12. Maybe You're right

Última atualização: Setembro de 2021

Capítulo Único

A noite era escura como breu, um único ponto de vida naquela estrada deserta movia-se a passos rápidos. Protegida pela escuridão, Maria pisava o mais firme que seus pés gelados permitiam; o frio era trucidante, os dedos adormeceram rapidamente e doíam como se pedras de gelo tivessem sido colocadas dentro das pantufas puídas que serviam como calçado. Estava agarrada com toda força ao casaco de pele quando a caminhonete de Besnik Sula se aproximou, jogando luz sobre seus olhos. O velho Besnik jurava ter visto o mais profundo medo no olhar da delicada e pálida senhora Elezi naquela noite. Quando reduziu a velocidade para abordá-la, as pupilas claras arregalaram-se imediatamente e o rosto pequeno assumiu traços de desespero. Ela agarrou-se à pesada porta desbotada do veículo clamando por ajuda.
— Besnik, me deixe entrar! - implorou.
O fazendeiro imaginou que a mulher de constituição frágil estivesse sofrendo enormemente com o frio e destravou a porta para que ela pudesse adentrar o carro.
— O que faz perdida por essas bandas, senhora Elezi? O frio está de doer, vai acabar doente. Não é seguro, a senhora sabe… - engoliu a seco. - Para uma moça caminhar nesse deserto de estrada depois do anoitecer. Animais e outras coisas podem atacá-la.
— Boa noite, Besnik - respondeu ainda ofegante. - Obrigada por parar para me ajudar. O frio poderia me matar - olhou para as árvores à beira da estrada, uma massa escura de troncos colados uns aos outros, um ótimo esconderijo.
— Vai para a cidade?
— Sim, preciso falar com o delegado.
— Algum problema na sua propriedade? Algo em que eu possa ajudar? - ofereceu-se solícito.
— Infelizmente não - mexeu as mãos uma contra a outra. - É Lorik, sabe? Saiu para caçar há três dias, já deveria ter voltado. Queria ver com o delegado se o clima está pesado cachoeira acima, Lorik pode estar se abrigando na casa de algum conhecido por lá esperado o tempo melhorar.
Realmente não deveria ser fácil para aquela mulher tocar sozinha a pequena fazenda no inverno sem auxílio. O cônjuge fazia falta.
— Gosto muito do seu marido, senhora Elezi. Lorik é um bom homem. - comentou, mantendo a atenção na pista.
— Quem não gosta, não é mesmo? - passou a mão gelada pelo pescoço, sorrindo amarelo em seguida.
Os minutos seguintes foram lentos e de pesado silêncio. Maria tremia discretamente enrolada no casaco de pele, com os pensamentos a quilômetros de distância.
— Quantos anos de casamento, senhora Elezi? - o motorista puxou assunto.
— Onze - respondeu secamente.
— Tomara que encontre uma mulher boa para ter um casamento firme como o de vocês, a senhora e o velho Lorik parecem tão apaixonados um pelo outro mesmo após tantos anos.
— Muito gentil de sua parte.- os contornos humildes da cidade interiorana começaram a aparecer. - Me deixe na rodoviária, por favor.
— Desculpe a intromissão, mas não ia na delegacia? - manteve o tom amigável.
O olhar que recebeu de Maria Elezi gelou a alma.
— Preciso ligar para minha irmã. É aniversário do meu sobrinho.

