Última atualização: Fanfic Finalizada

Capítulo Único

Meus pés doem. Uma dor aguda, dor no dedo mindinho. Uma dor de andar sem rumo, sem notar as horas. Uma dor de um andar automático enquanto a mente se ocupa com outras coisas. Só que minha mente se ocupava com outra dor não-física. Agora tenho duas dores agudas, mas sei que a dor nos pés é a que menos machuca.

A dor de cabeça também é ruim. Meus olhos vermelhos estão ardendo. As minhas costas também reclamam. Eu sei que meu estômago está pedindo por algo, apesar de eu não ter nenhum apetite. A dor dentro do meu peito é a pior dor que eu já experimentei. Não é algo que vai embora com remédios comprados na farmácia da esquina. Não é algo que vai embora depois de uma noite de sono. É uma dor que vai diminuir com o tempo, mas que eu nunca vou parar de sentir.

Eu ainda lembro daquele sábado. Nós éramos crianças, eu não entendia muito bem. Eu insisti que queria conhecer sua casa, você sempre com o pé atrás. Você arranjava desculpas. "Minha casa é pequena, meu pai está dormindo, está tendo reforma, meu quarto está muito bagunçado". Eu não percebia na época o seu desespero para arranjar desculpas. Não era porque você não queria que eu te visitasse, você estava apenas querendo me poupar da sua realidade. Comigo você era normal, mas dentro de casa você seguia as regras e pensou que eu não entenderia. Você era muito mais madura que eu, mesmo criança, mesmo dois meses mais nova.

E naquela época eu nunca imaginava que eu estaria, hoje, andando sem fôlego, sem rumo, por não saber o que fazer sem você.

Eu ainda me lembro daquele sábado. Eu insisti tanto, tanto. Eu era só uma criança. Você já tinha ido em minha casa tantas vezes, por que eu não podia ir na sua? Eu não era boa o suficiente pra conhecer seu quarto? "Eu não ligo para bagunça!", eu disse, inocentemente. E, agora, me perdoe se você se sentiu pressionada a me deixar entrar. A culpa foi toda minha, mas foi você quem, injustamente, pagou por ela.
Naquele sábado, você falou "tudo bem, mas silêncio, ninguém pode saber". Eu achei estranho, mas o fato de finalmente conhecer sua casa me deixou animada! Eu sempre fui curiosa, mas eu não deveria ter sido. Eu imaginava quantas bonecas você tinha, eu imaginava a cor das paredes do seu quarto, de uma forma ou outra eu imaginava seu quarto muito melhor que o meu. Você não precisava dividir o quarto com ninguém, eu precisava. Eu te acompanhei até em casa, você estava nervosa com razão. Olhava para os lados, certificando-se de que não havia ninguém nos olhando. Eu te segui escada acima sem fazer um rangido com o sapato. Você morava em um quarto simples, no sótão, só que para mim ele pareceu o melhor quarto do mundo. Você tinha um quarto só para você! As paredes eram amarelas, o tecido cobrindo a cama era colorido e brilhante, não se comparava ao meu edredom encardido com desenhos da Disney. Era engraçado, eu quase não via brinquedos. Eu vi uma boneca de pano e algumas panelinhas de brincar de cozinhar. Mais nada. Eu ia perguntar onde estavam suas outras bonecas, mas, antes que eu fosse tão indelicada, você ouviu a porta da sua casa, no andar debaixo, bater. Você se desesperou. Passos fortes subiam à medida em que você olhava para os lados, vendo onde podia me esconder. Você abriu a porta do seu guarda-roupa e me empurrou lá dentro. Eu fiquei brava por um momento. Eu queria conhecer sua família. Você apenas me disse "Não saia daí, não diga nada, não espirre, não faça nenhum barulho, por favor".
Uma voz te chamou. Uma voz forte, não muito amigável. Uma voz te chamou em uma língua desconhecida a mim. Eu fiquei por cinco minutos dentro do seu guarda-roupa sem entender. A voz se distanciou, foi para outro cômodo. Você abriu a porta e antes que eu perguntasse alguma coisa, você tampou minha boca e disse "Você precisa ir embora, por favor". Era incrível o seu dom de ser educada, até mesmo quando estava me pedindo para ir embora.

Eu sinto sua falta.

