12. Changing Tides

Última atualização: Fanfic Finalizada

Prólogo

20 de agosto de 2015

Loving and fighting, accusing, denying
(Amando e lutando, acusando, negando)
I can't imagine a world with you gone
(Não posso imaginar um mundo sem você)
The joy and the chaos
(A alegria e o caos)
The demons we're made of
(Os demônios de que somos feitos)
I'd be so lost if you left me alone
(Eu ficaria tão perdido se me deixasse sozinho)

Ele esfrega as têmporas, angustiado.
Não sabe quanto tempo disso ainda pode aguentar. Uma semana? Um mês?
Ela precisa de ajuda. Taylor precisa de ajuda, mas é incapaz de admitir.
Os últimos riscos em seus braços são mais que riscos.
Da última vez em que se abriram — da última vez que ela os abriu —, teve de levá-la ao hospital.
Eles fizeram curativos e a medicaram, deixando-a inconsciente — dopada — por algumas horas.
Depois, quando estavam indo embora, Taylor dissera “As melhores horas da minha vida!” e rira.
— Taylor! — ele berra.
— Cale a boca! Cale a boca! — ela não diz o nome dele. Às vezes fala sozinha. Ou com as vozes em sua cabeça.
Nos últimos tempos, parecem falar cada vez mais alto. Não melhorou com o tempo de desintoxicação. Na verdade, parece que está cada vez pior. Taylor está cada vez mais distante de si mesma.
Mas nem sempre fora assim.
Antes, ela era pura luz. Divertida, extrovertida, alegre.
Isso fora antes das festas. Antes dos novos amigos. Antes das drogas.
Agora, Taylor é só sombras. Sua luz morta por tudo de errado que ela fez nos últimos meses.
No entanto, há três semanas ela está sóbria. E é exatamente por isso que agora ela grita, quebra as coisas pela casa e precisa ser segurada, abraçada, acalentada como um bebê.
— Taylor! Taylor, abra essa porta! — berra, batendo na porta pelo que deve ser a milésima vez. — Por favor, Taylor… por favor. Nós podemos resolver isso juntos… você sabe que podemos.
Ele se senta, encostado à porta, esperando a boa vontade da namorada.
Mas tudo está tão silencioso, tão quieto, que ele sente uma dor crescente em seu peito.
— Taylor?
Mais silêncio.
tem certeza de que consegue ouvir seu coração pulsando em seus ouvidos.
— Taylor? — ele chama mais uma vez, mas sabe que é em vão.
Sabe o que está acontecendo lá dentro. O que aconteceu.
Ele fecha os olhos, inspirando e expirando antes de se levantar.
encara a porta à sua frente por um milissegundo, mas que parece uma eternidade.
Ele, então, a empurra com a força máxima de um chute.

You locked yourself in the bathroom
(Você se trancou no banheiro)
Lying on the floor when I break through
(Caída no chão quando eu entrei)
I pull you in to feel your heartbeat
(Eu te puxo para sentir seus batimentos)
Can you hear me screaming please don’t leave me?
(Você consegue me ouvir gritando por favor não me abandone?)

Taylor está jogada no piso ladrilhado do banheiro. As pernas encolhidas, os braços esticados. O sangue espalhado em volta destes.

Hold on, I still want you
(Aguente firme, eu ainda te quero)
Come back, I still need you
(Volte, eu ainda preciso de você)
Let me take your hand, I'll make it right
(Deixe-me pegar sua mão, vou consertar isso)
I swear to love you all my life
(Eu prometo te amar por toda minha vida)
Hold on, I still need you*
(Aguente firme, eu ainda preciso de você)


— Taylor! Taylor! — grita seu nome tantas vezes que fica rouco.
Ele não consegue se mover para além de balançar o corpo dela, o sangue manchando suas roupas.
Um homem aparece no apartamento, com uma expressão clara de medo… choque.
É o vizinho da frente. Ele corre de volta para a sala e pega o celular, pedindo socorro.
A ambulância não demora dez minutos, mas parece que repete o nome dela um bilhão de vezes durante toda a eternidade.
— Taylor… Taylor… — ele está rouco, e seus braços, agarrados ao redor dela, estão doloridos e duros de tensão.
Os paramédicos precisam se juntar para soltá-lo e chegar até Taylor.
não chega a ouvir o que dizem. Podem não dizer absolutamente nada. Mas ele percebe quando um paramédico gesticula para o outro, em negação.
Não há nada a ser feito. Taylor não tem mais pulso. Taylor não tem mais vida.


When the rain came
It washed us out to sea
I'm holding what I love
And she's holding on to me

It's no surprise
It brought me to my knees
You're never really ready
You're ready as can be


*Trecho de ‘Hold On’ de Chord Overstreet


Capítulo 1

20 de agosto de 2019


já perdeu as contas de quantas vezes ouviu o mesmo tipo de barulho vindo do apartamento ao lado.
Os gritos, as batidas, o choro. Tudo repetidas vezes, dia após dia.
E ele pensara que teria paz no novo prédio. O síndico dissera que…
Por favor! Por favor, não!
Antes que perceba o que está fazendo, se levanta.
Ele nem sabe o que está fazendo. Calça os tênis de corrida que estão jogados perto da porta, mas permanece imóvel por alguns instantes.
Cliff, Cliff, não! — o grito agudo vem antes de mais um estrondo e o barulho de estilhaços.
se move mais rápido do que humanamente possível. Quando percebe, já está dentro do apartamento, a porta quebrada logo atrás de si.
Ele ouve resmungos de algum lugar lá dentro.
Quando finalmente os encontra, congela.
O homem, Cliff, está de pé ao lado do corpo caído de uma mulher.
Ela está desacordada e, em volta dela, pequenas poças de sangue.
precisa fechar os olhos e esfregar as têmporas. Tudo parece se passar em câmera lenta.
Taylor… caída no chão… o sangue…
Ele não tem mais tempo. Quando percebe, Cliff já está em cima dele, segurando-o pela camisa ao mesmo tempo em que deixa cair no chão uma garrafa quase vazia de vodca.
O homem todo fede a vodca.
— Quem é você, seu filho da puta? — Cliff berra, jogando-o contra a parede.
reage. Não consegue perceber quando começa, mas ele e Cliff trocam socos e, em certo momento, ele lança Cliff para longe com um chute.
Não sabe de onde vem tanta força, mas as lembranças dolorosas não insistem em entrar quando ele está batendo naquele homem desgraçado.
Cliff bate as costas contra a pequena pia do banheiro, que desmorona. Ele cai por cima da bagunça, um caco de cerâmica se enfiando em sua perna. Ele grita, mas se volta a ele outra vez, abaixando-se à sua frente.
— Seu bosta. — ele cospe.
Cliff não reage. Está bêbado e ferido demais para isso.
se volta ao corpo encolhido da mulher no chão.
não sabe seu nome. Sempre que se dirige a ela, Cliff abusa de pronomes pejorativos. Cadela. Vagabunda.
Ele se ajoelha ao lado dela, e encosta dois dedos em seu pescoço.
Ela tem pulso. Está viva.
Taylor… os braços ensanguentados… as poças no chão.
Ele balança a cabeça outra vez.
Não. Não pode se deixar levar. Não agora.
digita os números no celular e espera.
Espera.
As sirenes se aproximam todas ao mesmo tempo.
É tudo tão rápido, tão intenso, que parece agir no modo automático.
Ele responde às perguntas dos policiais, que levam Cliff preso. Responde às perguntas dos paramédicos: sim, ela já estava desacordada quando ele chegou. Não, ele não sabe seu nome. Sim, ele pode acompanhá-los até o hospital.
Enquanto entra na ambulância, ele só consegue se perguntar…
— Como é que eu vim parar aqui? — sussurra, baixinho, olhando para a mulher desmaiada na maca.

