Capítulo Único
— Como se você se importasse com o que eu sinto - ela disse, com a voz carregada de ironia, dando as costas para ele a fim de evitar deixar transparecer que as lágrimas em seus olhos não eram tão sarcásticas assim.
A risada dolorida e ofendida dele reverberou por cada um de seus ossos.
— Você não pode realmente acreditar nisso. Tudo o que eu sempre fiz foi para te ver feliz, Camille.
— Então me explica como eu nunca me senti tão infeliz na vida.
— Talvez seja porque você nunca está satisfeita com nada - ele disse, sentindo o cansaço sobre os ombros. — Eu poderia te entregar o mundo e não seria suficiente.
Ela levou a mão ao peito, sentindo-se sangrar com a punhalada.
— Isso não é verdade - disse, engasgada. — E muito menos justo.
— Pois pense no que realmente é justo. Mas não me procure antes de descobrir, porque eu estou exausto de fazer de tudo por você e não receber nem um pingo de gratidão.
E com a porta sendo batida atrás de suas costas ao sair, ela se permitiu chorar tudo o que havia sido gradualmente entalado.
— E corta! - A voz do diretor soou no megafone. — e , ótimo trabalho! Acho que podemos considerar essa cena concluída.
O rapaz deu a volta no cenário, sorrindo aliviado. Sempre ficava inseguro ao gravar cenas que deveriam ser mais dramáticas por se considerar mais expressivo no sentido da raiva do que da tristeza e da pura mágoa. Tinha sido um dos principais pontos treinados nos primeiros anos de sua carreira e, por mais que a maioria dos diretores, roteiristas e preparadores dissesse que estava tudo bem agora, ele continuava se cobrando mais do que o necessário. Apenas mais um dos traços conturbados de sua personalidade que vez ou outra o impediam de ter uma noite decente de sono.
— Tirem a próxima hora de descanso enquanto terminamos de ajustar a figuração e a edição da cena seguinte - o diretor sugeriu. — E usem essa química de vocês em frente às câmeras a seu favor. O que vocês têm vale ouro.
E , recentemente, havia estrelado uma minissérie sobre a corrida do ouro do século XIX. Somando a educação formal do colégio e o estudo individual que realizou a fim de se aprofundar na realidade histórica e em seu personagem, sabia que a migração havia acontecido em massa ao redor do ímpeto da busca pelo enriquecimento e pelas oportunidades de mudar de vida que muitos não teriam se permanecessem inertes em seus locais de origem.
A questão era que a maioria, de toda forma, parecia fadada ao azar ou à má sorte; fosse o termo que preferissem ao fim do dia. Alguns não encontravam nada. Alguns morriam pelo caminho. Alguns morriam em confrontos de poder e ideias surreais de uma posse que nunca existiu para além dos longínquos e inenarráveis limites da soberba humana.
Vários eram enganados. Enganados por patrões que não tinham reais intenções de compartilhar a porcentagem acordada ou que não acreditavam que pausas para alimentação e descanso fossem mesmo necessárias. Enganados, muitas vezes, por seus próprios olhos ambiciosos que queriam acreditar que tudo aquilo que reluzia era ouro. Eram ludibriados pela ciência; pela ação do dissulfeto sobre o ferro, dando a ele um brilho metálico de tom amarelo-dourado.
Era assim que se sentia. Se eram vistos como ouro, talvez e ele fossem apenas piritas brilhantes estranhamente convincentes. Eram ouro de tolo; uma encenação dentro e fora das telas. Um sentimento de autopreservação falseado em amor cujo valor ele agora questionava.
Conforme o tempo passava, sustentar aquela farsa vinha se tornando cada vez mais difícil e exaustivo. Sorrir em tapetes vermelhos e dar as mãos era fácil demais. O difícil era ignorar o nó na garganta, o coração se apertando e se asfixiando até que não restassem mais do que alguns cacos e o maldito eco na consciência o lembrando de que era a porra de um mentiroso. Um mentiroso cuja mentira era televisionada para milhões de pessoas a todo momento.
lhe ofereceu um sorriso educado e igualmente cansado ao passar por ele, indo provavelmente em direção ao seu trailer. Ele sabia que cada um daqueles gestos continha um pedido silencioso de desculpas que ele não podia aceitar por ser tão parte daquilo como ela era.
A ideia de estender o casal protagonista para a vida fora do estúdio e fingir que aquele relacionamento não estava mais enclausurado na vida das personagens havia sido de comum acordo entre os empresários dos dois lados e a direção do filme, além de toda a equipe de marketing e divulgação.
era bem mais conhecida que ele e não havia um único ser no universo capaz de negar isso. Ela tinha sido recém-indicada ao Globo de Ouro, enquanto ele apenas estava começando a pavimentar o seu próprio caminho de sucesso. Por outro lado, havia construído sua imagem de bom e respeitoso moço queridinho das garotas com afinco e esta poderia ser extremamente útil depois das desavenças com os paparazzi que a atriz tivera no último ano, fazendo a mídia inventar qualquer tipo de baboseira que culpabilizasse a vítima e fizesse com que ela parecesse uma pessoa agressiva e detentora de surtos de raiva.
E não adiantava ouvir que uma mentira daquelas era inofensiva e não faria mal algum a ninguém. Não quando o coração que ele estava destruindo era o próprio. E ao menos mais um.
Seguiu até o próprio trailer, ainda achando bizarro ver o próprio nome em uma placa de protagonista. Com a chave, destrancou a porta e pisou para o interior do veículo, trancando-a novamente atrás das costas.
Sentiu os ombros relaxarem automaticamente e um pequeno sorriso de canto se formar ao ver o corpo de enrolado na manta azul da qual ele raramente se separava. Ela respirava profunda e serenamente, balançando alguns cachos que caíam sobre o rosto.
se sentou com cuidado no colchão e levou a mão esquerda até seus cabelos, acariciando-os de leve. estremeceu, despertando. Ao abrir os olhos e se deparar com a vista, sorriu ternamente, inclinando o próprio rosto em direção ao seu toque.
— Eu estava te esperando - contou. — Acabei cochilando.
— Dormiu mal de novo essa noite?
Ela assentiu.
— Estava repassando o roteiro.
— Pela milésima vez - ele disse. — Você precisa descansar. De nada adianta esse esforço se você estiver acabada demais para sequer gravar.
se sentou, rindo.
— Claro que adianta. Nada que uns minutinhos a mais na maquiagem e umas mil aplicações de base e corretivo não disfarcem.
— É, mas eu não estou preocupado com o trabalho que você vai dar para as maquiadoras e, sim, com a sua saúde.
A mulher concordou, sabendo que não havia como não fazê-lo.
— Pode deixar. Prometo que vou dormir cedo hoje, ok?
Mas o que não entendia era que aquele “exagero” não era injustificado para ela. Aquele era o primeiro papel de em um filme grande com mais de três falas, sem que ela fosse escrava ou faxineira. Era a primeira vez em que ela era simplesmente um membro da família principal, mesmo que apenas uma prima. jamais saberia como era ter de batalhar dez vezes mais apenas para superar o estigma a que o universo o submetera apenas pela cor de sua pele. E era por isso que ela não poderia de forma alguma colocar tudo a perder. Era por isso que ela fazia questão de estudar aquele roteiro milhares de vezes, como se fosse encontrar qualquer informação nova ou dica perdida nas entrelinhas daquelas falas que ela já havia decorado de trás para frente há muito tempo. Era por isso que ela sabia que não podia se permitir errar; porque mesmo a perfeição seria pouco para alguém que tinha começado aquela corrida bem atrás da linha de partida dos demais.
Ele aceitou a promessa e depositou um beijo no topo de sua cabeça. Só queria que ela entendesse que nada no universo era tão importante para ele quanto o seu bem estar. Só queria que ela pudesse acreditar nisso.
— Você parece preocupado - ela comentou. — Ninguém me viu entrando, eu tenho certeza. Você tem literalmente o trailer mais isolado do universo. Não precisa se incomodar com isso.
— Não me incomodo - ele respondeu de pronto. — Eu te dei a chave reserva exatamente porque quero que você venha até aqui.
— Jura? Pensei que fosse só para eu esquentar o colchão para você.
riu, empurrando-a para o canto e se deitando. deitou ao seu lado, permitindo que ele passasse o braço por trás de suas costas e a trouxesse para mais perto em um abraço protetor.
— Como foi a grande cena?
— Acho que ficou boa - ele admitiu. — Foi mais fácil de gravar do que eu pensei.
— Tenho a impressão de que alguém já tinha te avisado de que daria tudo certo.
— Ah, tem? - Ele trabalhou sua melhor feição de desentendido. — Que engraçado, porque eu realmente não me lembro.
riu, dando-lhe um tapa que mais fez barulho do que doeu.
— Você é um ator incrível e deveria colocar isso de uma vez por todas dentro dessa sua cabecinha. Ninguém te escalaria como protagonista sem uma audição sequer se não confiasse cegamente no seu trabalho e na sua capacidade de fazer jus ao papel.
não fazia exatamente o tipo de pessoa que permitia que sua irritante insegurança acreditasse e acatasse aos elogios recebidos. Mas, de alguma forma, quando aquelas palavras de afirmação e incentivo saíam como uma suave melodia dos lábios dela, ele acreditava. Confiava mais nela do que em qualquer outra pessoa do universo e sabia que ter alguém assim era muito mais do que boa parte das pessoas poderia conseguir na vida.
— Eu não sei o que seria de mim sem você - ele admitiu.
— Provavelmente uma pessoa triste e solitária - ela respondeu, arrancando um sorriso dele.
virou a cabeça, encontrando os lábios dela em um beijo calmo. esperava que o toque de seus dedos acariciando a bochecha dele fosse suficiente para dizer todas as palavras que ela tinha dificuldade de expressar para além das ações.
— Eu preciso ir - falou finalmente.
Ele a apertou mais em seus braços.
— Ah, não. Fica mais um pouco.
— Preciso fazer maquiagem e figurino ainda. E assim você espera um tempo até voltar para ninguém suspeitar de nada.
Era em momentos como aquele em que ele queria mandar tudo para o espaço. Dizer que os empresários, a mídia e os fãs que se ferrassem porque ele viveria a própria vida como bem entendesse com a pessoa que amava. Sem esconderijos. Sem encontros furtivos. Sem beijos roubados enquanto ninguém os via. Sem os olhares silenciosos que diriam tudo se alguém ao menos estivesse disposto a ouvir.
— A gente se vê daqui a pouco - ela disse e saiu.
levou as mãos ao rosto, escondendo-o da iluminação do ambiente que expunha cada um de seus segredos.
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— Certo, vamos para a cena seguinte. , você pode vir um pouco mais para o centro, por favor?
A mulher deu alguns passos para a direita, recebendo um sinal positivo do diretor.
— , lembre-se. Você está bastante revoltado e nervoso com a situação, mas sem abandonar esse quê melancólico. É uma sensação angustiante de descrença e injustiça, sabe?
— Combinado.
— E ação.
O rapaz atravessou a porta com certa agressividade, assustando a mulher que havia passado os últimos instantes andando de um lado para o outro da sala, apertando e confundindo os próprios dedos enquanto pensava no que fazer.
— Ah, Matthias! Que bom que chegou. Preciso te falar uma coisa e…
— Agora não, Rachel - disse de forma brusca, passando por ela como se fosse a peça mais insignificante da mobília daquela sala.
— Você sabe que eu detesto te incomodar - ela continuou, caminhando atrás dele. — Não estaria aqui se não fosse importante.
Ele bufou, cada vez mais frustrado.
— Rachel, seja o que for, pode esperar. Eu não estou com cabeça para lidar com qualquer coisa nesse momento.
— É sobre seu pai - ela disse, esperando que isso fosse fazê-lo mudar de ideia. A reação obtida não poderia ter sido mais contrária a qualquer de suas expectativas.
Uma risada amarga veio do fundo de sua garganta, enquanto os olhos apertados acumulavam certa umidade. Se não fosse pelos negócios irrefreáveis e inconsequentes do pai, nunca teria entrado naquela situação para início de conversa.
— Pois ele pode explodir - decretou, encarando-a no fundo dos olhos. O arrepio que correu involuntariamente pela espinha da mulher sendo facilmente compreendido como um sinal de nervosismo, preso ao detalhe de uma atuação cuidadosa com cada minúcia. — Não quero saber de qualquer coisa que envolva aquele homem.
— Não faça isso - ela pediu. — Por mais complicada que ela seja, não vire as costas para a sua família.
Ele se virou uma última vez antes de subir as escadas a passos firmes e pesados:
— Eu nem sei mais o que isso significa.
— E corta! Excelente! Vamos rever as gravações para ajustar os cortes das falas de cada um, mas acho que ficou ótimo. Bom trabalho.
A movimentação no set começou, com as pessoas passando para todos os lados, movendo as câmeras, os stands de iluminação e a decoração do cenário para declarar findado o dia de gravação que já havia virado o começo de uma noite pouco estrelada.
— Te vejo domingo? - perguntou para , praticamente sussurrando sob os sons altos da movimentação intensa.
Ela moveu a cabeça concordando e se afastou, sabendo que quanto menos tempo passassem por perto um do outro, melhor seria.
— , já está no carro lá fora - seu empresário disse, aparecendo afobado como de costume. No dia que aquele homem conseguisse respirar no ritmo de um ser humano normal, o mundo provavelmente explodiria e só restariam farelos. — Vai se arrumar.
— Para quê?
— Vocês vão sair para jantar, esqueceu?
O rapaz bufou, esfregando os olhos.
— A gente precisa mesmo fazer isso?
— Você vai me fazer essa pergunta mais quantas vezes se já sabe a resposta? Poupe a nós dois do cansaço e apenas cumpra o que foi combinado.
Ele se deu por vencido, pegando suas coisas para se dirigir ao trailer e trocar de roupa, escolhendo algo minimamente apresentável para ser fotografado sem nenhum pudor quando entrasse de mãos dadas com em qualquer restaurante considerado romântico e sofisticado o suficiente para que o novo casal queridinho do público fizesse sua aparição mágica, apenas reforçando o quão entrosados eram e como o amor poderia caminhar para além das câmeras com a facilidade com que corre um rio.
Enquanto isso, piscava com força, levando o indicador ao canto do olho para dar sumiço na lágrima acusatória que se formava antes que alguém encontrasse as evidências do pequeno crime.
— Aconteceu alguma coisa? - Uma das maquiadoras perguntou, aproximando-se com preocupação.
Ela meneou a cabeça rapidamente, querendo garantir que seu tempo de reação fosse convincente sem deixar margens e respaldo para que qualquer um pensasse diferente. — Eu fiquei coçando meu olho e acho que caiu um pedacinho do rímel nele.
— Ai, essas máscaras fazem isso mesmo - ela falou, aproximando-se. — Parece um pouco vermelho, deve ter dado uma irritada.
— Acho que sim - concordou, piscando repetidamente. — Sabe se alguém tem um colírio para me emprestar? Está ardendo um pouco.
— Vou ver se consigo algo - ela respondeu prestativa antes de sumir de sua vista.
A atriz agradeceu, oferecendo um sorriso simpático. Assim que a maquiadora se afastou, expirou o ar confinado no tórax com um pouco mais de força, sentindo os ombros se fecharem como em um escudo para proteger os frangalhos de seu coração, apertado no peito por ter que aguentar tudo aquilo em silêncio. Ter que ver quem ela amava virar as costas e desfilar com outra mulher por aí porque ela não era boa o suficiente para ser vista ao seu lado. E, pior, ter que fingir que aquilo não a atingia.
Aquele era um fardo cada vez mais pesado de se carregar e ela começava a semear e cultivar suas próprias dúvidas quanto à sua capacidade de sustentá-lo por muito mais tempo.
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— Estamos quase chegando.
— Certo - concordou, esfregando as palmas geladas das mãos suadas contra o tecido das calças jeans. Um pingo a menos de autocontrole e ela estaria batendo os pés com tanta força que faria o veículo todo tremer junto com seu pequeno surto.
— Não precisa se preocupar - ele tentou confortá-la. — Eu não teria contado a verdade para eles se não tivesse certeza de que são confiáveis. Eles me amam e sabem bem que qualquer passo em falso sobre essa história é o suficiente para colocar tudo a perder. Eles não vão falar nada, eu juro.
