The Dream
A antiga televisão de tubo soltava pequenos estalos sobre a baixa mesa de madeira gasta. A imagem na tela tinha baixa resolução e sofria interferências esporádicas. A criança sentada no chão à frente do aparelho, no entanto, parecia não poder se importar menos com a situação, totalmente fascinada pelas cenas que via.
Não tinha entendido muito bem o nome que o narrador dissera e não fazia a mínima ideia de como tentar reproduzir aquele som que lhe soara tão estranho. A língua polaca era mesmo bem esquisita e o nome da moça que dava mortais incríveis em sua pequena tela era mais esquisito ainda. Mas ela era linda. E ela fazia acrobacias lindas.
não conseguia desmanchar o semblante de total espanto e fascínio. Ia acabar tendo doloridas câimbras nas bochechas por ficar boquiaberta por tanto tempo.
- O que você está vendo aí? – Uma mulher alta de avental perguntou ao surgir na improvisada sala de estar.
- Acho que se chama ginástica artística – a garotinha de apenas cinco anos respondeu, maravilhada com sua descoberta. – Por que eu nunca vi isso antes, mamãe? É tão lindo!
sorriu, percebendo a alegria e o encanto da filha no brilho de seus olhos.
- É um pouco raro passarem campeonatos de ginástica na televisão fora daqueles canais especiais de esportes que seu tio paga. Os canais abertos acabam preferindo esportes como o futebol porque mais gente gosta.
- Mas, mamãe, como alguém pode não gostar disso? – Uma ginasta chinesa esbanjava flexibilidade em seu solo, fazendo com que a garotinha até se assustasse em alguns momentos. – Olha isso! Elas são maravilhosas!
- Eu sei, meu amor. Acontece que as pessoas se importam mais com algumas coisas do que com outras.
- Isso é triste – observou, ficando cabisbaixa por alguns instantes. Foi então que teve a maior ideia de todos seus cinco anos de vida. – Mamãe, eu posso fazer isso? Posso dar cambalhotas e piruetas com essas roupas brilhantes quando eu crescer?
A mulher sentiu os olhos marejarem frente à inocência infantil. A menina ainda era jovem demais para ter a consciência sobre suas condições financeiras e sobre a mínima possibilidade palpável de que o esporte – ainda mais a ginástica – fosse capaz de sustentá-la um dia. Acabaria trabalhando em jornada dupla como a mãe, tentando garantir a sobrevivência da família por mais algumas semanas, talvez dias.
Era dura aquela vida de insegurança e instabilidade. Nunca se sabia o dia de amanhã. Suas clientes vinham cancelando as faxinas de última hora, culpando a crise econômica do país pela necessidade de planejar alguns cortes de gastos. Mal sabiam o quanto estava ciente dessa crise: sentia-a toda vez que unia seu salário ao do marido para fazer as compras do mês e deixava de comprar algum produto de limpeza ou alimentação – ou, quando possível, substituía-os por marcas desconhecidas que fossem mais baratas – para que não corressem o risco de não conseguir pagar as contas de luz e tratamento de água. A família economizava o quanto podia, mas era como se quanto mais você desse de si para a vida, mais ela tirasse de você.
- Claro que pode, minha pequena. Você pode fazer o que quiser – disse, sem saber se acreditava em suas próprias palavras.
depositou um longo beijo na cabeça da filha e voltou para a cozinha, pronta para fritar um cento de coxinhas. Decidira fazer salgados e doces para festas, como tentativa de ter um complemento de sua renda e conseguira duas encomendas para o dia seguinte. Não era muito, mas era infinitamente melhor que nada.
continuou vidrada nas garotas que pulavam muito alto e giravam lá em cima antes de caírem com graça. Os comentaristas diziam tantos nomes que ela acabava por não conseguir compreender boa parte deles. Mas queria aprendê-los: os nomes e os movimentos. Ficou em pé, tentando imitar as poses e os movimentos de braço das ginastas, imaginando como seria quando se apresentasse para tanta gente.
Seu cérebro ficou trabalhando rapidamente o dia todo, enquanto repassava em sua cabeça todas as imagens que conseguira memorizar. Jantara praticamente saltitando e acabou adormecendo, vencida pelo cansaço de toda a energia gasta.
estava terminando de organizar a louça quando o marido chegou, quase se afundando na cadeira da cozinha.
- Dia difícil? – Foi a pergunta que ela fez como um gesto de consideração, pois sabia bem a resposta.
- Insuportável – respondeu. – Meu chefe está obviamente tentando me levar a pedir minha demissão. Está fazendo da minha vida naquela oficina um total inferno. Isso é exploração e ele sabe que eu não vou aceitar isso. Está fazendo tudo de propósito para conseguir diminuir o número de funcionários sem ter que se preocupar com toda a burocracia que vem se a demissão partir de sua boca. Não sou o único passando por esse tipo de coisa por lá.
- Sinto muito, querido. Apenas tome a decisão que for melhor para você, sim? Daremos um jeito nisso, sempre demos.
Comeram e logo se deitaram, caindo no sono mais profundo dado a completa exaustão do longo dia de trabalho.
No cômodo ao lado, sonhava com cambalhotas. Tudo o que queria era acordar no dia seguinte e ficar treinando no tapete que a mãe costurara, enquanto ouvia os ecos de uma plateia que a ovacionava.
*****
Tinham se passado quase seis meses desde aquele fatídico dia que mudara a vida de uma pequena criança. ficara tão maravilhada com o encanto da filha pela ginástica artística que dera seu máximo, entrando em contato com todas as pessoas que conhecia para tentar tornar o sonho da pequena ao menos um pouquinho mais real.
Foi uma antiga amiga dos tempos de adolescência que lhe deu uma luz: o projeto esportivo da prefeitura tinha acabado de abrir vagas para crianças de quatro a sete anos e as aulas eram totalmente gratuitas, numa tentativa municipal de incentivo ao esporte.
Não fosse o aviso da moça, não estaria, naquele momento, parada em frente a um ginásio poliesportivo, com uma redinha prendendo os longos cabelos e um collant salmão desbotado com os elásticos já um pouco gastos – empréstimo da mesma amiga, salvadora da pátria e dos sonhos.
Respirava fundo, apertando com força a mão esquerda da mãe. Não sabia definir muito bem o que sentia; era um misto de nervosismo com expectativa que fazia seu coração bater totalmente fora de compasso, as palmas das mãos suarem e o estômago revirar. chamara aquilo de ansiedade. Que palavra engraçada!
Abraçou a mulher, agradecendo baixinho por todo o esforço que sabia que cada dia custava. Queria, um dia, ser uma pessoa tão boa e iluminada quanto a mãe. Queria conhecer palavras bonitas para descrevê-la.
Entrou correndo no ginásio, parando apenas na porta, com o freio da incerteza. Mas seguiu, encontrando algumas meninas e meninos sentados, aguardando a chegada da professora.
Sentou-se um pouco afastada da rodinha, com vergonha de se aproximar de tantos rostos desconhecidos. Mas os olhos famintos dos pequenos estranhos pareciam querer engoli-la enquanto a analisavam de cima a baixo, percebendo cada mísero detalhe. Sentiu vontade de se esconder.
Alguns risinhos e murmúrios puderam ser ouvidos e abraçou as próprias pernas, antes mesmo de perceber o que estava fazendo. Mas alguém percebeu:
- Olá! – Era uma garota bem mais velha que ela. – Qual o seu nome?
- – respondeu, com a voz parcialmente abafada pelos joelhos.
- É seu primeiro dia aqui, ? – A pequena concordou com a cabeça, fazendo com que a jovem prosseguisse falando. – Bom, meu nome é Tábata e pode me chamar se precisar, ok? Sou ajudante da professora Márcia. Ah, e espero que você goste muito das aulas.
O corpo da pequena foi relaxando aos poucos. Não estava confortável, mas também não sentia mais como se um monstro da selva fosse atacá-la como em um daqueles desenhos que passavam pela manhã.
A professora Márcia logo chegou. Era uma mulher baixa, de musculatura definida e cabelos claros cortados rente às orelhas. Tinha uma postura invejável, que fez com que inconscientemente endireitasse sua coluna da melhor forma que podia.
Cada criança pegou um colchonete e se sentou para começar com os alongamentos. Todas tinham os olhos cravados em Tábata e Márcia, como se fossem um farol luminoso no meio de um mar noturno. Copiavam os movimentos como podiam; alguns mais limitados que os outros por ainda estarem trabalhando aos poucos sua flexibilidade.
A professora pediu, então, que as crianças começassem a aula com rolamentos – que não entendia porque não chamavam cambalhotas como qualquer outra. Fizeram uma fila na plataforma acolchoada especial para as atividades infantis. Impulsionavam o corpo para a frente e se apoiavam nas mãos, fazendo o movimento com a qualidade de quem já havia treinado aquilo por algum tempo.
Na sua vez, percebeu que o coração estava batendo tão forte que conseguia perceber o ritmo do mesmo pela vibração em suas orelhas. Os pequenos dedos tremiam e a palma de sua mão estava gelada. Acabara de descobrir que detestava ser o centro das atenções. Era bem mais fácil errar sem que várias pessoas estivessem encarando-a, apenas esperando qualquer falha.
Tentou se acalmar e pensou que era apenas fazer como no tapete de casa, quando brincava com a mãe e idealizava um futuro como esportista olímpica. Fechou os olhos e foi.
Sabia, mesmo antes de se levantar e dar espaço para o próximo, que sua “cambalhota” tinha saído bem mais torta do que desejara. Três meninas começaram a rir baixinho, escondendo a boca com as mãos. se encolheu. De novo.
A próxima atividade consistia em fazer a famosa ponte. A garotinha tentou imitar o menino que estava ao seu lado numa curvatura impressionante. Mas não conseguia sustentar o próprio corpo no alto por muito tempo. Tábata, percebendo o quanto a situação estava incomodando a novata, ajoelhou-se perto dela e colocou as mãos em suas costas, ajeitando-a de uma forma que fosse lhe conferir um pouco mais de sustentação. Recebeu um sorriso incrivelmente sincero em agradecimento. Aquele pequeno gesto provavelmente tinha sido o ponto mais importante de toda aquela aula.
a esperava do lado de fora. Seu sorriso murchou completamente quando viu a decepção estampada no rosto de sua filha. As duas tinham criado tantas expectativas juntas e agora via em sua face que todas bruscamente ruíram.
- Ô, meu amor – a mãe correu para envolvê-la em seus braços. – O que houve?
- As meninas riram de mim, mamãe. Só porque eu não sei fazer as coisas que nem elas. Uma até disse que eu era esquisita e sem jeito e que até a minha roupa era ruim que nem eu.
- E a professora não brigou com elas?
estava indignada. Não conseguia acreditar em como crianças poderiam ser tão cruéis umas com as outras. Além disso, irritava-a ainda mais o fato de que a adulta responsável não tinha feito nada para evitar que sua filha fosse humilhada e virasse motivo de piada para a turma.
- A professora não fala com ninguém. Ela só manda. Mas a Tábata, ajudante dela, veio me ajudar a fazer a ponte e pediu para as meninas pararem de me incomodar. Eu não sei se quero voltar para a próxima aula, mamãe – disse, enquanto algumas lágrimas se acumulavam no canto de seus olhos.
respirou fundo, apertando a filha em seus braços. O mundo era duro e injusto. Sentia um nó em sua garganta ao perceber que a filha teria de viver aquela realidade desde tão cedo.
*****
Oito anos se passaram. Pouca coisa havia mudado. A grande novidade para a família era a chegada de um novo membro: .
O menino nascera no começo do ano – sob o Sol em capricórnio, para aqueles que se baseiam na astrologia em alguma instância. Fruto de uma gravidez tranquila e com poucos enjoos, viera ao mundo em um parto normal demorado – levara certo tempo até adquirir a dilatação recomendada – e bastante surpreendente. Demorou a chorar e despertou rapidamente a preocupação das enfermeiras. Havia algo errado.