***

Quando ela abre os olhos, sabe de tudo. Sabe onde está. Sabe o que aconteceu. Sabe o que ainda vai acontecer.
Nada está doendo, mas, assim que dá uma olhada pelo próprio corpo, entende que ainda vai sentir bastante dor.

Crawling in my skin,
(Rastejando em minha pele)
These wounds they will not heal,
(Essas feridas nunca vão se curar)
Fear is how I fall,
(O medo é o que me derruba)
Confusing what is real
(Confundindo o que é real)

Há um acesso de soro em seu braço direito, e o esquerdo está engessado. O pé direito está enfaixado, e uma atadura imensa em sua coxa esquerda lhe faz lembrar da ferida sendo aberta, o caco de vidro da garrafa de cerveja se cravando em sua perna ao quebrar.
O fato de seus olhos estarem pesando, também, não é só efeito das drogas em suas veias.
Ela se pergunta onde será que ele está. Onde está Cliff? Ele fugiu? Ele foi preso? E, por último, mas não menos importante: quem a encontrou? Quem a ajudou?

There's something inside me
(Há algo dentro de mim)
That pulls beneath the surface
(Que me puxa para baixo da superfície)
Consuming, confusing
(Consumindo, confundindo)
This lack of self control I fear is never ending
(Temo que essa falta de autocontrole nunca acabe)
Controlling
(Controlando)
I can’t seem to find myself again
(Parece que não consigo mais me encontrar)
My walls are closing in
(Minhas paredes se fechando)
Without a sense of confidence
(Sem um senso de confiança)
And I'm convinced
(E estou convencido)
That there's just too much pressure to take
(De que há muita pressão para aguentar)
I've felt this way before, so insecure*
(Eu já me senti assim, tão inseguro)

Quando olha para o lado, dá de cara com um rapaz adormecido em uma cadeira de plástico.
De moletom, camiseta e tênis desamarrados, ele parece exausto, mas o que chama mais atenção são os pequenos ferimentos em seu rosto… e em suas mãos, cruzadas sobre as pernas.
Foi ele. Ele a encontrou. Ele lutou com Cliff. Não precisa ser nenhum gênio para compreender.
Aquele homem dormindo sentado tinha salvado sua vida.
— Você está acordada! — uma voz animada chama sua atenção, e também acorda o cara da cadeira, que se levanta de imediato.
— Você está acordada. — ele repete, baixinho, quase como se não acreditasse.
Ela corre os olhos entre os dois. A enfermeira e o homem que salvou sua vida.
— Gostaríamos de saber seu nome. — a enfermeira diz, e toca-lhe gentilmente no ombro. Mesmo que o toque seja delicado, ela recua um pouco.
A enfermeira não parece se ofender, mas compreender o gesto.
. Meu nome é . — ela diz, mas não olha para a enfermeira.
Enquanto encara o homem desconhecido, ela experimenta um misto inexplicável de sentimentos.
Gratidão. Medo. Dúvida.
. — ela diz, dessa vez olhando para a enfermeira, que preenche o papel em uma prancheta.
O homem ainda está de pé, olhando para ela.
Dúvida. Medo. Gratidão.


The sun was coming up
We were sifting through the sand
Looking for the pieces
Of our broken plans
It's gonna take a while
We're gonna get it back
We gotta carry on darling
We were built to last