— Não estou preocupada que eles possam contar alguma coisa, . Como você mesmo disse, são sua família; eu confio neles porque sei que você confia.
— Então qual é o problema? Eu fiz alguma coisa?
forçou um sorriso contra o nervosismo que parecia pulsar logo na base de seu crânio como uma bomba relógio prestes a causar um estrago incomensurável em instantes.
— Não é sobre você, eu juro. Eu só… Sei lá, acho que estou nervosa.
— Não deveria. Eles vão te adorar.
— Você não pode sair por aí distribuindo certezas desse jeito.
— Bom, nesse caso, eu posso e eu vou. É simplesmente impossível não te adorar.
— Aham, ‘tá bom - ela disse rindo.
— É sério, juro. Uma pessoa deve ter que se esforçar muito para conseguir ter algo contra você. E não vale a pena, sabe? A gente é tão preguiçoso. Até parece que alguém vai perder tempo com esse tipo de esforço.
revirou os olhos, sem tirar o sorriso do rosto ao observar cada uma das árvores bem podadas e repletas de flores amarelas pelo caminho que começavam a formar tapetes coloridos nas calçadas.
— Você só quer massagear meu ego.
— Não. Eu tenho preguiça disso também.
A mulher deu um tapa leve em seu ombro, fingindo um ressentimento, pois no fundo sabia que aquela era uma das maiores mentiras já contadas. Palavras de afirmação eram a linguagem primordial dele para expressar sua afeição e admiração. Ele sempre parecia saber exatamente o que dizer e como isso ressonaria de forma tão importante no outro.
— É aqui - ele falou e manobrou o carro algumas vezes para deixá-lo em frente ao jardim e não à garagem.
olhou pela janela, absorvendo todos os detalhes que podia. A casa era ampla, mas carregava consigo um ar de conforto que apenas um ambiente familiar poderia ter. Não precisava dar dois passos para fora da casa para sentir cada um de seus neurônios assimilando que, mais do que uma casa, aquele era um lar. Pelas árvores vistas ao longe e pelos prenúncios arbustivos das laterais, deveria acabar em um quintal vasto, de onde vinham pequenos gritos infantis de “Peguei” e risadas estabanadas na sequência.
entrelaçou os seus dedos e ela apertou o pequeno vaso de orquídeas brancas contra o tórax, equilibrando-o com todo o cuidado possível sobre a mão livre. Tinha sido ensinada a nunca chegar na casa de alguém como visita sem levar um presente, mesmo que o considerasse apenas uma lembrancinha. E, conforme o exemplo da mãe, havia aprendido que uma flor era sempre algo neutro e impessoal o suficiente, mas sem parecer impensado. E, quase sempre, terminava sendo um presente útil, mesmo que apenas para decorar o hall de entrada. Desde que os presenteados não fossem alérgicos - informação que ela havia obtido de por insistência, ignorando suas tentativas de convencê-la de que aquilo não era necessário - , sempre acabaria bem.
Pararam sobre o capacho com pequenos pés desenhados sobre os dizeres “Seja Bem-vindo!”. se virou para ela, olhando-a com ternura.
— Está pronta?
inspirou profundamente e soltou o ar com calma na sequência, até se certificar de que sua exalação havia sido completa. Finalmente, balançou a cabeça em concordância.
— Eu te amo - ele disse e apertou o botão da campainha. — Vai dar tudo certo.
Antes que ela pudesse responder, o barulho da porta se abrindo chamou sua atenção. Em sua frente, uma mulher sorridente, com os cabelos soltos em ondas sobre os ombros e um vestido florido que poderia facilmente ocupar o verbete de primavera em qualquer dicionário.
— Você deve ser a . Ah, querida, é tão bom finalmente te conhecer.
A mais nova simplesmente entregou a planta para o namorado, libertando-se para o abraço de sua mãe, que a apertou nos braços como se tivesse acolhendo a própria filha.
— É muito bom conhecê-la também, senhora Sterling.
— Ah, não. Nada de senhora Sterling, por favor. Me lembra das rugas que tenho na testa. Pode me chamar de Lori.
riu educadamente, grata pela energia despojada e agradável. Poderia se acostumar com aquilo com mais facilidade do que poderia ter esperado.
— Certo, Lori. É um prazer enorme estar aqui.
A mais velha soltou-a do abraço, tomando o seu rosto nas mãos e a olhando de forma carinhosa.
— Você é ainda mais linda pessoalmente. falou tanto de você.
— Ah, falou, é?
arqueou uma sobrancelha para ele. Ele deu de ombros.
— Acho que não - ele disse, meneando a cabeça. — Ela deve estar se confundindo. Sabe como é. São coisas da idade.
— Sterling, se você pretende insinuar coisas sobre minha idade, pelo menos faça pelas minhas costas. E não minta na frente da sua namorada. Sabe muito bem que eu ouvia o nome dela saindo de sua boca pelo menos uma dúzia de vezes por semana.
ergueu ainda mais as sobrancelhas, encarando-o de forma mais inquisitiva. Ele balbuciou alguma coisa antes de finalmente encontrar as palavras para dizer:
— Quer dizer, você tem um nome bem comum. Provavelmente é só uma coincidência.
— Um nome bem comum? Isso lá é coisa que se diz para alguém? - A mãe ralhou. — Por Deus, essa não foi a educação que eu te dei.
— Eu estou brincando, mãe. Só queria te irritar.
A mais nova riu e tomou a orquídea em mãos, entregando-a para Lori em seguida.
— Eu comprei isso. É só uma lembrancinha para agradecer a sua família por me receber.
— Oh, meu Deus, você é mesmo um doce. Não precisava, querida, mas agradeço muito. Elas são lindas! - Lori rodou o pequeno vaso nas mãos, apreciando as flores e também os pequenos botões que ainda se esforçavam para florescer. — Mas vamos entrando, venham. Vou deixá-las sobre o aparador, onde sei que vão pegar a quantidade certa de sol.
tomou a mão de na sua mais uma vez, enquanto atravessavam o corredor da entrada, chegando à sala principal.
O pai dele se levantou do sofá, dando um tempo para o jogo de futebol para dar atenção a ela, sorrindo de forma simpática enquanto a cumprimentava. Ele era exatamente da forma que o filho tinha descrito: bochechudo, sorridente e com a fisionomia que fazia qualquer um querer abraçá-lo, atropelando o fato de que ele também era um homem de poucas palavras. Ao contrário de , seu pai parecia mais disposto a demonstrar afeto por meio dos gestos que por interações verbais.
— Tio ! - Uma garota gritou, vindo correndo e sendo seguido por um menino um pouco mais baixo que ela, mas com os traços e feições gritantemente semelhantes.
— Se não é a minha borboleta favorita!
O rosto dela se contorceu em uma careta.
— Eu não gosto mais de borboleta, tio.
— Meu Deus, eu nunca vou conseguir acompanhar essas suas mudanças. Do que você gosta agora?
— Ela gosta de joaninha - o pequeno disse, também se entregando ao abraço. — E eu quero ser um camaleão porque ele faz várias coisas, pode ter todas as cores que quiser e ainda tem uma língua enorme.
riu com a cara de tentando acompanhar toda aquela onda de energia e novas informações.
— Certo, vou tentar lembrar - prometeu. — Mas vocês sabem quem também adora joaninhas e camaleões? - Ele empurrou a mulher para a sua frente. — , conheça Flora e Nate, meus sobrinhos favoritos.
— Porque somos os únicos que você tem - reclamou Nate. — Você que é a namorada de verdade do tio ? A mamãe falou que não era aquela moça que aparece com ele na televisão. Que ela era só uma amiga.
A mulher respirou profundamente, sentindo o ar retido e pesado no tórax. Não sabia se encontraria a própria voz para lidar com a confusão que deveria perpassar a cabeça daquelas crianças e com o fato de que aquelas simples palavras tinham feito seu peito doer ao se lembrar do quão injusto era ter de passar por tudo aquilo.
— É isso mesmo - se adiantou e respondeu por ela. — E onde é que estão os pais de vocês?
— Eles tinham um almoço na casa do chefe do papai - Flora explicou. — Como não tem crianças lá, eles deixaram a gente ficar com a vovó.
Nate olhava para com uma atenção exemplar que com certeza a constrangeria se partisse de qualquer ser maior de idade.
— Seu cabelo é tão bonito - ele disse de repente, arrancando dela um sorriso largo e a vontade súbita de despejar algumas lágrimas que a fariam se achar completamente patética logo em seguida. — Gostei.
— O seu também é lindo.
Ele mostrou um sorriso banguela e passou a mão no pequeno topete que a mãe tinha feito com bastante gel.
— Tia - Flora chamou sua atenção, fazendo seu coração se derreter como uma geleira no meio do contínuo aquecimento global. — Você sabe brincar de esconde-esconde?
— Se eu sei? Eu sou muito boa em esconde-esconde. Eu ganhei uma medalha por isso.
Os olhos da garota brilharam deslumbrados.
— É sério?
— É. Fui a campeã da minha turma no colégio.
— Nossa escola não é tão legal assim - Nate reclamou. — Eles só dão medalhas para os mais velhos e eles nem têm esconde-esconde!
— Que absurdo - concordou.
— Eu sei!
riu da intensa discussão sobre os méritos da justiça e beneficência e das discórdias causadas pelo sistema de educação atual que parecia ter adquirido a insensibilidade magistral em relação às premiações de crianças em idade de alfabetização que eram boas em se esconder. No fundo, talvez fosse por uma questão de segurança - ou comodidade, entenda como quiser. Não parecia a melhor das ideias dar ainda mais incentivos para que uma criatura pequena, capaz de liberar energia por cada um de seus poros, exercitasse sua criatividade tentando descobrir qual o lugar mais louco e mais improvável para se enfiar. Talvez fosse mais fácil em outros tempos, mas, com certeza, o avanço das coisas e o crescimento das instituições tornava as coisas um bocado mais complicadas. Basicamente como todos os outros aspectos da vida.
— Você podia brincar com a gente, né? - Flora sugeriu.
se abaixou, colocando-se na desconfortável posição de cócoras por alguns instantes, apenas para se aproximar da altura deles e fortalecer sua tentativa de criar vínculos.
— Posso. E se vocês ganharem de mim, acho que isso significa que não sou mais a campeã. Daí na próxima vez que nos virmos, eu trago a minha medalha para vocês. O que acham?
Nada no mundo - não, nem mesmo a oferta de sorvete antes do almoço - teria conseguido deixá-los em um estado de êxtase e euforia maior do que naquele momento. A simples possibilidade de receber um prêmio e serem considerados os melhores em algo parecia ter conseguido acender todos os interruptores restantes para que aquela energia acumulada no corpo infantil começasse a se manifestar fisicamente por meio de pulinhos animados.
— É sério? De verdade mesmo? Verdade verdadeira? - Nate perguntou.
— Verdade verdadeira - ela confirmou. — Juro de dedinho - e estendeu os dois dedos mínimos para que cada um deles selasse com ela aquele combinado.
— Então vamos! - Flora chamou.
— Nada disso - uma voz feminina madura soou atrás deles. — O almoço está quase pronto. Vocês brincam mais tarde.
— ‘Tá bom, bisa - eles disseram, encolhendo os ombros em decepção imediata.
— Entrem para lavar as mãos.
— A gente pode pegar refrigerante?
A mais velha assentiu.
— Escolham um e levem a garrafa para dentro. Mas só porque é domingo!
Flora e Nate correram de volta em direção à casa, falando coisas que eles já não eram capazes de ouvir e trocando risadas que os obrigavam a sorrir também.
— Não cumprimenta mais a sua avó? - Ela reclamou, arrumando os óculos de grau no rosto. — Qual é o próximo passo? Me abandonar em um asilo e só lembrar que eu existo quando te ligarem para avisar que eu passei dessa para melhor?
— Meu Deus, a senhora conseguiu ficar ainda mais dramática desde a última vez que eu vim para casa - apontou. — Não pensei que isso fosse possível.
— Não sei porque está tão surpreso. De onde você pensa que veio sua veia artística para o teatro?
balançou a cabeça rindo, enquanto abraçava a avó com força e beijava seu rosto.
— Senti saudades da senhora.
— É só me ligar. Eu aprendi a usar as ligações por vídeo daquele aplicativo que vocês tanto usam. Agora deixe de ser mal educado e me apresente à sua namorada.
— Ok - ele se deu por vencido, indisposto a mais uma vez reclamar do temperamento das mulheres de sua vida. — Vó, essa é a . , essa é minha vó Celia.
recebeu a senhora em seus braços, encontrando um abraço carinhoso e tão imediatamente acolhedor que a fazia ter vontade de patenteá-lo e reproduzi-lo materialmente apenas para poder carregá-lo consigo para sempre. Por mais que tivesse sido tão bem recebida por todos os membros da família de que havia conhecido até então, ver a avó do rapaz foi o apogeu da destruição dos muros e obstáculos de inseguranças e medos que ela havia alicerçado com desespero nos dias anteriores, apenas esperando que aquele fatídico momento chegasse como uma bola de destruição.
Olhar para seus cabelos grossos e grisalhos, para seu sorriso calmo e para a cor de sua pele que tanto parecia com a dela acabou lhe dando a sensação de refúgio e pertencimento que precisava para avançar na empreitada de que aquela sensação de aceitação não era apenas fachada.
Não era assim que deveria ser, ela bem sabia. Mas era assim que acontecia em seu coração, mesmo que inconscientemente. Existia algum alívio em não se sentir o único diferente. Não suprimiria suas origens e não desejava de forma alguma silenciar a beleza de quem ela era e de que história trazia em seus ossos. Não era sobre ser vista como igual e, sim, bem-vinda e abraçada como diferente.
— Eu estava tão ansiosa para conhecer a mulher que finalmente destruiu a pose de durão desse garoto.
— Seu neto é uma manteiga derretida, dona Celia - ela brincou. — Chorou com um comercial esses dias.
— Calma lá - ele interveio. — Não é culpa minha se as pessoas decidiram enfiar cachorrinhos de propósito para sensibilizar o público. Eu não sou imune a essa jogada de marketing.
— Parabéns, querido, você é um ser humano no fim das contas - ela disse. — Agora, vá ajudar sua mãe a arrumar a mesa.
Ele aquiesceu, fazendo menção de pegar a mão de e levá-la consigo. A mulher foi mais rápida, segurando sua mão no meio do caminho para impedir seu gesto.
— Diga a Lori que já vamos. Quero conversar com a nossa garota primeiro.
encarou a namorada rapidamente, como se estivesse apenas se certificando de que estava tudo bem para ela. A resposta foi um sorriso tranquilizador que logo o fez sumir de vista.
— Sente-se comigo - pediu Celia, caminhando até um banco branco no jardim, com vista para um chafariz ornamentado que parecia há muito desligado. — Não tenho mais idade para ficar em pé sem que minhas costas cometam um crime de ódio mais tarde.
riu.
— Que isso, a senhora é jovem.
— Eu sei, meu bem, mas a maldita coluna não sabe.
Veio mais uma onda de risadas.
— Meu neto te ama muito. Muito mais do que eu esperava que ele fosse fazer por alguém tão cedo.
A garota sabia bem o que ela queria dizer. Tinha ouvido da própria mãe ao longo de toda a adolescência como relacionamentos jovens nunca acabavam bem. Como eram apenas diversão, passatempos e a ilusão de um falso amor, mas que doía e sangrava como uma ferida real demais até que a cicatriz fosse reparada. Como eram pouco além de uma grande perda de tempo de corações jovens demais para conseguir mensurar o que era o compromisso de uma vida.
Quando contou que estava apaixonada e que dessa vez era de verdade - nada como o namorico passageiro do ensino médio -, a mãe disse que já tinha ouvido aquilo antes. E que esse tinha sido o mesmo papo do relacionamento relâmpago com o garoto que a levou para o baile. E do cara que ela conheceu na recepção de calouros da faculdade. O mesmo “dessa vez é diferente” terminando no mesmo exato fim. Nunca era amor. Era fogo. Paixão, talvez. Algum tipo de chama intensa, mas de curta duração, que se extinguia fácil demais. Aquela com certeza seria só mais uma daquelas histórias passageiras. Ela era nova demais para compreender qualquer relação diferente daquilo.