— Ah, certo…
— Não devia meter o nariz em todos os pratos de comida, Besnik. Alguns podem não ser para você - disse seriamente.
— Oh, me perdoe.
O pedido de desculpas mal saíra pelos lábios de Besnik quando a porta da caminhonete se abriu e Maria pulou para fora com o veículo ainda em movimento. O fazendeiro parou de supetão, assustado pelo comportamento da mulher e preocupado com a integridade da mesma. Olhou pelos retrovisores em busca da figura pequena enrolada em pele e de pantufas, porém nada encontrou. Desceu do carro, sem sequer se importar com deixá-lo no meio da via e procurou por Maria ao alcance dos olhos. Era madrugada, a cidade estava vazia, não tinha onde ela se esconder em questão de segundos. O vento cantando em seu ouvido era o único ruído ao redor, nem uma viva alma além de si mesmo.
Arrepiado, Besnik voltou para o carro completamente assustado e deu a partida. Dirigiu sem parar até o destino final, a duas horas de distância de sua cidade de origem, prendendo a atenção em qualquer coisa que não fosse os acontecimentos da madrugada.
Por mais que se esforçasse, algo seguia incomodando-o, voltando à mente de tempos em tempos. Maria Elezi dissera que o marido estava sumido há três dias com uma tranquilidade que destoava dos olhos assustados com que tinha subido na caminhonete na estrada escura. Ela não tinha ninguém no mundo além do marido, a família tinha morrido em um inverno rigoroso em que a Albânia lutava contra o desabastecimento e a tuberculose. Disseram ter sido de frio. Apenas a magra e frágil Maria havia sobrevivido. Casou-se pouco depois com o esforçado Lorik Elezi, dono de um pequeno pedaço de terra. Nunca tinham tido filhos, aparentemente o inverno que levou sua família tinha tirado-a a fertilidade. Sendo assim, como ela ligaria para a irmã se não tinha nenhum outro parente vivo? A história estava muito estranha. Ninguém caminharia por uma estrada deserta calçando pantufas no meio da madrugada para ir à delegacia ou para usar o telefone público da rodoviária quando o frio era tamanho que até os animais mais peludos estavam recolhidos.
Pelos... O casaco de pelos! Aquele era o casaco de caça de Lorik! Em um outono tranquilo um ou dois anos antes, Lorik havia convidado Besnik para caçar alguns cervos e vestia aquele casaco. Comentara que era herança de seu pai e seu amuleto. Sendo assim, por que ele sairia para caçar sem o casaco que usava exclusivamente para isso?
Os primeiros raios de sol atingiram os olhos do fazendeiro tão logo quanto chegou a seu destino. Desceu do carro e, mais uma vez, olhou ao redor da caminhonete sinais de que Maria Elezi pudesse ter se machucado quando pulou do veículo em movimento. Nada, nem um arranhão. No banco do carona, entretanto, uma novidade o fez estremecer. Gotas de sangue seco estampavam o couro desgastado, sangue este que não estava ali no dia anterior. Um alerta acendeu em sua mente, as coisas estavam muito, muito estranhas. Tentou ignorar a urgência que surgia em seu interior, sem sucesso. Abandonou todos os planos e voltou ao carro, dando a partida.
Por duas horas, Besnik dirigiu sem parar, sem olhar para trás, focando o máximo da atenção em juntar as pontas soltas do emaranhado em que se metera não-intencionalmente. Passou direto pelo centro da cidade, pelo exato lugar onde a senhora Elezi pulara do carro, e seguiu rumo à pequena propriedade ao final da estrada escura, quase nos limites da cidade: a fazenda Elezi.
Parou o carro na porteira e buscou uma forma de abri-la. Surpreendeu-se ao ver que estava sem cadeado e que o cão de guarda não aparecia por mais ruídos que fizesse. Asti era um excelente cão, recordava-se de elogiá-lo repetidas vezes aos donos da fazenda por latir ao menor movimento, além de pastorar as ovelhas com atenção. Onde estava Asti?