*Trecho de ‘Crawling’, do Linkin Park


Capítulo 2

quase estende a mão para cumprimentá-la, mas consegue perceber o ato falho antes mesmo de cometê-lo.
— Meu nome é . — ele diz. — Eu sou… ahn…
— O vizinho do lado. — ela lembra.
assente.
Que situação desconfortável. De repente, ele deseja que não tivesse ficado ali, esperando.
Mas fora mais forte que ele. Precisava saber como ela estava.
— Eu não sei como te…
— Não. — ele interrompe. — Não… não tem que… — os dois se entreolham por um instante. — Não. — ele murmura, balançando a cabeça.
Ela assente, como se compreendesse. Porque de fato compreende. Ele também não quer falar sobre o que aconteceu. Provavelmente porque não sabe o que dizer.
Tantas coisas se passam pela cabeça dela
— Que bom que você acordou! — uma médica entra na enfermaria, olhando para com um sorriso no rosto. — Já dei uma olhada nos seus exames. Está tudo bem… na medida do possível. Com exceção da fratura no braço esquerdo e a pequena luxação no pé direito, não há muito com o que se preocupar. Tudo vai se encaminhar para curar naturalmente. — ela espera que diga algo, mas sem resposta. — É claro que vou te receitar vários remédios para tomar em casa e você deve retornar em umas duas semanas para verificarmos o ferimento na coxa e tirarmos os pontos.
apenas assente.
Tudo vai se encaminhar para curar naturalmente”.
— Já assinei os papéis da alta. — a médica diz, entregando uma porção de folhas para . Depois, ela olha para . — Você vai cuidar dela? — é mais que uma pergunta. A médica está mesmo preocupada com essa questão.
Ligeiramente constrangido, assente.
— Ah. Mais uma coisa. — a médica diz, lembrando-se de algo. — Só um minuto.
Ela sai da sala, mas volta logo depois, com uma sacola.
— Suas roupas não... — ela diz.
assente. Não tem como sair de lá vestida com as próprias roupas.
— Obrigada. — diz.
A médica assente. E hesita alguns instantes antes de sair, como se quisesse dizer mais alguma coisa. Mas não diz.
— Vou te ajudar a se trocar. — a enfermeira diz, enquanto remove o acesso de soro do braço de .
olha para ela com preocupação antes de sair.
— Você tem um grande amigo. — a enfermeira fala, colando um curativo no braço dela.
não sabe o que dizer. Como falar que nem sequer o conhecia antes desse momento?
Ela só assente.
A enfermeira a ajuda a se vestir. As roupas ficam um pouco folgadas, mas a sensação de se livrar da camisola do hospital já é um alívio imenso.
Quando ela sai, , que está sentado em uma das cadeiras no corredor, se levanta imediatamente.
— Você… quer uma carona? — ele pergunta.
balança a cabeça, negando, quase histericamente.
— Eu não posso… voltar para lá. Não consigo. — ela também não consegue encará-lo. Mas ele assente.
— Tem algum outro lugar para ir?
— Não, mas… eu vou dar um jeito. — ela se senta em uma das cadeirinhas.
suspira.
— Vamos. — ele diz. — Eu sei de um lugar onde você pode ficar.
— Não, não… você não precisa.
— Está tudo bem, . Eu quero ajudar.
. — ela diz. — Pode me chamar de .
assente.
— Se você não… estiver confortável com isso, eu te ajudo a pegar um táxi e…
Dessa vez, demora a entender. Ele acha que ela pode ter medo dele.
É claro que ela está com medo. Mas não dele. não parece capaz de ferir uma mosca por mal.
— Está bem. — ela diz. — Eu só… tem uma coisa que eu quero saber.
Ele olha para ela, curioso.
— Cliff. — explica. — O que aconteceu? Você lutou com ele? Ele está preso?
assente.
— Sim… ele está preso. Você não tem que se preocupar com isso... agora. — ele diz, sentando-se ao lado dela.
só assente. Não consegue nem pensar em todas as coisas que ainda terá que enfrentar por causa de Cliff.
— Vamos. — ela diz, levantando-se de novo, mas desequilibrando-se um pouco. a ajuda a se manter de pé.
— Vamos arrumar umas muletas para você também. — ele diz, tentando soar brincalhão, mas depois sentindo-se temeroso. Ela não deve estar entendendo nada., ele pensa.
a ajuda a entrar no carro, e espera enquanto ela afivela o cinto de segurança.
Nos últimos meses, ele dirigiu muito para onde está indo agora. Mas nunca com alguém no banco do carona.
Não depois de Taylor.
Ele tenta não pensar nisso. Principalmente porque parece desconfortável (o que é completamente compreensível) e dolorida. Ela segura com força na beirada do banco, como se fosse cair.
Quando finalmente vê o sobrado azul, expira, aliviado.
estaciona em frente à casa e, imediatamente, olha para .
Ela parece curiosa, mas não amedrontada. Está olhando as flores espalhadas pelo jardim, nos parapeitos e na sacada. Parece até um pouco surpresa — e encantada.
desce do carro e abre a porta para ela, ajudando-a a descer.
— Venha. — ele diz, oferecendo o braço de apoio para ela.
Ele aperta a campainha e, em instantes, uma mulher mais velha abre a porta.
Surpresa toma conta de seu rosto.
? — depois, ela olha para , confusa.
— Mãe, essa é a . Ela precisa de um lugar para ficar. , essa é minha mãe. Ela é dona dessa pousada.
o encara, sem saber o que dizer.
— Não acho que posso pag…
gesticula, impedindo-a de continuar.
— Não se preocupe com isso. — diz, com firmeza. — Isso pode ser resolvido depois.
A mãe de recua para que os dois entrem.
— Sinta-se em casa, . — ela sorri, mas seus olhos estão cheios de preocupação.
Ela olha para , e aponta para o corredor com a cabeça.
— Só um minuto, . Eu já volto. — ele diz, antes de seguir a mãe até a cozinha.
— Quem é essa garota? O que aconteceu com ela?
— Ela é minha vizinha. O namorado a agredia… a agrediu ontem. Quase a matou.
— Misericórdia, , que coisa horrível… — ela leva as mãos ao rosto, horrorizada.
— Ela não tem para onde ir. Acabou de sair do hospital e… ela não tem condições de voltar para aquele lugar.
A mãe de o abraça com força.
— Meu menino. — ela diz. — Estou orgulhosa de você por tê-la ajudado. Muito orgulhosa.
assente.
— Acha que pode deixá-la ficar por uns dias?
— É claro… claro! Mas o que aconteceu com o desgraçado que fez isso com ela? E… — ela finalmente nota os ferimentos no rosto do filho. — Você brigou com ele?
— Sim, eu briguei. Mas ele está preso. Pelo menos por enquanto. — suspira. — Nunca se sabe o que pode acontecer.
A mãe dele assente.
— Vamos cuidar dela, está bem? Vamos cuidar bem dela. Ela vai ficar bem.
— Obrigado, mãe.
Ela sorri.
— Ela deve estar faminta!