Mas era diferente. E ela sabia. Não “sabia” como das outras vezes. Dessa vez, ela sentia algo totalmente diferente. Era intenso, sim. Mas não parecia efêmero. Era regular, constante, com comburente suficiente para queimar indeterminadamente. Não estava nem aí para a data em sua certidão de nascimento e muito menos para o que os outros tinham a dizer, realizando contribuições indesejadas com suas opiniões com toda a certeza não requisitadas. Ela sabia o que era amor e sabia que era exatamente o que sentia sempre que pensava em .
— O sentimento é totalmente recíproco, dona Celia - ela garantiu. — Posso assegurar isso para a senhora.
A mulher sorriu de forma carinhosa, tomando as mãos dela nas suas. Celia tinha as palmas mais lisas, com as marcas das impressões digitais gastas pelo tempo. Seus dedos eram frios, mas transmitiam a tranquilidade e o conforto de uma leve brisa.
— Eu sei, minha querida. Dá para ver em seus olhos. E tenho certeza de que nada além de amor seria capaz de suportar toda essa bagunça em que vocês se meteram.
soltou uma lufada de ar triste no que deveria ser uma risada, mas não havia graça nenhuma ali.
— Com certeza não poderia estar mais longe de ser fácil.
— Tenho certeza de que não. Deve ser no mínimo doloroso ver a pessoa que você ama indo embora com outra.
— No começo, eu chorava no carro depois de sair fingindo ignorar a angústia - ela contou.
— E agora?
— Agora eu engulo o choro e fico repetindo que isso tudo vai passar. Que nós vamos passar por isso.
— Não é porque vai passar que significa que vai ser fácil. Nem durante e nem depois.
sentiu a garganta se fechando como se estivesse presenciando um mortal choque anafilático.
— O meio que vocês escolheu é cruel, mas acredito que você saiba disso muito melhor do que eu - a senhora continuou. — Entende muito mais sobre os haters e sobre o poder que as pessoas têm de simplesmente serem cruéis e acharem que possuem esse direito só porque você é uma pessoa pública. Você vai ouvir todo o tipo de merda, com o perdão do linguajar. E vão te culpar pelo término dele com aquela outra garota.
— A .
— É, essa mesma. Porque ninguém pode saber a verdade. Mas nada mudaria se eles soubessem, entende? As pessoas acreditam apenas naquilo que querem acreditar. Vocês poderiam apresentar todas as provas de inocência do universo e o veredito ainda seria de culpa se as pessoas quiserem sustentar a história do crime.
— As pessoas sabem bem como ser maldosas - comentou, sentindo sua voz tão distante do próprio corpo que se perguntava se havia entrado em algum tipo de transe distante e sua alma havia simplesmente desistido de presenciar o inevitável, negando-se a ceder sua esperança ao mundo apenas para que ele a retribuísse com mais dor.
— E você e eu sabemos bem que não termina aí - Celia prosseguiu, direcionando a ela um olhar sugestivo e compreensivo. — Qualquer pessoa está exposta aos comentários maldosos de quem decide não gostar de você seja lá por que motivo. Mas nós sempre teremos um bônus.
— O preconceito - a garota murmurou, sentindo algo em seu estômago se revirando amargamente.
— Algumas décadas atrás e só não digo quantas porque não preciso expor a minha idade mais do que esses fios brancos fazem - contou. — Eu conheci o avô de , meu falecido marido, que Deus o tenha, e foi amor à primeira vista. Nós decidimos nos casar bem cedo, mas era algo relativamente comum na nossa época. As pessoas realmente se casavam e tinham filhos com pouca idade e não era tão chocante quanto é agora que vocês têm várias outras opções de como seguir a própria vida, construir carreira, viajar o mundo e tudo mais.
“Mas foi sofrido. Não sei te dizer quantas vezes ouvi das pessoas que eu estava com ele por interesse financeiro já que eu era preta e pobre; duas coisas que as pessoas aparentemente nunca conseguiram separar. Me chamaram de tudo quanto é nome e disseram coisas que não valem a pena repetir. Eu não era a mulher certa para ele porque não era branca. Diziam que nossos filhos seriam feios e doentes por terem uma mãe indigna. Estivemos juntos durante cada segundo de todo esse desrespeito e fomos mais felizes do que todos que não julgavam, mas isso não tornava os xingamentos mais escassos ou menos cortantes.
Os tempos são outros, com a graça de Deus. O separatismo respaldado por lei ficou no passado e algumas pessoas parecem ter adquirido algum tipo de consciência suficiente para não amolar a vida alheia. Mas ainda estamos longe demais de qualquer pé de igualdade que possamos desejar, não é, meu bem? Relacionamentos multirraciais, como dizem por aí, estão longe de passarem intocados por toda essa crueldade.
Ainda existem palavras prontas para nos apunhalar e tentar nos causar vergonha por sermos nós mesmas e carregarmos a história que causa repulsa a eles em cada um de nossos traços. Mas nossa pele se tornou mais grossa e, mais do que sofrimento, nosso sangue traz também uma força que eles nunca vão conseguir imaginar.
O que eu quero dizer, minha querida, é que o seu caminho tem pedras irregulares e seus sapatos foram arrancados. Mas acredito que seja forte o suficiente para atravessá-lo. A força nos encontra quando menos esperamos. Contudo, não precisamos passar por isso sozinhas. Saiba que essa família sempre estará aqui de braços abertos para te acolher e te dar as mãos quando o mundo parecer pesado demais. E também quando ele for leve, é claro. No que depender de mim, a solidão nunca será uma realidade.”
percebeu o próprio choro quando sentiu a lágrima pesada escorrendo e caindo sobre o colo como um metafórico ponto final.
Celia a acolheu imediatamente nos braços, exatamente como tinha acabado de jurar que faria.
— A senhora deve ser literalmente a melhor pessoa do mundo todo.
Uma risada calorosa aqueceu seu coração fragilizado.
— Nada disso, mas vou aceitar o elogio. E também vou aceitar o almoço, porque meu estômago já está roncando com esse cheiro chegando aqui. Vamos?
As duas entraram, encontrando o resto da família começando a se acomodar à mesa.
Bastou apenas um olhar atento de , preocupado com os olhos avermelhados e o nariz levemente inchado dela, para que ela movesse a cabeça calmamente com um sorriso tranquilizante, garantindo-o de que estava tudo certo. No máximo, seria obrigada a sequestrar sua avó mais tarde para tê-la por perto por mais tempo. Sua sabedoria e apoio pareciam ser a receita exata do que ela precisava.
Lori serviu as crianças e os outros a imitaram, montando os próprios pratos com um pouco do conteúdo de cada uma das travessas e caçarolas.
Quando levou a primeira garfada à boca, descobriu que realmente não fazia questão de mentir - especialmente quando dizia respeito à sua família. Sua mãe era mesmo uma cozinheira de mão cheia. Cada nuance dos diferentes temperos e especiarias parecia dançar sobre suas papilas gustativas um novo gênero musical. Era demais para que ela definisse, mas poderia caracterizar com um adjetivo preciso: incrível.
— Como estão as gravações do filme? - A matriarca perguntou.
— Estamos nos encaminhando para o final - contou . — Faltam algumas cenas só e gravamos o desfecho em si.
— O pessoal está trabalhando bastante - acrescentou. — Não deve demorar. Eles querem ter bastante tempo para editar e analisar a versão final umas mil vezes antes de realmente lançar.
— Cuidado redobrado, então.
— Acho que é o primeiro filme da carreira do nosso diretor que ele realmente acredita que pode ser bastante bem visto pela crítica mais especializada, sabe? Talvez até receber o apreço da Academia. Então ele está meio obcecado por repassar cada detalhe mil vezes para ter certeza de que tudo saia exatamente da forma que deveria.
— Bom, errado ele não está - seu pai comentou. — Mas espero que esse homem tire umas longas férias depois disso, antes que surte de vez.
deu uma risadinha em concordância.
— Ele precisa mesmo.
Depois do almoço, ela agradeceu pela comida, dizendo sem esforço algum que estava tudo uma delícia. Ofereceu-se para cuidar da louça, mas recebeu uma negativa imediata dos pais de que disseram que cuidariam daquilo mais tarde - com ajuda da lavadora, é claro.
— Tia , então a gente pode brincar de esconde-esconde agora?
Antes de correr o risco de desmoralizar ou diminuir os mandados de outro, a jovem buscou o olhar de Celia pela sala de jantar, que acenou levemente para ela, dando-lhe a liberação de que precisava.
— Certo, mas quem vai contar e quem vai se esconder?
— Primeiro você procura a gente - Nate decidiu e saiu correndo antes mesmo que ela pudesse realizar uma contraproposta.
— Tudo bem, mas eu vou contar só até dez, hein? Então se escondam rápido.
Enquanto ela contava, sentada em uma das cadeiras do quintal, ouvia a voz de reclamando e dizendo coisas como “aí não, né; eu consigo ver seus pés de longe” e “não é para entrar aí; vocês vão se machucar”. Teve que controlar a própria vontade de rir e os sinais de pequena satisfação ao vê-los deixando o namorado louco. Era o preço a se pagar em compensação para as reclamações de cabelos brancos - inexistentes - que ela ouviria mais tarde.
— Estou indo - anunciou, levantando-se e puxando a calça pelas alças para cinto antes de voltar para o interior da casa.
Bastaram alguns segundos para que ouvisse risadas finas e abafadas, que aumentavam conforme ela andava. Seguindo o som, ela encontrou os tênis coloridos de Flora por baixo da longa toalha de mesa. meneou a cabeça para ela, balbuciando um “eu avisei sobre os pés”.
Para dar a eles mais tempo e a ilusão de dificuldade, caminhou para o lado oposto, com as mãos na cintura, pensando alto:
— Ai, ai. Onde será que a Flora e o Nate foram parar? Será que eles foram se esconder na garagem?
As risadas aumentaram, em um tom cada vez mais vitorioso. A mulher fez hora extra na sala de estar, dando um tempo por ali para que eles acreditassem na demora por dificuldade.
— Se eles não foram para lá, têm que estar aqui dentro. Deixa eu pensar, se eu fosse uma criança pequenininha, onde eu me esconderia? Que tal… Debaixo da mesa? - Ela puxou a toalha, encontrando os dois rindo alto até saírem correndo de seu lugar sob a mobília.
— Você demorou - Nate disse, ainda rindo.
— É que vocês estavam muito bem escondidos - ela se justificou. — Ficou complicado para mim.
— Então agora você se esconde comigo - Flora sugeriu. — O Nate conta.
— Mas eu quero me esconder também.
— Você sabe que cada um tem sua vez - a irmã o lembrou. — Depois eu conto e vocês se escondem.
Mesmo a contragosto, ele acabou aceitando e foi até o quintal, colocando a testa na parede e fechando os olhinhos enquanto fazia a contagem.
A brincadeira seguiu assim, em revezamento, por um bom tempo. já podia sentir os sinais de cansaço gritando que não conseguiam acompanhar a energia infinita de duas crianças. Pelo menos, ela pensou, a irmã de a adoraria mesmo sem conhecê-la apenas por provavelmente ter conseguido adiantar o sono da noite, cansando aqueles dois pequenos furacões.
No fim da brincadeira, ela se sentou - mais precisamente, se jogou - no chão, afobada, respirando fundo e se abanando. Os dois sentaram do lado dela.
— Bom, vocês com certeza ganharam de mim. São muito melhores do que eu.
— Isso quer dizer que…
aquiesceu.
— Quer dizer que da próxima vez vou trazer minha medalha para os verdadeiros campeões.
Os dois comemoraram, estupefatos.
— Tia , quando você volta para brincar com a gente de novo?
A mulher sentiu uma pequena pontada silenciosa no peito. Ergueu a mão e a passou sobre o cabelo de Flora.
— Não sei, querida. Vou tentar voltar logo, está bem?
Com um sorriso sincero, ela concordou.
— Sua mãe vai chegar tarde e pediu para que vocês dois já ficassem de banho tomado - Lori avisou, aproximando-se. — Entrem e peguem as roupas nas mochilas que a vovó já vai para ajudar.
Os dois obedeceram rapidamente, sem reclamações. admirava sua educação para simplesmente aderir às ordens dos mais velhos sem uma cara feia ou tentativa de barganha sequer. Eram doces, brincalhões, educados e sorridentes. E percebeu sem grande esforço como já estava apegada a eles. E a basicamente todas as outras pessoas daquela casa.
Lori reuniu todos de volta na mesa da sala de jantar um pouco mais tarde, para tomarem café e comerem um pedaço de bolo de chocolate quentinho. A conversa estava animada, com alguns papos paralelos em dupla acontecendo: Nate e Flora discutindo qual era o melhor super-herói, e o pai falando sobre a nova temporada de baseball e as mulheres rindo de alguma história contada da família.
— Ah! Vou pegar o álbum de fotos do - a mãe exclamou, sumindo escadas acima antes mesmo de ouvir as reclamações do filho.
— Não, mãe! Fica quieta aqui, vai. Toma seu café. Esquece isso de álbum, pelo amor de Deus!
— Como se você não soubesse que esse momento ia chegar de qualquer jeito - o pai comentou.
— Já está quase anoitecendo, pensei que ela tivesse esquecido - bufou.
— Eu jamais me esqueceria, meu anjo - Lori respondeu, voltando com o álbum. — Venham para a sala! Assim todos conseguem ver.
se sentou do lado da sogra, atenta para descobrir todas as fotografias da infância que as outras pessoas ali já deveriam ter visto no mínimo algumas centenas de vezes.
Lori passou pelas fotos da maternidade, contando a história do parto e de como não teve dilatação suficiente e teve que passar por uma cesariana que nunca esteve em seus planos. havia nascido ligeiramente prematuro, mas com peso e estatura adequados e bastante saudável. Estava em casa, ocupando seu quarto de paredes azuis tão rápido que parecia uma bênção caída sobre os Sterling.
Tinha as bochechas mais apertáveis do bairro e se tornou o queridinho das vizinhas aos fins de semana, que faziam sempre questão de visitá-lo e levar vários presentes para o bebê. Havia sido mimado e paparicado até ser capaz de dizer chega - o que ele não fez, provavelmente por ser esperto cedo demais.
Então vieram as imagens dele com um boné vermelho e uma mochila de rodinhas que parecia maior do que ele, preparado para o primeiro dia de aula. O rosto alegre e iluminado sendo gradualmente substituído pelos olhos inchados de choro por perceber que a mãe iria embora, incapaz de compreender que o afastamento de algumas horas do apego materno não era o fim do mundo e duraria tão pouco. Era apenas o primeiro passo para fora do ninho e em direção ao universo cheio de descobertas, amizades e pessoas com suas próprias histórias e vivências que existia depois da porta de casa.
— E esse foi o primeiro jogo de baseball dele - Lori contou, mostrando a foto de com um uniforme grande demais para ele e um capacete que parecia prestes a cobrir seus olhos na primeira oportunidade que tivesse.
riu, apreciando a foto.
— Eu nem sabia que você tinha jogado baseball.
— É porque mal durou uma temporada completa - ele explicou. — Eu era horrível.
— Você tinha cinco anos - ela disse.
— E era péssimo para uma criança de cinco anos - ele emendou. — Desde cedo ficou bastante claro para todo mundo que esportes não seriam o meu forte.
Lori foi obrigada a concordar.
— Ele corria na rua, brincava com as outras crianças sem problemas. Mas essa vida atlética nunca foi para ele. O único esporte mesmo em que ele se deu bem foi a natação.
— Provavelmente porque não tinha nenhuma bola sendo arremessada na minha cara e correndo risco de me assassinar, já que eu não tinha coordenação motora nenhuma para dominá-la como uma pessoa normal.