O bebê, após uma longa bateria de exames, foi diagnosticado com problemas de formação no coração. Teria que receber tratamentos por medicamentos e possíveis intervenções cirúrgicas provavelmente ao longo de toda a sua vida. A família se preocupou com a situação do filho e, ainda, com a possível falta de dinheiro para poder tratar daquele problema. Era filho deles e receberia todo o cuidado que precisasse dentro do possível. Eles se desdobrariam em mil, trabalhariam em jornadas duplas, triplas, com bicos sempre que possível. Mas ainda sentiam o medo. Talvez tanto esforço nunca fosse suficiente.
estava indo bem no colégio. Tinha sido a melhor aluna de sua sala desde o processo de alfabetização. Seus pais não poderiam estar mais orgulhosos. Sua maior afinidade era na área de humanas e estava participando de olimpíadas de história por sua escola. Infelizmente, teria que abandonar essas aulas extras para cuidar do irmão no período da tarde, em que nem os pais e nem a vizinha que resolvera ajudá-los poderiam cuidar de .
Ficara responsável por levá-lo às consultas semanais em tratamentos alternativos – tanto pelo conhecimento de sua eficácia quanto pelo preço – e encontrara um estúdio que oferecia aulas amadoras de ginástica artística no mesmo horário em que o pequeno tinha suas sessões.
Oito anos depois, com todas as dificuldades que a vida lhe impusera, reencontrava aos poucos sua maior paixão. E, dali para frente, nunca mais se desgrudariam.
Não tinha entendido muito bem o nome que o narrador dissera e não fazia a mínima ideia de como tentar reproduzir aquele som que lhe soara tão estranho. A língua polaca era mesmo bem esquisita e o nome da moça que dava mortais incríveis em sua pequena tela era mais esquisito ainda. Mas ela era linda. E ela fazia acrobacias lindas.
não conseguia desmanchar o semblante de total espanto e fascínio. Ia acabar tendo doloridas câimbras nas bochechas por ficar boquiaberta por tanto tempo.
- O que você está vendo aí? – Uma mulher alta de avental perguntou ao surgir na improvisada sala de estar.
- Acho que se chama ginástica artística – a garotinha de apenas cinco anos respondeu, maravilhada com sua descoberta. – Por que eu nunca vi isso antes, mamãe? É tão lindo!
sorriu, percebendo a alegria e o encanto da filha no brilho de seus olhos.
- É um pouco raro passarem campeonatos de ginástica na televisão fora daqueles canais especiais de esportes que seu tio paga. Os canais abertos acabam preferindo esportes como o futebol porque mais gente gosta.
- Mas, mamãe, como alguém pode não gostar disso? – Uma ginasta chinesa esbanjava flexibilidade em seu solo, fazendo com que a garotinha até se assustasse em alguns momentos. – Olha isso! Elas são maravilhosas!
- Eu sei, meu amor. Acontece que as pessoas se importam mais com algumas coisas do que com outras.
- Isso é triste – observou, ficando cabisbaixa por alguns instantes. Foi então que teve a maior ideia de todos seus cinco anos de vida. – Mamãe, eu posso fazer isso? Posso dar cambalhotas e piruetas com essas roupas brilhantes quando eu crescer?
A mulher sentiu os olhos marejarem frente à inocência infantil. A menina ainda era jovem demais para ter a consciência sobre suas condições financeiras e sobre a mínima possibilidade palpável de que o esporte – ainda mais a ginástica – fosse capaz de sustentá-la um dia. Acabaria trabalhando em jornada dupla como a mãe, tentando garantir a sobrevivência da família por mais algumas semanas, talvez dias.
Era dura aquela vida de insegurança e instabilidade. Nunca se sabia o dia de amanhã. Suas clientes vinham cancelando as faxinas de última hora, culpando a crise econômica do país pela necessidade de planejar alguns cortes de gastos. Mal sabiam o quanto estava ciente dessa crise: sentia-a toda vez que unia seu salário ao do marido para fazer as compras do mês e deixava de comprar algum produto de limpeza ou alimentação – ou, quando possível, substituía-os por marcas desconhecidas que fossem mais baratas – para que não corressem o risco de não conseguir pagar as contas de luz e tratamento de água. A família economizava o quanto podia, mas era como se quanto mais você desse de si para a vida, mais ela tirasse de você.
- Claro que pode, minha pequena. Você pode fazer o que quiser – disse, sem saber se acreditava em suas próprias palavras.
depositou um longo beijo na cabeça da filha e voltou para a cozinha, pronta para fritar um cento de coxinhas. Decidira fazer salgados e doces para festas, como tentativa de ter um complemento de sua renda e conseguira duas encomendas para o dia seguinte. Não era muito, mas era infinitamente melhor que nada.
continuou vidrada nas garotas que pulavam muito alto e giravam lá em cima antes de caírem com graça. Os comentaristas diziam tantos nomes que ela acabava por não conseguir compreender boa parte deles. Mas queria aprendê-los: os nomes e os movimentos. Ficou em pé, tentando imitar as poses e os movimentos de braço das ginastas, imaginando como seria quando se apresentasse para tanta gente.
Seu cérebro ficou trabalhando rapidamente o dia todo, enquanto repassava em sua cabeça todas as imagens que conseguira memorizar. Jantara praticamente saltitando e acabou adormecendo, vencida pelo cansaço de toda a energia gasta.
estava terminando de organizar a louça quando o marido chegou, quase se afundando na cadeira da cozinha.
- Dia difícil? – Foi a pergunta que ela fez como um gesto de consideração, pois sabia bem a resposta.
- Insuportável – respondeu. – Meu chefe está obviamente tentando me levar a pedir minha demissão. Está fazendo da minha vida naquela oficina um total inferno. Isso é exploração e ele sabe que eu não vou aceitar isso. Está fazendo tudo de propósito para conseguir diminuir o número de funcionários sem ter que se preocupar com toda a burocracia que vem se a demissão partir de sua boca. Não sou o único passando por esse tipo de coisa por lá.
- Sinto muito, querido. Apenas tome a decisão que for melhor para você, sim? Daremos um jeito nisso, sempre demos.
Comeram e logo se deitaram, caindo no sono mais profundo dado a completa exaustão do longo dia de trabalho.
No cômodo ao lado, sonhava com cambalhotas. Tudo o que queria era acordar no dia seguinte e ficar treinando no tapete que a mãe costurara, enquanto ouvia os ecos de uma plateia que a ovacionava.
Tinham se passado quase seis meses desde aquele fatídico dia que mudara a vida de uma pequena criança. ficara tão maravilhada com o encanto da filha pela ginástica artística que dera seu máximo, entrando em contato com todas as pessoas que conhecia para tentar tornar o sonho da pequena ao menos um pouquinho mais real.
Foi uma antiga amiga dos tempos de adolescência que lhe deu uma luz: o projeto esportivo da prefeitura tinha acabado de abrir vagas para crianças de quatro a sete anos e as aulas eram totalmente gratuitas, numa tentativa municipal de incentivo ao esporte.
Não fosse o aviso da moça, não estaria, naquele momento, parada em frente a um ginásio poliesportivo, com uma redinha prendendo os longos cabelos e um collant salmão desbotado com os elásticos já um pouco gastos – empréstimo da mesma amiga, salvadora da pátria e dos sonhos.
Respirava fundo, apertando com força a mão esquerda da mãe. Não sabia definir muito bem o que sentia; era um misto de nervosismo com expectativa que fazia seu coração bater totalmente fora de compasso, as palmas das mãos suarem e o estômago revirar. chamara aquilo de ansiedade. Que palavra engraçada!
Abraçou a mulher, agradecendo baixinho por todo o esforço que sabia que cada dia custava. Queria, um dia, ser uma pessoa tão boa e iluminada quanto a mãe. Queria conhecer palavras bonitas para descrevê-la.
Entrou correndo no ginásio, parando apenas na porta, com o freio da incerteza. Mas seguiu, encontrando algumas meninas e meninos sentados, aguardando a chegada da professora.
Sentou-se um pouco afastada da rodinha, com vergonha de se aproximar de tantos rostos desconhecidos. Mas os olhos famintos dos pequenos estranhos pareciam querer engoli-la enquanto a analisavam de cima a baixo, percebendo cada mísero detalhe. Sentiu vontade de se esconder.
Alguns risinhos e murmúrios puderam ser ouvidos e abraçou as próprias pernas, antes mesmo de perceber o que estava fazendo. Mas alguém percebeu:
- Olá! – Era uma garota bem mais velha que ela. – Qual o seu nome?
- – respondeu, com a voz parcialmente abafada pelos joelhos.
- É seu primeiro dia aqui, ? – A pequena concordou com a cabeça, fazendo com que a jovem prosseguisse falando. – Bom, meu nome é Tábata e pode me chamar se precisar, ok? Sou ajudante da professora Márcia. Ah, e espero que você goste muito das aulas.
O corpo da pequena foi relaxando aos poucos. Não estava confortável, mas também não sentia mais como se um monstro da selva fosse atacá-la como em um daqueles desenhos que passavam pela manhã.
A professora Márcia logo chegou. Era uma mulher baixa, de musculatura definida e cabelos claros cortados rente às orelhas. Tinha uma postura invejável, que fez com que inconscientemente endireitasse sua coluna da melhor forma que podia.
Cada criança pegou um colchonete e se sentou para começar com os alongamentos. Todas tinham os olhos cravados em Tábata e Márcia, como se fossem um farol luminoso no meio de um mar noturno. Copiavam os movimentos como podiam; alguns mais limitados que os outros por ainda estarem trabalhando aos poucos sua flexibilidade.
A professora pediu, então, que as crianças começassem a aula com rolamentos – que não entendia porque não chamavam cambalhotas como qualquer outra. Fizeram uma fila na plataforma acolchoada especial para as atividades infantis. Impulsionavam o corpo para a frente e se apoiavam nas mãos, fazendo o movimento com a qualidade de quem já havia treinado aquilo por algum tempo.
Na sua vez, percebeu que o coração estava batendo tão forte que conseguia perceber o ritmo do mesmo pela vibração em suas orelhas. Os pequenos dedos tremiam e a palma de sua mão estava gelada. Acabara de descobrir que detestava ser o centro das atenções. Era bem mais fácil errar sem que várias pessoas estivessem encarando-a, apenas esperando qualquer falha.
Tentou se acalmar e pensou que era apenas fazer como no tapete de casa, quando brincava com a mãe e idealizava um futuro como esportista olímpica. Fechou os olhos e foi.
Sabia, mesmo antes de se levantar e dar espaço para o próximo, que sua “cambalhota” tinha saído bem mais torta do que desejara. Três meninas começaram a rir baixinho, escondendo a boca com as mãos. se encolheu. De novo.
A próxima atividade consistia em fazer a famosa ponte. A garotinha tentou imitar o menino que estava ao seu lado numa curvatura impressionante. Mas não conseguia sustentar o próprio corpo no alto por muito tempo. Tábata, percebendo o quanto a situação estava incomodando a novata, ajoelhou-se perto dela e colocou as mãos em suas costas, ajeitando-a de uma forma que fosse lhe conferir um pouco mais de sustentação. Recebeu um sorriso incrivelmente sincero em agradecimento. Aquele pequeno gesto provavelmente tinha sido o ponto mais importante de toda aquela aula.
a esperava do lado de fora. Seu sorriso murchou completamente quando viu a decepção estampada no rosto de sua filha. As duas tinham criado tantas expectativas juntas e agora via em sua face que todas bruscamente ruíram.
- Ô, meu amor – a mãe correu para envolvê-la em seus braços. – O que houve?
- As meninas riram de mim, mamãe. Só porque eu não sei fazer as coisas que nem elas. Uma até disse que eu era esquisita e sem jeito e que até a minha roupa era ruim que nem eu.
- E a professora não brigou com elas?
estava indignada. Não conseguia acreditar em como crianças poderiam ser tão cruéis umas com as outras. Além disso, irritava-a ainda mais o fato de que a adulta responsável não tinha feito nada para evitar que sua filha fosse humilhada e virasse motivo de piada para a turma.
- A professora não fala com ninguém. Ela só manda. Mas a Tábata, ajudante dela, veio me ajudar a fazer a ponte e pediu para as meninas pararem de me incomodar. Eu não sei se quero voltar para a próxima aula, mamãe – disse, enquanto algumas lágrimas se acumulavam no canto de seus olhos.
respirou fundo, apertando a filha em seus braços. O mundo era duro e injusto. Sentia um nó em sua garganta ao perceber que a filha teria de viver aquela realidade desde tão cedo.