***

não está com fome.
Mas aceita de bom grado o prato de sopa de legumes que lhe é oferecido.
O estômago está doendo, então uma sopa é tudo que ela pode conseguir engolir.
Ela agradece centenas de vezes. Até cansar.
Não conhece nenhuma das duas pessoas que a estão ajudando, mas, inexplicavelmente, sente-se mais do que grata. Sente-se segura.
e a mãe — — são boas pessoas, e é fácil de notar.
O senso crítico de falhou uma vez, com Cliff, mas ela nunca esteve totalmente inconsciente da falta de caráter dele. Ele só não parecia tão cruel.
Ela fecha os olhos quando se lembra dele.
Os olhos injetados de raiva, o hálito de álcool queimando-a toda vez que gritava com ela. Suas mãos, acertando-a em cheio… tapas, socos… os dedos ásperos se chocando contra sua pele. No rosto, na barriga…
? — a toca gentilmente no ombro. — Você está bem?
Uma lágrima escorre de seu olho antes que consiga detê-la. Odeia a aparência de fragilidade à qual está condenada no momento.
— Estou. É que… — ela não consegue dizer nada.
— Está tudo bem, querida. — diz, fazendo carinho de leve em seu ombro. — Você vai ficar bem aqui, certo? Vamos cuidar de você.
Hum… , eu vou dar uma saída, mas é rápido, eu prometo. Você quer que eu pegue alguma coisa para você na sua… no apartamento?
Ela não parece conseguir raciocinar.
Não quer pensar no apartamento. Não consegue.
— Tem uma mochila… embaixo da cama. Eu ia usar para fugir… antes que… — fica em silêncio outra vez. — Antes que ele chegasse.
assente.
— Tudo bem. Vou buscar para você.
Na verdade, ele não tem ideia de como vai entrar no apartamento. Não sabe nem se vai conseguir.
Mas vai dar um jeito.
— Eu já volto. — ele diz.
Dá uma última olhada na mãe e em antes de sair a passos largos.
Um turbilhão de pensamentos o está deixando tonto.
Não teve muito tempo para digerir tudo que aconteceu nas últimas horas. Mas parece que tudo virou de ponta cabeça.
De qualquer forma, um sentimento ele consegue identificar, mais claro que todos os outros: alívio.
Não está a tanto tempo morando no novo apartamento, mas ouviu os gritos de quase todas as noites.
Agora sente-se um covarde. Por que não fez nada antes? Por que esperou tanto tempo?
Ele olha a tela do celular, acesa no banco do passageiro.
21 de agosto.
Pela primeira vez, ele se esqueceu.
No dia anterior completaram-se quatro anos desde que Taylor tirara a própria vida no banheiro dos dois.
Enquanto dirige, começa a chorar. Sente-se um traidor. Ele esqueceu.
Mas é obrigado a parar quando nota, à sua esquerda, uma loja de produtos ortopédicos.
Ele procura um lugar para estacionar mais à frente, e volta andando.
precisa de muletas. E de uma tipoia para o braço engessado.
— Posso ajudar? — uma senhorinha simpática pergunta assim que ele entra.
— Eu preciso de um par de muletas… hum… de adulto. E uma tipoia para braço… esquerdo. Eu acho.
A senhorinha sorri para ele enquanto repete “Claro, claro” e gesticula para que ele a siga loja adentro.
vê os preços nas etiquetas amarelas penduradas.
É tudo caro, e ele precisa fazer algum esforço para não arregalar os olhos e soltar um “puta que pariu!” bem vigoroso.
Ele escolhe a versão mais barata de cada um dos itens — que já são bem caras — e segue a senhorinha até o caixa.
Depois, carrega tudo até o carro, guardando no banco de trás.
Precisa, agora, voltar para o apartamento. Pegar as coisas de , mas, além disso, tomar um banho e trocar de roupa. Está vestindo a mesma coisa desde a noite anterior, e o cheiro de suor e sangue está começando a ficar mais que desagradável.
Ele dirige para o prédio onde mora, mas que, em algumas horas, deixou de parecer mesmo que minimamente com uma casa.
Estaciona em sua vaga e sobe.
O apartamento ao lado do seu está quase do mesmo jeito. A porta arrombada permanece ali, pendurada, e o lugar é isolado apenas por uma fita amarela listrada. Mais nada.
Mas, primeiro, ele passa no próprio apartamento.
Alguns — bons — minutos debaixo do chuveiro só podem lhe fazer bem.

I’m trying to be honest with my happiness
(Estou tentando ser honesto com a minha felicidade)
Don’t know why I’m so bad at this
(Não sei porque sou tão ruim nisso)
And I don’t want to sit all in my sadness
(E eu não quero ficar sentado na minha tristeza)
I know it’s a habit of mine
(Eu sei que é um hábito meu)

O apartamento da frente toca uma música alta, e sabe quem a está ouvindo. A garota de catorze anos que mora ali com os pais e um gato preto.
Ela sempre ouve música alta. E as playlists são sempre as mesmas.
fecha os olhos enquanto está sob a água, esperando que sua mente se esvazie assim como a visão.

Perfect, perfect timing
(O timing perfeito)
I start but I don’t know how to end
(Eu começo, mas não sei terminar)
Don’t remind me
(Não me lembre)
I ruined it before it began
(Eu arruinei tudo antes de começar)

Nos últimos quatro anos, poucos foram os dias em que não pensou em Taylor. Menos ainda os dias em que não se lembrou daquele dia.
Quando a encontrara no chão, sem vida.
O que ele não consegue evitar agora é lembrar-se de , também caída no chão. Quando a vira, a memória de Taylor viera à sua mente, como uma enviada distante.
E se não estivesse mais viva?
balança a cabeça, espalhando respingos de água pelo banheiro.

Last night was the last night of my past life
(Noite passada foi a última noite da minha vida passada)
Got me here like you can never figure me out
(Pegou-me aqui como se você nunca pudesse entender)
Last night was the last time, was the last time*
(Noite passada foi a última vez, a última vez)

está viva.
E ela não é Taylor. Não se parecem em nada.
Ele desliga o chuveiro, puxa a toalha e se enxuga rapidamente.
O prazer de vestir roupas limpas atenua toda a agonia restante.
Ele joga algumas roupas de qualquer jeito em uma bolsa, e parte em direção ao apartamento ao lado.
Passa por baixo da fita e, sem maiores problemas, entra.
Está tudo como estava na noite anterior.
Revirado, quebrado.
Ele consegue perceber gotinhas de sangue no corredor.
Sangue de .
Como ela pôde suportar por tanto tempo?
Ele entra no quarto, sentindo-se extremamente intruso.
Também está tudo revirado.
A colcha vermelha sobre a cama está escorregada para o chão.
Uma pequena penteadeira tem cosméticos caídos e um creme derramado.
A casa é um caos. E era àquilo que se resumia a vida de . Um caos.
se abaixa, pega a mochila debaixo da cama e deixa o apartamento, sentindo-se aliviado por sair.
Não sabe como, mas não pode permitir que volte para aquela vida.