Seguiram pelas fotos, rindo das lembranças compartilhadas pelos presentes e de como as memórias afetivas eram evocadas com facilidade ali. A primeira peça de teatro, a primeira formatura, a primeira festa de aniversário… Cada um dos momentos registrados parecia obrigatoriamente amarrado a um motivo maior e deveria admitir que, de alguma forma, sentia-se mais próxima do namorado por saber mais de sua vida e daqueles que o amaram antes dela e o amariam incondicionalmente enquanto o conceito de tempo ainda existisse como uma declaração perpétua.
Fora um dia muito mais calmo e agradável do que ela poderia ter esperado mesmo em suas melhores expectativas forçadas apenas para tentar se acalmar na nervosa noite anterior. Havia sido acolhida como parte da família com a mesma facilidade com que duas crianças começam a brincar juntas no parquinho, apenas porque, de alguma forma, já sabem em algum pequeno canto de seu ser que a solidão raramente será tão agradável quanto a possibilidade de compartilhar momentos com outras pessoas. Ainda mais quando se é criança.
— Ah, nós vamos com o a um almoço beneficente na semana que vem - Celia se lembrou. — Você deveria ir conosco, !
A garota engoliu em seco, sentindo o sopro forte do lobo mau levando embora toda a casa de palha que havia acabado de construir com cuidado e carinho, acreditando ser o suficiente para proteger seus sentimentos. Ou ao menos querendo se convencer de que acreditava.
— Não posso - disse baixinho, forçando a garganta na sequência para fazer com que sua voz se desenrolasse. — O evento vai ser televisionado. Mas acho que vai acompanhar vocês.
O silêncio que se estabeleceu fez com que os ombros dela se inclinassem para frente, indicando uma linguagem corporal totalmente oposta àquela do sorriso fraco que ela tentava, com tanto esforço, sustentar. Talvez, se fingisse por tempo o suficiente que aquilo não a atingia, pudesse finalmente acreditar nisso.
— Tudo bem, então - Celia quebrou o silêncio, tentando parecer otimista por entre as fisionomias fechadas. — Tenho certeza de que logo teremos outras oportunidades.
Foram poucos os minutos que se sucederam até que decidisse que era hora de ir para casa. Todos se despediram com abraços apertados e promessas de se verem logo que, de repente, pareciam pesadas demais para que ela guardasse no peito. Era dolorosamente paradoxal como as coisas poderiam parecer tão certas e tão erradas ao mesmo tempo. Como algo tão bom poderia ser tão doloroso simplesmente porque havia uma história por trás servindo como uma âncora descompensada, mais inclinada a levá-los ao naufrágio do que à estabilidade.
Do carro, acenaram mais uma vez para a família na porta, deixando para trás um dia bom que quase parecia uma ilusão esvaindo-se em névoa. A lembrança de tudo o que ela não poderia ter.
— Eu te amo tanto - disse, sem tirar os olhos da estrada. — Me destrói por dentro não poder simplesmente berrar isso para o mundo por enquanto.
assentiu, sem saber se tinha forças para fazer muito mais do que aquilo.
— Ninguém sabe do que fazemos, do que vivemos e muito menos do quanto nos amamos - ele continuou. — Se soubessem, teriam inveja.
— O problema é que a inveja mata. E não só quem a sente.
Ela encostou a cabeça na janela do carro, digerindo a literalidade presente em cada uma de suas próprias palavras.
— Vai dar tudo certo. Eu prometo.
Mas aquela era uma promessa que ela sabia muito bem que ele não podia fazer. E suspeitava que também não pudesse mais fingir que não sabia tão bem quanto ele que tinham perdido o controle das próprias expectativas em relação a um dia que parecia que nunca chegaria realmente.
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— Todos em seus lugares - o diretor pediu no megafone.
e se posicionaram no set, dissipando a tensão depois de dias em que ela ignorara suas tentativas de aproximação para entrarem em seus personagens, que não tinham nada a ver com seus problemas pessoais.
Não haviam trocado mais do que cumprimentos educados desde o domingo em família e, não importava o quanto ele insistisse, ela havia decidido respeitar a si mesma e aos seus limites e o momento dos outros envolvidos. Precisava se afastar, independentemente de como isso doesse como se alguém a eviscerasse. Independentemente do quão errado parecesse em cada um de seus ossos. Tudo o que podia fazer era seguir. E isso incluía dar continuidade ao seu trabalho, colocando na personagem todos os sentimentos de que agora se sentia vazia.
A cena que iriam gravar vinha logo após a personagem de , prima do protagonista Matthias, descobrir que o relacionamento dele com Camille, a personagem de , havia sido destruído com base em desconfianças e mal entendidos. Como uma das poucas pessoas de sua família que realmente se importava com seu bem, ela tentaria abrir os seus olhos para a situação.
— E ação!
— Rachel, por favor - ele pediu.
— Não, Matthias! Eu esperei tempo demais. Tentei te dar o espaço que você parecia precisar e nem insisti em saber o porquê. Mas as fofocas correm na cidade, primo. E, agora que eu sei o que aconteceu, não posso permitir que você estrague tudo.
— Eu?! - Ele deu uma risada amarga. — Eu não estraguei nada. Foi Camille quem disse estar infeliz. Foi Camille quem disse que eu não me importava com ela mesmo quando eu me coloquei contra o meu próprio pai apenas para lutar por nós.
— Mas ela sabe disso? Você disse isso para ela? Ou só decidiu se achar o homem mais injustiçado da face da Terra antes mesmo de tentar convencê-la do contrário?
Ele pareceu prestes a responder algumas vezes, com o ímpeto de quem sabe que está certo. Mas sua postura desmontou de vez.
— Eu acho que ela não sabe.
Ela concordou, movendo a cabeça.
— Pois é. Como você espera que ela adivinhe tudo o que você fez?
— Você acha que é fácil para mim? Tudo o que eu tive que passar por causa dela e depois ouvir que não me importo?
— Não, não acho. Tenho certeza de que não é fácil. Mas se ela soubesse de tudo o que você teve que passar, como você mesmo diz, ela te retribuiria com o amor e a gratidão que você tanto esperou. Eu sei disso - ela disse, enxugando algumas lágrimas que brotavam - porque sempre soube que vocês tinham nascido um para o outro. E não importa quais dificuldades se coloquem no seu caminho. Você precisa lutar por ela e deixar que ela lute por você também.
Ele secou o próprio olho, sentindo-se estranhamente emotivo de repente.
— Fique com ela - a prima continuou. — E não deixe que ninguém se coloque no caminho do amor de vocês.
Quando a cena foi cortada, o diretor aplaudiu contente:
— Brilhante! As lágrimas improvisadas, perfeitas! Sentimos cada uma das suas palavras como se elas fossem totalmente verdadeiras.
deu um sorriso educado, pensando consigo mesma que suas falas só soaram tão verdadeiras porque eram mesmo. Não pelo seu talento cênico. Limpando o rosto com o dorso da mão, ela se afastou do estúdio, ignorando a tentativa de de chamá-la no caminho.
Seguiu até o banheiro mais distante dos funcionários e chorou, liberando todos os soluços engasgados que teve que conter em cena. Ela não era Rachel; não era Matthias e não era Camille. Mas, assim como no caso dos amantes da sétima arte, ela estava seguindo o próprio conselho e se colocando longe do caminho deles.
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se levantou do sofá a contragosto, enrolando-se na manta esverdeada enquanto caminhava até a porta para checar a campainha.
Seu coração pulou para a boca assim que o viu pela corrente da porta, que o impedia de entrar, dando a ele apenas um pequeno acesso a ela. Um pequeno espaço que já parecia mais do que o suficiente para pisar mais um pouco nos cacos em que ela já se encontrava.
— Você não deveria estar aqui.
— É isso o que você tem a me dizer? - perguntou. — Depois de passar quase duas semanas sem mal olhar na minha cara?
Ela respirou fundo, tentando manter o mínimo de compostura que conseguiria sustentar com sua dignidade.
— Por que veio?
— Porque nós precisamos conversar, . Pelo amor de Deus, o que aconteceu? Eu pensei que você precisasse de espaço, mas agora parece que você está em um mundo totalmente alheio a mim e isso está me matando.
Ela piscou com força, absorvendo todos os pensamentos rebeldes e quase vingativos que queriam desprezar a dor dele por jogar a dela de volta, como se fosse uma carta trunfo capaz de ganhar de qualquer coisa que lançasse em sua direção. Impediu-se de dizer como tinha morrido um pouco todos os dias com um relacionamento escondido e como um dedo parecia ser enfiado e rodado dentro da ferida aberta toda vez que ela tinha que ouvir que o motorista os esperava ou ver os dois aparecendo em algum evento ou fofoca na televisão. Não precisava verbalizar como não importava a falsidade e a encenação daquele namoro quando sua dor era real até demais.
— Só é demais para mim - murmurou, torcendo para que ele a tivesse ouvido, pois não sabia se teria forças para dizer o mesmo uma vez mais.
O rapaz soltou os próprios braços com força, totalmente exausto. Sentiu as próprias lágrimas escorrendo livremente, cansado demais para tentar impedi-las.
— E você acha que não é para mim? Que eu estou feliz assim? Que eu não queria simplesmente mandar à merda toda essa zona e poder viver a vida que eu quero com a pessoa que eu amo?
mordeu as próprias bochechas, tentando se convencer de que a dor física era maior do que a emocional.
— Não falar com você está me destruindo - ele continuou. — É uma merda passar por isso tudo, mas era mais fácil segurar a barra tendo você. Eu não sei como lidar com essa merda toda se você realmente for me abandonar. Por favor, não me abandona.
— , não…
— Depois de tudo o que a gente viveu, eu não consigo agir como se estivesse tudo bem quando você mal tem coragem de olhar nos meus olhos. Quando meus pais ligam e perguntam como você está, me rasga por dentro responder‘bem’ sabendo que não tem absolutamente nada bem. Flora e Nate perguntam de você sempre. Infernizaram minha irmã até ela prometer que os levaria onde fosse só para ver você de novo. Eles te amam. E eu também, . Amo pra caralho e é bom que a minha avó não esteja aqui para reclamar do palavreado, mas eu não consigo encontrar outra forma de expressar a intensidade disso sem ser assim.
Ela engoliu o choro, escondendo a mão trêmula atrás da porta antes que cedesse e retirasse a tranca que os separava.
— Para. Por favor.
— Eu não consigo. Sinto muito. - Ele tentou rir, fungando e secando os olhos. — Eu vou embora já que você não quer conversar agora. Quando quiser, sabe onde me encontrar.
Ela sabia. Mas sabia também que não poderia ceder e, ainda por cima, ele sabia como encontrá-la. E a única forma que conseguiu imaginar de evitar ambas as coisas foi comprando sua passagem para férias imediatas no Canadá.
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— Você sumiu.
se virou para a voz conhecida, encontrando em um terno impecável, com o cabelo penteado para trás.
— Precisei viajar - disse simplesmente. — Voltei ontem.
Ele meneou a cabeça, concordando.
— Você está linda.
E ela estava mesmo. O vestido esmeralda em decote canoa valorizava seu colo e suas escápulas, além de contrastar perfeitamente com sua pele.
— Obrigada, você também - respondeu educadamente. — Acho que é o ar da pré-estreia. Todos estão bastante elegantes.
Ele não esperou que ela compreendesse seus movimentos e nem que pudesse impedi-lo. Apenas se aproximou e a tomou nos braços, abraçando-a com força.
sentiu o corpo endurecer levemente com a surpresa, mas logo relaxou, retribuindo o gesto com gosto de saudade e casa. Sentia o perfume amadeirado dele que ela tanto amava e usava como desculpa para encaixar o rosto em seu pescoço quando se deitavam. As mãos dele alisavam as costas dela com delicadeza, em um conforto que há muito pareciam ter sido privados de compartilhar.
— Eles pediram para entrarmos - disse, entrando de repente no pequeno camarim. Seus olhos se arregalaram levemente com a cena. Ao vê-los se afastando rapidamente, compreendeu tudo o que ninguém estava lhe dizendo. — Perdão, não queria atrapalhar o momento de vocês.
— Não atrapalhou - respondeu imediatamente. — Estávamos só nos cumprimentando pelo trabalho. Parabenizando-nos pelo desempenho.
A outra concordou, ainda olhando de um para o outro.
— Eu vou primeiro? - perguntou. — Depois vocês dois entram?
— Sim, foi o que eles disseram - concordou. — Os outros já entraram.
assentiu e acenou para eles, respirando fundo antes de deixar o camarim e seguir em direção ao tapete vermelho, onde esperava que os flashes pesados das câmeras não capturassem o reflexo das lágrimas em seus olhos e pudessem apenas tratá-los como brilhantes e deslumbrados.
e se mantiveram no pequeno cômodo, em completo silêncio.
— O que você viu - ele arriscou começar. — Não era o que parecia.
— Por que você acha que tem que me justificar qualquer coisa? Nós não temos nenhum compromisso além de um contrato. Você pode e deve amar quem quiser.
— Mas não era isso…
— , eu não sou idiota. Eu só via vocês dois juntos quando estavam em cena, provavelmente é o único motivo para não ter percebido antes. Seja lá o que vocês têm, esconderam muito bem. Preciso tirar meu chapéu para vocês por isso.
— Não é tão simples assim.
— Imagino que não - ela concordou. — Afinal, eu estava bem no meio, né?
— Não é culpa sua - ele respondeu prontamente.
— Imagino que isso também não seja tão simples assim - brincou. — Nós fizemos nossa parte do acordo e eu sempre vou ter de te agradecer por limpar minha imagem.
— Você não tem nada a me agradecer - ele assegurou.
— Ah, tenho, sim. Muitas coisas na verdade. Mas acho que posso começar a retribuir isso tudo agora.
Um som agudo soou pelo corredor.
— Do que você está falando?
— Esse é o nosso sinal de entrada. Precisamos ir.
— Não antes de me explicar o que quer dizer com isso.
sorriu carinhosamente, dando-lhe um beijo na bochecha e se certificando em seguida de que marcas do seu batom não haviam ficado para trás.
— Chega de ter medo, Sterling. O amor foi feito para os corajosos.
E puxou a mão dele em direção às câmera, microfones e aplausos que estouraram em sua frente. Acenaram para o público e para os paparazzi e se dispuseram a responder algumas perguntas rápidas dos repórteres. A maioria delas era sobre o filme, até que chegou uma sobre o relacionamento.
— E como vocês estão agora que o filme acabou de ser filmado?
— Na verdade, nós terminamos há algum tempo, ainda durante a gravação - respondeu, com a serenidade que faria qualquer um morrer de inveja. teve de se controlar para não encará-la assustado. — E está tudo bem, sabe? Foi uma decisão mútua e respeitosa. Ainda temos muito carinho um pelo outro. E eu não desejo absolutamente nada para ele além da mais pura felicidade. Ele merece.
O sorriso que ela deu para ele explicou que aquele era o seu presente. Ele estava livre. Eles estavam. Como absolutamente tudo em sua história, permaneceria não sendo fácil. Precisariam de um tempo para que os rumores fossem levados pelas águas dos rios e para que não fosse vista como pivô de uma separação e virasse a vilã de sua própria história. Mas estava certa. Era um primeiro passo. Para os próximos, precisariam de coragem. Amor eles tinham de sobra.
— Nós merecemos - ele acrescentou.
Os repórteres curiosos foram afastados e eles foram encaminhados para a sala de cinema onde a primeira transmissão do filme seria feita. Os críticos e convidados ocupavam seus lugares, aguardando. A equipe de direção e os atores estavam sentados juntos em um canto separado e menos privilegiado.
e ocuparam os dois assentos restantes. Ela o empurrou de leve para que entrasse primeiro na fileira, ficando ao lado de enquanto ela ocupava a poltrona do corredor.
A atriz franziu o cenho em estranhamento, mas recebeu um sorriso reconfortante de . O mesmo que tinha oferecido a ele em sua casa. O mesmo que sempre compartilharam com o outro. O que garantia que estava tudo bem.
Com as luzes apagadas para o início do filme, ele tomou a mão dela na sua, rabiscando com a ponta do indicador cada uma das letras que formavam ‘eu te amo’. não precisava de palavras. O aperto leve na mão dele era mais do que o suficiente para que ele soubesse que a recíproca era muito mais do que verdadeira.
A risada dolorida e ofendida dele reverberou por cada um de seus ossos.