Eu também me lembro que era uma quinta feira. Só me lembro do dia da semana porque eu odiava quinta feiras, e o motivo do meu ódio eram as aulas chatas de geografia com a Senhorita Mendel. Era a primeira aula do dia, e a mais insuportável. Você se sentava sempre atrás de mim e, naquela quinta feira, você estava atrasada. E você continuou atrasada pelo resto da aula. Eu me perguntei onde você estaria, você nunca faltava. E então tive que aturar a aula insuportável sem você para me distrair, para conversar quando a Senhorita Mendel escrevia na lousa. Eu só descobri que você não havia faltado quando pedi para ir ao banheiro. Havia duas cabines e as portas estavam fechadas. Eu, como de costume, me inclinei para olhar pelo vão inferior se as duas cabines estavam realmente ocupadas ou só com a porta encostada. Foi quando eu vi seu tênis. Não tinha como me enganar, seu cadarço era inconfundível: pintado de canetinhas coloridas, algumas partes dele até eu mesma ajudei a pintar. Então eu bati na porta chamando o seu nome. No começo, você ficou calada. Apenas ouvi seu nariz fungando e me assustei.
- O que foi? O que aconteceu? Por que você não foi na aula?
E você não me respondeu. Só respirou, fazendo seu nariz fungar mais uma vez.
- Não me diga que você decidiu matar a aula sem me avisar! Porque eu tive que aguentar uma hora daquela chatice!
- Não é isso... - você disse com voz de choro - Promete que não vai rir?
- Eu prometo.
E você abriu a porta. Eu esperava alguma espinha na testa, mas era mais significativo. Você saiu de lá com um véu enrolado na cabeça e no pescoço, um véu que depois eu viria a conhecer como hijab.
- Por que você está chorando? Aconteceu alguma coisa com o seu cabelo?
Eu só tinha 12 anos, me perdoe por ser tão ingênua.
- Não, é que... Algumas meninas ficaram me olhando estranho e alguns garotos perguntaram se eu estava careca assim que eu entrei na escola. Eu não quero que as pessoas me achem estranha.
- Eu não te acho estranha.
Você sorriu.
- É porque eu... Ontem... Bom... Eu menstruei. E agora eu tenho que usar esse véu.
Você estava esperando que eu perguntasse a razão, você estava esperando que eu te achasse esquisita. Mas você sabe que eu sempre te vi como minha melhor amiga.
- Você... - eu cochichei - Desceu para você?
Você confirmou com a cabeça.
E em seguida vieram milhares de perguntas, partidas de mim, sobre como era. Se foi estranho, se era muito sangue ou pouco, se era confortável usar absorvente. Eu ainda não tinha menstruado, e para mim isso era fascinante. Ao mesmo tempo que eu não queria ter, eu queria saber como era a sensação. Ah, se eu soubesse que ia ser como é, não ficaria tão curiosa, mas eu era nova demais. Você me respondeu cada pergunta e nós matamos a aula naquela cabine. Eu terminei meu interrogatório com o mais puro e sincero "Então você agora pode engravidar, não dá medo?". E você riu, e foi bom eu ter te feito rir naquele momento.

Como eu queria que você estivesse aqui para rir comigo de novo.

Eu sei que combinamos de matar as aulas no banheiro naquela quinta feira, mas uma hora precisamos sair para comer algo na hora do intervalo. Eu falei que você não precisava ir, que eu trazia o almoço até o banheiro, mas você sempre foi mais corajosa que eu. Você quis sair com o hijab.
E eu senti todos os olhares se voltando aos nossos. Olhares curiosos, olhares de quem não reconhece o outro como igual. Quem disse que queríamos ser iguais a eles? Eu encarava todo mundo de volta, te protegendo. Quando sentamos para almoçar, uma das meninas que mais odiávamos passou rindo na nossa frente. Ela teve a audácia de fazer um comentário infame para seu grupinho de seguidoras, mas com toda a intenção dele ser ouvido por nós. "Finalmente ela percebeu o cabelo horrível que tem, ainda bem que ninguém mais precisa olhar para aquilo!" É incrível como as pessoas tentam humilhar os outros para poder se sentirem melhores consigo mesmas. Na mesma hora, eu me levantei. Senti que todos os olhares se direcionaram a mim.
- Então eu acho melhor você vir de máscara para a escola amanhã, ninguém merece ver essa sua cara horrenda!
Um momento de silêncio. Risadas ecoando pelo refeitório. A menina indo embora com o rabo entre as pernas.
Eu sabia o quão boa e educada você era, eu sabia que você nunca rebateria nada por não querer arranjar problema, confrontos. Só que eu tinha o sangue quente. Talvez foi por isso que nos tornamos amigas, mesmo sendo tão diferentes. Você me ensinou a ser corajosa, a ser forte. Você tinha coragem de ser o que era, eu via isso e lutava por você, e assim acabei também sendo o que eu queria ser. Ninguém mais falou nada da sua hijab, pelo menos não na nossa frente, não para humilhá-la.