Changing tides
Baby, that’s the hardest part of life
Hold me tight
And we will move as one in the changing tides


*Trecho de ‘Past Life’, de Trevor Daniel


Capítulo 3

Quando volta para a pousada, descobre que está se instalando em seu novo quarto.
— Acabei de deixá-la sozinha lá. Não sei se fiz certo… você acha que ela deve ficar sozinha? — pergunta.
— Acho que está tudo bem. Ela deve precisar ficar um pouco sozinha. Depois de tudo que aconteceu…
suspira.
— Bom… bata na porta antes de entrar. Vamos fazer o possível para não assustá-la, está bem?
Ele assente, subindo as escadas com a mochila, as muletas e a tipoia.
obedece a mãe e bate antes de entrar.
responde tão baixinho que, por um instante, ele se pergunta se imaginou.
Mas já abriu a porta, então a dúvida precisa ficar de lado.
está na varanda.
Ela não se vira para ele.
Parece tão distante…
— Eu… hum… trouxe as suas coisas. — diz, sentindo-se inexplicavelmente ansioso.
Por qual motivo ele sente tanta vontade de agradá-la? E tanto medo de assustá-la?
pega a mochila.
— Obrigada, . Eu… tenho algum dinheiro aqui. Posso pagar pelo menos por algumas dessas coisas. — ela revira a mochila, ansiosa, até encontrar um saco de papel pardo, que estica na direção dele.
— Bem… vamos combinar uma coisa? — pergunta. continua olhando para ele, curiosa. — Acertamos tudo isso quando você estiver melhor. Pode ser?
Ela abre a boca para protestar, mas não diz nada.
— Aqui. — diz, entregando as muletas para ela. — Tem que ajustar, mas acho que não é tão difícil. E… a tipoia. Para o braço quebrado.
Ela assente.
— É… demais. Eu não… — suspira. — Por que está fazendo isso?
A pergunta pega de surpresa.
Ele dá de ombros, hesitante.
— Eu só… não acho certo. — responde. — Se você ficasse sozinha agora… eu não acharia certo.
— Ninguém mais ligaria. Ninguém ligou. — lágrimas rolam pelo rosto dela.
as enxuga com afinco. Quase com raiva.
Ela sabe que salvou sua vida e, aparentemente, segue salvando, nos pequenos detalhes.
Mas não consegue evitar a posição defensiva.
E se ele resolver perguntar por que ela nunca fez nada? Por que nunca pediu ajuda? O que ela vai dizer? Como pode explicar que teve tanto medo que nunca conseguiu falar a verdade para ninguém? Que permaneceu daquele jeito por um ano inteiro, mentindo para os outros — e para si mesma, no começo — protegendo aquele que a estava matando aos poucos?
— Sinto muito por não ter feito nada antes. — diz, bem baixinho.
Os olhos de se arregalam. E ela volta a chorar.
Hesitante, se aproxima dela.
. — ele diz. — Vai ficar tudo bem. Você está segura agora.
E a voz dele é tão doce, tão sincera, que ela se tranquiliza.
E, sem muito pensar, avança em um passo trôpego e o abraça.
No andar de baixo, canta os versos de uma canção.

There are places I remember
(Há lugares dos quais me lembro)
All my life, though some have changed
(Toda minha vida, embora alguns tenham mudado)
Some forever, not for better
(Alguns para sempre, não para melhor)
Some have gone and some remain
(Alguns se foram e alguns permanecem)

All these places had their moments
(Todos esses lugares tiveram seus momentos)
With lovers and friends, I still can recall
(Com amores e amigos dos quais ainda me lembro)
Some are dead, and some are living
(Alguns estão mortos, e outros ainda vivem)
In my life, I’ve loved them all
(Na minha vida, amei todos eles)

But of all these friends and lovers
(Mas de todos esses amigos e amores)
There is no one compares with you
(Não há ninguém que se compare a você)
And these moments lose their meaning
(E esses momentos perdem o significado)
When I think of love as something new*
(Quando penso no amor como algo novo)

***

Depois que a deixa sozinha de novo, desce para encontrar a mãe, que está dormindo no sofá em frente à lareira acesa, embora não faça exatamente muito frio.
Ele se senta ao lado dela e, como se capaz de perceber sua presença, acorda, olhando com certa curiosidade ao redor.
— Como ela está? — pergunta.
— Melhor do que eu estaria na situação dela. — responde.
— Você a conhecia antes disso tudo?
Ele balança a cabeça, negando. Embora pareça que sim, ele a conhecia de antes.
— Estou feliz que ela possa contar com você, filho. As coisas não devem estar sendo fáceis para ela. E, além do mais, não sabemos nada sobre a família dela… os amigos… A vida dela está de cabeça para baixo… tenho medo de que ela desmorone.
suspira.
— Não acho que tenha alguém que ela queira procurar… ou o teria feito. Não sei… tudo acabou de acontecer, ela deve estar confusa, envergonhada… Como você liga para alguém e diz… bom, como você liga para alguém e conta que te aconteceu tudo que aconteceu com ela? Que ela está viva, que ela é uma guerreira? Como é que se faz isso?
assente, concordando com ele.
— Você vai ficar essa noite? — pergunta.
— Sim… eu disse a ela que estaria no quarto ao lado caso ela precisasse de alguma coisa. — ele suspira. — Mas espero, honestamente, que ela não precise.

E não, ela não precisa.
Talvez seja o alívio de estar longe de tudo, talvez sejam os medicamentos agindo, mas dorme apenas alguns instantes após se deitar.
Naquela cama desconhecida, naquele quarto desconhecido, naquele lugar desconhecido.
Todo o cansaço e toda a dor parecem derrubá-la também. Mas ela não tem tempo para chorar.
Está recebendo uma segunda chance, e não pode ser ingrata demais para entendê-la, recebê-la e aceitá-la, ainda que diretamente das mãos de um desconhecido.
No entanto, mesmo depois de apenas algumas horas desde que ouvira seu nome pela primeira vez, não se sentia como alguém dependendo de um estranho.
Se sentia como alguém voltando para casa.


There’s no doubt the beauty that we see
Following the path, so much older than we
Lovers built it with their hands, walked it with their feet
Above the raging waters and the darkness underneath


*Trecho de ‘In My Life’, dos Beatles.