— Você não pode realmente acreditar nisso. Tudo o que eu sempre fiz foi para te ver feliz, Camille.
— Então me explica como eu nunca me senti tão infeliz na vida.
— Talvez seja porque você nunca está satisfeita com nada - ele disse, sentindo o cansaço sobre os ombros. — Eu poderia te entregar o mundo e não seria suficiente.
Ela levou a mão ao peito, sentindo-se sangrar com a punhalada.
— Isso não é verdade - disse, engasgada. — E muito menos justo.
— Pois pense no que realmente é justo. Mas não me procure antes de descobrir, porque eu estou exausto de fazer de tudo por você e não receber nem um pingo de gratidão.
E com a porta sendo batida atrás de suas costas ao sair, ela se permitiu chorar tudo o que havia sido gradualmente entalado.
— E corta! - A voz do diretor soou no megafone. — e , ótimo trabalho! Acho que podemos considerar essa cena concluída.
O rapaz deu a volta no cenário, sorrindo aliviado. Sempre ficava inseguro ao gravar cenas que deveriam ser mais dramáticas por se considerar mais expressivo no sentido da raiva do que da tristeza e da pura mágoa. Tinha sido um dos principais pontos treinados nos primeiros anos de sua carreira e, por mais que a maioria dos diretores, roteiristas e preparadores dissesse que estava tudo bem agora, ele continuava se cobrando mais do que o necessário. Apenas mais um dos traços conturbados de sua personalidade que vez ou outra o impediam de ter uma noite decente de sono.
— Tirem a próxima hora de descanso enquanto terminamos de ajustar a figuração e a edição da cena seguinte - o diretor sugeriu. — E usem essa química de vocês em frente às câmeras a seu favor. O que vocês têm vale ouro.
E , recentemente, havia estrelado uma minissérie sobre a corrida do ouro do século XIX. Somando a educação formal do colégio e o estudo individual que realizou a fim de se aprofundar na realidade histórica e em seu personagem, sabia que a migração havia acontecido em massa ao redor do ímpeto da busca pelo enriquecimento e pelas oportunidades de mudar de vida que muitos não teriam se permanecessem inertes em seus locais de origem.
A questão era que a maioria, de toda forma, parecia fadada ao azar ou à má sorte; fosse o termo que preferissem ao fim do dia. Alguns não encontravam nada. Alguns morriam pelo caminho. Alguns morriam em confrontos de poder e ideias surreais de uma posse que nunca existiu para além dos longínquos e inenarráveis limites da soberba humana.
Vários eram enganados. Enganados por patrões que não tinham reais intenções de compartilhar a porcentagem acordada ou que não acreditavam que pausas para alimentação e descanso fossem mesmo necessárias. Enganados, muitas vezes, por seus próprios olhos ambiciosos que queriam acreditar que tudo aquilo que reluzia era ouro. Eram ludibriados pela ciência; pela ação do dissulfeto sobre o ferro, dando a ele um brilho metálico de tom amarelo-dourado.
Era assim que se sentia. Se eram vistos como ouro, talvez e ele fossem apenas piritas brilhantes estranhamente convincentes. Eram ouro de tolo; uma encenação dentro e fora das telas. Um sentimento de autopreservação falseado em amor cujo valor ele agora questionava.
Conforme o tempo passava, sustentar aquela farsa vinha se tornando cada vez mais difícil e exaustivo. Sorrir em tapetes vermelhos e dar as mãos era fácil demais. O difícil era ignorar o nó na garganta, o coração se apertando e se asfixiando até que não restassem mais do que alguns cacos e o maldito eco na consciência o lembrando de que era a porra de um mentiroso. Um mentiroso cuja mentira era televisionada para milhões de pessoas a todo momento.
lhe ofereceu um sorriso educado e igualmente cansado ao passar por ele, indo provavelmente em direção ao seu trailer. Ele sabia que cada um daqueles gestos continha um pedido silencioso de desculpas que ele não podia aceitar por ser tão parte daquilo como ela era.
A ideia de estender o casal protagonista para a vida fora do estúdio e fingir que aquele relacionamento não estava mais enclausurado na vida das personagens havia sido de comum acordo entre os empresários dos dois lados e a direção do filme, além de toda a equipe de marketing e divulgação.
era bem mais conhecida que ele e não havia um único ser no universo capaz de negar isso. Ela tinha sido recém-indicada ao Globo de Ouro, enquanto ele apenas estava começando a pavimentar o seu próprio caminho de sucesso. Por outro lado, havia construído sua imagem de bom e respeitoso moço queridinho das garotas com afinco e esta poderia ser extremamente útil depois das desavenças com os paparazzi que a atriz tivera no último ano, fazendo a mídia inventar qualquer tipo de baboseira que culpabilizasse a vítima e fizesse com que ela parecesse uma pessoa agressiva e detentora de surtos de raiva.
E não adiantava ouvir que uma mentira daquelas era inofensiva e não faria mal algum a ninguém. Não quando o coração que ele estava destruindo era o próprio. E ao menos mais um.
Seguiu até o próprio trailer, ainda achando bizarro ver o próprio nome em uma placa de protagonista. Com a chave, destrancou a porta e pisou para o interior do veículo, trancando-a novamente atrás das costas.
Sentiu os ombros relaxarem automaticamente e um pequeno sorriso de canto se formar ao ver o corpo de enrolado na manta azul da qual ele raramente se separava. Ela respirava profunda e serenamente, balançando alguns cachos que caíam sobre o rosto.
se sentou com cuidado no colchão e levou a mão esquerda até seus cabelos, acariciando-os de leve. estremeceu, despertando. Ao abrir os olhos e se deparar com a vista, sorriu ternamente, inclinando o próprio rosto em direção ao seu toque.
— Eu estava te esperando - contou. — Acabei cochilando.
— Dormiu mal de novo essa noite?
Ela assentiu.
— Estava repassando o roteiro.
— Pela milésima vez - ele disse. — Você precisa descansar. De nada adianta esse esforço se você estiver acabada demais para sequer gravar.
se sentou, rindo.
— Claro que adianta. Nada que uns minutinhos a mais na maquiagem e umas mil aplicações de base e corretivo não disfarcem.
— É, mas eu não estou preocupado com o trabalho que você vai dar para as maquiadoras e, sim, com a sua saúde.
A mulher concordou, sabendo que não havia como não fazê-lo.
— Pode deixar. Prometo que vou dormir cedo hoje, ok?
Mas o que não entendia era que aquele “exagero” não era injustificado para ela. Aquele era o primeiro papel de em um filme grande com mais de três falas, sem que ela fosse escrava ou faxineira. Era a primeira vez em que ela era simplesmente um membro da família principal, mesmo que apenas uma prima. jamais saberia como era ter de batalhar dez vezes mais apenas para superar o estigma a que o universo o submetera apenas pela cor de sua pele. E era por isso que ela não poderia de forma alguma colocar tudo a perder. Era por isso que ela fazia questão de estudar aquele roteiro milhares de vezes, como se fosse encontrar qualquer informação nova ou dica perdida nas entrelinhas daquelas falas que ela já havia decorado de trás para frente há muito tempo. Era por isso que ela sabia que não podia se permitir errar; porque mesmo a perfeição seria pouco para alguém que tinha começado aquela corrida bem atrás da linha de partida dos demais.
Ele aceitou a promessa e depositou um beijo no topo de sua cabeça. Só queria que ela entendesse que nada no universo era tão importante para ele quanto o seu bem estar. Só queria que ela pudesse acreditar nisso.
— Você parece preocupado - ela comentou. — Ninguém me viu entrando, eu tenho certeza. Você tem literalmente o trailer mais isolado do universo. Não precisa se incomodar com isso.
— Não me incomodo - ele respondeu de pronto. — Eu te dei a chave reserva exatamente porque quero que você venha até aqui.
— Jura? Pensei que fosse só para eu esquentar o colchão para você.
riu, empurrando-a para o canto e se deitando. deitou ao seu lado, permitindo que ele passasse o braço por trás de suas costas e a trouxesse para mais perto em um abraço protetor.
— Como foi a grande cena?
— Acho que ficou boa - ele admitiu. — Foi mais fácil de gravar do que eu pensei.
— Tenho a impressão de que alguém já tinha te avisado de que daria tudo certo.
— Ah, tem? - Ele trabalhou sua melhor feição de desentendido. — Que engraçado, porque eu realmente não me lembro.
riu, dando-lhe um tapa que mais fez barulho do que doeu.
— Você é um ator incrível e deveria colocar isso de uma vez por todas dentro dessa sua cabecinha. Ninguém te escalaria como protagonista sem uma audição sequer se não confiasse cegamente no seu trabalho e na sua capacidade de fazer jus ao papel.
não fazia exatamente o tipo de pessoa que permitia que sua irritante insegurança acreditasse e acatasse aos elogios recebidos. Mas, de alguma forma, quando aquelas palavras de afirmação e incentivo saíam como uma suave melodia dos lábios dela, ele acreditava. Confiava mais nela do que em qualquer outra pessoa do universo e sabia que ter alguém assim era muito mais do que boa parte das pessoas poderia conseguir na vida.
— Eu não sei o que seria de mim sem você - ele admitiu.
— Provavelmente uma pessoa triste e solitária - ela respondeu, arrancando um sorriso dele.
virou a cabeça, encontrando os lábios dela em um beijo calmo. esperava que o toque de seus dedos acariciando a bochecha dele fosse suficiente para dizer todas as palavras que ela tinha dificuldade de expressar para além das ações.
— Eu preciso ir - falou finalmente.
Ele a apertou mais em seus braços.
— Ah, não. Fica mais um pouco.
— Preciso fazer maquiagem e figurino ainda. E assim você espera um tempo até voltar para ninguém suspeitar de nada.
Era em momentos como aquele em que ele queria mandar tudo para o espaço. Dizer que os empresários, a mídia e os fãs que se ferrassem porque ele viveria a própria vida como bem entendesse com a pessoa que amava. Sem esconderijos. Sem encontros furtivos. Sem beijos roubados enquanto ninguém os via. Sem os olhares silenciosos que diriam tudo se alguém ao menos estivesse disposto a ouvir.
— A gente se vê daqui a pouco - ela disse e saiu.
levou as mãos ao rosto, escondendo-o da iluminação do ambiente que expunha cada um de seus segredos.
— Certo, vamos para a cena seguinte. , você pode vir um pouco mais para o centro, por favor?
A mulher deu alguns passos para a direita, recebendo um sinal positivo do diretor.
— , lembre-se. Você está bastante revoltado e nervoso com a situação, mas sem abandonar esse quê melancólico. É uma sensação angustiante de descrença e injustiça, sabe?
— Combinado.
— E ação.
O rapaz atravessou a porta com certa agressividade, assustando a mulher que havia passado os últimos instantes andando de um lado para o outro da sala, apertando e confundindo os próprios dedos enquanto pensava no que fazer.
— Ah, Matthias! Que bom que chegou. Preciso te falar uma coisa e…
— Agora não, Rachel - disse de forma brusca, passando por ela como se fosse a peça mais insignificante da mobília daquela sala.
— Você sabe que eu detesto te incomodar - ela continuou, caminhando atrás dele. — Não estaria aqui se não fosse importante.
Ele bufou, cada vez mais frustrado.
— Rachel, seja o que for, pode esperar. Eu não estou com cabeça para lidar com qualquer coisa nesse momento.
— É sobre seu pai - ela disse, esperando que isso fosse fazê-lo mudar de ideia. A reação obtida não poderia ter sido mais contrária a qualquer de suas expectativas.
Uma risada amarga veio do fundo de sua garganta, enquanto os olhos apertados acumulavam certa umidade. Se não fosse pelos negócios irrefreáveis e inconsequentes do pai, nunca teria entrado naquela situação para início de conversa.
— Pois ele pode explodir - decretou, encarando-a no fundo dos olhos. O arrepio que correu involuntariamente pela espinha da mulher sendo facilmente compreendido como um sinal de nervosismo, preso ao detalhe de uma atuação cuidadosa com cada minúcia. — Não quero saber de qualquer coisa que envolva aquele homem.
— Não faça isso - ela pediu. — Por mais complicada que ela seja, não vire as costas para a sua família.
Ele se virou uma última vez antes de subir as escadas a passos firmes e pesados:
— Eu nem sei mais o que isso significa.
— E corta! Excelente! Vamos rever as gravações para ajustar os cortes das falas de cada um, mas acho que ficou ótimo. Bom trabalho.
A movimentação no set começou, com as pessoas passando para todos os lados, movendo as câmeras, os stands de iluminação e a decoração do cenário para declarar findado o dia de gravação que já havia virado o começo de uma noite pouco estrelada.
— Te vejo domingo? - perguntou para , praticamente sussurrando sob os sons altos da movimentação intensa.
Ela moveu a cabeça concordando e se afastou, sabendo que quanto menos tempo passassem por perto um do outro, melhor seria.
— , já está no carro lá fora - seu empresário disse, aparecendo afobado como de costume. No dia que aquele homem conseguisse respirar no ritmo de um ser humano normal, o mundo provavelmente explodiria e só restariam farelos. — Vai se arrumar.
— Para quê?
— Vocês vão sair para jantar, esqueceu?
O rapaz bufou, esfregando os olhos.
— A gente precisa mesmo fazer isso?
— Você vai me fazer essa pergunta mais quantas vezes se já sabe a resposta? Poupe a nós dois do cansaço e apenas cumpra o que foi combinado.
Ele se deu por vencido, pegando suas coisas para se dirigir ao trailer e trocar de roupa, escolhendo algo minimamente apresentável para ser fotografado sem nenhum pudor quando entrasse de mãos dadas com em qualquer restaurante considerado romântico e sofisticado o suficiente para que o novo casal queridinho do público fizesse sua aparição mágica, apenas reforçando o quão entrosados eram e como o amor poderia caminhar para além das câmeras com a facilidade com que corre um rio.
Enquanto isso, piscava com força, levando o indicador ao canto do olho para dar sumiço na lágrima acusatória que se formava antes que alguém encontrasse as evidências do pequeno crime.
— Aconteceu alguma coisa? - Uma das maquiadoras perguntou, aproximando-se com preocupação.
Ela meneou a cabeça rapidamente, querendo garantir que seu tempo de reação fosse convincente sem deixar margens e respaldo para que qualquer um pensasse diferente. — Eu fiquei coçando meu olho e acho que caiu um pedacinho do rímel nele.
— Ai, essas máscaras fazem isso mesmo - ela falou, aproximando-se. — Parece um pouco vermelho, deve ter dado uma irritada.
— Acho que sim - concordou, piscando repetidamente. — Sabe se alguém tem um colírio para me emprestar? Está ardendo um pouco.
— Vou ver se consigo algo - ela respondeu prestativa antes de sumir de sua vista.
A atriz agradeceu, oferecendo um sorriso simpático. Assim que a maquiadora se afastou, expirou o ar confinado no tórax com um pouco mais de força, sentindo os ombros se fecharem como em um escudo para proteger os frangalhos de seu coração, apertado no peito por ter que aguentar tudo aquilo em silêncio. Ter que ver quem ela amava virar as costas e desfilar com outra mulher por aí porque ela não era boa o suficiente para ser vista ao seu lado. E, pior, ter que fingir que aquilo não a atingia.
Aquele era um fardo cada vez mais pesado de se carregar e ela começava a semear e cultivar suas próprias dúvidas quanto à sua capacidade de sustentá-lo por muito mais tempo.
— Estamos quase chegando.
— Certo - concordou, esfregando as palmas geladas das mãos suadas contra o tecido das calças jeans. Um pingo a menos de autocontrole e ela estaria batendo os pés com tanta força que faria o veículo todo tremer junto com seu pequeno surto.
— Não precisa se preocupar - ele tentou confortá-la. — Eu não teria contado a verdade para eles se não tivesse certeza de que são confiáveis. Eles me amam e sabem bem que qualquer passo em falso sobre essa história é o suficiente para colocar tudo a perder. Eles não vão falar nada, eu juro.
— Não estou preocupada que eles possam contar alguma coisa, . Como você mesmo disse, são sua família; eu confio neles porque sei que você confia.