Oito anos se passaram. Pouca coisa havia mudado. A grande novidade para a família era a chegada de um novo membro: .
O menino nascera no começo do ano – sob o Sol em capricórnio, para aqueles que se baseiam na astrologia em alguma instância. Fruto de uma gravidez tranquila e com poucos enjoos, viera ao mundo em um parto normal demorado – levara certo tempo até adquirir a dilatação recomendada – e bastante surpreendente. Demorou a chorar e despertou rapidamente a preocupação das enfermeiras. Havia algo errado.
O bebê, após uma longa bateria de exames, foi diagnosticado com problemas de formação no coração. Teria que receber tratamentos por medicamentos e possíveis intervenções cirúrgicas provavelmente ao longo de toda a sua vida. A família se preocupou com a situação do filho e, ainda, com a possível falta de dinheiro para poder tratar daquele problema. Era filho deles e receberia todo o cuidado que precisasse dentro do possível. Eles se desdobrariam em mil, trabalhariam em jornadas duplas, triplas, com bicos sempre que possível. Mas ainda sentiam o medo. Talvez tanto esforço nunca fosse suficiente.
estava indo bem no colégio. Tinha sido a melhor aluna de sua sala desde o processo de alfabetização. Seus pais não poderiam estar mais orgulhosos. Sua maior afinidade era na área de humanas e estava participando de olimpíadas de história por sua escola. Infelizmente, teria que abandonar essas aulas extras para cuidar do irmão no período da tarde, em que nem os pais e nem a vizinha que resolvera ajudá-los poderiam cuidar de .
Ficara responsável por levá-lo às consultas semanais em tratamentos alternativos – tanto pelo conhecimento de sua eficácia quanto pelo preço – e encontrara um estúdio que oferecia aulas amadoras de ginástica artística no mesmo horário em que o pequeno tinha suas sessões.
Oito anos depois, com todas as dificuldades que a vida lhe impusera, reencontrava aos poucos sua maior paixão. E, dali para frente, nunca mais se desgrudariam.
The Path
Aos seus dezessete anos, era uma garota de beleza notável. Pouco cuidada em questões estéticas, mas com traços fortes e marcantes ao longo de todo seu um metro e sessenta e dois.
Havia recebido seu diploma de conclusão de ensino médio com louvor, tendo as melhores notas de toda a história do colégio. Ganhara o prêmio de melhor projeto na amostra cultural por dois anos consecutivos e fora convidada como jurada dos trabalhos de seus colegas em seu último ano.
Praticara a ginástica de forma esporádica nos últimos anos. Ia quando podia, quando o irmão tinha suas consultas por perto. Às vezes, ele era internado e ela simplesmente não poderia abandoná-lo no hospital. Sentava-se ao seu lado e segurava sua mão enquanto o soro gotejava, ligado ao braço magro e pálido do irmão. Cenas como aquela doíam imensamente, mas decidira ser forte por ele. Afinal de contas, não é como se tivesse maiores escolhas. Tudo isso, somado à sua grande dedicação a tudo com que decidia se comprometer, fizera com que a garota se tornasse realmente muito boa no esporte, mas ainda muito longe do que poderia ter sido.
Levava uma vida normal e regrada pela rotina. E era feliz dentro dos parâmetros de felicidade que conhecia. Seu pai tinha conseguido um emprego novo – um com horários e salário justos -, sua mãe estava vendendo uma quantidade razoável de salgados e começara com os brigadeiros e, enquanto o irmão estivesse saudável dentro do possível, tudo estaria bem para eles. Ao fim do dia, eram essas coisas que importavam.
estava assistindo a um programa de auditório qualquer que era transmitido pela emissora local, com alguns quadros de disputas por prêmios que minimizavam um pouco seu tédio. estava sentado no tapete, brincando com seu carrinho de plástico vermelho. cantarolava na cozinha, enquanto esperava que os brigadeiros esfriassem para que pudesse começar a enrolá-los e cobri-los com os granulados coloridos que a cliente pedira.
Começaram as propagandas e a garota quase trocou de canal, sabendo que os intervalos daquele programa eram ridiculamente longos. Estava cansada dos comerciais de geladeira e das publicidades de cursos de inglês de sempre. Já tinha decorado todos os slogans. Tanto em casa, quanto no hospital – os dois lugares em que mais passava seu tempo -, parecia que a única emissora existente era aquela. E as propagandas eram sempre as mesmas. No entanto, naquele momento, seus olhos se prenderam a um comercial que ainda não conheciam. Uma garota aparecia na tela, em um collant vermelho e branco cheio de brilhantes, enquanto fazia incríveis saltos, acompanhada por algumas imagens de um rapaz nas argolas. O que era aquilo afinal? Aumentou o volume.
“Se você é um ginasta amador da região, venha para o nosso novo Torneio de Ginástica Artística para conhecer novos talentos. Estão abertas as inscrições para categorias masculinas e femininas nas seguintes faixas etárias: infantil, juvenil, adulto e sênior. Cada um poderá se apresentar na área de sua preferência: solo, argolas, barras paralelas, cavalo ou trave. Prêmios de vinte mil para o campeão de cada categoria. Não percam essa chance! Venham se inscrever! Inscrições abertas até o fim do mês.”
estava em choque, segurando o controle remoto com uma força um tanto excessiva. levantou a cabeça, encarando-a:
- É aquela coisa que você faz?
- Sim – limitou-se a responder, com a voz ainda fraca.
- Então você vai, não é?
- Vai aonde? – tinha acabado de aparecer na sala.
- Uma competição de ginástica, mamãe – respondeu. – A mana devia ir, não acha? Ganha até dinheiro!
- Acho que ela deve ir se quiser – respondeu e se virou para a filha. – Você quer?
- E-eu... Eu não sei.
- Bom, só você pode tomar essa decisão, . Pense a respeito. Conversaremos sobre isso se quiser.
- Eu sei que não tenho muita chance – a garota começou -, mas mesmo assim, talvez valha a pena arriscar. É um bom dinheiro. Seria muito bom para nós.
- Quero que pense em você e não no dinheiro ou em nós – a mãe avisou. – Essa decisão não depende de ninguém e nem de nada além de você mesma. Você me disse, aos cinco anos, que um dia seria uma grande ginasta. Sei que nesse meio tempo muitas coisas não saíram como nós gostaríamos ou esperávamos, mas você sabe de seu potencial e de sua dedicação. Sabe também de seus sonhos. São eles que estão em jogo nesse momento, . Pense bem sobre isso. Amanhã, pela manhã, se você quiser, eu lhe levarei até o departamento esportivo da prefeitura para realizar a sua inscrição. Mas, por favor, independentemente de qual for a sua escolha, faça-a por você.
Deu um beijo no topo da cabeça da filha e bagunçou os cabelos do filho antes de voltar a seus afazeres. respirou fundo, tendo a mais absoluta certeza de sua vida: ela não conseguiria dormir naquela noite.
*****
Aquela provavelmente era a caminhada mais longa que ela tinha feito nos últimos tempos. O ginásio público pouco frequentado que encontrara ficava a alguns quilômetros de sua casa. Pelo menos a caminhada era boa para fortalecer a musculatura das pernas. Ou, pelo menos, era nessa ideia que ela preferia se agarrar no momento.
Limpou as gotas de suor que molharam sua testa com as costas da mão e adentrou o local, torcendo para que estivesse vazio. O torneio seria apenas dali alguns meses, mas, se queria mesmo ter alguma chance de ganhar, precisava treinar mais. Mais e melhor.
Aproveitou que tinha a quadra inteira só para si e saiu dando estrelas cruzando-a de uma ponta a outra. Era seu jeito favorito de se aquecer desde que aprendera a fazer aquele movimento. Alongou um pouco o pescoço e as costas e começou a pensar nos exercícios que fazia nas aulas e o que poderia reproduzir ali, mesmo sabendo que não era o solo mais adequado para aquilo.
Tentou se lembrar de sua última sequência no solo e, conforme ia o fazendo, repetia os movimentos que vinham à sua cabeça. Mas alguma coisa não se encaixava; tinha se esquecido de algo no caminho. Concentrou-se, pensou, tentou buscar no seu mais profundo subconsciente...
- É... Moça... – Uma voz desconhecida surgiu. – Perdão por chegar assim, mas você vai precisar sair.
olhou em volta, precisando confirmar que o rapaz estava falando com ela.
- Até onde sei, o uso do ginásio é público.
- Sim, ele é. Mas hoje, especificamente, vai ter jogo daqui algumas horas, então você não pode usar a quadra. De verdade, desculpe-me mesmo por isso, mas se tiver alguém aqui dentro, meu técnico vai me matar. E me colocar no banco para sempre. Não necessariamente nessa ordem.
- Jogo? Bom, eu não tinha ouvido falar sobre isso, do contrário não teria vindo. Eu que peço desculpas. Volto outro dia.
- Obrigado pela compreensão, moça.
- De nada.
estava se preparando para sair do ginásio quando o mesmo rapaz se projetou em sua frente. Só então reparou nele: alto, musculoso, com cabelos escuros espetados e olhos castanho-claros. Ele era digno de um daqueles comerciais sem sentido de calças jeans que insistiam em colocar pessoas seminuas em toda e qualquer publicidade delas.
- Quer uma água? Você parece cansada.
estranhou, mas decidiu aceitar a oferta. Não recusaria água de forma alguma naquele calor absurdo. Muito menos sabendo que teria que repetir a longa caminhada sob o sol forte.
- Obrigada pela água... – travou ao perceber que não fazia ideia do nome do rapaz e também não queria ficar chamando-o de “moço”.
- Ah, é ! Perdão por não ter me apresentado. Eu não costumo ser sem noção assim. Deve ser o nervosismo do jogo.
- – ela se apresentou. – Jogo de quê? Se me permite perguntar, claro.
- Vôlei. Quartas de final do campeonato regional. Pegamos logo o time mais forte de nossa chave. Azar é pouco comparado a isso. – revirou os olhos. – E você? O que veio fazer aqui?
- Treinar um pouco. Vou participar daquele torneio de ginástica.
- Mas você não tem um treinador? Sabe que o chão da quadra é péssimo para isso, não sabe?
- Não, não tenho. E sim, eu sei. Mas não é como se eu realmente tivesse uma opção melhor. É isso ou ralar meus joelhos no asfalto mal feito na rua de casa.
- Acho que eu entendi o problema. Bom, se você puder voltar aqui amanhã perto das duas da tarde, eu acho que posso te ajudar com isso.
- Como assim? Que absurdo! Eu nem te conheço!
- Não estou tentando te assaltar, . Eu estou falando sério. Eu posso te ajudar, ok? Só esteja aqui amanhã nesse horário. Agora, eu preciso ir. E seria bom se você fosse também.
- Tudo bem, não quero te causar problemas. Boa sorte com seu jogo.
- Obrigado! E, por favor, apareça – disse antes de sumir.
, sem opção melhor, resolveu ir embora.
*****
Já eram quinze para as duas da tarde. tinha chegado bem antes e aproveitou seu tempo à toa para treinar. Tinha montado uma série de exercícios mais eficiente e conseguiu repeti-la três vezes. Estava razoavelmente satisfeita com seu desempenho do dia. E um tanto desesperada por ter acreditado em um completo desconhecido. Quão inocente ela era?
Decidiu se alongar mais uma vez, esticando os braços atrás de forma a estalar toda sua coluna, vértebra a vértebra. Soltou um suspiro de satisfação. Aquela sensação esquisita proporcionava imenso alívio. Rodou a cabeça ao redor do pescoço, esticando toda aquela região.
Foi quando se virou para alongar os ombros que viu uma pessoa entrando correndo no ginásio, esfregando os olhos com força.
- Desculpe-me pelo atraso. Tive uma reação alérgica pela manhã e estava esperando que os remédios fizessem efeito suficiente pelo menos para que eu conseguisse enxergar decentemente o caminho até aqui – se explicou.
- Não tem porque pedir desculpas. Mas confesso que achei que você não fosse aparecer. Minha confiança nas pessoas não é das melhores, admito. Além disso, a única coisa que sei sobre você é seu nome - se explicou.
- Sabe meu nome e que eu provavelmente sou a salvação de todos os seus problemas, sem querer ser presunçoso nem nada do tipo.
riu de forma quase irônica.
- E me diga, então – retrucou. – Como pretende fazer isso?