Capítulo 4

Ela acorda antes deles.
Tem certeza disso pelo simples fato de que, quando se arrasta escada abaixo, não dá de cara com ninguém.
E o relógio na parede da cozinha marca sete e cinquenta da manhã.
não é uma boa cozinheira, e contar com apenas um braço não favorece em nada a situação, mas, ainda assim, ela insiste em tentar preparar ovos mexidos, torradas e café preto.
Alguns segundos depois de começar, já se sente uma invasora por ter aberto a geladeira, mas já é tarde demais.
— Pensei ter sentido cheiro de ovo. — diz, sentando-se em um banquinho ao balcão de mármore. — Bom dia.
— Bom dia. — ela diz, tentando sorrir para ele. Até que não é tão difícil. — Espero que não se importem… achei que fossem acordar com fome.
, vestindo um robe aveludado e calças de pijama, também se junta a eles.
— Eu não me importo nem um pouquinho. Na verdade, não consigo nem mesmo me lembrar da última vez em que tomei café da manhã que eu não tinha preparado.
Os três riem.
— Mas, se não se importar, vou ajudá-la com isso. — diz, pegando um avental florido e amarrando-o na cintura. — Embora você não esteja se saindo nada mal.
— O cheiro está ótimo. — confirma, assentindo.
sorri de novo.
É bom acordar sem medo.
É bom sentar-se à mesa com duas pessoas que não vão levantar-se do nada e agredi-la.
É bom estar viva, ainda que a vergonha pareça estar se tornando cada vez mais clara para ela.
Como pôde deixar as coisas chegarem a esse ponto? Em que perdeu tanto o controle sobre a própria vida que está confiando quase cegamente em estranhos, permitindo-se isolar tudo de ruim que lhe acontecera nos últimos tempos em um canto escuro de sua mente, incapaz de pensar em quando será possível acessar tudo isso.
Mas sabe. Ela simplesmente sabe. Tudo que aconteceu, e tudo que ainda pode acontecer.
Só não sabe direito o que está acontecendo agora, mas é bom.
E ela não vai recusar a sensação.
Faz tanto tempo que não tem algo parecido. Como se tivesse acontecido em outra vida, tão completamente distante da sua que talvez pertencesse a outra pessoa.
Ela encara as duas pessoas ao seu redor, e , e suspira, aliviada.
Sabe que vai ter que lidar com Cliff de novo. E mais rápido do que deseja. Mas ainda é cedo demais para se permitir torturar com esse pensamento.
Por enquanto, tudo que ela quer é saborear um café da manhã seguro, mesmo com o braço quebrado, o pé engessado e as suturas se esticando na perna.
Ela já sentiu dores piores.

***

O delegado e sua assistente chegam pouco depois das duas da tarde.
Os dois cumprimentam — e e — com educação e, depois, sentam-se na sala de estar, tomados pela tensão que os rodeia.
senta-se sozinha em uma poltrona, e permanece de pé ao seu lado, com os braços cruzados.
Se ele pudesse, adiaria tudo aquilo. Mas estava fora de seu controle.
— Começou há cerca de um ano. — diz, respondendo à pergunta do delegado. — Ele nunca foi muito gentil ou… encantador. Ele era normal. Eu não tinha do que reclamar. Ele me buscava na faculdade, me levava para jantar… me deixava no trabalho de vez em quando. Começou a ficar muito tempo no meu apartamento… mas acabou parecendo pequeno para nós, e nos mudamos. Foi… normal, por algumas semanas. Então… de repente ele era outra pessoa. Esse monstro que… bebia demais, o tempo todo… e estava controlando a minha vida… o que eu vestia, para onde ia, com quem conversava, o que eu fazia… — ela fecha os olhos, mas as lágrimas já estão escorrendo.
Sem saber o porquê, apoia a mão sobre o ombro dela, deixando-a ali, tentando passar qualquer mísero traço de confiança.
suspira, e toca a mão dele, com gratidão.
— Ele começou a me agredir mais ou menos um mês depois da mudança. As pessoas no meu trabalho sabiam sobre nós, e… algumas colegas não gostavam dele. Quando comecei a aparecer com os primeiros machucados, elas já sabiam. Elas me disseram… me avisaram. E eu escutei… eu… escutei o que elas diziam. Quando cheguei em casa, o confrontei, disse que ia embora. E eu ia… eu peguei as minhas coisas, mas ele tomou a mochila de mim… rasgou tudo… todas as roupas que eu tinha guardado ali… tudo que eu pretendia levar. Ele me bateu, mas não foi só isso… — sua voz já está tão trêmula que algumas palavras são difíceis de identificar. — Depois de tudo… ele começou a chorar. Se ajoelhou, me abraçou, implorou por perdão. Eu sabia o que estava acontecendo. Eu sabia o que ia acontecer, mas não conseguia me mover. Ele me beijou… me abraçou com força… e eu chorei, porque meu corpo todo doía, e ele não me soltava… então ele arrancou as minhas roupas e… — se cala, olhando para baixo, envergonhada, apavorada. — Ele me machucou tanto que não fui trabalhar por três dias. Quando voltei, fui demitida. E assim acabei presa a ele. Não tinha para onde ir, não tinha nada… e parte de mim achava… quer dizer, esperava, implorava para que fosse uma fase… uma fase estúpida e dolorida, mas só uma fase ruim… que tudo pudesse voltar ao normal. Mas não aconteceu… Nos meses seguintes, ele cortou todo o meu contato com as outras pessoas. Me trancava no apartamento quando saía… quebrou meu computador, e meu celular. Eu não sabia o que fazer, mas sabia que ele iria me matar. Então comecei a juntar moedas… que encontrava pela casa… que pegava na carteira dele. Quando tive a chance, troquei com uma vizinha de dez anos. E comecei a montar o meu plano de fuga… a minha mochila, tudo. Mas o Cliff descobriu sobre o dinheiro. Ele não o encontrou, mas descobriu sobre ele. Porque eu deixei uma moeda cair… então ele simplesmente soube que não era a primeira vez que eu fazia isso… pegar uma moeda dele. Ele estava tão bêbado e… quando começou a me bater, não parava. Ele ia me matar. Ele queria me matar. Ele disse… várias vezes. E eu sabia que ele ia. Eu sabia. Mas ele não matou… ele não pôde, porque o me salvou.
Quando para de falar, todos os olhos na sala estão marejados.
A mão de ainda está sobre o ombro dela.
Ela escuta calada enquanto o delegado explica a situação, como tudo vai suceder e todas as etapas pelas quais ela terá que passar para garantir que Cliff fique na cadeia pelo que fez com ela.
Terá que encontrá-lo novamente, olhá-lo na cara, em pouco mais de duas semanas.
Cliff era foragido da justiça pelo mesmo crime. Agredira uma ex-namorada e a deixara para morrer.
tenta imaginar o rosto dela. Da outra mulher que passou pelo mesmo que ela. Mas não consegue.
Depois que o delegado vai embora, ela pede licença e sobe para o quarto.
Parece que agora, depois de dizer tudo em voz alta, está esgotada. Toda a energia que a mantinha de pé acabou, e ela está prestes a desmoronar.


Changing tides
Baby, that’s the hardest part of life
Hold me tight
And we will move as one in the changing tides


Capítulo 5

É claro que percebe a mudança. Que acontece logo depois de o delegado ir embora.
Ele não a culpa, obviamente. Mas o sentimento de impotência toma conta de si.
O que deve fazer, o que pode fazer para ajudá-la?
— Ela vai ficar bem. — diz, como se lesse os pensamentos do filho. — Faz parte… ela precisa de um tempo sozinha também. Não está sendo nada fácil para ela, pode ter certeza. Mas ela vai ficar bem.
Ele acredita na mãe, porque acredita em .
Ela é forte, e vai ficar bem.