— Então qual é o problema? Eu fiz alguma coisa?
forçou um sorriso contra o nervosismo que parecia pulsar logo na base de seu crânio como uma bomba relógio prestes a causar um estrago incomensurável em instantes.
— Não é sobre você, eu juro. Eu só… Sei lá, acho que estou nervosa.
— Não deveria. Eles vão te adorar.
— Você não pode sair por aí distribuindo certezas desse jeito.
— Bom, nesse caso, eu posso e eu vou. É simplesmente impossível não te adorar.
— Aham, ‘tá bom - ela disse rindo.
— É sério, juro. Uma pessoa deve ter que se esforçar muito para conseguir ter algo contra você. E não vale a pena, sabe? A gente é tão preguiçoso. Até parece que alguém vai perder tempo com esse tipo de esforço.
revirou os olhos, sem tirar o sorriso do rosto ao observar cada uma das árvores bem podadas e repletas de flores amarelas pelo caminho que começavam a formar tapetes coloridos nas calçadas.
— Você só quer massagear meu ego.
— Não. Eu tenho preguiça disso também.
A mulher deu um tapa leve em seu ombro, fingindo um ressentimento, pois no fundo sabia que aquela era uma das maiores mentiras já contadas. Palavras de afirmação eram a linguagem primordial dele para expressar sua afeição e admiração. Ele sempre parecia saber exatamente o que dizer e como isso ressonaria de forma tão importante no outro.
— É aqui - ele falou e manobrou o carro algumas vezes para deixá-lo em frente ao jardim e não à garagem.
olhou pela janela, absorvendo todos os detalhes que podia. A casa era ampla, mas carregava consigo um ar de conforto que apenas um ambiente familiar poderia ter. Não precisava dar dois passos para fora da casa para sentir cada um de seus neurônios assimilando que, mais do que uma casa, aquele era um lar. Pelas árvores vistas ao longe e pelos prenúncios arbustivos das laterais, deveria acabar em um quintal vasto, de onde vinham pequenos gritos infantis de “Peguei” e risadas estabanadas na sequência.
entrelaçou os seus dedos e ela apertou o pequeno vaso de orquídeas brancas contra o tórax, equilibrando-o com todo o cuidado possível sobre a mão livre. Tinha sido ensinada a nunca chegar na casa de alguém como visita sem levar um presente, mesmo que o considerasse apenas uma lembrancinha. E, conforme o exemplo da mãe, havia aprendido que uma flor era sempre algo neutro e impessoal o suficiente, mas sem parecer impensado. E, quase sempre, terminava sendo um presente útil, mesmo que apenas para decorar o hall de entrada. Desde que os presenteados não fossem alérgicos - informação que ela havia obtido de por insistência, ignorando suas tentativas de convencê-la de que aquilo não era necessário - , sempre acabaria bem.
Pararam sobre o capacho com pequenos pés desenhados sobre os dizeres “Seja Bem-vindo!”. se virou para ela, olhando-a com ternura.
— Está pronta?
inspirou profundamente e soltou o ar com calma na sequência, até se certificar de que sua exalação havia sido completa. Finalmente, balançou a cabeça em concordância.
— Eu te amo - ele disse e apertou o botão da campainha. — Vai dar tudo certo.
Antes que ela pudesse responder, o barulho da porta se abrindo chamou sua atenção. Em sua frente, uma mulher sorridente, com os cabelos soltos em ondas sobre os ombros e um vestido florido que poderia facilmente ocupar o verbete de primavera em qualquer dicionário.
— Você deve ser a . Ah, querida, é tão bom finalmente te conhecer.
A mais nova simplesmente entregou a planta para o namorado, libertando-se para o abraço de sua mãe, que a apertou nos braços como se tivesse acolhendo a própria filha.
— É muito bom conhecê-la também, senhora Sterling.
— Ah, não. Nada de senhora Sterling, por favor. Me lembra das rugas que tenho na testa. Pode me chamar de Lori.
riu educadamente, grata pela energia despojada e agradável. Poderia se acostumar com aquilo com mais facilidade do que poderia ter esperado.
— Certo, Lori. É um prazer enorme estar aqui.
A mais velha soltou-a do abraço, tomando o seu rosto nas mãos e a olhando de forma carinhosa.
— Você é ainda mais linda pessoalmente. falou tanto de você.
— Ah, falou, é?
arqueou uma sobrancelha para ele. Ele deu de ombros.
— Acho que não - ele disse, meneando a cabeça. — Ela deve estar se confundindo. Sabe como é. São coisas da idade.
— Sterling, se você pretende insinuar coisas sobre minha idade, pelo menos faça pelas minhas costas. E não minta na frente da sua namorada. Sabe muito bem que eu ouvia o nome dela saindo de sua boca pelo menos uma dúzia de vezes por semana.
ergueu ainda mais as sobrancelhas, encarando-o de forma mais inquisitiva. Ele balbuciou alguma coisa antes de finalmente encontrar as palavras para dizer:
— Quer dizer, você tem um nome bem comum. Provavelmente é só uma coincidência.
— Um nome bem comum? Isso lá é coisa que se diz para alguém? - A mãe ralhou. — Por Deus, essa não foi a educação que eu te dei.
— Eu estou brincando, mãe. Só queria te irritar.
A mais nova riu e tomou a orquídea em mãos, entregando-a para Lori em seguida.
— Eu comprei isso. É só uma lembrancinha para agradecer a sua família por me receber.
— Oh, meu Deus, você é mesmo um doce. Não precisava, querida, mas agradeço muito. Elas são lindas! - Lori rodou o pequeno vaso nas mãos, apreciando as flores e também os pequenos botões que ainda se esforçavam para florescer. — Mas vamos entrando, venham. Vou deixá-las sobre o aparador, onde sei que vão pegar a quantidade certa de sol.
tomou a mão de na sua mais uma vez, enquanto atravessavam o corredor da entrada, chegando à sala principal.
O pai dele se levantou do sofá, dando um tempo para o jogo de futebol para dar atenção a ela, sorrindo de forma simpática enquanto a cumprimentava. Ele era exatamente da forma que o filho tinha descrito: bochechudo, sorridente e com a fisionomia que fazia qualquer um querer abraçá-lo, atropelando o fato de que ele também era um homem de poucas palavras. Ao contrário de , seu pai parecia mais disposto a demonstrar afeto por meio dos gestos que por interações verbais.
— Tio ! - Uma garota gritou, vindo correndo e sendo seguido por um menino um pouco mais baixo que ela, mas com os traços e feições gritantemente semelhantes.
— Se não é a minha borboleta favorita!
O rosto dela se contorceu em uma careta.
— Eu não gosto mais de borboleta, tio.
— Meu Deus, eu nunca vou conseguir acompanhar essas suas mudanças. Do que você gosta agora?
— Ela gosta de joaninha - o pequeno disse, também se entregando ao abraço. — E eu quero ser um camaleão porque ele faz várias coisas, pode ter todas as cores que quiser e ainda tem uma língua enorme.
riu com a cara de tentando acompanhar toda aquela onda de energia e novas informações.
— Certo, vou tentar lembrar - prometeu. — Mas vocês sabem quem também adora joaninhas e camaleões? - Ele empurrou a mulher para a sua frente. — , conheça Flora e Nate, meus sobrinhos favoritos.
— Porque somos os únicos que você tem - reclamou Nate. — Você que é a namorada de verdade do tio ? A mamãe falou que não era aquela moça que aparece com ele na televisão. Que ela era só uma amiga.
A mulher respirou profundamente, sentindo o ar retido e pesado no tórax. Não sabia se encontraria a própria voz para lidar com a confusão que deveria perpassar a cabeça daquelas crianças e com o fato de que aquelas simples palavras tinham feito seu peito doer ao se lembrar do quão injusto era ter de passar por tudo aquilo.
— É isso mesmo - se adiantou e respondeu por ela. — E onde é que estão os pais de vocês?
— Eles tinham um almoço na casa do chefe do papai - Flora explicou. — Como não tem crianças lá, eles deixaram a gente ficar com a vovó.
Nate olhava para com uma atenção exemplar que com certeza a constrangeria se partisse de qualquer ser maior de idade.
— Seu cabelo é tão bonito - ele disse de repente, arrancando dela um sorriso largo e a vontade súbita de despejar algumas lágrimas que a fariam se achar completamente patética logo em seguida. — Gostei.
— O seu também é lindo.
Ele mostrou um sorriso banguela e passou a mão no pequeno topete que a mãe tinha feito com bastante gel.
— Tia - Flora chamou sua atenção, fazendo seu coração se derreter como uma geleira no meio do contínuo aquecimento global. — Você sabe brincar de esconde-esconde?
— Se eu sei? Eu sou muito boa em esconde-esconde. Eu ganhei uma medalha por isso.
Os olhos da garota brilharam deslumbrados.
— É sério?
— É. Fui a campeã da minha turma no colégio.
— Nossa escola não é tão legal assim - Nate reclamou. — Eles só dão medalhas para os mais velhos e eles nem têm esconde-esconde!
— Que absurdo - concordou.
— Eu sei!
riu da intensa discussão sobre os méritos da justiça e beneficência e das discórdias causadas pelo sistema de educação atual que parecia ter adquirido a insensibilidade magistral em relação às premiações de crianças em idade de alfabetização que eram boas em se esconder. No fundo, talvez fosse por uma questão de segurança - ou comodidade, entenda como quiser. Não parecia a melhor das ideias dar ainda mais incentivos para que uma criatura pequena, capaz de liberar energia por cada um de seus poros, exercitasse sua criatividade tentando descobrir qual o lugar mais louco e mais improvável para se enfiar. Talvez fosse mais fácil em outros tempos, mas, com certeza, o avanço das coisas e o crescimento das instituições tornava as coisas um bocado mais complicadas. Basicamente como todos os outros aspectos da vida.
— Você podia brincar com a gente, né? - Flora sugeriu.
se abaixou, colocando-se na desconfortável posição de cócoras por alguns instantes, apenas para se aproximar da altura deles e fortalecer sua tentativa de criar vínculos.
— Posso. E se vocês ganharem de mim, acho que isso significa que não sou mais a campeã. Daí na próxima vez que nos virmos, eu trago a minha medalha para vocês. O que acham?
Nada no mundo - não, nem mesmo a oferta de sorvete antes do almoço - teria conseguido deixá-los em um estado de êxtase e euforia maior do que naquele momento. A simples possibilidade de receber um prêmio e serem considerados os melhores em algo parecia ter conseguido acender todos os interruptores restantes para que aquela energia acumulada no corpo infantil começasse a se manifestar fisicamente por meio de pulinhos animados.
— É sério? De verdade mesmo? Verdade verdadeira? - Nate perguntou.
— Verdade verdadeira - ela confirmou. — Juro de dedinho - e estendeu os dois dedos mínimos para que cada um deles selasse com ela aquele combinado.
— Então vamos! - Flora chamou.
— Nada disso - uma voz feminina madura soou atrás deles. — O almoço está quase pronto. Vocês brincam mais tarde.
— ‘Tá bom, bisa - eles disseram, encolhendo os ombros em decepção imediata.
— Entrem para lavar as mãos.
— A gente pode pegar refrigerante?
A mais velha assentiu.
— Escolham um e levem a garrafa para dentro. Mas só porque é domingo!
Flora e Nate correram de volta em direção à casa, falando coisas que eles já não eram capazes de ouvir e trocando risadas que os obrigavam a sorrir também.
— Não cumprimenta mais a sua avó? - Ela reclamou, arrumando os óculos de grau no rosto. — Qual é o próximo passo? Me abandonar em um asilo e só lembrar que eu existo quando te ligarem para avisar que eu passei dessa para melhor?
— Meu Deus, a senhora conseguiu ficar ainda mais dramática desde a última vez que eu vim para casa - apontou. — Não pensei que isso fosse possível.
— Não sei porque está tão surpreso. De onde você pensa que veio sua veia artística para o teatro?
balançou a cabeça rindo, enquanto abraçava a avó com força e beijava seu rosto.
— Senti saudades da senhora.
— É só me ligar. Eu aprendi a usar as ligações por vídeo daquele aplicativo que vocês tanto usam. Agora deixe de ser mal educado e me apresente à sua namorada.
— Ok - ele se deu por vencido, indisposto a mais uma vez reclamar do temperamento das mulheres de sua vida. — Vó, essa é a . , essa é minha vó Celia.
recebeu a senhora em seus braços, encontrando um abraço carinhoso e tão imediatamente acolhedor que a fazia ter vontade de patenteá-lo e reproduzi-lo materialmente apenas para poder carregá-lo consigo para sempre. Por mais que tivesse sido tão bem recebida por todos os membros da família de que havia conhecido até então, ver a avó do rapaz foi o apogeu da destruição dos muros e obstáculos de inseguranças e medos que ela havia alicerçado com desespero nos dias anteriores, apenas esperando que aquele fatídico momento chegasse como uma bola de destruição.
Olhar para seus cabelos grossos e grisalhos, para seu sorriso calmo e para a cor de sua pele que tanto parecia com a dela acabou lhe dando a sensação de refúgio e pertencimento que precisava para avançar na empreitada de que aquela sensação de aceitação não era apenas fachada.
Não era assim que deveria ser, ela bem sabia. Mas era assim que acontecia em seu coração, mesmo que inconscientemente. Existia algum alívio em não se sentir o único diferente. Não suprimiria suas origens e não desejava de forma alguma silenciar a beleza de quem ela era e de que história trazia em seus ossos. Não era sobre ser vista como igual e, sim, bem-vinda e abraçada como diferente.
— Eu estava tão ansiosa para conhecer a mulher que finalmente destruiu a pose de durão desse garoto.
— Seu neto é uma manteiga derretida, dona Celia - ela brincou. — Chorou com um comercial esses dias.
— Calma lá - ele interveio. — Não é culpa minha se as pessoas decidiram enfiar cachorrinhos de propósito para sensibilizar o público. Eu não sou imune a essa jogada de marketing.
— Parabéns, querido, você é um ser humano no fim das contas - ela disse. — Agora, vá ajudar sua mãe a arrumar a mesa.
Ele aquiesceu, fazendo menção de pegar a mão de e levá-la consigo. A mulher foi mais rápida, segurando sua mão no meio do caminho para impedir seu gesto.
— Diga a Lori que já vamos. Quero conversar com a nossa garota primeiro.
encarou a namorada rapidamente, como se estivesse apenas se certificando de que estava tudo bem para ela. A resposta foi um sorriso tranquilizador que logo o fez sumir de vista.
— Sente-se comigo - pediu Celia, caminhando até um banco branco no jardim, com vista para um chafariz ornamentado que parecia há muito desligado. — Não tenho mais idade para ficar em pé sem que minhas costas cometam um crime de ódio mais tarde.
riu.
— Que isso, a senhora é jovem.
— Eu sei, meu bem, mas a maldita coluna não sabe.
Veio mais uma onda de risadas.
— Meu neto te ama muito. Muito mais do que eu esperava que ele fosse fazer por alguém tão cedo.
A garota sabia bem o que ela queria dizer. Tinha ouvido da própria mãe ao longo de toda a adolescência como relacionamentos jovens nunca acabavam bem. Como eram apenas diversão, passatempos e a ilusão de um falso amor, mas que doía e sangrava como uma ferida real demais até que a cicatriz fosse reparada. Como eram pouco além de uma grande perda de tempo de corações jovens demais para conseguir mensurar o que era o compromisso de uma vida.
Quando contou que estava apaixonada e que dessa vez era de verdade - nada como o namorico passageiro do ensino médio -, a mãe disse que já tinha ouvido aquilo antes. E que esse tinha sido o mesmo papo do relacionamento relâmpago com o garoto que a levou para o baile. E do cara que ela conheceu na recepção de calouros da faculdade. O mesmo “dessa vez é diferente” terminando no mesmo exato fim. Nunca era amor. Era fogo. Paixão, talvez. Algum tipo de chama intensa, mas de curta duração, que se extinguia fácil demais. Aquela com certeza seria só mais uma daquelas histórias passageiras. Ela era nova demais para compreender qualquer relação diferente daquilo.