- Bom, senhorita , você não sabe, mas a minha ilustríssima mãe é uma ex-ginasta profissional. Ela chegou inclusive a participar de seletivas para as Olimpíadas de sua época, mas sofreu uma lesão que a tirou do páreo. Depois disso, os patrocinadores encontraram outra queridinha e minha mãe nunca mais conseguiu obter o mesmo sucesso ou reconhecimento. Mas as técnicas estão ali, sabe? Todos os métodos, as coreografias e os detalhes continuam com ela.
- Isso é realmente incrível, . Mas aonde você quer chegar com toda essa história?
- Quero chegar ao ponto em que te digo que ela ainda é uma atleta incrível e seria uma instrutora ainda melhor. Dona Clarice com certeza se sentiria honrada em te ensinar tudo que ela sabe para esse torneio.
A garota precisou parar para absorver toda a informação. Sua mãe sempre disse que as pessoas surgiam em nossas vidas por uma razão especial. Não esperava, no entanto, que aquele rapaz fosse surgir com uma razão em forma de proposta de treinamento com uma ginasta de nível olímpico. Era surreal demais para a menina que treinava com collants emprestados em turmas improvisadas.
- Isso é algum tipo de brincadeira? – Teve que perguntar. – Alguém vai pular dos vestiários com câmeras dizendo que eu caí em algum tipo de pegadinha tosca daqueles programas de auditório?
gargalhou, balançando a cabeça. Soltou um espirro e xingou a “droga da alergia” antes de responder:
- Não é uma piada e nem uma pegadinha da televisão, por mais que eu provavelmente fique maravilhoso em uma tela plana. A proposta é real. Tive a ideia ontem ao ver o seu esforço e sua paixão pelo esporte. É exatamente o tipo de força de vontade que minha mãe tinha e sempre diz que deseja ver nos novos rostos da ginástica. Falei para ela sobre você e ela quer te conhecer.
- Credo, garoto. Nunca te disseram que não se pede para que a garota conheça sua mãe quando você mesmo mal a conhece? Vai ter que me chamar para sair primeiro – zombou.
- Você quer que eu te chame para sair? – perguntou, com a sobrancelha arqueada e os braços cruzados.
- Não, era uma piada. – Ela revirou os olhos. – Agradeço por todo seu esforço em colocar essa sua ideia mirabolante em prática. E aceito. Vou conhecê-la. Quando?
- Agora mesmo – ele respondeu, fazendo com que a garota arregalasse os olhos e sentisse seu coração se arriscar ao tentar acompanhar um ritmo bem mais rápido do que devia.
*****
- por mais que tentasse não demonstrar - estava completamente chocada com o tamanho da casa à sua frente. A fachada tinha vários blocos, num padrão geométrico incorporado pela tinta camurça. Havia um amplo jardim, com arbustos perfeitamente podados, grandes palmeiras e flores coloridas que chamavam a atenção de qualquer um que passasse por ali. A porta de entrada era daquelas que pareciam ter sido planejadas para uma residência de gigantes: enorme e imponente, com um grande puxador em inox polido.
- O carro dela está na garagem – avisou, tirando de sua observação minuciosa. – Venha, vamos entrar.
A garota o seguiu pela porta de gigantes. O interior da casa era tão deslumbrante quanto seu exterior, com uma mobília incrível e uma decoração que parecia ter saído de uma daquelas revistas de design de interiores. Uma coisa era clara: alguém por ali tinha uma grande paixão por orquídeas: os vários cachepôs com flores espalhados pela sala denunciavam isso.
- Mãe? – O rapaz arriscou chamar, aproveitando-se do pé direito duplo do andar para propagar sua voz. – Chegamos.
Com alguns ruídos quase imperceptíveis de passos, Clarice havia aparecido em frente aos dois, com seu cabelo ruivo preso em um rabo de cavalo alto e tênis esportivos nos pés. Era mais simples e muito mais bonita do que esperava, tinha que admitir. Não sabia ao certo a idade da mulher, mas com certeza ela aparentava bem menos.
- Então, essa é a – Clarice disse já puxando a garota para um abraço. – Quando meu filho me disse que você estava treinando sozinha no ginásio, tive certeza de que era a pessoa perfeita para eu realizar meu sonho de poder transmitir para alguém tudo que eu aprendi. Sabe como é? Estou ficando cada vez mais velha e sinto que preciso deixar algo para trás no mundo. Por sorte ou azar, você foi a escolhida. Mas, claro, se não quiser, fique à vontade para dar meia volta sem ressentimentos.
respirou fundo, pensando no tamanho da oportunidade que tinha à sua frente e no desafio que lhe aguardava no torneio. Não conhecia Clarice e não fazia a mínima ideia de como seria um possível relacionamento entre elas. Era um grande risco.
- Estou pronta para aprender, Dona Clarice – ela anunciou, fazendo com que a mulher batesse palmas.
- Ótimo! Ótimo! Mas o primeiro ensinamento é: não me chame de “Dona”. É só Clarice, sim? Vamos ignorar essas rugas faciais e focar na ginástica.
*****
Já fazia um mês que estava treinando com Clarice. Passara a primeira semana apenas assistindo a todos os vídeos de apresentações antigas da mais velha. Mal podia acreditar que não tinha ouvido falar dela antes.
Seu método de ensino era baseado na repetição, até que a jovem aprendesse as técnicas. Mesmo com pouco tempo, sua qualidade de trabalho no solo havia melhorado consideravelmente – palavras da própria Clarice, confirmando o que já tinha percebido.
Tentava ao máximo manter uma alimentação balanceada e passara a caminhar todas as manhãs. Além dos treinos de ginástica artística propriamente, a menina passara a frequentar a academia do condomínio com – ordens estritas da mãe dele -, fazendo com que os dois fossem se aproximando e logo se tornassem aquilo que se podia chamar de “amigos”.
- Ei, anãzinha – chamou-a pelo apelido “carinhoso” que tinha criado. – Tenho jogo hoje às oito da noite lá no ginásio. Gostaria que você fosse. Ah, e leva o . Acho que ele vai gostar.
- Certo. Estaremos lá.
E foram mesmo. estava sentada no meio da arquibancada com , apenas esperando para torcer pelo gigante – apelido dado pelo irmão mais novo, mas que combinava muito com toda a situação.
entrou em quadra acompanhado pelo time de regatas azuis. Acenou para os dois rostos conhecidos assim que os encontrou na pequena torcida que o time local havia conseguido reunir. Resumia-se, basicamente, aos pais e irmãos e algumas meninas que tinham algum interesse em ver homens de regata.
Os irmãos gritaram e pularam, comemorando cada ponto marcado pelos azuis. O jogo acabou com a vitória dos mesmos, de forma que convidou a ambos para tomar um sorvete em uma lanchonete ali perto por sua conta. até tentou desviar da proposta, mas fez sua famosa carinha de cachorrinho que caiu da mudança e acabou convencendo-a a aceitar a oferta. Sabia muito bem que ela não resistia àquele golpe baixo.
Na sorveteria, pediu um sorvete de quatro bolas de morango com chocolate na cestinha. e pegaram casquinhas simples, cientes de que Clarice os mataria se soubesse de algum exagero de açúcar por parte deles em plena quinta-feira.
- Posso fazer uma pergunta? – O garotinho perguntou, com os lábios lambuzados pelo sorvete que derretia. – Para vocês dois.
- Claro, garotão – respondeu. – Pode mandar.
- Vocês dois são namoradinhos?
engasgou com a sua água, enquanto o rapaz gargalhava abertamente com a pergunta. - De onde você tirou uma besteira dessas, ? – A irmã ainda tossia, recuperando-se do susto.
- Ah, é que vocês ficam juntos sempre. Na televisão é sempre assim. As pessoas saem juntas e de repente estão se abraçando. E viram namoradinhas.
- Acho que seu irmão anda vendo televisão demais.
- Concordo. Nós dois teremos uma séria conversa com dona sobre as coisas a que o senhor anda assistindo.
Terminaram os sorvetes e despediram-se, indo cada um para o seu canto.
Em casa, tomou as cápsulas de vitamina que Clarice havia insistido que ela passasse a ingerir. Após engolir os dois comprimidos que a faziam questionar sempre o porquê de remédios serem tão grandes e horríveis de se engolir, sentiu o celular vibrar no bolso, anunciando uma nova mensagem.
“Olá, namoradinha! Como vai a senhorita após essa noite formidável em que o maior jogador de vôlei de todos os tempos se consagrou campeão?”
revirou os olhos com a mensagem, mas acabou sorrindo. Aquele garoto era mesmo muito bobo.
“Eu não vi esse tal maior jogador, mas assisti ao jogo de um amador meia boca por aí.”
“A-HÁ! Muito engraçado, anãzinha! Sei que minha mãe te deu o dia de amanhã de folga, então queria te convidar para passear pela cidade comigo.”
A garota precisou reler a mensagem três vezes antes de realmente absorver o convite. Não estava acostumada com esse tipo de coisa, mas era como eles diziam: eram apenas amigos. Não faria mal algum sair com ele, afinal. E com certeza respirar um pouco fora da ginástica lhe faria bem depois de todo o treinamento dos últimos tempos.
“Desde que você não esteja planejando um sequestro para vender meus órgãos no mercado negro, acho que posso fazer esse sacrifício de passar uma tarde contigo. Felizmente, herdei um pouco da força de vontade de minha mãe.”
“Vou fingir que não sei que você, secretamente, está dando pulinhos de alegria de saber que terá a honra de ver meu lindo rosto por mais tempo do que já é obrigada. Vejo você amanhã, anãzinha. Beijos!”
ainda revirou os olhos mais uma vez antes de bloquear o celular, ainda na conversa com . Vestiu um pijama curto e deixou as janelas do quarto levemente abertas, torcendo para que a brisa noturna fosse gentil em refrescar seu sono naquela noite tão quente. Adormeceu rápida e pesadamente, sequer percebendo quando sua mãe adentrou o cômodo para depositar um beijo em sua testa, fazendo o sinal da cruz sobre o peito logo em seguida.
*****
- Ainda não acredito que você nunca tomou açaí na vida – continuava reclamando desde a hora em que a garota tinha feito a “terrível” revelação. – Sabe que isso é um tipo de atentado à própria existência humana, não sabe?
- Sei que você é incrivelmente dramático, isso sim! Por que se importa tanto com aquela pasta roxa esquisita?
parou de caminhar no mesmo instante, encarando a garota com os olhos arregalados e a mão sobre o peito, de forma afetada.
- Nunca mais chame a fruta dos deuses de pasta roxa esquisita. É uma heresia maior do que o próprio paganismo. Até porque, hoje em dia, açaí é um debate muito mais interessante que doutrinação religiosa. Pelo menos um deles chega a algum lugar: refresca e acaricia meu estômago e, por fim, aquece e alegra meu coração. Se você não gostar, pode me deletar dos seus contatos no Whatsapp e esquecer que um dia fomos amigos.
- Tudo bem, Senhor Dramático – se rendeu quando chegaram a frente do Point do Açaí, completamente decorado em tons de roxo e mesas de fibra com uma música quase praiana. – Vamos acabar logo com isso.
Foram abordados por uma garçonete no mesmo instante em que tinham um dos pés para dentro do estabelecimento. A moça de cabelos cheios de gel e sorriso que quase dava a impressão de ter se congelado na sua face entregou um cardápio de capa de madeira fina para cada um e desatou a falar quais eram as promoções dos dias e os pedidos mais requisitados pelos clientes. Fez um breve discurso sobre as vantagens nutricionais do açaí e outro sobre como todos adoravam um pouco de leite em pó junto à fruta. só conseguia piscar, atordoada por todas as informações que com certeza não havia pedido. riu do semblante da garota assim que a garçonete se afastou para buscar copos com água gelada para ambos.
- Você devia ter visto sua cara! – O garoto não conseguia parar de rir e, sinceramente, também não tinha grandes intenções de fazê-lo.
- Eu juro que não consegui entender sequer metade do que ela disse. Como é possível alguém conseguir falar tão rápido assim? E ainda por cima continuar sorrindo! Nem na escola eu era tão bombardeada com informações desse jeito.