***

Em alguns dias, a leva de carro para o hospital, para tirar os pontos da perna.
O pé ainda está inchado e dolorido, então os médicos só tiram o gesso para substituí-lo por outro. E o braço quebrado ainda não se curou totalmente.
não consegue prestar atenção em nada do que acontece. Só consegue pensar no dia de amanhã.
O rosto de Cliff em sua mente é mais aterrorizante do que nunca. E está por todo lado.
Toda vez que fecha os olhos, ou quando respira fundo, é tomada por ondas de desespero e pavor. Como se ele pudesse aparecer em qualquer lugar, se materializar apenas para feri-la de novo e de novo.
— O que acha de comprarmos um sorvete? — pergunta, despertando sua atenção. Ele olha brevemente para ela enquanto dirige.
não sabe como alguém pode ser simplesmente bom. Mas sabe que é possível, porque a expressão ansiosa de diz exatamente isso. Que ele quer ajudá-la a passar por tudo, quer ajudá-la a aliviar toda a dor.
— Acho uma ótima ideia. — ela diz, sorrindo para ele.
E é assim que ela tem breves momentos longe do rosto de Cliff.
Longe do medo e da solidão dos pensamentos aterradores. Longe de tudo, mas mais próxima de si. Mais próxima de lembrar-se de quem verdadeiramente era antes de tudo, e tornar-se uma versão melhor dessa mesma pessoa.
precisa se reconstruir. E ter uma base sólida como e é muito mais do que ela poderia pedir.
Ela sente a dor. Alastrando-se corpo e alma. Mas sente também a certeza de que vai superá-la. Ainda que, no momento, pareça impossível.
Ela é forte, e sabe disso. Porque está viva.
Um trecho de um livro que deu a ela surge em sua mente.

Ser forte não significa exercitar os músculos. Significa encontrar seu próprio brilho sem fugir, vivendo ativamente com a natureza selvagem de uma maneira própria. Significa ser capaz de defender o que sabemos. Significa se manter e viver.”*


*Trecho do livro ‘Mulheres que Correm com os Lobos’ de Clarissa Pinkola Estés


***

Ela não consegue dormir.
E sabe que também não, porque consegue ouvir os sons da televisão, não mais do que murmúrios, no quarto ao lado.
No início, ela pensara que ficaria por apenas uma noite. Afinal de contas, ele tinha a própria casa, a própria vida. Mas ele tinha ficado. Noite após noite, às vezes batendo na porta dela para levar uma xícara de chá, às vezes espiando de madrugada por uma frestinha na porta, como se quisesse checar se tudo estava bem, se os monstros não haviam escapado do armário e a feito refém.
nunca acreditara em nada. Super-heróis, anjos da guarda… mas agora é como se precisasse admitir a existência de todos eles. De todas as criaturas mágicas.
Ela se levanta e deixa o quarto, apoiando-se em suas muletas.
A porta de está entreaberta, e consegue vê-lo sentado sobre o baú da cama, assistindo a um documentário animal na TV.
? — ele se levanta e abre a porta. — Você está bem? Precisa de alguma coisa?
Ela balança a cabeça, negando.
— Não consigo dormir. — admite. — Parece que minha vida toda vai virar de cabeça para baixo outra vez.
— Vai só entrar nos eixos. — ele diz, apoiando-se na parede da porta. olha para ele com curiosidade. — Sua vida virou de cabeça para baixo… agora vai se acertar. Você vai ver.
assente.
— Acho que você está certo. Eu preciso disso. É um ponto final. — ela diz. — Obrigada por me ajudar com todas as vírgulas.
ri do trocadilho. Ela ri também.
— Obrigado por me ajudar com um ponto final. — ele diz, encarando os próprios pés.
não entende.
— Quatro anos atrás… minha namorada se matou. — explica. Os olhos de se arregalam. — Ela tinha problemas com álcool… e drogas. Desde muito cedo… indo e voltando de clínicas de reabilitação. Passou um bom tempo bem… estável. Ela era tão divertida, cheia de vida e de ideias e… Bem, ela não aguentou muito tempo. Da última vez que voltou da reabilitação… ela não queria estar sóbria. Ela já tinha desistido de si mesma. Ela só… decidiu que não queria mais… — ele não consegue falar mais nada. Parece que a voz foi embora, logo agora, quando está finalmente dizendo tudo.
— Ela se matou. — conclui. assente. — Eu sinto muito, .
Ele assente outra vez.
— Eu a encontrei. No banheiro… caída, ensanguentada. Assim como…
— Assim como você me encontrou.
— Esse tempo todo… eu achei que a culpa era minha… que eu não tinha conseguido convencê-la a ficar. Que não tinha sido suficiente para ela. Mas eu sei… agora eu sei.
— Não foi sua culpa. — diz. nem sequer tenta segurar as lágrimas. — Não foi sua culpa, . — ela estica a mão para enxugar as lágrimas de seu rosto. — Não foi sua culpa.

The weight
(O peso)
Of a simple human emotion
(De uma simples emoção humana)
Weighs me down
(Me pesa)
More than the tank ever did
(Mais do que um tanque nunca fez)

The pain
(A dor)
It's determined and demanding
(É determinada e exigente)
To ache, but I'm okay
(Ao doer, mas estou bem)

De olhos fechados, segura a mão dela sob a sua.
E, naquele breve instante, ambos compreendem.
A conexão entre eles é um ganho justo. Porque é como se os dois tivessem perdido tudo. Inclusive a si mesmos.

And I don't wanna let this go
(E não quero deixar isso ir)
I don't wanna lose control
(Não quero perder o controle)
I just wanna see the stars with you
(Só quero ver as estrelas com você)

não sabe exatamente o que vai acontecer na manhã seguinte. Mas sabe que é um ponto final. também sabe disso, é claro.
Mas, naquele cenário, o que o ponto final vai dizer?

And I don't wanna say goodbye
(E não quero dizer adeus)
Someone tell me why
(Alguém me diga o porquê)
I just want to see the stars with you
(Só quero ver as estrelas com você)

You lost a part of your existence
(Você perdeu parte de sua existência)
In the war against yourself
(Na guerra contra si mesmo)
Oh, the lights
(As luzes)
They light up in lights of sadness
(Elas iluminam com tristeza)
Telling you, it's time to go*
(Te dizendo que é hora de ir)

— Você devia tentar dormir um pouco. — diz, abrindo os olhos e fitando os dela. — Posso te trazer um chá, se quiser.
Ela assente.
Ele assente de volta antes de descer as escadas para buscar chá. Para os dois.
Quando volta, eles bebem o chá em silêncio, cada um apoiado em uma parede do corredor.