Mas era diferente. E ela sabia. Não “sabia” como das outras vezes. Dessa vez, ela sentia algo totalmente diferente. Era intenso, sim. Mas não parecia efêmero. Era regular, constante, com comburente suficiente para queimar indeterminadamente. Não estava nem aí para a data em sua certidão de nascimento e muito menos para o que os outros tinham a dizer, realizando contribuições indesejadas com suas opiniões com toda a certeza não requisitadas. Ela sabia o que era amor e sabia que era exatamente o que sentia sempre que pensava em .
— O sentimento é totalmente recíproco, dona Celia - ela garantiu. — Posso assegurar isso para a senhora.
A mulher sorriu de forma carinhosa, tomando as mãos dela nas suas. Celia tinha as palmas mais lisas, com as marcas das impressões digitais gastas pelo tempo. Seus dedos eram frios, mas transmitiam a tranquilidade e o conforto de uma leve brisa.
— Eu sei, minha querida. Dá para ver em seus olhos. E tenho certeza de que nada além de amor seria capaz de suportar toda essa bagunça em que vocês se meteram.
soltou uma lufada de ar triste no que deveria ser uma risada, mas não havia graça nenhuma ali.
— Com certeza não poderia estar mais longe de ser fácil.
— Tenho certeza de que não. Deve ser no mínimo doloroso ver a pessoa que você ama indo embora com outra.
— No começo, eu chorava no carro depois de sair fingindo ignorar a angústia - ela contou.
— E agora?
— Agora eu engulo o choro e fico repetindo que isso tudo vai passar. Que nós vamos passar por isso.
— Não é porque vai passar que significa que vai ser fácil. Nem durante e nem depois.
sentiu a garganta se fechando como se estivesse presenciando um mortal choque anafilático.
— O meio que vocês escolheu é cruel, mas acredito que você saiba disso muito melhor do que eu - a senhora continuou. — Entende muito mais sobre os haters e sobre o poder que as pessoas têm de simplesmente serem cruéis e acharem que possuem esse direito só porque você é uma pessoa pública. Você vai ouvir todo o tipo de merda, com o perdão do linguajar. E vão te culpar pelo término dele com aquela outra garota.
— A .
— É, essa mesma. Porque ninguém pode saber a verdade. Mas nada mudaria se eles soubessem, entende? As pessoas acreditam apenas naquilo que querem acreditar. Vocês poderiam apresentar todas as provas de inocência do universo e o veredito ainda seria de culpa se as pessoas quiserem sustentar a história do crime.
— As pessoas sabem bem como ser maldosas - comentou, sentindo sua voz tão distante do próprio corpo que se perguntava se havia entrado em algum tipo de transe distante e sua alma havia simplesmente desistido de presenciar o inevitável, negando-se a ceder sua esperança ao mundo apenas para que ele a retribuísse com mais dor.
— E você e eu sabemos bem que não termina aí - Celia prosseguiu, direcionando a ela um olhar sugestivo e compreensivo. — Qualquer pessoa está exposta aos comentários maldosos de quem decide não gostar de você seja lá por que motivo. Mas nós sempre teremos um bônus.
— O preconceito - a garota murmurou, sentindo algo em seu estômago se revirando amargamente.
— Algumas décadas atrás e só não digo quantas porque não preciso expor a minha idade mais do que esses fios brancos fazem - contou. — Eu conheci o avô de , meu falecido marido, que Deus o tenha, e foi amor à primeira vista. Nós decidimos nos casar bem cedo, mas era algo relativamente comum na nossa época. As pessoas realmente se casavam e tinham filhos com pouca idade e não era tão chocante quanto é agora que vocês têm várias outras opções de como seguir a própria vida, construir carreira, viajar o mundo e tudo mais.
“Mas foi sofrido. Não sei te dizer quantas vezes ouvi das pessoas que eu estava com ele por interesse financeiro já que eu era preta e pobre; duas coisas que as pessoas aparentemente nunca conseguiram separar. Me chamaram de tudo quanto é nome e disseram coisas que não valem a pena repetir. Eu não era a mulher certa para ele porque não era branca. Diziam que nossos filhos seriam feios e doentes por terem uma mãe indigna. Estivemos juntos durante cada segundo de todo esse desrespeito e fomos mais felizes do que todos que não julgavam, mas isso não tornava os xingamentos mais escassos ou menos cortantes.
Os tempos são outros, com a graça de Deus. O separatismo respaldado por lei ficou no passado e algumas pessoas parecem ter adquirido algum tipo de consciência suficiente para não amolar a vida alheia. Mas ainda estamos longe demais de qualquer pé de igualdade que possamos desejar, não é, meu bem? Relacionamentos multirraciais, como dizem por aí, estão longe de passarem intocados por toda essa crueldade.
Ainda existem palavras prontas para nos apunhalar e tentar nos causar vergonha por sermos nós mesmas e carregarmos a história que causa repulsa a eles em cada um de nossos traços. Mas nossa pele se tornou mais grossa e, mais do que sofrimento, nosso sangue traz também uma força que eles nunca vão conseguir imaginar.
O que eu quero dizer, minha querida, é que o seu caminho tem pedras irregulares e seus sapatos foram arrancados. Mas acredito que seja forte o suficiente para atravessá-lo. A força nos encontra quando menos esperamos. Contudo, não precisamos passar por isso sozinhas. Saiba que essa família sempre estará aqui de braços abertos para te acolher e te dar as mãos quando o mundo parecer pesado demais. E também quando ele for leve, é claro. No que depender de mim, a solidão nunca será uma realidade.”
percebeu o próprio choro quando sentiu a lágrima pesada escorrendo e caindo sobre o colo como um metafórico ponto final.
Celia a acolheu imediatamente nos braços, exatamente como tinha acabado de jurar que faria.
— A senhora deve ser literalmente a melhor pessoa do mundo todo.
Uma risada calorosa aqueceu seu coração fragilizado.
— Nada disso, mas vou aceitar o elogio. E também vou aceitar o almoço, porque meu estômago já está roncando com esse cheiro chegando aqui. Vamos?
As duas entraram, encontrando o resto da família começando a se acomodar à mesa.
Bastou apenas um olhar atento de , preocupado com os olhos avermelhados e o nariz levemente inchado dela, para que ela movesse a cabeça calmamente com um sorriso tranquilizante, garantindo-o de que estava tudo certo. No máximo, seria obrigada a sequestrar sua avó mais tarde para tê-la por perto por mais tempo. Sua sabedoria e apoio pareciam ser a receita exata do que ela precisava.
Lori serviu as crianças e os outros a imitaram, montando os próprios pratos com um pouco do conteúdo de cada uma das travessas e caçarolas.
Quando levou a primeira garfada à boca, descobriu que realmente não fazia questão de mentir - especialmente quando dizia respeito à sua família. Sua mãe era mesmo uma cozinheira de mão cheia. Cada nuance dos diferentes temperos e especiarias parecia dançar sobre suas papilas gustativas um novo gênero musical. Era demais para que ela definisse, mas poderia caracterizar com um adjetivo preciso: incrível.
— Como estão as gravações do filme? - A matriarca perguntou.
— Estamos nos encaminhando para o final - contou . — Faltam algumas cenas só e gravamos o desfecho em si.
— O pessoal está trabalhando bastante - acrescentou. — Não deve demorar. Eles querem ter bastante tempo para editar e analisar a versão final umas mil vezes antes de realmente lançar.
— Cuidado redobrado, então.
— Acho que é o primeiro filme da carreira do nosso diretor que ele realmente acredita que pode ser bastante bem visto pela crítica mais especializada, sabe? Talvez até receber o apreço da Academia. Então ele está meio obcecado por repassar cada detalhe mil vezes para ter certeza de que tudo saia exatamente da forma que deveria.
— Bom, errado ele não está - seu pai comentou. — Mas espero que esse homem tire umas longas férias depois disso, antes que surte de vez.
deu uma risadinha em concordância.
— Ele precisa mesmo.
Depois do almoço, ela agradeceu pela comida, dizendo sem esforço algum que estava tudo uma delícia. Ofereceu-se para cuidar da louça, mas recebeu uma negativa imediata dos pais de que disseram que cuidariam daquilo mais tarde - com ajuda da lavadora, é claro.
— Tia , então a gente pode brincar de esconde-esconde agora?
Antes de correr o risco de desmoralizar ou diminuir os mandados de outro, a jovem buscou o olhar de Celia pela sala de jantar, que acenou levemente para ela, dando-lhe a liberação de que precisava.
— Certo, mas quem vai contar e quem vai se esconder?
— Primeiro você procura a gente - Nate decidiu e saiu correndo antes mesmo que ela pudesse realizar uma contraproposta.
— Tudo bem, mas eu vou contar só até dez, hein? Então se escondam rápido.
Enquanto ela contava, sentada em uma das cadeiras do quintal, ouvia a voz de reclamando e dizendo coisas como “aí não, né; eu consigo ver seus pés de longe” e “não é para entrar aí; vocês vão se machucar”. Teve que controlar a própria vontade de rir e os sinais de pequena satisfação ao vê-los deixando o namorado louco. Era o preço a se pagar em compensação para as reclamações de cabelos brancos - inexistentes - que ela ouviria mais tarde.
— Estou indo - anunciou, levantando-se e puxando a calça pelas alças para cinto antes de voltar para o interior da casa.
Bastaram alguns segundos para que ouvisse risadas finas e abafadas, que aumentavam conforme ela andava. Seguindo o som, ela encontrou os tênis coloridos de Flora por baixo da longa toalha de mesa. meneou a cabeça para ela, balbuciando um “eu avisei sobre os pés”.
Para dar a eles mais tempo e a ilusão de dificuldade, caminhou para o lado oposto, com as mãos na cintura, pensando alto:
— Ai, ai. Onde será que a Flora e o Nate foram parar? Será que eles foram se esconder na garagem?
As risadas aumentaram, em um tom cada vez mais vitorioso. A mulher fez hora extra na sala de estar, dando um tempo por ali para que eles acreditassem na demora por dificuldade.
— Se eles não foram para lá, têm que estar aqui dentro. Deixa eu pensar, se eu fosse uma criança pequenininha, onde eu me esconderia? Que tal… Debaixo da mesa? - Ela puxou a toalha, encontrando os dois rindo alto até saírem correndo de seu lugar sob a mobília.
— Você demorou - Nate disse, ainda rindo.
— É que vocês estavam muito bem escondidos - ela se justificou. — Ficou complicado para mim.
— Então agora você se esconde comigo - Flora sugeriu. — O Nate conta.
— Mas eu quero me esconder também.
— Você sabe que cada um tem sua vez - a irmã o lembrou. — Depois eu conto e vocês se escondem.
Mesmo a contragosto, ele acabou aceitando e foi até o quintal, colocando a testa na parede e fechando os olhinhos enquanto fazia a contagem.
A brincadeira seguiu assim, em revezamento, por um bom tempo. já podia sentir os sinais de cansaço gritando que não conseguiam acompanhar a energia infinita de duas crianças. Pelo menos, ela pensou, a irmã de a adoraria mesmo sem conhecê-la apenas por provavelmente ter conseguido adiantar o sono da noite, cansando aqueles dois pequenos furacões.
No fim da brincadeira, ela se sentou - mais precisamente, se jogou - no chão, afobada, respirando fundo e se abanando. Os dois sentaram do lado dela.
— Bom, vocês com certeza ganharam de mim. São muito melhores do que eu.
— Isso quer dizer que…
aquiesceu.
— Quer dizer que da próxima vez vou trazer minha medalha para os verdadeiros campeões.
Os dois comemoraram, estupefatos.
— Tia , quando você volta para brincar com a gente de novo?
A mulher sentiu uma pequena pontada silenciosa no peito. Ergueu a mão e a passou sobre o cabelo de Flora.
— Não sei, querida. Vou tentar voltar logo, está bem?
Com um sorriso sincero, ela concordou.
— Sua mãe vai chegar tarde e pediu para que vocês dois já ficassem de banho tomado - Lori avisou, aproximando-se. — Entrem e peguem as roupas nas mochilas que a vovó já vai para ajudar.
Os dois obedeceram rapidamente, sem reclamações. admirava sua educação para simplesmente aderir às ordens dos mais velhos sem uma cara feia ou tentativa de barganha sequer. Eram doces, brincalhões, educados e sorridentes. E percebeu sem grande esforço como já estava apegada a eles. E a basicamente todas as outras pessoas daquela casa.
Lori reuniu todos de volta na mesa da sala de jantar um pouco mais tarde, para tomarem café e comerem um pedaço de bolo de chocolate quentinho. A conversa estava animada, com alguns papos paralelos em dupla acontecendo: Nate e Flora discutindo qual era o melhor super-herói, e o pai falando sobre a nova temporada de baseball e as mulheres rindo de alguma história contada da família.
— Ah! Vou pegar o álbum de fotos do - a mãe exclamou, sumindo escadas acima antes mesmo de ouvir as reclamações do filho.
— Não, mãe! Fica quieta aqui, vai. Toma seu café. Esquece isso de álbum, pelo amor de Deus!
— Como se você não soubesse que esse momento ia chegar de qualquer jeito - o pai comentou.
— Já está quase anoitecendo, pensei que ela tivesse esquecido - bufou.
— Eu jamais me esqueceria, meu anjo - Lori respondeu, voltando com o álbum. — Venham para a sala! Assim todos conseguem ver.
se sentou do lado da sogra, atenta para descobrir todas as fotografias da infância que as outras pessoas ali já deveriam ter visto no mínimo algumas centenas de vezes.
Lori passou pelas fotos da maternidade, contando a história do parto e de como não teve dilatação suficiente e teve que passar por uma cesariana que nunca esteve em seus planos. havia nascido ligeiramente prematuro, mas com peso e estatura adequados e bastante saudável. Estava em casa, ocupando seu quarto de paredes azuis tão rápido que parecia uma bênção caída sobre os Sterling.
Tinha as bochechas mais apertáveis do bairro e se tornou o queridinho das vizinhas aos fins de semana, que faziam sempre questão de visitá-lo e levar vários presentes para o bebê. Havia sido mimado e paparicado até ser capaz de dizer chega - o que ele não fez, provavelmente por ser esperto cedo demais.
Então vieram as imagens dele com um boné vermelho e uma mochila de rodinhas que parecia maior do que ele, preparado para o primeiro dia de aula. O rosto alegre e iluminado sendo gradualmente substituído pelos olhos inchados de choro por perceber que a mãe iria embora, incapaz de compreender que o afastamento de algumas horas do apego materno não era o fim do mundo e duraria tão pouco. Era apenas o primeiro passo para fora do ninho e em direção ao universo cheio de descobertas, amizades e pessoas com suas próprias histórias e vivências que existia depois da porta de casa.
— E esse foi o primeiro jogo de baseball dele - Lori contou, mostrando a foto de com um uniforme grande demais para ele e um capacete que parecia prestes a cobrir seus olhos na primeira oportunidade que tivesse.
riu, apreciando a foto.
— Eu nem sabia que você tinha jogado baseball.
— É porque mal durou uma temporada completa - ele explicou. — Eu era horrível.
— Você tinha cinco anos - ela disse.
— E era péssimo para uma criança de cinco anos - ele emendou. — Desde cedo ficou bastante claro para todo mundo que esportes não seriam o meu forte.
Lori foi obrigada a concordar.
— Ele corria na rua, brincava com as outras crianças sem problemas. Mas essa vida atlética nunca foi para ele. O único esporte mesmo em que ele se deu bem foi a natação.
— Provavelmente porque não tinha nenhuma bola sendo arremessada na minha cara e correndo risco de me assassinar, já que eu não tinha coordenação motora nenhuma para dominá-la como uma pessoa normal.
Seguiram pelas fotos, rindo das lembranças compartilhadas pelos presentes e de como as memórias afetivas eram evocadas com facilidade ali. A primeira peça de teatro, a primeira formatura, a primeira festa de aniversário… Cada um dos momentos registrados parecia obrigatoriamente amarrado a um motivo maior e deveria admitir que, de alguma forma, sentia-se mais próxima do namorado por saber mais de sua vida e daqueles que o amaram antes dela e o amariam incondicionalmente enquanto o conceito de tempo ainda existisse como uma declaração perpétua.