Besnik pôs-se a correr pelo caminho de pedras que levava à casa dos Elezi com toda a velocidade que as pernas pesadas permitiam. A porta principal estava trancada e forçá-la por conta própria não era a melhor das ideias, era pesada demais para um homem só. Decidiu testar as janelas e a porta dos fundos, obtendo total insucesso. Tudo perfeitamente trancado. Estava perto de desistir quando tropeçou na portinhola que dava no porão. O cadeado não tinha sido batido corretamente, estava apenas encostado e cedeu à força. Estava tudo escuro, não tinha como descer a estreita escada sem iluminação. Voltou correndo à caminhonete e de lá trouxe uma lanterna com a luz falha. Era isso ou nada. Não sabia direito o que estava fazendo ou a motivação que o levara a invadir a propriedade alheia, apenas sentia que era o que deveria fazer e pronto.
Com a lanterna em punho, desceu para o porão. Tudo parecia em perfeita ordem, nem uma folha fora do lugar. Identificou a escada que dava para o interior da casa e subiu no melhor silêncio que podia fazer. A lanterna tentou desligar com a pilha fraca, deixando-o no escuro por frações de segundo. Rezou a todos os santos cujos nomes se lembrava neste intervalo de tempo para que a luz voltasse. Felizmente, conseguira barganhar com o Divino mais alguns minutos de luz. O fim da escada era no corredor que dava na cozinha, já tinha feito algumas refeições na casa e sabia orientar-se minimamente ali dentro. Silêncio absoluto, contudo, ao contrário do porão, parecia que um furacão tinha passado ali. Pratos de comida virados no chão, a mesa totalmente bagunçada, peças de roupa espalhadas e sangue. Muito sangue. E o material de caça de Lorik. Tudo ali, naquele cômodo. Um caderno de receitas surrado estava praticamente boiando numa poça de sangue, moscas varejeiras circulavam o cômodo em enxames que Besnik não sabia de onde poderiam ter saído tantas. Demorou um pouco para se dar conta que estava tremendo. A luz já fraca da lanterna bruxuleava ainda mais com o tremor de suas mãos. Estava estupefato. O que infernos tinha acontecido naquela casa?
Abriu a primeira janela que viu, permitindo que a luz adentrasse o cômodo e mostrasse a real proporção da tragédia. Algumas manchas de sangue na parede estavam secas; as poças no chão, porém, seguiam vívidas. Aquela bagunça era sinal de luta, alguém havia caído por cima da mesa e levado consigo a fruteira e todos os utensílios para o chão. O material de caça de Lorik estava jogado num canto, embolado ao lado de um saco de pano que Besnik imaginou ser o animal abatido. A curiosidade o fez abrir para conferir, arrependeu-se no segundo seguinte. Esperava pequenas corças, talvez um filhote de alce, porém deu de cara com o cadáver sem vida de Asti, o cão de guarda. Degolado.
Deus, quem fizera aquilo?
Por que Maria não falou nada sobre a tragédia que acometeu sua casa? Onde estava Lorik? Era impossível que ele não tivesse voltado da caçada se o material estava todo ali.
Desorientado e sem saber como seguir em frente, Besnik mal notou pisar numa montoeira de sangue e tropeçar no caderno surrado com o título “Receitas” escrito em caligrafia caprichada. Se agachou, tirou o canivete do bolso e folheou as folhas empapadas com o auxílio da lâmina, surpreendendo-se em encontrar em meio a receitas de cabrito com ervas e porco assado, desenhos detalhados de corpos humanos desmembrados. Abaixo de cada desenho, um título: “mamãe”, “papai”, “irmão amado”, “irmã preciosa”. Ao fim, um espaço em branco onde o título adiantava a quem pertencia: “marido adorado”. Os desenhos eram fina e perfeitamente reais, separados em membros como um livro de médicos. Uma mosca pousou sobre a barba clara de Besnik, assustando-o. Perdeu o equilíbrio e caiu sobre o sangue. A sensação do fluido pegajoso molhando suas calças encheu-o de asco. Rapidamente, virou o rosto e vomitou a pouca comida que tinha no estômago. Se arrastou pelo chão para o mais longe que pôde do vômito de cheiro azedo, levando o caderno consigo. Encostou na parede e folheou mais algumas páginas rapidamente. Estava em pânico. Pelas entrelinhas do material rabiscado nas páginas vermelhas, pequenos blocos de texto da mesma caligrafia bonita que ornava a capa. Direcionou a luz da lanterna para tentar entender melhor, o sol fraco da manhã não era o suficiente para compreender as letras ligeiramente borradas. Foram necessárias quatro ou cinco páginas para que o assustado Besnik compreendesse que aqueles blocos de texto eram estrofes de um poema diluído pelo caderno, tão entremeado de sangue quanto os desenhos dos corpos bizarros.