E eu ainda me lembro como se fosse ontem daquela terça-feira. Nós tínhamos 13 anos. Você já tinha se acostumado com o hijab, as pessoas ao redor também. Era aula de ciências e íamos ver um vídeo sobre o ciclo da água, a energia hidrelétrica, todas essas coisas que a gente aprende, mas no fundo já sabe como é. Ao ligar a TV na sala, antes que o professor pudesse apertar o botão para ligar o vídeo cassete, uma imagem fez com que a classe se calasse por total. Não, aquilo não era real, era só um efeito cinematográfico, pensei comigo mesma. O vídeo cassete foi ligado e o filme chato de ciências nos fez esquecer da cena antes exibida. Só fui descobrir o que tinha acontecido quando cheguei em casa. Era tudo sobre o que se falava por mais ou menos um mês. A tragédia do 11 de Setembro. E aquela data também mudou sua vida. Nós nunca fomos muito populares na escola. Eu me contentava com a sua amizade, você se contentava com a minha. Ninguém ligava muito para a gente, mas a gente também não ligava muito para ninguém. Só que tudo mudou depois daquele atentado. As pessoas são estúpidas, você sabe disso, não sabe? Elas ligaram sua imagem à imagem de um terrorista só por causa da sua religião, da sua cultura. De terrorista, você não tinha nada. Você era a pessoa mais amável do mundo, mas as pessoas preferem usar uma venda de preconceito ao invés de quebrar as barreiras e se aproximar do desconhecido, o que tanto temem.

Você parou de ir à escola e eu achei que era por causa desses olhares, que era por causa dos ataques a você. Eu disse que te protegeria, e te protegi. Eu levantei a voz em seu favor, eu quase saí em tapas em seu favor. Eu queria você de volta à escola, eu me sentia completamente sozinha sem você. Tê-la ao meu lado me fez mais forte; eu me sentia fraca e incapaz sem você. Eu fui à sua casa diversas vezes, ninguém me atendia. Mas quase duas semanas depois, você apareceu em casa de surpresa. Eu te abracei, você disse que não tinha tempo para abraços.
- Eu preciso ser rápida - você disse.
- Mas eu senti tanto a sua falta, você não quer entrar?
- Não, eu preciso voltar para casa antes que percebam que eu saí. Eu saí da escola. Eu não vou mais voltar.
- Não vai mais voltar? Nunca? Por quê? Eu posso dar uma surra em qualquer um que te chamar de coisas que você não é!
- Não é isso, não é por isso. Eu estou estudando em casa agora e assim que vai ser. Só queria te avisar, para você não pensar que estou doente.
Meus olhos se encheram de lágrimas.
- Não chora - você me abraçou, mesmo falando que não tinha tempo para isso. - Não chora, vai ser difícil ficar longe de você também.
E então você me deixou e correu até sua casa. Eu, perdida, em plena pré-adolescência, sem minha melhor amiga. O que seria de mim no colegial sem você? Com quem eu iria fofocar sobre os meninos do último ano? E foram meses difíceis, até que me acostumei. Acostumei-me a outros colegas, mas não me acostumei a não te ver todo o dia. Às vezes eu batia na sua porta e você me deixava entrar quando não havia ninguém em casa, às vezes você ia escondida na minha. E o tempo foi passando para nós duas sem a gente perceber.

Eu só queria que o tempo não tivesse acabado tão cedo para você.

E eu ainda me lembro daquele sábado. Depois de tanto implorar, de me jogar aos seus pés e chorar até você finalmente aceitar, lá estávamos nós: no baile de formatura. Você escolheu seu melhor hijab, um com bordados dourados. Vestiu um vestido preto que cobria todo o seu braço e perna, mas mesmo assim ficou elegante. Eu tinha mandado fazer um vestido só para a ocasião. Ele era roxo escuro e preto; eu estava naquela fase meio rebelde, lembra?
E nós nos divertimos, nós dançamos, depois ficamos andando pela cidade até amanhecer com alguns garotos que mal conhecíamos. Eu fui irresponsável com você aquela noite, mas eu queria que você se divertisse. Olhando hoje para trás, eu vejo que eu nunca deveria ter falado para você beber o ponche, sendo que eu desconfiava que alguém o havia batizado. Você bebeu, falou que tinha algo estranho nele, alguém passou por nós e disse que o que tinha de estranho nele era álcool. E então você cuspiu ele de volta para o copo e se sentiu péssima, foi como você tivesse cometido um crime. Você ficou brava, eu estava um pouco bêbada para perceber na hora. Eu fui uma péssima amiga aquela noite. E depois você fingiu que esqueceu e voltou a dançar. Eu te convenci a sair com aqueles garotos. Era calculado: quatro meninas, nós duas e mais duas colegas minhas de classe que eu mal te apresentei, e quatro garotos. Você foi ingênua demais para perceber o que esses números significavam. Eu fui uma péssima amiga aquela noite.
Eram quase cinco da manhã, o céu estava se tornando azul mais claro, mas o sol ainda não havia aparecido. Estávamos todos deitados no meio de um jardim público da cidade. As duas meninas da minha sala começaram a beijar dois dos meninos. Não demorou muito para que os outros dois tentassem algo conosco. Eu queria aquilo, eu queria ser beijada na noite do baile. Só que eu não pensei em você, eu não pensei que você não estaria de acordo com aquilo, eu não pensei que você talvez não quisesse. E eu te achei uma chata por me convencer a ir embora justo quando ele havia me beijado. O que eu não tinha percebido era que o outro garoto estava disposto a te beijar à força. Eu fui uma péssima amiga, me desculpe, me desculpe.
E fomos andando para a sua casa, com o vestido de ontem, eu com meu salto nas mãos. Você não quis ir para a minha casa pois seria pior aparecer sem explicação mais tarde na sua.
Você me deixou entrar, mas sempre olhando primeiro se havia alguém que poderia me ver. Então entramos em silêncio, eu emburrada e um pouco tonta, você cansada e chateada comigo. Eu provavelmente comecei a discussão. Eu queria ter ficado beijando aquele menino que hoje eu mal sei o nome, por que é que você tinha que estragar tudo?
E você tentou se explicar, você falou que eu ia acabar me arrependendo se eu fosse para a casa dele. Falou que eu não precisava ir com você, que você sabia o caminho de casa sozinha. Discussão vai, discussão vem, eu soltei a coisa mais horrível que a minha boca já falou para alguém:
- E por que você age como se você fosse santa? Por que você continua usando esse véu? Por que você se cobre assim? Você é livre e você se prende, você é uma escrava e você nem ao menos percebe! - eu gritei.
E você ficou com tanta raiva que você deixou ela escorrer pelo seu rosto em forma de lágrima. Eu comecei a me desculpar no mesmo momento. Foi uma daquelas coisas que a gente faz e no momento seguinte se arrepende amargamente.
Você ainda não tinha criado coragem para me responder nada quando ouvimos uma voz surgir no corredor. Você me puxou para dentro do armário como fez quando éramos crianças na primeira vez que fui à sua casa. Só que desta vez você se escondeu também.
Eu lembro de você tampando minha boca e gente em um silêncio mortal por alguns minutos. A voz foi embora em passos firmes e você tirou sua mão de mim, só que o silêncio continuou por mais um tempo.
- Você é a única pessoa para a qual eu não tenho que me esconder, não tire isso de mim - você disse num sussurro.
- Me desculpe - eu pedi mais uma vez. - É que eu só quero te ver livre de ter que se esconder.
- Você não entende. Se eu me rebelar, vai ser pior. Eu não tenho ninguém para me salvar.
- Eu estou aqui.
- Eles provavelmente acabariam conosco. Eu nunca mais ia te ver. E eu não quero isso. Eu não posso fazer o que eu quero, porque senão o pouco de liberdade que eu tenho vai acabar também.
Eu bufei. Eu não queria que fosse assim. No fundo, você também não. Mais um momento de silêncio se instalou dentro daquele armário escuro.
- Eu sempre tive inveja de você.
- Eu sempre tive inveja de você - eu rebati.
- Por que raios você teria inveja de mim? Nem sair de casa eu posso sem permissão.
- Porque você sempre foi melhor que eu, você sempre teve um coração mais puro, você tinha boas notas, pelo menos quando a gente estudava junto. Você não se apaixonava por qualquer um e sofria, você era o que era sem dever nada a ninguém.
- Eu posso não dever nada a ninguém lá fora, mas eu devo tudo aqui dentro. Eu queria ser normal, eu queria usar as mesmas roupas que você, eu queria poder sair, queria poder pensar em garotos do jeito que você pensa. Não funciona assim para mim. Se você vai para o meu país, você tem que se adaptar aos costumes de lá, e mesmo assim você não se esquece de onde veio. Eu queria que fosse o mesmo aqui para mim, eu queria me adaptar ao ocidente sem me esquecer da onde eu sou. Mas eu não tenho essa liberdade para escolher.
Eu pensei naquilo. Eu ainda penso nisso, e muito. Você não queria de fato se rebelar a tudo que você era, você queria apenas ter liberdade para ir e vir, liberdade para se vestir, liberdade para namorar, para estudar, para trabalhar. Mas sabia que lutar pela sua liberdade numa família tão radical era pagar caro no final.
Eu pensei muito sobre isso naquele armário. O silêncio reinou de novo.
- Você não deveria ter inveja. Eu uso as roupas que todo mundo usa, vou pros lugares que todo mundo vai - eu tentei consolá-la. - Eu não tenho tanta liberdade assim... E eu tenho que te agradecer por uma coisa. Bom, por muitas, mas em especial agora por uma coisa.
- O quê?
- Obrigada por ter me feito vir para cá. Eu não acredito que eu beijei aquele garoto. O que eu estava pensando?
E você riu enquanto eu fiz uma cara de nojo no escuro, me arrependendo.
- Ele mal mexia a língua, era horrível!
Você riu e chegou a gargalhar da minha desgraça. Às vezes a gente tem tanta liberdade que acaba fazendo as piores escolhas possíveis, sabia? E eu ri com você, até você pedir para rir mais baixo.
- Eu vou colocar um pijama e fingir que acabei de acordar e só estava no banheiro. Fica aí mais um pouco, por favor.
- Ok, ok, eu não quero levantar mesmo. Minha cabeça tá doendo pra cacete.
- Olha, não estou com a menor inveja de você com ressaca agora - você riu.
- Anda, vai logo! - eu disse, resmungando.

Mais tarde naquele dia você me ajudou a voltar para casa quando eu não parecia mais tão bêbada. E o tempo passou depois disso. A gente se via cada vez com menos frequência. Eu estava ocupada em tentar entrar numa faculdade, estava trabalhando em uma cafeteria para conseguir arranjar um pouco mais dinheiro. Eu quase não via ninguém, e por isso talvez não percebi que também quase nunca te via. Se eu pudesse ao menos voltar no tempo, tentaria te ligar para sair todos os fins de semana, mas a gente nunca espera que algo assim aconteça.

Eu estou prestes a me casar, sabia? E tudo o que eu queria era te ver de novo. Fazendo a minha lista de convidados, eu não pude me esquecer de você. E então tentei te encontrar. Seu telefone não existia mais. Eu fui até a casa que eu pensava ainda ser da sua família, mas, pelo visto, vocês não moravam mais lá. Eu fiquei com raiva quando o atual morador, atendendo à porta, me disse que fazia anos. Por que você nem ao menos me avisou? Seu eu ao menos soubesse, tentaria te salvar, tentaria fazer alguma coisa. Mas não, eu soube tarde demais.
Eu quis te encontrar, eu queria que você me visse casar, talvez você riria quando soubesse. Sim, eu, a que dizia que não queria casar, que achava casamento algo antigo, ultrapassado, estava agora experimentando milhares de vestidos brancos e escolhendo as flores da decoração. Eu queria que você risse, queria que você dissesse que sempre soube que eu falava tudo da boca para fora, que eu ia acabar me casando e seria a noiva mais chorona do mundo.
Procurei pelo seu nome, que eu tinha escrito na nossa foto da turma do ensino fundamental, em todas as redes sociais possíveis. Por que não havia nem rastro de você em toda a internet? E daí não virou mais questão de te chamar pelo meu casamento, eu queria mesmo é te encontrar, saber como você estava. Era uma curiosidade, uma saudade, eu queria saber onde é que você tinha se enfiado, eu queria ter certeza que não estava ficando maluca, que você não era apenas uma amiga imaginária. Então eu fui de novo à casa que pertenceu à sua família, perguntei se sabiam sobre os antigos donos, se tinham algum nome. Tudo o que me informaram foi a imobiliária que intercedeu na compra. Eu não desisti, fui até a imobiliária e enchi tanto o saco deles que consegui que buscassem em registros antigos alguma informação. E o que eu consegui foi o nome do seu pai, o nome que eu nunca soube. E também fiquei sabendo que você se mudou não para outra cidade, não para outro estado, mas para outro país. Você voltou às suas raízes, você tinha voltado para o Irã.

Meu coração ficou pesado, eu queria algum contato, eu pagaria sua passagem do Irã para cá só para poder te ver de novo, mas eu não tinha como te encontrar. O nome do seu pai também não me deu informação nenhuma, por que não tinha nada sobre vocês na internet? E então tudo o que você nunca me contou e o que eu nunca tive coragem de perguntar se virou contra mim. Se eu soubesse o que seu pai fazia, se eu soubesse de qual parte do Irã você era, se eu soubesse ao menos alguma outra informação sobre você, talvez eu conseguiria te encontrar. Eu me senti inútil, impotente.

E meu casamento passou.
E você não estava lá.
E eu continuei minha vida.
E às vezes eu me perguntava como você estava.
Se havia se casado. Se havia sido forçada a casar.
Se você ao menos gostava do marido que escolheram para você.

E então, agora, eu saio de casa correndo, atrasada para o trabalho. Minha mente está ocupada com preocupações cotidianas. Eu passo pela portaria do meu prédio e pego, na caixinha de correspondência, algumas cartas deixadas para mim. Eu não tenho tempo de abri-las. “Faço isso pelo caminho”, eu digo a mim mesma. Abro a primeira carta, conta de luz. Acho um absurdo como sempre, a energia está cada vez mais cara. Abro outra carta e é do meu banco me oferecendo algum serviço do qual não preciso. Encaro a terceira correspondência. Uma carta simples, branca, com meu nome e endereço escritos à mão, não há remetente.

E, atravessando a rua com a carta em mãos, percebo que conheço aquela letra. Então eu paro do outro lado da calçada, as pessoas passam por mim apressadas, algumas atrás de mim reclamam. Eu começo a ler a carta e tenho que me encostar na vitrine mais próxima. Minhas mãos estão tremendo. Eu leio que você está feliz, que voltou ao Irã, que está tudo bem, que eu não preciso me preocupar. Era um pouco desconexa, as frases não faziam muito sentido uma com a outra, mas eu penso que talvez você tenha saído do país há um bom tempo e está sem praticar nossa língua. Eu acredito em suas palavras por um breve momento. Depois eu começo a reparar na sua escrita. A gente tinha um código no colégio, um código que servia para falar alguma coisa que ninguém podia ficar sabendo, para escrever em um papel que alguém poderia pegar e não realmente ler o que estávamos conversando. A gente fingia que errava uma letra aqui ou ali, fazendo marcas mais fortes com a caneta ou o lápis. A letra ficava praticamente em negrito perto das outras. Parecia uma rasura, mas eu sabia que, se eu lesse apenas as letras “erradas”, eu ia saber a mensagem do bilhete. Você tinha feito o mesmo na carta.

Tentando me concentrar, eu vou tentando juntas as letras que parecem estar erradas, rasuradas. E então aquela carta inocente, feliz e despreocupada começa a se parecer com um pesadelo. Um c, um a... Eu vou juntando tentando formar alguma ideia.

Casei. Homem. Rude.

Você me dava palavras curtas para não quase riscar todas as palavras e letras. Eu tento entender e juntar as palavras. Algumas palavras eram abreviadas e eu estava tão preocupada em juntar todas as ideias e entender que mal notei em quanto tempo fiquei ali, encostada naquela vitrine, esquecendo de trabalho, esquecendo de tudo.

Amei. Outro. Flagra.