Fora um dia muito mais calmo e agradável do que ela poderia ter esperado mesmo em suas melhores expectativas forçadas apenas para tentar se acalmar na nervosa noite anterior. Havia sido acolhida como parte da família com a mesma facilidade com que duas crianças começam a brincar juntas no parquinho, apenas porque, de alguma forma, já sabem em algum pequeno canto de seu ser que a solidão raramente será tão agradável quanto a possibilidade de compartilhar momentos com outras pessoas. Ainda mais quando se é criança.
— Ah, nós vamos com o a um almoço beneficente na semana que vem - Celia se lembrou. — Você deveria ir conosco, !
A garota engoliu em seco, sentindo o sopro forte do lobo mau levando embora toda a casa de palha que havia acabado de construir com cuidado e carinho, acreditando ser o suficiente para proteger seus sentimentos. Ou ao menos querendo se convencer de que acreditava.
— Não posso - disse baixinho, forçando a garganta na sequência para fazer com que sua voz se desenrolasse. — O evento vai ser televisionado. Mas acho que vai acompanhar vocês.
O silêncio que se estabeleceu fez com que os ombros dela se inclinassem para frente, indicando uma linguagem corporal totalmente oposta àquela do sorriso fraco que ela tentava, com tanto esforço, sustentar. Talvez, se fingisse por tempo o suficiente que aquilo não a atingia, pudesse finalmente acreditar nisso.
— Tudo bem, então - Celia quebrou o silêncio, tentando parecer otimista por entre as fisionomias fechadas. — Tenho certeza de que logo teremos outras oportunidades.
Foram poucos os minutos que se sucederam até que decidisse que era hora de ir para casa. Todos se despediram com abraços apertados e promessas de se verem logo que, de repente, pareciam pesadas demais para que ela guardasse no peito. Era dolorosamente paradoxal como as coisas poderiam parecer tão certas e tão erradas ao mesmo tempo. Como algo tão bom poderia ser tão doloroso simplesmente porque havia uma história por trás servindo como uma âncora descompensada, mais inclinada a levá-los ao naufrágio do que à estabilidade.
Do carro, acenaram mais uma vez para a família na porta, deixando para trás um dia bom que quase parecia uma ilusão esvaindo-se em névoa. A lembrança de tudo o que ela não poderia ter.
— Eu te amo tanto - disse, sem tirar os olhos da estrada. — Me destrói por dentro não poder simplesmente berrar isso para o mundo por enquanto.
assentiu, sem saber se tinha forças para fazer muito mais do que aquilo.
— Ninguém sabe do que fazemos, do que vivemos e muito menos do quanto nos amamos - ele continuou. — Se soubessem, teriam inveja.
— O problema é que a inveja mata. E não só quem a sente.
Ela encostou a cabeça na janela do carro, digerindo a literalidade presente em cada uma de suas próprias palavras.
— Vai dar tudo certo. Eu prometo.
Mas aquela era uma promessa que ela sabia muito bem que ele não podia fazer. E suspeitava que também não pudesse mais fingir que não sabia tão bem quanto ele que tinham perdido o controle das próprias expectativas em relação a um dia que parecia que nunca chegaria realmente.
— Todos em seus lugares - o diretor pediu no megafone.
e se posicionaram no set, dissipando a tensão depois de dias em que ela ignorara suas tentativas de aproximação para entrarem em seus personagens, que não tinham nada a ver com seus problemas pessoais.
Não haviam trocado mais do que cumprimentos educados desde o domingo em família e, não importava o quanto ele insistisse, ela havia decidido respeitar a si mesma e aos seus limites e o momento dos outros envolvidos. Precisava se afastar, independentemente de como isso doesse como se alguém a eviscerasse. Independentemente do quão errado parecesse em cada um de seus ossos. Tudo o que podia fazer era seguir. E isso incluía dar continuidade ao seu trabalho, colocando na personagem todos os sentimentos de que agora se sentia vazia.
A cena que iriam gravar vinha logo após a personagem de , prima do protagonista Matthias, descobrir que o relacionamento dele com Camille, a personagem de , havia sido destruído com base em desconfianças e mal entendidos. Como uma das poucas pessoas de sua família que realmente se importava com seu bem, ela tentaria abrir os seus olhos para a situação.
— E ação!
— Rachel, por favor - ele pediu.
— Não, Matthias! Eu esperei tempo demais. Tentei te dar o espaço que você parecia precisar e nem insisti em saber o porquê. Mas as fofocas correm na cidade, primo. E, agora que eu sei o que aconteceu, não posso permitir que você estrague tudo.
— Eu?! - Ele deu uma risada amarga. — Eu não estraguei nada. Foi Camille quem disse estar infeliz. Foi Camille quem disse que eu não me importava com ela mesmo quando eu me coloquei contra o meu próprio pai apenas para lutar por nós.
— Mas ela sabe disso? Você disse isso para ela? Ou só decidiu se achar o homem mais injustiçado da face da Terra antes mesmo de tentar convencê-la do contrário?
Ele pareceu prestes a responder algumas vezes, com o ímpeto de quem sabe que está certo. Mas sua postura desmontou de vez.
— Eu acho que ela não sabe.
Ela concordou, movendo a cabeça.
— Pois é. Como você espera que ela adivinhe tudo o que você fez?
— Você acha que é fácil para mim? Tudo o que eu tive que passar por causa dela e depois ouvir que não me importo?
— Não, não acho. Tenho certeza de que não é fácil. Mas se ela soubesse de tudo o que você teve que passar, como você mesmo diz, ela te retribuiria com o amor e a gratidão que você tanto esperou. Eu sei disso - ela disse, enxugando algumas lágrimas que brotavam - porque sempre soube que vocês tinham nascido um para o outro. E não importa quais dificuldades se coloquem no seu caminho. Você precisa lutar por ela e deixar que ela lute por você também.
Ele secou o próprio olho, sentindo-se estranhamente emotivo de repente.
— Fique com ela - a prima continuou. — E não deixe que ninguém se coloque no caminho do amor de vocês.
Quando a cena foi cortada, o diretor aplaudiu contente:
— Brilhante! As lágrimas improvisadas, perfeitas! Sentimos cada uma das suas palavras como se elas fossem totalmente verdadeiras.
deu um sorriso educado, pensando consigo mesma que suas falas só soaram tão verdadeiras porque eram mesmo. Não pelo seu talento cênico. Limpando o rosto com o dorso da mão, ela se afastou do estúdio, ignorando a tentativa de de chamá-la no caminho.
Seguiu até o banheiro mais distante dos funcionários e chorou, liberando todos os soluços engasgados que teve que conter em cena. Ela não era Rachel; não era Matthias e não era Camille. Mas, assim como no caso dos amantes da sétima arte, ela estava seguindo o próprio conselho e se colocando longe do caminho deles.
se levantou do sofá a contragosto, enrolando-se na manta esverdeada enquanto caminhava até a porta para checar a campainha.
Seu coração pulou para a boca assim que o viu pela corrente da porta, que o impedia de entrar, dando a ele apenas um pequeno acesso a ela. Um pequeno espaço que já parecia mais do que o suficiente para pisar mais um pouco nos cacos em que ela já se encontrava.
— Você não deveria estar aqui.
— É isso o que você tem a me dizer? - perguntou. — Depois de passar quase duas semanas sem mal olhar na minha cara?
Ela respirou fundo, tentando manter o mínimo de compostura que conseguiria sustentar com sua dignidade.
— Por que veio?
— Porque nós precisamos conversar, . Pelo amor de Deus, o que aconteceu? Eu pensei que você precisasse de espaço, mas agora parece que você está em um mundo totalmente alheio a mim e isso está me matando.
Ela piscou com força, absorvendo todos os pensamentos rebeldes e quase vingativos que queriam desprezar a dor dele por jogar a dela de volta, como se fosse uma carta trunfo capaz de ganhar de qualquer coisa que lançasse em sua direção. Impediu-se de dizer como tinha morrido um pouco todos os dias com um relacionamento escondido e como um dedo parecia ser enfiado e rodado dentro da ferida aberta toda vez que ela tinha que ouvir que o motorista os esperava ou ver os dois aparecendo em algum evento ou fofoca na televisão. Não precisava verbalizar como não importava a falsidade e a encenação daquele namoro quando sua dor era real até demais.
— Só é demais para mim - murmurou, torcendo para que ele a tivesse ouvido, pois não sabia se teria forças para dizer o mesmo uma vez mais.
O rapaz soltou os próprios braços com força, totalmente exausto. Sentiu as próprias lágrimas escorrendo livremente, cansado demais para tentar impedi-las.
— E você acha que não é para mim? Que eu estou feliz assim? Que eu não queria simplesmente mandar à merda toda essa zona e poder viver a vida que eu quero com a pessoa que eu amo?
mordeu as próprias bochechas, tentando se convencer de que a dor física era maior do que a emocional.
— Não falar com você está me destruindo - ele continuou. — É uma merda passar por isso tudo, mas era mais fácil segurar a barra tendo você. Eu não sei como lidar com essa merda toda se você realmente for me abandonar. Por favor, não me abandona.
— , não…
— Depois de tudo o que a gente viveu, eu não consigo agir como se estivesse tudo bem quando você mal tem coragem de olhar nos meus olhos. Quando meus pais ligam e perguntam como você está, me rasga por dentro responder‘bem’ sabendo que não tem absolutamente nada bem. Flora e Nate perguntam de você sempre. Infernizaram minha irmã até ela prometer que os levaria onde fosse só para ver você de novo. Eles te amam. E eu também, . Amo pra caralho e é bom que a minha avó não esteja aqui para reclamar do palavreado, mas eu não consigo encontrar outra forma de expressar a intensidade disso sem ser assim.
Ela engoliu o choro, escondendo a mão trêmula atrás da porta antes que cedesse e retirasse a tranca que os separava.
— Para. Por favor.
— Eu não consigo. Sinto muito. - Ele tentou rir, fungando e secando os olhos. — Eu vou embora já que você não quer conversar agora. Quando quiser, sabe onde me encontrar.
Ela sabia. Mas sabia também que não poderia ceder e, ainda por cima, ele sabia como encontrá-la. E a única forma que conseguiu imaginar de evitar ambas as coisas foi comprando sua passagem para férias imediatas no Canadá.
— Você sumiu.
se virou para a voz conhecida, encontrando em um terno impecável, com o cabelo penteado para trás.
— Precisei viajar - disse simplesmente. — Voltei ontem.
Ele meneou a cabeça, concordando.
— Você está linda.
E ela estava mesmo. O vestido esmeralda em decote canoa valorizava seu colo e suas escápulas, além de contrastar perfeitamente com sua pele.
— Obrigada, você também - respondeu educadamente. — Acho que é o ar da pré-estreia. Todos estão bastante elegantes.
Ele não esperou que ela compreendesse seus movimentos e nem que pudesse impedi-lo. Apenas se aproximou e a tomou nos braços, abraçando-a com força.
sentiu o corpo endurecer levemente com a surpresa, mas logo relaxou, retribuindo o gesto com gosto de saudade e casa. Sentia o perfume amadeirado dele que ela tanto amava e usava como desculpa para encaixar o rosto em seu pescoço quando se deitavam. As mãos dele alisavam as costas dela com delicadeza, em um conforto que há muito pareciam ter sido privados de compartilhar.
— Eles pediram para entrarmos - disse, entrando de repente no pequeno camarim. Seus olhos se arregalaram levemente com a cena. Ao vê-los se afastando rapidamente, compreendeu tudo o que ninguém estava lhe dizendo. — Perdão, não queria atrapalhar o momento de vocês.
— Não atrapalhou - respondeu imediatamente. — Estávamos só nos cumprimentando pelo trabalho. Parabenizando-nos pelo desempenho.
A outra concordou, ainda olhando de um para o outro.
— Eu vou primeiro? - perguntou. — Depois vocês dois entram?
— Sim, foi o que eles disseram - concordou. — Os outros já entraram.
assentiu e acenou para eles, respirando fundo antes de deixar o camarim e seguir em direção ao tapete vermelho, onde esperava que os flashes pesados das câmeras não capturassem o reflexo das lágrimas em seus olhos e pudessem apenas tratá-los como brilhantes e deslumbrados.
e se mantiveram no pequeno cômodo, em completo silêncio.
— O que você viu - ele arriscou começar. — Não era o que parecia.
— Por que você acha que tem que me justificar qualquer coisa? Nós não temos nenhum compromisso além de um contrato. Você pode e deve amar quem quiser.
— Mas não era isso…
— , eu não sou idiota. Eu só via vocês dois juntos quando estavam em cena, provavelmente é o único motivo para não ter percebido antes. Seja lá o que vocês têm, esconderam muito bem. Preciso tirar meu chapéu para vocês por isso.
— Não é tão simples assim.
— Imagino que não - ela concordou. — Afinal, eu estava bem no meio, né?
— Não é culpa sua - ele respondeu prontamente.
— Imagino que isso também não seja tão simples assim - brincou. — Nós fizemos nossa parte do acordo e eu sempre vou ter de te agradecer por limpar minha imagem.
— Você não tem nada a me agradecer - ele assegurou.
— Ah, tenho, sim. Muitas coisas na verdade. Mas acho que posso começar a retribuir isso tudo agora.
Um som agudo soou pelo corredor.
— Do que você está falando?
— Esse é o nosso sinal de entrada. Precisamos ir.
— Não antes de me explicar o que quer dizer com isso.
sorriu carinhosamente, dando-lhe um beijo na bochecha e se certificando em seguida de que marcas do seu batom não haviam ficado para trás.
— Chega de ter medo, Sterling. O amor foi feito para os corajosos.
E puxou a mão dele em direção às câmera, microfones e aplausos que estouraram em sua frente. Acenaram para o público e para os paparazzi e se dispuseram a responder algumas perguntas rápidas dos repórteres. A maioria delas era sobre o filme, até que chegou uma sobre o relacionamento.
— E como vocês estão agora que o filme acabou de ser filmado?
— Na verdade, nós terminamos há algum tempo, ainda durante a gravação - respondeu, com a serenidade que faria qualquer um morrer de inveja. teve de se controlar para não encará-la assustado. — E está tudo bem, sabe? Foi uma decisão mútua e respeitosa. Ainda temos muito carinho um pelo outro. E eu não desejo absolutamente nada para ele além da mais pura felicidade. Ele merece.
O sorriso que ela deu para ele explicou que aquele era o seu presente. Ele estava livre. Eles estavam. Como absolutamente tudo em sua história, permaneceria não sendo fácil. Precisariam de um tempo para que os rumores fossem levados pelas águas dos rios e para que não fosse vista como pivô de uma separação e virasse a vilã de sua própria história. Mas estava certa. Era um primeiro passo. Para os próximos, precisariam de coragem. Amor eles tinham de sobra.
— Nós merecemos - ele acrescentou.
Os repórteres curiosos foram afastados e eles foram encaminhados para a sala de cinema onde a primeira transmissão do filme seria feita. Os críticos e convidados ocupavam seus lugares, aguardando. A equipe de direção e os atores estavam sentados juntos em um canto separado e menos privilegiado.
e ocuparam os dois assentos restantes. Ela o empurrou de leve para que entrasse primeiro na fileira, ficando ao lado de enquanto ela ocupava a poltrona do corredor.
A atriz franziu o cenho em estranhamento, mas recebeu um sorriso reconfortante de . O mesmo que tinha oferecido a ele em sua casa. O mesmo que sempre compartilharam com o outro. O que garantia que estava tudo bem.
Com as luzes apagadas para o início do filme, ele tomou a mão dela na sua, rabiscando com a ponta do indicador cada uma das letras que formavam ‘eu te amo’. não precisava de palavras. O aperto leve na mão dele era mais do que o suficiente para que ele soubesse que a recíproca era muito mais do que verdadeira.
FIM
Nota da autora: MEU DEUS É O FIM! Eu amo tanto essa música, esse álbum, minha falecida boyband QUE ÓDIO VOLTEM
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02. Stitches
03. Dear Patience
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. All of Me
06. Consequences
06. Falling
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Boys Will Be Boys
11. Nós
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
Evermore
MV: deja vu
MV: Golden
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallfower