupar e resolvi me intrometer antes que desse ruim. Vejam bem, a Anna é albina. Quando eu digo que ela enrubesceu, ela ruborizou mesmo. Podem ver agora por que eu estava preocupado.
-Bom dia meninas. Anna, me dá um pouco dessa vitamina aí?
-Claro, Andrew. – Disse, servindo outro copo, mas sem nem olhar para mim.
Estava ocupada demais levantando a sobrancelha para Cornellia com um sorrisinho sarcástico. Elas se encararam por tanto tempo que eu pude terminar o suco e ainda lavar o copo nesse meio tempo.
-Tanto faz. –Bufou Nelly, quebrando o silêncio.
Emburrada, cruzou os braços e voltou para seu quarto, batendo sua porta com força.
-Acho que vou lá apaziguar a fera. – Suspirei, odiando essa parte da tarefa de melhor amigo.
- Tem certeza? Cuidado com as garras. – Brincou, me fazendo balançar a cabeça em reprovação.
- Se algum dia uma de vocês matar a outra, nem adianta me pedir pra ajudar a encobrir o corpo, porque eu simplesmente irei dizer um “não”, seguido de um “eu te avisei!”.
A expressão da mulher em resposta foi tão hilária que tirei uma foto para registrar. Eu amava fazer isso. Tirar fotos espontâneas, quero dizer. Era o que mais tinha em meu celular. Mas deixar meus companheiros de casa irritados também era um passatempo a que eu dedicava grande parte do meu tempo. Fazer o quê? Eu sou um hipócrita assumido.
Entreabri a porta com plaquinha de “Cornellia, a.k.a. Nelly” pendurada. Depois de uma confusão com o namorado de Anna entrando em meu quarto, eu obriguei a todos de colocarem plaquinhas em seus quartos respectivos, evitando confusão. Se bem que um idiota que passou a noite com Nelly mesmo assim conseguiu se confundir com isso. Bati levemente na madeira com a cabeça para dentro do quarto à meia luz.
-Vai embora. – Resmungou minha amiga, sonolenta.
- Sei exatamente o que pode te animar, sabia?
Sua cabeça levantou-se do travesseiro e mesmo daquela distância eu conseguia ver sua expressão de descrença.
- Hoje começa nossa aposta... A não ser que você tenha esquecido, com todo o álcool de ontem. – Soltei uma risada.
- Tá entra. Mas é só isso que tem a me dizer, seu traidor?
- Que tal uma ida com tudo pago de café da manhã no Café 24, hein?
- Se você está oferecendo... – Levantou da cama com um pulo, saindo de baixo do cobertor já arrumada.
Fiz uma expressão chocada. A mulher me conhecia muito bem, não era possível.
-Mas... Mas... COMO VOCÊ PODERIA SABER DISSO?
- Amor, esse é o ponto todo do nosso joguinho. Você é previsível demais. –Revirou os olhos. – Vai fazer bem ter um pouco de surpresa e loucura nessa casa.