Capítulo um, nós começamos felizes
No segundo você me disse que me amava
Eu comecei a questionar nós
Estamos mesmo apaixonados?
(...)
Você deve achar que eu sou louca
Que eu estou perdida e boba
Deixando você pra trás
(...)
Sim, eu sou mesmo emocional
Culpa de seus joguinhos mentais
Quanto você acha que eu poderia aguentar?
(...)
Preencha as páginas agora
Este capítulo acabou

Grifado, sublinhado e destacado no rodapé da última página escrita, bem ao lado do espaço destinado ao “marido adorado”, o dizer em letras garrafais chamou sua atenção.

Talvez você esteja certo
Deixe-me começar mais uma vez


As engrenagens do cérebro do fazendeiro rangeram. Largou o caderno rapidamente e levantou-se para chamar as autoridades, alguma coisa tinha acontecido naquela casa. Seu amigo estava, talvez, desaparecido; a esposa dele tinha sumido no mundo e sequer havia sinais de arrombamento na casa. A tal esposa colecionava desenhos estranhos de corpos de familiares. O que infernos estava acontecendo ali? Seus olhos só focavam em sangue, muito sangue. Três poças menores e uma maior, alimentada por um filete que vinha da direção da velha geladeira. Mais trêmulo que nunca, Besnik decidiu-se por abrir o eletrodoméstico. Respirou fundo, fechou os olhos, fez suas orações e, ainda assim, nada conteve o berro de pavor quando a porta foi escancarada e a cabeça de Lorik Elezi caiu a seus pés. O ar faltou nos pulmões, tudo girou rápido demais, precisou se apoiar na pia para não cair também.
Os olhos vazados, furados, dois buracos escuros na face acinzentada encaravam-no como se vissem sua alma e o convidassem a dançar com o velho amigo nas chamas no inferno. As prateleiras da geladeira estavam ocupadas pelos braços peludos e fortes destrinchado; repletas com dois pernis que não vieram de um porco, mas sim das coxas de Lorik; os pés e as mãos guardados na porta como vidros de condimentos, empilhados lado a lado. O tronco, por fim, com as vísceras expostas, jazia deitado sobre o último pavimento do eletrodoméstico. Foram segundos de observação que pareciam durar horas.
As engrenagens do cérebro de Besnik fizeram o último esforço antes da pane total: Fuja! Pela janela aberta, o homem se jogou e correu de volta ao carro mesmo tropeçando a cada dois metros. Dirigiu até a casa mais próxima, cerca de dez minutos após a fazenda dos Elezi e lá sucumbiu ao terror. Não conseguia explicar o que acontecera e porque estava banhado em sangue, tudo que fazia era repetir que Maria queria levá-lo para o inferno junto com Lorik. O casal Prifti não conseguiu entender o que estava se passando, por fim, chamaram a polícia para conter Bennik Sula, que havia enlouquecido.
Dias se passaram até animais começarem a invadir a propriedade dos Prifti e, em busca da razão da presença de raposas, corvos e gatos do mato em suas terras, foram até a fazenda dos Elezi. O cheiro tinha se tornado insuportável, a metros de distância da janela que fora deixada aberta era possível sentir o cheiro de carne podre. Vermes tinham tomado conta das paredes, juntamente com larvas de moscas e insetos com carinhoso apreço por cadáveres. Novamente, a polícia foi chamada, dessa vez para descobrir que Lorik Elezi estava morto e esquartejado por uma faca de caça, encontrada sobre a geladeira, e que outra pessoa tinha participado ou estado ali antes dos Prifti. O nome de Besnik foi lembrado automaticamente. Internado no manicômio mais próximo, preso nas imagens repetidas da própria mente, Besnik não entendia o que estava acontecendo quando policiais o arrastaram para um tribunal menos de um mês após o demônio ter o levado até ali. Condenado em definitivo à pena de morte pelo assassinato do velho amigo, sem direito à defesa, o fazendeiro viu o rosto de Maria Elezi entre a multidão dos que acompanhavam a corda ser presa em seu pescoço. Era óbvio que uma mulher pequena e de constituição frágil não seria capaz de matar e desmembrar o marido duas vezes mais pesado que ela. Quem saberia limpar um cadáver como um caçador melhor do que alguém que realmente caçasse? Não havia dúvidas quanto à culpa do acusado.
Quando chutaram o banco que o mantinha de pé, ela sorriu satisfeita. O último pensamento de Besnik foi que, pelo menos, ia poder se juntar ao amigo nas chamas do inferno.




Fim.



Nota da autora: Oi, que bom que você chegou até aqui! Essa fanfic não é interativa porque os personagens surgiram tão certinhos na minha cabeça, com nome, sobrenome, CPF e endereço, que preferi abrir mão da interatividade para atender esse capricho deles. Espero que entenda e, mesmo assim, leia com carinho. É um gênero pelo qual me aventurei poucas vezes e confesso que vou precisar assistir filmes da Barbie para dormir porque sou facilmente impressionável hahaha Me conta se você gostou ;)
Do meu coração pro seu,
Nimuë <3
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Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
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