E então eu percebi que você voltou pro Irã, foi obrigada a casar com um homem ao qual você não amava, que não te tratava bem, o que no fundo você não queria, mas já esperava sua vida toda. E então eu supus que você encontrou amor em outra pessoa. E por um momento eu fiquei feliz por você. Você encontrou o que falava que nunca ia encontrar. O problema é que foi flagrada. Não sei como, mas sei que descobriram. E eu sabia o que acontecia com quem era “infiel”, apesar de eu, nas minhas concepções ocidentais, não realmente achar que é infidelidade se apaixonar por outra pessoa quando se é obrigada a casar com alguém que você não ama. E eu não quis mais terminar de ler. Eu não queria saber o final da sua história. Talvez as próximas palavras fossem “fugi”, “feliz”, ou qualquer outra coisa assim, mas eu não queria ler palavras que me dissessem que você sofreu ou está sofrendo. Eu então olho à minha frente. Pessoas passam para um lado, pessoas passam para o outro. Umas falando no celular, outras com fone de ouvido, todas ocupadas demais. Eles têm noção do quão livres eles são?

Minha curiosidade aguça e eu olho de novo para a carta, gravando as letras em negrito.

Ele. Eu. Morte.

Eu juntei as últimas cinco letras pelo menos três vezes, não querendo acreditar. Morte. Eu me desencosto da vitrine, começo a andar um pouco desnorteada por meio das pessoas, naquela rua movimentada. Minha mente imagina você escrevendo aquela carta. Você já sabendo que estava fadada a morrer. Talvez foi a última coisa que você fez. Talvez você implorou para escrever aquela carta. Talvez ninguém soube. Você escrevendo, com dor no coração, que estava feliz. Que estava tudo bem. Tudo para ninguém desconfiar, para ninguém confiscar a carta. Afinal, só quem sabe sua real mensagem sou eu. Eu tento imaginar quem era o homem por quem você se apaixonou. Se ele era iraniano ou de outro país. Se ele sabia o risco que erava correndo, o risco que estava colocando sobre sua vida. Minha cabeça está pesada, eu mal sei para onde estou andando, algumas pessoas me param e me pergunto se está tudo bem, eu respondo que sim com a minha voz fraca e continuo andando. Talvez eu, inconscientemente, ache que se eu continuar andando, vou chegar ao Irã a tempo de te salvar.

Meus pés doem, minha cabeça dói, meu peito dói, meus olhos doem. Eu estou chorando, soluçando. Fico sem ar, tento me encostar em algum muro. Acabo sentando na calçada. A carta em minhas mãos está suada, rasgada, amassada. Eu olho sem acreditar para ela. Não há nada depois de “morte”? E então meus olhos tentam se focar na última frase, que eu percebo que está toda em negrito, como se você houvesse a escrito três vezes no mesmo lugar.

“Eu descobri o amor. E estou feliz. Não se preocupe. Eu fui feliz ao seu lado e sou feliz ao lado dele. Isso valeu a pena.”

Eu vejo que essa frase pode parecer que você está falando do seu marido, daquele que te comprou, que te forçou, que te maltratou. Mas eu sei, por estar em caneta forte, que você se refere ao seu verdadeiro amor. E eu não entendo como você pode me dizer que está feliz quando está ameaçada de morte. Meu celular toca e eu não quero atender. Eu penso sobre a minha vida e sobre a sua, e em como a gente cresceu juntas, mas em mundos diferentes. Não é justo. Não é justo que eu seja livre e você seja condenada por causa de amor. Você sempre foi a pessoa mais correta que eu já conheci e não porque era oprimida, mas porque era boa de coração. Você se importava mais com os outros do que com você e agora me pergunto até que ponto isso foi bom. Você tinha um sorriso puro, você sempre me tratou bem, mesmo quando eu era o pior ser humano do mundo.

E então eu começo a ver as coisas de outro jeito. E fico feliz. Fico feliz por você ter se apaixonado, por você ter provado de amor verdadeiro, fico feliz de você ter seguido seu coração, mesmo que isso signifique dor física. Você foi feliz por alguns momentos e eu espero que você esteja feliz também agora. Se conseguiu fugir ou não, espero que você esteja em algum lugar livre, com os cabelos ao vento, com seu sorriso largo no rosto e do lado de quem você ama.

O Paraíso chamou pelo seu nome.
Você foi para o seu lar.
O céu mal pode esperar para te ter perto dele.



Fim



Nota de autora: Sem nota.


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