Fui sendo puxado para a porta de casa me sentindo completamente injustiçado. Parei somente para acenar para Jackson, que conversava com um Youseff como sempre, jogando candy crush em seu telefone enquanto tomava café.
Como ainda estava bem cedo, não estávamos com pique para a longa caminhada e resolvemos pegar o metrô até a cafeteria. Fomos discutindo controvérsias jurídicas e pondo em prática nosso latim, como todo o bom estudante de direito. Na real Cornellia odiava todo o juridiquês, mas eu amava ficar decorando aquelas coisas. Por outro lado eu não podia argumentar contra o fato que todo aquele vocabulário distinto só servia para afastar o cidadão comum de entender as engrenagens da Justiça.
Entramos no Café e nos dirigimos para a cabine habitual, que quando Nelly não estava de serviço, era servida por um irlandês chamado Conan.
- Hey!
-Como está Conan?
Dissemos cumprimentando-lhe.
-Grand. E vocês? Estão bem?
Sorri lateralmente com a resposta irlandesa. Até eu descobrir que Grand significava ótimo, achava que o gringo era um tremendo de um tarado. Não entendia o porquê dele ficar anunciando por aí como estava seu órgão sexual. Conversamos rapidamente e pedimos o de sempre. Bem, com exceção da sobremesa de Nelly que custava os olhos da cara, mas era eu que estava pagando, não é?!
Após comermos, fomos abordados por uma daquelas pessoas da rua fazendo panfletagem. Normalmente eu diria que estava atrasado para algo, mas não foi como tivesse outra escolha, sob o olhar de águia da Nelly. Eu que não perderia nossa aposta.
- ... o Hospital Sheppard O’Malley Memorial... – Hey, esse nome não me é estranho... Ah sim, é lá que a Anna faz estágio. - ... buscando ajuda financeira ou voluntária... – Essas instituições estavam mesmo decadentes. - ... então vocês estão dispostos?
- Bem, estamos apertados da grana e tenho estado meio ocupada, mas tenho certeza que o Drew vai adorar ajudar, não é Andrew? – Perguntou a diabinha.
Lancei-lhe um olhar assassino, mas aceitei o panfleto a contragosto.
- Claro, estou de férias afinal, não é.
- Que ótimo senhor! Começará amanhã oito horas lá na ala pediátrica.
- Ok, obrigado. – Sorri, me afastando com Cornellia.
Quando não estávamos mais no alcance audível eu sibilei.
-Sua maldita, você vai comigo até lá.
- Eu não perderia isso mesmo. – Sorriu, saltitando e tirando uma foto de minha expressão contrariada.
Ah deus, eu criei um monstro!


Domingo a.k.a Terceiro Dia de Aposta
“If I could laugh through it all I know that it'd be good for me”
Assim como eu esperava, acordar Cornellia sete horas em pleno domingo foi um parto, mas ela o fizera já que havia prometido me acompanhar. Agora, chegando na ala pediátrica, parecia que estava completamente desperta. Bem mais do que eu, na verdade.
- O que tinha no seu café? – Perguntei, estranhando sua animação exagerada.
-Ah, só estou animada.
- Nelly, não te via assim faz tempo. Me fala a verdade, vai. O que você está aprontando?
Não tem aquela expressão: Não pergunte o que não está preparado para ouvir uma resposta sincera? Então, eu certamente não me sentia pronto. Mas fosse obra de Cornellia, ou mesmo do destino, estava feito. O passado sempre arranja uma forma de vir à tona. E esse era meu momento.
A resposta não foi entoada por Nelly, mas veio em forma de uma pessoa. Alguém que trocou olhares comigo, congelando no lugar assim como eu. Não podia acreditar em meus olhos. Confia em mim, eu cheguei a esfrega-los para confirmar que a pessoa que agora se encaminhava em nossa direção era quem eu pensava.
- Drew? – Perguntou a mulher que quebrara meu coração.
Só ela me chamava assim. Não tolerava que ninguém mais ousasse fazer isso. Seus olhos me analisaram assim como os meus a ela. Dois anos haviam se passado e ainda parecia a mesma. Mesmos traços franceses em sua face, mesmas curvas as quais eu amava me aventurar, mesma boca que me disse não tantas vezes, inclusive na mais importante delas.
“Emmanuelle Beaufort, há muitas formas de ser feliz nesse mundo, mas a única que eu realmente preciso é você. Me daria a honra de ser minha esposa?”
“Eu... Eu não posso aceitar... Me desculpe, Drew mas eu não posso.”
Não. Pensei fechando a cara. Meu coração não era mais dela para espremer quando quisesse. Virei-me para ir embora, mas meu braço foi segurado por Nelly. Ela recuou com meu olhar cheio não de ódio, mas de mágoa e súplica.
-Por favor, Drew. Só... Ouve o que ela tem a dizer. Semana passada eu vim visitar a Anna e descobri que a Emma estava como voluntária aqui todo domingo.
-O que é isso então? Uma emboscada?
-Isso foi obra minha! Juro que ela não sabia de nada. Na verdade, ela pediu para eu não te contar que ela tinha voltado.
-Ela mente, sempre mente! Você acha que sabe de tudo, mas não sabe de nada, Cornellia.
- O que quer dizer? Ela me contou tudo... Não foi? – Perguntou, não portando mais a mesma certeza de antes.
Olhamos rapidamente para a mulher que cruzou os braços, desviando os olhos.
- O que ela fez?
- Por que você acha que ela foi embora? Acha que estava com medo ou algo assim? Ela me deixou pra ficar com o outro cara que não teve tanta sorte quanto eu!
Cornellia abriu a boca, chocada e começou a brigar com Emma algo que eu não queria nem ouvir. Simplesmente deixei ambas discutindo e fiz meu caminho até a rua. Coloquei meus fones de ouvido na máxima potência tocando Between the Bars. Andei sem rumo como eu costumava fazer sempre que precisava pensar. Eu ainda era afetado por minha ex, não podia negar. Mas também não mais a amava. Tudo o que sobrara foram sombras de nossos momentos juntos, memórias assombrando minha mente de tempos em tempos. Vê-la não foi de todo o ruim, contudo. Só serviu para confirmar o que eu já suspeitava. A fase Emma fora só isso: uma fase.
“Pessoas que antes você foi
Que você não quer mais ao seu redor
Que empurram e forçam, e não se dobram à sua vontade
Eu as manterei paradas”
Cantarolei em minha mente, distraído. Comecei a atravessar a rua sem perceber que o sinal ainda estava fechado para os pedestres. E não, não é como costumam descrever. Quando percebi que o carro estava vindo em minha direção eu não parei para pensar sobre minha vida. Nenhuma lembrança passou em um flash. Não que eu não quisesse ter uma viagem pela ladeira da memória antes do que eu pensava ser o momento de minha morte. Eu só não tive tempo. Foram segundos até que eu estivesse jogado na calçada olhando para o céu. Ali deitado, sentindo dor e percebendo que não, eu não morrera. A bendita da motorista que corria até mim horrorizada, falando no celular provavelmente com a emergência, conseguira parar a tempo. Bem, quase a tempo. Eu ainda fora acertado, mas pelo menos a uma velocidade bem menor.
-Jesuss, você está bem? –Perguntou, ajoelhando-se a meu lado.
Comecei a tentar me levantar, mas suas mãos em meu ombro me impediram. No estado em que eu estava nem precisou usar muita força.
-Ei, paradinho aí mocinho! – Ralhou como se eu fosse uma criança. - Você vai direto pro hospital, agora mesmo!
-Heyy, estou bem, não precisa. Eu juro. – Repliquei envergonhado com minha desatenção.
Ela podia ter se machucado por minha culpa. Foi aí que me dei conta. Estendi o braço segurando o seu queixo e virando de um lado para o outro.
-O que está fazendo? – Tentou dizer através do muxoxo que eu criara.
“o queshta fashendo?” Foi mais parecido com o som que realmente saiu de sua boca.
-Examinando seu rosto. Você está ok?

Ela libertou seu rosto envolvendo meu pulso com um aperto gentil.
- Está preocupado comigo? Você que está todo quebrado aqui no chão. Não sei se já viu como está a sua perna. – Completou com seriedade.
Minha expressão de pânico só suavizou-se com sua risada.
-Ei, não acredito que brincou com isso! –Ri, revirando os olhos.
- Foi mal, era uma daquelas coisas que tinham que ser feitas, sabe. – Deu de ombros, ajeitando seu cabelo para trás da orelha.
- Só te perdoo porque sua risada é adorável. – Repliquei, encarando sua orelha com três brincos.
Foi aí que comecei a reparar mais nos detalhes de sua aparência. Enquanto ela corava com meu comentário, abrindo um sorriso amplo que iluminou seu rosto como uma manhã de natal, eu analisava a tatuagem na lateral de seu dedo.
-O que isso quer dizer? – Perguntei, curioso.
- Ah, isso. – Comentou, ficando com o olhar distante por alguns segundos.
Fomos interrompidos pelo som da ambulância chegando. Puseram-me em uma maca e a mulher misteriosa subiu no veículo para me acompanhar. Até tentei resistir que gastasse seu tempo, mas ela me garantiu que sua tarde estava vazia e uma amiga iria buscar seu carro.
- Não é algo religioso? – Perguntei, rompendo o silêncio, que só era quebrado aleatoriamente por umas instruções do enfermeiro no hospital.
-O que? – Perguntou ela, confusa.
-A tatuagem. – Esclareci com um meio sorriso.
- Ah, também é... Mas a trinity tem vários significados.
- E por qual deles você a escolheu?
- O que simboliza corpo, mente e alma. Foi algo que li em um livro na adolescência que me marcou muito.
Trocamos um olhar longamente até que o médico chegasse pedindo para eu encarar sua luzinha irritante.
-Parece que o senhor teve sorte, senhor Walker. Foi um acidente que poderia ter tido um impacto muito maior, talvez até maior. Preste mais atenção no futuro.
-Eu irei. – Murmurei, enrubescendo.
-Só para cobrir o pior dos casos, gostaria que fizesse só mais um exame para checar se não houve concussão. Depois do resultado será liberado. Minha interna irá auxiliá-lo a partir de agora, com licença.
- Senhor Walker, hein? – Comentou a mulher a meu lado.
- Ah, sim. Acredito que não nos apresentamos. Sou Andrew Walker, à suas ordens madame. – Entoei com um sotaque sulista muito mal feito.
- Muito prazer Andy, me chamo...
-ISABELLA!
Só que o nome não saiu da boca de minha salvadora, e sim de uma figura conhecida que pulou em cima do meu anjo da guarda em um abraço de urso.
-Anna?
-Andrew?
Perguntamos ao mesmo tempo. Para efeitos humorísticos, Isabella terminou com um “Isabella?”. Rimos brevemente e eu tive que enfrentar todo o drama e a vergonha da explicação do por que estarmos no hospital em primeiro lugar. Logo depois exigi que me explicassem como se conheciam e acabou que Izzy era a amiga que Anna tinha estado tão animada sobre estar se mudando para nossa cidade. Após um grande sermão Anna me examinou, aguardamos por mais um tempo e fomos todos para casa.
Mas a Anna não está no meio de um plantão? Você poderia perguntar ceticamente, mas para responde-lo por completo teria que voltar muito no tempo. Simplificando: minha companheira de quarto era tão workaholic que já havia completado suas horas necessárias no internato, então o que quer que estivesse fazendo agora era um extra. Ou ao menos foi o que ela disse. Eu vivo dizendo que minha amiga é maluca, não sei como ninguém acredita.
A coincidência da mulher misteriosa conhecer minha companheira de apartamento não me passou desapercebida. O destino parecia ter me marcado para naquele momento conhecer a menina que me intrigaria ao ponto da loucura.


Comecei minha história falando sobre como esperei a vida toda por uma mulher como ela e conseguira estragar tudo em menos de uma semana. Isabella era essa pessoa, mesmo que naquele primeiro momento eu ainda não estivesse certo disso. Com uma aposta aquilo tudo começou e a partir de uma também, nós iríamos terminar o que quer que tivéssemos.
Ironicamente, eu nunca estivera tão vivo, mesmo em meio a meu coração partido. Foi em meu quarto refletindo sob efeito de cannabis que tomei a decisão de viver cada dia como se fosse uma aposta. Porque a VIDA é a maior aposta que podemos fazer. Cada dia em que acordamos, respiramos é mais um dia em que vencemos as estatísticas. E eu faria por merecer ter Isabella em minha vida dali por diante.


FIM



Nota da autora: Olá, pessoal! Espero que tenham gostado <3! Por favor, não se esqueçam de deixar seu comentário ali embaixo, seja surtando, elogiando ou fazendo uma crítica construtiva. Amarei ler seus feedbacks e reações. No mais, quem quiser, será super bem-vindo no grupo do face!





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05. I’m not the only one (Ficstape)

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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