When the rain came
It washed us out to sea
I'm holding what I love
And she's holding on to me


*Trecho de ‘The Fault in Our Stars’, de Troye Sivan


Capítulo 6

Cliff é considerado um perigo para a sociedade.
acha isso muito irônico quando ouve. Apenas algumas semanas antes, quando ainda estava presa ao inferno de sua vida com ele, ela tinha absoluta certeza de que ninguém mais percebia quão perigoso ele poderia ser. Como se apenas ela pudesse ser afetada pela maldade dele.
Mas isso não era verdade.
Porque Lisbeth, a antiga namorada de Cliff, que ele deixara ferida e quase morta, está sentada a apenas algumas cadeiras de distância.
Porque os pais de Cliff, que ela nunca conhecera, estão de mãos dadas, a mãe chorando, o pai parecendo nada além de desesperançoso.
Cliff machucara todas aquelas pessoas. Cliff fora um perigo para todas elas.
E todas elas estão ali. Vivas. Sobreviventes. Assim como ela.
Lisbeth fala. Os pais de Cliff falam.
ouve a tudo, é claro. Mas não é exatamente como se estivesse ali de verdade.
Porque parte dela já está longe dali. Não precisa de muito além de escutar que Cliff continuará preso. E ela escuta.
Quando todos se levantam, seu coração já está mais tranquilo.
olha para Lisbeth, que também está olhando para ela. Não parece que Lisbeth vai se aproximar, mas o faz.
— Eu sinto muito. — diz. — Sinto muito por tudo que ele te fez.
Lisbeth assente, enxugando as lágrimas do rosto com as costas da mão.
— Eu também. — ela responde. — Eu achava que tinha sido a única… não achei que ele faria isso com outra pessoa… Eu imaginei, pensei nisso, mas não achei que fosse acontecer. Sinto muito… me desculpe.
balança a cabeça.
— Ele é o único culpado. Obrigada por tê-lo denunciado. E… sinto muito, sinto muito mesmo por todo esse tempo que você teve que viver com essa incerteza… com o medo. Por ele estar por aí…
— Mas agora ele não está mais. E não vai estar… por um bom tempo.
assente.
— Você está certa. Acabou.
Lisbeth concorda.
— Acabou.

***
Ela vai embora no dia seguinte.
Antes de amanhecer, levando sua mochila e deixando para trás um bilhete.
deixaria o envelope de papel pardo com dinheiro, mas de nada adiantaria.
Dinheiro nenhum no mundo pagaria o que e haviam feito por ela. Seria até ridículo tentar.
Ela parte sem se despedir, porque não se sente capaz de fazer isso. Não se sente capaz de olhar para eles e ir embora.
Mas precisa.
Essa parte de sua vida também precisa de um ponto final.
Ou de uma vírgula.
Mas, agora, ela precisa ir.
começou a se reconstruir sobre o suporte sólido de e , mas precisa reerguer sua estrutura sozinha. Ela é feita de si mesma, e ninguém mais pode restaurá-la por completo.
Passa as primeiras horas sentada no parque. Sabe que não é exatamente o conceito de “seguro”, mas as últimas semanas a tornaram, entre outras coisas, destemida. Não idiota ou irresponsável. Apenas sem medo.
Depois, pega um táxi e volta para o apartamento em que vivia com Cliff.

***

Ele sabia que ela iria embora.
Tentara se preparar para esse momento, mas todo o esforço fora em vão.
Nem , nem haviam conseguido disfarçar a decepção. Mas, mais do que isso, estavam tomados por preocupação. E se nunca mais a vissem?
Depois de algumas horas em silêncio na sala, sozinho, desde que um novo hóspede chegara, havia se levantado, subido as escadas, dado uma última olhada no quarto que fora ocupado por e pegado sua mochila, voltando para casa logo em seguida.
É onde ele está agora. Sua casa.
O apartamento está tão desorganizado que é um pouco triste. Não se parece muito com uma casa mais. Não uma de verdade.
se joga na cama, esticado e desanimado, e encara as pequenas manchas no teto por tempo suficiente para o sono tomar conta dele.
Algum tempo depois, no limbo entre o sonho e a realidade, ele ouve um barulho vindo do apartamento ao lado.
Em estado de alerta, se levanta e abre a porta.
O apartamento está fechado. Não tem ninguém no corredor. Mas há algo diferente. Uma placa de “Aluga-se” presa à porta. E alguma coisa… como uma brisa leve, se dissipa pelo corredor.
Ela esteve ali.
Talvez por poucos segundos ele tenha perdido a oportunidade de vê-la outra vez. Talvez uma última vez.
De qualquer forma, não é como se pudesse esquecê-la. fora um catalisador em sua vida. Agora, nada mais pode permanecer igual.


It's gonna take a while
It's gonna come back
We gotta carry on darling
We were built to last


Epílogo

20 de agosto de 2020


Ela passa as compras da cestinha para o caixa enquanto responde ao e-mail sobre uma entrevista de emprego. Parece mais que improvável, impossível, no cenário atual, mas não vai reclamar.
Depois de quase um ano morando com uma tia, longe da cidade, trabalhando apenas como ajudante no mercadinho da família, a nova sensação de liberdade é como chocar-se contra um iceberg. Mas de uma maneira boa. Se é que isso é possível…
Quando a funcionária da farmácia lhe entrega suas compras, agradece, guarda a carteira na bolsa e se vira para sair, chocando-se contra quem está entrando.
A sacola vai direto para o chão, espalhando todo o conteúdo, e se abaixa para recolher as coisas, inclusive seu celular.
?
Ela trava no exato momento em que verifica a tela do celular, para ter certeza de que está funcionando. 20 de agosto. Não pode ser...
se levanta, encarando-o com os olhos arregalados de choque.
?
A máscara não a impede de perceber que ele está sorrindo. sorri com os olhos.
Ela sorri também.
Várias vezes nos meses anteriores, imaginara esse momento. Sonhara com isso algumas noites também.
Mas, em nenhuma das versões, o encontrara por acaso, com um esbarrão em uma farmácia.
Ignorando tudo, menos os próprios sentimentos, elimina a distância entre eles, envolvendo-o em um abraço.
É como se estivessem esperado demais e, ao mesmo tempo, se encontrado no momento certo.

Changing tides
Baby that's the hardest part of life
Hold me tight
And we will move as one in the changing tides



Fim



Nota da autora: Sem nota.




Nota da scripter: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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