O rapaz pediu duas taças grandes com morangos, leite em pó e leite condensado para eles. Disse que se o decepcionasse detestando aquela divindade, pediria que a garçonete fizesse mais alguns discursos – talvez algo sobre granola ou os famosos “nuts” dessa vez.
olhava a garota fixamente, esperando por qualquer reação assim que experimentasse a primeira colherada daquele tesouro da humanidade. , com as bochechas já ruborizadas, tentou desviar o olhar e focou no doce enorme em sua frente. Encheu uma colher e a colocou na boca, entendendo finalmente porque tanta insistência do garoto – ela faria o mesmo se as posições estivessem invertidas.
- Incrível – respondeu, limpando a boca com um guardanapo logo em seguida. – Tenho que admitir que você tem bom gosto, gigante.
- Eu sei. De nada por mostrar o quanto a sua vida era incompleta sem essas duas coisas incríveis.
- Duas? – perguntou, arqueando as sobrancelhas como se não entendesse o ponto do rapaz sentado à sua frente.
- Claro, oras. O açaí e eu. – piscou, rindo e devorou seu açaí como se sua vida dependesse daquilo.
Agradeceram a garçonete do sorriso quase maníaco e optaram por seguir caminhando até uma trilha que o rapaz dizia conhecer como a palma da própria mão. Usou o fato de que a sombra e a umidade proporcionadas pelas árvores ajudariam com o calor daquela tarde para convencer de segui-lo, por mais insegurança que uma caminhada no desconhecido lhe trouxesse.
Andaram por um tempo considerável, fazendo com que a menina perguntasse constantemente se precisavam mesmo adentrar tanto a mata e alertar sobre os perigos de encontrarem uma cobra ou qualquer outro animal que pudesse atacá-los. O garoto continuava rindo, reafirmando que ia sempre ali e não tinha perigo algum. Além disso, chegariam rápido aonde ele queria e ela perceberia que cada passo tinha valido muito a pena.
O queixo de caiu instantaneamente quando viu a pequena queda d’água à sua frente. Era quase como uma mini cachoeira e ela não conseguia acreditar que nunca tinha ouvido falar de um lugar tão bonito quanto aquele na própria cidade. Talvez tivesse passado muito tempo trancada em sua realidade familiar e doméstica para poder perceber o resto do mundo ao seu redor.
- Eu acho que esse é o lugar mais incrível que eu já vi em toda a minha vida – dizia, ainda embasbacada. – Obrigada por me trazer aqui, gigante. É realmente maravilhoso.
- Vale a pena cada passo e picada de pernilongo no caminho, não vale? – falava orgulhoso. Aquele era o ponto mais especial de toda a cidade para ele. – Venho aqui quando quero pensar em algo, sabe? Quando preciso de um momento de introspecção ou só quero ficar um pouco sozinho, curtindo meu próprio silêncio absoluto. – Observou o fascínio da garota por alguns instantes, encantado com ela. – Vem, vamos entrar na água. Depois de caminhar sob esse sol escaldante, nós merecemos.
se assustou e tentou negar a oferta repetidamente enquanto ele jogava a camisa em cima de uma pedra qualquer e tirava os chinelos, segundos antes de entrar na água, mergulhando até a cascata formada.
- Vem logo, anãzinha. A água está uma delícia. Não vai me fazer sair daqui para te arrastar, vai?
Ela apenas revirou os olhos, deixando os chinelos ao lado dos dele. Não queria nem pensar em como seria ótimo caminhar de volta para casa com a roupa encharcada. Na verdade, naquele momento, não queria pensar em absolutamente nada. Tudo que mais desejava era aproveitar aquilo: rir e se divertir como talvez não fizesse há uma eternidade.
Pôs os pés na água das rasas margens e foi caminhando lentamente, sentindo suas pernas submergirem aos poucos. A sensação era incrível, mesmo que soubesse que qualquer outra pessoa a acharia uma boba por dar tanto valor àquilo. Mergulhara as mãos, brincando um pouco com a água, permitindo que um sorriso involuntário acabasse escapando de seus lábios.
a fitava, assimilando cada detalhe da cena que presenciava. estava resplandecente, como se uma luz a invadisse – provavelmente aquela palavra de dez letras que acaba virando tão batida que às vezes nos esquecemos de seu real e puro significado: felicidade. E talvez fora naquele momento, especificamente, que tudo fez sentido em sua cabeça. Percebera enfim o que a mãe queria dizer quando, no dia anterior, havia o alertado de que ele estava mudado e tinha certeza de que o motivo era sua pequena aprendiz. Não entendia ainda o que era aquilo, mas sabia que queria tê-la por perto. Queria ver aquele sorriso radiante. Queria ser o motivo dele. Queria que ela ganhasse aquela competição. Queria que ela fosse feliz. Queria que fosse ao lado dele.
Tentou afastar aqueles pensamentos de sua cabeça. Não queria parecer o esquisitão que ficava encarando os outros. Mas ainda era o amigo bobo que tinha tamanho suficiente para parecer um tanto desengonçado e, fazendo jus a seu posto, puxou a garota de uma só vez, girando-a entre cócegas. Ela gargalhava entre gritinhos, tentando empurrar em vão os braços dele.
Conversaram, atiraram água um no outro e jogaram conversa fora sem se lembrarem do tempo que passava. Mergulharam e relaxaram com a água caindo em suas costas: o mais próximo de uma massagem que poderiam receber.
- Posso perguntar uma coisa que me deixou curioso desde que te vi naquele ginásio, mas que, por algum motivo, acabei não questionando antes? – falou, fazendo com que a garota franzisse um pouco a testa.
- Claro, mas já vou avisando que não, minha flexibilidade não é suficiente para eu conseguir lamber meu próprio cotovelo.
riu, sem entender muito bem de onde tinha saído aquela observação. Prosseguiu:
- Por que decidiu entrar para esse torneio de ginástica? Não que eu não ache que você tem total capacidade de participar, mas é que pelo que eu entendi você não treinava para isso. Pela forma que você relatou para a minha mãe, pareceu mais uma decisão repentina.
- Bom, minha família não tem a condição financeira mais confortável do mundo. Depois que o nasceu, as coisas ficaram ainda mais delicadas. – respirou fundo, sentindo sobre os ombros o peso de encarar e colocar para fora a realidade. – Meu irmão nasceu com uma má formação cardíaca e isso mudou nossas vidas em vários aspectos. Eu larguei algumas aulas e perdi a frequência dos treinos para levá-lo ao hospital enquanto meus pais trabalhavam. Os remédios são caros e os tratamentos alternativos demandam um esforço extra.
O rapaz ouvia atentamente, sentindo uma vontade absurda de segurar a mão da garota e poder dizer que tudo ficaria bem. Mas não podia. Seu peito apertava de saber que tirá-la daquela dor estava muito além de sua capacidade.
- Entrei no torneio com a intenção de tentar conseguir uma poupança, sabe? Um fundo de reserva para as nossas emergências familiares, especialmente para as questões do . Acontece que a minha vida nesse meio tempo seguiu um caminho um pouco diferente do que esperávamos... Meu irmão vai precisar de uma cirurgia um tanto cara e não tem plano ou governo que cubra os gastos da mesma. Ganhar essa competição, apesar de muitas vezes parecer um sonho tão distante, é praticamente a nossa única opção “simples”.
passou a mão sobre as bochechas, secando algumas lágrimas que decidiram escorrer por sua face sem que ela desse sua permissão. Respirou fundo, tentando se controlar. Passara dias tentando assimilar as notícias dos médicos, mas não tinha ainda se permitido sentir tudo aquilo e parecia que a situação toda agora desaguava em sua cabeça como um tsunami. Tinha que ser forte. Aprendera a ser forte e era assim que continuaria. Por . Por seus pais.
- Vem aqui. – tomou a iniciativa de trazer a garota para si, abraçando-a meio lateralmente e deixando que ela chorasse tudo que precisasse.
- Às vezes – disse, fungando enquanto se afastava do abraço do rapaz –, tudo que eu queria era gritar, sabe? Até sentir meus pulmões querendo estourar. Queria gritar até minha garganta doer e eu ficar completamente rouca. Extravasar.
- Vai em frente, então.
- O quê? – Ela não entendeu.
- Vai lá. Pode gritar. Aproveita que a única pessoa que pode te achar uma maluca aqui por perto sou eu. E sua loucura não é mais uma grande novidade para mim, sabe?
encarou o garoto à sua frente, ainda um tanto incerta sobre aquilo. Mas ele tinha razão e, afinal, ela não tinha absolutamente nada a perder com aquilo. Gritou a plenos pulmões, respirando fundo e expelindo todo o ar que seus pulmões eram capazes de captar. riu e começou a gritar junto com ela, abrindo os braços. Perderam um bom tempo entre gritos e risadas, até sentirem as gargantas começarem a arder pelo esforço.
- Obrigada. – Foi tudo que ela conseguiu dizer, apertando com força a mão dele, apenas para soltá-la praticamente em seguida.
- Eu que agradeço por você ter a péssima ideia de passar a tarde com um cara sem graça como eu. Mas foi bom gritar com você, .
Ela riu alto, prendendo os fios ainda molhados em um coque totalmente bagunçado.
- É bom estar com você, gigante.
E, com o abraço apertado – e relativamente longo - que veio em seguida, sabia que aquelas palavras eram totalmente sinceras e significavam que não tinha mais volta. A ginasta tinha conseguido um lugar fixo em seu coração e não mostrava nem sinais de que pudesse decidir se retirar dali tão cedo.
*****
Faltava pouco mais de um mês para o grande dia. O torneio se aproximava e a agitação já podia começar a ser sentida. tinha decidido assistir a um treino da coreografia final da filha e estava deslumbrada com o que a garota havia alcançado. Clarice cobrava cada dia mais e mais esforço e fazia shakes de suplementos multivitamínicos e proteicos como se fossem um simples suco para o café da tarde. e decidiram juntar a pouca habilidade artística que compartilhavam para arriscar fazer alguns cartazes e faixas para que pudessem torcer por . Ela, por sua vez, estava quase explodindo de ansiedade e nervosismo, levando-a a fazer longos exercícios diários de respiração e algo relativamente próximo de meditação que vira na televisão algumas semanas atrás.
Todo o pânico pelo que estava por vir aumentava só de pensar no que estava prestes a acontecer: a apresentação dos competidores aos organizadores responsáveis pelo torneio. Todos os participantes se reuniriam no local da competição para apresentar suas séries na categoria escolhida: solo, argolas, cavalo, trave ou barras paralelas. Os jurados assistiriam às performances e, por consequência, a concorrência também veria com o que estariam lidando dentro de algumas semanas. Só de pensar em se apresentar para tanta gente, já sentia seu estômago embrulhando.
Clarice avisou no dia anterior que a buscaria às oito da manhã em ponto e, no horário exato, lá estava o carro esportivo buzinando em frente à humilde casa dos .
- Nervosa? – perguntou assim que se acomodou no banco traseiro.
- Mais do que nunca. – Foi a resposta da garota, acompanhada de sua respiração pesada.
- Não fique – Clarice interveio. – Tudo vai correr perfeitamente bem. Nós treinamos muito para isso. É só respirar fundo e fazer o que você faz de melhor, que claramente é ser a melhor ginasta amadora que eu já vi.
- Você sabe que terão garotas com anos de treinamento em academias especializadas e profissionais, Clarice.
- E você, além do dom nato, treinou com uma das maiores promessas da história da ginástica nacional. Academias profissionais especializadas não significam absolutamente nada depois de todo o trabalho que tivemos. Se você continuar se rebaixando desse jeito, eu mesma vou descer desse carro e te dar uns safanões, garota.
riu, jogando as mãos para o alto em sinal de rendição:
- Bom, não está mais aqui quem falou.
Estacionaram o carro no amplo espaço reservado para a competição. O ambiente já estava lotado de homens e mulheres uniformizados andando em grupos – ou melhor, equipes. respirou fundo antes de continuar andando atrás de , que decidiu segurar sua mão para tentar tranquilizá-la. Clarice sorriu de lado ao ver a cena em que os dois se encontravam. Sabia que o filho estava mais envolvido do que provavelmente admitia para si mesmo.
A garota foi levada por uma auxiliar de organização do evento até a tenda de sua categoria no solo. Várias meninas de coques perfeitamente arrumados e uniformes coloridos estavam ali, ao redor de uma loira com os olhos decorados com glitter dourado que falava sem parar, gesticulando abertamente. Todas pareciam rir de absolutamente tudo que ela falava, apesar de ter percebido que, em pelo menos noventa e nove por cento das vezes, aquilo não tinha a menor graça.
Pelo que constava na etiqueta em seu peito, seu nome era Abigail. Estava focada em contar às outras meninas cada detalhe de sua estadia na Suíça para treinar com o instrutor da equipe olímpica, enquanto balançava os brincos de ouro branco e pérolas. Ela própria havia se intitulado como a favorita da categoria e não se importava em tentar mostrar um pingo sequer de humildade e modéstia. só conseguia revirar os olhos para o discurso, enquanto tentava secar as palmas suadas de suas mãos nas próprias pernas ou braços.
Quando anunciaram que começariam a chamar as meninas, se levantou, gritando um “Vai, anãzinha!” e tomando um tapa de sua mãe por isso logo em seguida.
Após um breve alongamento, as apresentações começaram, mostrando o quão forte a concorrência estava. Fora algumas meninas que pareciam mais dançarinas que ginastas, as outras se mostravam muito habilidosas e bem preparadas. A complexidade das coreografias também era impressionante. Clarice, no entanto, continuava impassível, dizendo que elas eram boas, mas era melhor.
Finalmente chegou a vez dela. A música que escolhera para sua série começou a soar pelos alto-falantes e ela respirou fundo, pedindo a Deus que pelo menos não passasse vergonha.
No entanto, a música travou e um barulho esquisito começou a ser ouvido. O jurado que estava coordenando as apresentações pediu que a garota esperasse até que a cabine de áudio tentasse corrigir o problema do som. Ela gelou, sentindo o peso de todos os olhos sobre ela.
- Coitada! Era óbvio que ela ia passar vergonha, mas isso é triste demais. – Ouviu a voz de Abigail, acompanhada de risinhos dela e de algumas meninas que ainda a rodeavam. – Quero dizer, olhem para ela tremendo desse jeito. Claramente não deveria estar aqui.
“Não, isso não. Não de novo.” pensava, lembrando-se do episódio que quase a fizera desistir do esporte aos cinco anos. Queria ignorar, mas nem todo o autocontrole do mundo seria suficiente para isso.
A música não voltou. Infelizmente, o arquivo tinha sido danificado e ela teria que seguir com sua série sem o som. Quase podia sentir o olhar de deboche de Abigail às suas costas, com toda sua falsa piedade.
Fez sua série tentando dar o melhor de si e tudo corria relativamente bem até que, em um dos movimentos, ela acabou caindo sentada de uma vez só. Nem a dor da queda poderia ser pior que as risadas de suas concorrentes ao seu redor.
Levantou o mais rápido que pôde, calçou os chinelos e saiu rapidamente pelos portões do estabelecimento, correndo até o local onde o carro estava estacionado. Sentou-se nos cascalhos da calçada e se permitiu chorar, escondendo o rosto nas mãos. Recusava-se a acreditar que a história estava se repetindo. Queria crer que tudo aquilo era apenas um pesadelo e tudo estaria bem novamente assim que abrisse os olhos. Mas sabia que não era assim que as coisas aconteciam com ela. Não era assim que a vida funcionava.
Sentiu dois braços fortes ao seu redor e a voz de em suas orelhas, pedindo que ela ficasse calma e repetindo que estava tudo bem.
- Olhe para mim – Clarice disse de forma firme, obrigando a enxugar os olhos de qualquer jeito e encará-la. – Não quero ver você chorando. O que aconteceu ali dentro não foi culpa sua. Você é nova nesse tipo de coisa e ainda não sabe lidar muito bem com seu nervosismo. Grande coisa, todos os atletas já passaram por isso. Minhas mãos tremeram antes de todas as minhas provas, não importava o quanto de experiência eu tinha acumulado.
- Eu duvido que as pessoas riam de você, Clarice – respondeu, fungando. – Eu não posso passar por isso de novo. Não sou boa o suficiente, é óbvio. Vou procurar os responsáveis pelo torneio quando meu rosto desinchar e pedir para cancelar minha participação.
Clarice ajoelhou em sua frente, levantando seu rosto pelo queixo até que ela não tivesse alternativa a não ser olhar em seus olhos.
- Somos seres humanos. Somos passíveis de erro e falhamos. Mas você não treinou esse tempo todo para desistir agora. Eu não vou permitir que você volte atrás. Não depois de tudo o que fizemos e construímos. Você vai competir, vai dar seu melhor e vai mostrar para aquelas garotas ridículas e mimadas a que veio. Se você não quer vê-las rindo, seja incrível o suficiente para que elas se arrependam disso. E não tem como fazer isso se desistir.
- Eu não sei se posso fazer isso, Clarice.
- Mas eu sei – a mulher retrucou, abaixando-se até ficar na altura da garota. – Você pode e você vai. Pela sua família, pelo seu irmão, mas principalmente, por você mesma e pela sua paixão pelo esporte. Eu acredito em você, .
- Se serve de alguma coisa, eu também – interveio.
sorriu para ele, recostando-se ao ombro do rapaz novamente e segurando as mãos de sua treinadora.
- Vamos fazer isso – ela anunciou. – Elas vão se arrepender de zombar de mim.
Havia recebido seu diploma de conclusão de ensino médio com louvor, tendo as melhores notas de toda a história do colégio. Ganhara o prêmio de melhor projeto na amostra cultural por dois anos consecutivos e fora convidada como jurada dos trabalhos de seus colegas em seu último ano.
Praticara a ginástica de forma esporádica nos últimos anos. Ia quando podia, quando o irmão tinha suas consultas por perto. Às vezes, ele era internado e ela simplesmente não poderia abandoná-lo no hospital. Sentava-se ao seu lado e segurava sua mão enquanto o soro gotejava, ligado ao braço magro e pálido do irmão. Cenas como aquela doíam imensamente, mas decidira ser forte por ele. Afinal de contas, não é como se tivesse maiores escolhas. Tudo isso, somado à sua grande dedicação a tudo com que decidia se comprometer, fizera com que a garota se tornasse realmente muito boa no esporte, mas ainda muito longe do que poderia ter sido.
Levava uma vida normal e regrada pela rotina. E era feliz dentro dos parâmetros de felicidade que conhecia. Seu pai tinha conseguido um emprego novo – um com horários e salário justos -, sua mãe estava vendendo uma quantidade razoável de salgados e começara com os brigadeiros e, enquanto o irmão estivesse saudável dentro do possível, tudo estaria bem para eles. Ao fim do dia, eram essas coisas que importavam.
estava assistindo a um programa de auditório qualquer que era transmitido pela emissora local, com alguns quadros de disputas por prêmios que minimizavam um pouco seu tédio. estava sentado no tapete, brincando com seu carrinho de plástico vermelho. cantarolava na cozinha, enquanto esperava que os brigadeiros esfriassem para que pudesse começar a enrolá-los e cobri-los com os granulados coloridos que a cliente pedira.
Começaram as propagandas e a garota quase trocou de canal, sabendo que os intervalos daquele programa eram ridiculamente longos. Estava cansada dos comerciais de geladeira e das publicidades de cursos de inglês de sempre. Já tinha decorado todos os slogans. Tanto em casa, quanto no hospital – os dois lugares em que mais passava seu tempo -, parecia que a única emissora existente era aquela. E as propagandas eram sempre as mesmas. No entanto, naquele momento, seus olhos se prenderam a um comercial que ainda não conheciam. Uma garota aparecia na tela, em um collant vermelho e branco cheio de brilhantes, enquanto fazia incríveis saltos, acompanhada por algumas imagens de um rapaz nas argolas. O que era aquilo afinal? Aumentou o volume.
“Se você é um ginasta amador da região, venha para o nosso novo Torneio de Ginástica Artística para conhecer novos talentos. Estão abertas as inscrições para categorias masculinas e femininas nas seguintes faixas etárias: infantil, juvenil, adulto e sênior. Cada um poderá se apresentar na área de sua preferência: solo, argolas, barras paralelas, cavalo ou trave. Prêmios de vinte mil para o campeão de cada categoria. Não percam essa chance! Venham se inscrever! Inscrições abertas até o fim do mês.”
estava em choque, segurando o controle remoto com uma força um tanto excessiva. levantou a cabeça, encarando-a:
- É aquela coisa que você faz?
- Sim – limitou-se a responder, com a voz ainda fraca.
- Então você vai, não é?
- Vai aonde? – tinha acabado de aparecer na sala.
- Uma competição de ginástica, mamãe – respondeu. – A mana devia ir, não acha? Ganha até dinheiro!
- Acho que ela deve ir se quiser – respondeu e se virou para a filha. – Você quer?
- E-eu... Eu não sei.
- Bom, só você pode tomar essa decisão, . Pense a respeito. Conversaremos sobre isso se quiser.
- Eu sei que não tenho muita chance – a garota começou -, mas mesmo assim, talvez valha a pena arriscar. É um bom dinheiro. Seria muito bom para nós.
- Quero que pense em você e não no dinheiro ou em nós – a mãe avisou. – Essa decisão não depende de ninguém e nem de nada além de você mesma. Você me disse, aos cinco anos, que um dia seria uma grande ginasta. Sei que nesse meio tempo muitas coisas não saíram como nós gostaríamos ou esperávamos, mas você sabe de seu potencial e de sua dedicação. Sabe também de seus sonhos. São eles que estão em jogo nesse momento, . Pense bem sobre isso. Amanhã, pela manhã, se você quiser, eu lhe levarei até o departamento esportivo da prefeitura para realizar a sua inscrição. Mas, por favor, independentemente de qual for a sua escolha, faça-a por você.
Deu um beijo no topo da cabeça da filha e bagunçou os cabelos do filho antes de voltar a seus afazeres. respirou fundo, tendo a mais absoluta certeza de sua vida: ela não conseguiria dormir naquela noite.
Aquela provavelmente era a caminhada mais longa que ela tinha feito nos últimos tempos. O ginásio público pouco frequentado que encontrara ficava a alguns quilômetros de sua casa. Pelo menos a caminhada era boa para fortalecer a musculatura das pernas. Ou, pelo menos, era nessa ideia que ela preferia se agarrar no momento.
Limpou as gotas de suor que molharam sua testa com as costas da mão e adentrou o local, torcendo para que estivesse vazio. O torneio seria apenas dali alguns meses, mas, se queria mesmo ter alguma chance de ganhar, precisava treinar mais. Mais e melhor.
Aproveitou que tinha a quadra inteira só para si e saiu dando estrelas cruzando-a de uma ponta a outra. Era seu jeito favorito de se aquecer desde que aprendera a fazer aquele movimento. Alongou um pouco o pescoço e as costas e começou a pensar nos exercícios que fazia nas aulas e o que poderia reproduzir ali, mesmo sabendo que não era o solo mais adequado para aquilo.
Tentou se lembrar de sua última sequência no solo e, conforme ia o fazendo, repetia os movimentos que vinham à sua cabeça. Mas alguma coisa não se encaixava; tinha se esquecido de algo no caminho. Concentrou-se, pensou, tentou buscar no seu mais profundo subconsciente...
- É... Moça... – Uma voz desconhecida surgiu. – Perdão por chegar assim, mas você vai precisar sair.
olhou em volta, precisando confirmar que o rapaz estava falando com ela.
- Até onde sei, o uso do ginásio é público.
- Sim, ele é. Mas hoje, especificamente, vai ter jogo daqui algumas horas, então você não pode usar a quadra. De verdade, desculpe-me mesmo por isso, mas se tiver alguém aqui dentro, meu técnico vai me matar. E me colocar no banco para sempre. Não necessariamente nessa ordem.
- Jogo? Bom, eu não tinha ouvido falar sobre isso, do contrário não teria vindo. Eu que peço desculpas. Volto outro dia.
- Obrigado pela compreensão, moça.
- De nada.
estava se preparando para sair do ginásio quando o mesmo rapaz se projetou em sua frente. Só então reparou nele: alto, musculoso, com cabelos escuros espetados e olhos castanho-claros. Ele era digno de um daqueles comerciais sem sentido de calças jeans que insistiam em colocar pessoas seminuas em toda e qualquer publicidade delas.
- Quer uma água? Você parece cansada.
estranhou, mas decidiu aceitar a oferta. Não recusaria água de forma alguma naquele calor absurdo. Muito menos sabendo que teria que repetir a longa caminhada sob o sol forte.
- Obrigada pela água... – travou ao perceber que não fazia ideia do nome do rapaz e também não queria ficar chamando-o de “moço”.
- Ah, é ! Perdão por não ter me apresentado. Eu não costumo ser sem noção assim. Deve ser o nervosismo do jogo.
- – ela se apresentou. – Jogo de quê? Se me permite perguntar, claro.
- Vôlei. Quartas de final do campeonato regional. Pegamos logo o time mais forte de nossa chave. Azar é pouco comparado a isso. – revirou os olhos. – E você? O que veio fazer aqui?
- Treinar um pouco. Vou participar daquele torneio de ginástica.
- Mas você não tem um treinador? Sabe que o chão da quadra é péssimo para isso, não sabe?
- Não, não tenho. E sim, eu sei. Mas não é como se eu realmente tivesse uma opção melhor. É isso ou ralar meus joelhos no asfalto mal feito na rua de casa.
- Acho que eu entendi o problema. Bom, se você puder voltar aqui amanhã perto das duas da tarde, eu acho que posso te ajudar com isso.
- Como assim? Que absurdo! Eu nem te conheço!
- Não estou tentando te assaltar, . Eu estou falando sério. Eu posso te ajudar, ok? Só esteja aqui amanhã nesse horário. Agora, eu preciso ir. E seria bom se você fosse também.
- Tudo bem, não quero te causar problemas. Boa sorte com seu jogo.
- Obrigado! E, por favor, apareça – disse antes de sumir.
, sem opção melhor, resolveu ir embora.
Já eram quinze para as duas da tarde. tinha chegado bem antes e aproveitou seu tempo à toa para treinar. Tinha montado uma série de exercícios mais eficiente e conseguiu repeti-la três vezes. Estava razoavelmente satisfeita com seu desempenho do dia. E um tanto desesperada por ter acreditado em um completo desconhecido. Quão inocente ela era?
Decidiu se alongar mais uma vez, esticando os braços atrás de forma a estalar toda sua coluna, vértebra a vértebra. Soltou um suspiro de satisfação. Aquela sensação esquisita proporcionava imenso alívio. Rodou a cabeça ao redor do pescoço, esticando toda aquela região.
Foi quando se virou para alongar os ombros que viu uma pessoa entrando correndo no ginásio, esfregando os olhos com força.
- Desculpe-me pelo atraso. Tive uma reação alérgica pela manhã e estava esperando que os remédios fizessem efeito suficiente pelo menos para que eu conseguisse enxergar decentemente o caminho até aqui – se explicou.
- Não tem porque pedir desculpas. Mas confesso que achei que você não fosse aparecer. Minha confiança nas pessoas não é das melhores, admito. Além disso, a única coisa que sei sobre você é seu nome - se explicou.
- Sabe meu nome e que eu provavelmente sou a salvação de todos os seus problemas, sem querer ser presunçoso nem nada do tipo.
riu de forma quase irônica.
- E me diga, então – retrucou. – Como pretende fazer isso?
- Bom, senhorita , você não sabe, mas a minha ilustríssima mãe é uma ex-ginasta profissional. Ela chegou inclusive a participar de seletivas para as Olimpíadas de sua época, mas sofreu uma lesão que a tirou do páreo. Depois disso, os patrocinadores encontraram outra queridinha e minha mãe nunca mais conseguiu obter o mesmo sucesso ou reconhecimento. Mas as técnicas estão ali, sabe? Todos os métodos, as coreografias e os detalhes continuam com ela.
- Isso é realmente incrível, . Mas aonde você quer chegar com toda essa história?
- Quero chegar ao ponto em que te digo que ela ainda é uma atleta incrível e seria uma instrutora ainda melhor. Dona Clarice com certeza se sentiria honrada em te ensinar tudo que ela sabe para esse torneio.
A garota precisou parar para absorver toda a informação. Sua mãe sempre disse que as pessoas surgiam em nossas vidas por uma razão especial. Não esperava, no entanto, que aquele rapaz fosse surgir com uma razão em forma de proposta de treinamento com uma ginasta de nível olímpico. Era surreal demais para a menina que treinava com collants emprestados em turmas improvisadas.
- Isso é algum tipo de brincadeira? – Teve que perguntar. – Alguém vai pular dos vestiários com câmeras dizendo que eu caí em algum tipo de pegadinha tosca daqueles programas de auditório?
gargalhou, balançando a cabeça. Soltou um espirro e xingou a “droga da alergia” antes de responder:
- Não é uma piada e nem uma pegadinha da televisão, por mais que eu provavelmente fique maravilhoso em uma tela plana. A proposta é real. Tive a ideia ontem ao ver o seu esforço e sua paixão pelo esporte. É exatamente o tipo de força de vontade que minha mãe tinha e sempre diz que deseja ver nos novos rostos da ginástica. Falei para ela sobre você e ela quer te conhecer.
- Credo, garoto. Nunca te disseram que não se pede para que a garota conheça sua mãe quando você mesmo mal a conhece? Vai ter que me chamar para sair primeiro – zombou.
- Você quer que eu te chame para sair? – perguntou, com a sobrancelha arqueada e os braços cruzados.
- Não, era uma piada. – Ela revirou os olhos. – Agradeço por todo seu esforço em colocar essa sua ideia mirabolante em prática. E aceito. Vou conhecê-la. Quando?
- Agora mesmo – ele respondeu, fazendo com que a garota arregalasse os olhos e sentisse seu coração se arriscar ao tentar acompanhar um ritmo bem mais rápido do que devia.
- por mais que tentasse não demonstrar - estava completamente chocada com o tamanho da casa à sua frente. A fachada tinha vários blocos, num padrão geométrico incorporado pela tinta camurça. Havia um amplo jardim, com arbustos perfeitamente podados, grandes palmeiras e flores coloridas que chamavam a atenção de qualquer um que passasse por ali. A porta de entrada era daquelas que pareciam ter sido planejadas para uma residência de gigantes: enorme e imponente, com um grande puxador em inox polido.
- O carro dela está na garagem – avisou, tirando de sua observação minuciosa. – Venha, vamos entrar.
A garota o seguiu pela porta de gigantes. O interior da casa era tão deslumbrante quanto seu exterior, com uma mobília incrível e uma decoração que parecia ter saído de uma daquelas revistas de design de interiores. Uma coisa era clara: alguém por ali tinha uma grande paixão por orquídeas: os vários cachepôs com flores espalhados pela sala denunciavam isso.
- Mãe? – O rapaz arriscou chamar, aproveitando-se do pé direito duplo do andar para propagar sua voz. – Chegamos.
Com alguns ruídos quase imperceptíveis de passos, Clarice havia aparecido em frente aos dois, com seu cabelo ruivo preso em um rabo de cavalo alto e tênis esportivos nos pés. Era mais simples e muito mais bonita do que esperava, tinha que admitir. Não sabia ao certo a idade da mulher, mas com certeza ela aparentava bem menos.
- Então, essa é a – Clarice disse já puxando a garota para um abraço. – Quando meu filho me disse que você estava treinando sozinha no ginásio, tive certeza de que era a pessoa perfeita para eu realizar meu sonho de poder transmitir para alguém tudo que eu aprendi. Sabe como é? Estou ficando cada vez mais velha e sinto que preciso deixar algo para trás no mundo. Por sorte ou azar, você foi a escolhida. Mas, claro, se não quiser, fique à vontade para dar meia volta sem ressentimentos.
respirou fundo, pensando no tamanho da oportunidade que tinha à sua frente e no desafio que lhe aguardava no torneio. Não conhecia Clarice e não fazia a mínima ideia de como seria um possível relacionamento entre elas. Era um grande risco.
- Estou pronta para aprender, Dona Clarice – ela anunciou, fazendo com que a mulher batesse palmas.
- Ótimo! Ótimo! Mas o primeiro ensinamento é: não me chame de “Dona”. É só Clarice, sim? Vamos ignorar essas rugas faciais e focar na ginástica.
Já fazia um mês que estava treinando com Clarice. Passara a primeira semana apenas assistindo a todos os vídeos de apresentações antigas da mais velha. Mal podia acreditar que não tinha ouvido falar dela antes.
Seu método de ensino era baseado na repetição, até que a jovem aprendesse as técnicas. Mesmo com pouco tempo, sua qualidade de trabalho no solo havia melhorado consideravelmente – palavras da própria Clarice, confirmando o que já tinha percebido.
Tentava ao máximo manter uma alimentação balanceada e passara a caminhar todas as manhãs. Além dos treinos de ginástica artística propriamente, a menina passara a frequentar a academia do condomínio com – ordens estritas da mãe dele -, fazendo com que os dois fossem se aproximando e logo se tornassem aquilo que se podia chamar de “amigos”.
- Ei, anãzinha – chamou-a pelo apelido “carinhoso” que tinha criado. – Tenho jogo hoje às oito da noite lá no ginásio. Gostaria que você fosse. Ah, e leva o . Acho que ele vai gostar.
- Certo. Estaremos lá.
E foram mesmo. estava sentada no meio da arquibancada com , apenas esperando para torcer pelo gigante – apelido dado pelo irmão mais novo, mas que combinava muito com toda a situação.
entrou em quadra acompanhado pelo time de regatas azuis. Acenou para os dois rostos conhecidos assim que os encontrou na pequena torcida que o time local havia conseguido reunir. Resumia-se, basicamente, aos pais e irmãos e algumas meninas que tinham algum interesse em ver homens de regata.
Os irmãos gritaram e pularam, comemorando cada ponto marcado pelos azuis. O jogo acabou com a vitória dos mesmos, de forma que convidou a ambos para tomar um sorvete em uma lanchonete ali perto por sua conta. até tentou desviar da proposta, mas fez sua famosa carinha de cachorrinho que caiu da mudança e acabou convencendo-a a aceitar a oferta. Sabia muito bem que ela não resistia àquele golpe baixo.
Na sorveteria, pediu um sorvete de quatro bolas de morango com chocolate na cestinha. e pegaram casquinhas simples, cientes de que Clarice os mataria se soubesse de algum exagero de açúcar por parte deles em plena quinta-feira.
- Posso fazer uma pergunta? – O garotinho perguntou, com os lábios lambuzados pelo sorvete que derretia. – Para vocês dois.
- Claro, garotão – respondeu. – Pode mandar.
- Vocês dois são namoradinhos?
engasgou com a sua água, enquanto o rapaz gargalhava abertamente com a pergunta. - De onde você tirou uma besteira dessas, ? – A irmã ainda tossia, recuperando-se do susto.
- Ah, é que vocês ficam juntos sempre. Na televisão é sempre assim. As pessoas saem juntas e de repente estão se abraçando. E viram namoradinhas.
- Acho que seu irmão anda vendo televisão demais.
- Concordo. Nós dois teremos uma séria conversa com dona sobre as coisas a que o senhor anda assistindo.
Terminaram os sorvetes e despediram-se, indo cada um para o seu canto.
Em casa, tomou as cápsulas de vitamina que Clarice havia insistido que ela passasse a ingerir. Após engolir os dois comprimidos que a faziam questionar sempre o porquê de remédios serem tão grandes e horríveis de se engolir, sentiu o celular vibrar no bolso, anunciando uma nova mensagem.
“Olá, namoradinha! Como vai a senhorita após essa noite formidável em que o maior jogador de vôlei de todos os tempos se consagrou campeão?”
revirou os olhos com a mensagem, mas acabou sorrindo. Aquele garoto era mesmo muito bobo.
“Eu não vi esse tal maior jogador, mas assisti ao jogo de um amador meia boca por aí.”
“A-HÁ! Muito engraçado, anãzinha! Sei que minha mãe te deu o dia de amanhã de folga, então queria te convidar para passear pela cidade comigo.”
A garota precisou reler a mensagem três vezes antes de realmente absorver o convite. Não estava acostumada com esse tipo de coisa, mas era como eles diziam: eram apenas amigos. Não faria mal algum sair com ele, afinal. E com certeza respirar um pouco fora da ginástica lhe faria bem depois de todo o treinamento dos últimos tempos.
“Desde que você não esteja planejando um sequestro para vender meus órgãos no mercado negro, acho que posso fazer esse sacrifício de passar uma tarde contigo. Felizmente, herdei um pouco da força de vontade de minha mãe.”
“Vou fingir que não sei que você, secretamente, está dando pulinhos de alegria de saber que terá a honra de ver meu lindo rosto por mais tempo do que já é obrigada. Vejo você amanhã, anãzinha. Beijos!”
ainda revirou os olhos mais uma vez antes de bloquear o celular, ainda na conversa com . Vestiu um pijama curto e deixou as janelas do quarto levemente abertas, torcendo para que a brisa noturna fosse gentil em refrescar seu sono naquela noite tão quente. Adormeceu rápida e pesadamente, sequer percebendo quando sua mãe adentrou o cômodo para depositar um beijo em sua testa, fazendo o sinal da cruz sobre o peito logo em seguida.
- Ainda não acredito que você nunca tomou açaí na vida – continuava reclamando desde a hora em que a garota tinha feito a “terrível” revelação. – Sabe que isso é um tipo de atentado à própria existência humana, não sabe?
- Sei que você é incrivelmente dramático, isso sim! Por que se importa tanto com aquela pasta roxa esquisita?
parou de caminhar no mesmo instante, encarando a garota com os olhos arregalados e a mão sobre o peito, de forma afetada.
- Nunca mais chame a fruta dos deuses de pasta roxa esquisita. É uma heresia maior do que o próprio paganismo. Até porque, hoje em dia, açaí é um debate muito mais interessante que doutrinação religiosa. Pelo menos um deles chega a algum lugar: refresca e acaricia meu estômago e, por fim, aquece e alegra meu coração. Se você não gostar, pode me deletar dos seus contatos no Whatsapp e esquecer que um dia fomos amigos.
- Tudo bem, Senhor Dramático – se rendeu quando chegaram a frente do Point do Açaí, completamente decorado em tons de roxo e mesas de fibra com uma música quase praiana. – Vamos acabar logo com isso.
Foram abordados por uma garçonete no mesmo instante em que tinham um dos pés para dentro do estabelecimento. A moça de cabelos cheios de gel e sorriso que quase dava a impressão de ter se congelado na sua face entregou um cardápio de capa de madeira fina para cada um e desatou a falar quais eram as promoções dos dias e os pedidos mais requisitados pelos clientes. Fez um breve discurso sobre as vantagens nutricionais do açaí e outro sobre como todos adoravam um pouco de leite em pó junto à fruta. só conseguia piscar, atordoada por todas as informações que com certeza não havia pedido. riu do semblante da garota assim que a garçonete se afastou para buscar copos com água gelada para ambos.
- Você devia ter visto sua cara! – O garoto não conseguia parar de rir e, sinceramente, também não tinha grandes intenções de fazê-lo.
- Eu juro que não consegui entender sequer metade do que ela disse. Como é possível alguém conseguir falar tão rápido assim? E ainda por cima continuar sorrindo! Nem na escola eu era tão bombardeada com informações desse jeito.
O rapaz pediu duas taças grandes com morangos, leite em pó e leite condensado para eles. Disse que se o decepcionasse detestando aquela divindade, pediria que a garçonete fizesse mais alguns discursos – talvez algo sobre granola ou os famosos “nuts” dessa vez.
olhava a garota fixamente, esperando por qualquer reação assim que experimentasse a primeira colherada daquele tesouro da humanidade. , com as bochechas já ruborizadas, tentou desviar o olhar e focou no doce enorme em sua frente. Encheu uma colher e a colocou na boca, entendendo finalmente porque tanta insistência do garoto – ela faria o mesmo se as posições estivessem invertidas.
- Incrível – respondeu, limpando a boca com um guardanapo logo em seguida. – Tenho que admitir que você tem bom gosto, gigante.
- Eu sei. De nada por mostrar o quanto a sua vida era incompleta sem essas duas coisas incríveis.
- Duas? – perguntou, arqueando as sobrancelhas como se não entendesse o ponto do rapaz sentado à sua frente.
- Claro, oras. O açaí e eu. – piscou, rindo e devorou seu açaí como se sua vida dependesse daquilo.
Agradeceram a garçonete do sorriso quase maníaco e optaram por seguir caminhando até uma trilha que o rapaz dizia conhecer como a palma da própria mão. Usou o fato de que a sombra e a umidade proporcionadas pelas árvores ajudariam com o calor daquela tarde para convencer de segui-lo, por mais insegurança que uma caminhada no desconhecido lhe trouxesse.
Andaram por um tempo considerável, fazendo com que a menina perguntasse constantemente se precisavam mesmo adentrar tanto a mata e alertar sobre os perigos de encontrarem uma cobra ou qualquer outro animal que pudesse atacá-los. O garoto continuava rindo, reafirmando que ia sempre ali e não tinha perigo algum. Além disso, chegariam rápido aonde ele queria e ela perceberia que cada passo tinha valido muito a pena.
O queixo de caiu instantaneamente quando viu a pequena queda d’água à sua frente. Era quase como uma mini cachoeira e ela não conseguia acreditar que nunca tinha ouvido falar de um lugar tão bonito quanto aquele na própria cidade. Talvez tivesse passado muito tempo trancada em sua realidade familiar e doméstica para poder perceber o resto do mundo ao seu redor.
- Eu acho que esse é o lugar mais incrível que eu já vi em toda a minha vida – dizia, ainda embasbacada. – Obrigada por me trazer aqui, gigante. É realmente maravilhoso.
- Vale a pena cada passo e picada de pernilongo no caminho, não vale? – falava orgulhoso. Aquele era o ponto mais especial de toda a cidade para ele. – Venho aqui quando quero pensar em algo, sabe? Quando preciso de um momento de introspecção ou só quero ficar um pouco sozinho, curtindo meu próprio silêncio absoluto. – Observou o fascínio da garota por alguns instantes, encantado com ela. – Vem, vamos entrar na água. Depois de caminhar sob esse sol escaldante, nós merecemos.
se assustou e tentou negar a oferta repetidamente enquanto ele jogava a camisa em cima de uma pedra qualquer e tirava os chinelos, segundos antes de entrar na água, mergulhando até a cascata formada.
- Vem logo, anãzinha. A água está uma delícia. Não vai me fazer sair daqui para te arrastar, vai?
Ela apenas revirou os olhos, deixando os chinelos ao lado dos dele. Não queria nem pensar em como seria ótimo caminhar de volta para casa com a roupa encharcada. Na verdade, naquele momento, não queria pensar em absolutamente nada. Tudo que mais desejava era aproveitar aquilo: rir e se divertir como talvez não fizesse há uma eternidade.
Pôs os pés na água das rasas margens e foi caminhando lentamente, sentindo suas pernas submergirem aos poucos. A sensação era incrível, mesmo que soubesse que qualquer outra pessoa a acharia uma boba por dar tanto valor àquilo. Mergulhara as mãos, brincando um pouco com a água, permitindo que um sorriso involuntário acabasse escapando de seus lábios.
a fitava, assimilando cada detalhe da cena que presenciava. estava resplandecente, como se uma luz a invadisse – provavelmente aquela palavra de dez letras que acaba virando tão batida que às vezes nos esquecemos de seu real e puro significado: felicidade. E talvez fora naquele momento, especificamente, que tudo fez sentido em sua cabeça. Percebera enfim o que a mãe queria dizer quando, no dia anterior, havia o alertado de que ele estava mudado e tinha certeza de que o motivo era sua pequena aprendiz. Não entendia ainda o que era aquilo, mas sabia que queria tê-la por perto. Queria ver aquele sorriso radiante. Queria ser o motivo dele. Queria que ela ganhasse aquela competição. Queria que ela fosse feliz. Queria que fosse ao lado dele.
Tentou afastar aqueles pensamentos de sua cabeça. Não queria parecer o esquisitão que ficava encarando os outros. Mas ainda era o amigo bobo que tinha tamanho suficiente para parecer um tanto desengonçado e, fazendo jus a seu posto, puxou a garota de uma só vez, girando-a entre cócegas. Ela gargalhava entre gritinhos, tentando empurrar em vão os braços dele.
Conversaram, atiraram água um no outro e jogaram conversa fora sem se lembrarem do tempo que passava. Mergulharam e relaxaram com a água caindo em suas costas: o mais próximo de uma massagem que poderiam receber.
- Posso perguntar uma coisa que me deixou curioso desde que te vi naquele ginásio, mas que, por algum motivo, acabei não questionando antes? – falou, fazendo com que a garota franzisse um pouco a testa.
- Claro, mas já vou avisando que não, minha flexibilidade não é suficiente para eu conseguir lamber meu próprio cotovelo.
riu, sem entender muito bem de onde tinha saído aquela observação. Prosseguiu:
- Por que decidiu entrar para esse torneio de ginástica? Não que eu não ache que você tem total capacidade de participar, mas é que pelo que eu entendi você não treinava para isso. Pela forma que você relatou para a minha mãe, pareceu mais uma decisão repentina.
- Bom, minha família não tem a condição financeira mais confortável do mundo. Depois que o nasceu, as coisas ficaram ainda mais delicadas. – respirou fundo, sentindo sobre os ombros o peso de encarar e colocar para fora a realidade. – Meu irmão nasceu com uma má formação cardíaca e isso mudou nossas vidas em vários aspectos. Eu larguei algumas aulas e perdi a frequência dos treinos para levá-lo ao hospital enquanto meus pais trabalhavam. Os remédios são caros e os tratamentos alternativos demandam um esforço extra.
O rapaz ouvia atentamente, sentindo uma vontade absurda de segurar a mão da garota e poder dizer que tudo ficaria bem. Mas não podia. Seu peito apertava de saber que tirá-la daquela dor estava muito além de sua capacidade.
- Entrei no torneio com a intenção de tentar conseguir uma poupança, sabe? Um fundo de reserva para as nossas emergências familiares, especialmente para as questões do . Acontece que a minha vida nesse meio tempo seguiu um caminho um pouco diferente do que esperávamos... Meu irmão vai precisar de uma cirurgia um tanto cara e não tem plano ou governo que cubra os gastos da mesma. Ganhar essa competição, apesar de muitas vezes parecer um sonho tão distante, é praticamente a nossa única opção “simples”.
passou a mão sobre as bochechas, secando algumas lágrimas que decidiram escorrer por sua face sem que ela desse sua permissão. Respirou fundo, tentando se controlar. Passara dias tentando assimilar as notícias dos médicos, mas não tinha ainda se permitido sentir tudo aquilo e parecia que a situação toda agora desaguava em sua cabeça como um tsunami. Tinha que ser forte. Aprendera a ser forte e era assim que continuaria. Por . Por seus pais.
- Vem aqui. – tomou a iniciativa de trazer a garota para si, abraçando-a meio lateralmente e deixando que ela chorasse tudo que precisasse.
- Às vezes – disse, fungando enquanto se afastava do abraço do rapaz –, tudo que eu queria era gritar, sabe? Até sentir meus pulmões querendo estourar. Queria gritar até minha garganta doer e eu ficar completamente rouca. Extravasar.
- Vai em frente, então.
- O quê? – Ela não entendeu.
- Vai lá. Pode gritar. Aproveita que a única pessoa que pode te achar uma maluca aqui por perto sou eu. E sua loucura não é mais uma grande novidade para mim, sabe?
encarou o garoto à sua frente, ainda um tanto incerta sobre aquilo. Mas ele tinha razão e, afinal, ela não tinha absolutamente nada a perder com aquilo. Gritou a plenos pulmões, respirando fundo e expelindo todo o ar que seus pulmões eram capazes de captar. riu e começou a gritar junto com ela, abrindo os braços. Perderam um bom tempo entre gritos e risadas, até sentirem as gargantas começarem a arder pelo esforço.
- Obrigada. – Foi tudo que ela conseguiu dizer, apertando com força a mão dele, apenas para soltá-la praticamente em seguida.
- Eu que agradeço por você ter a péssima ideia de passar a tarde com um cara sem graça como eu. Mas foi bom gritar com você, .
Ela riu alto, prendendo os fios ainda molhados em um coque totalmente bagunçado.
- É bom estar com você, gigante.
E, com o abraço apertado – e relativamente longo - que veio em seguida, sabia que aquelas palavras eram totalmente sinceras e significavam que não tinha mais volta. A ginasta tinha conseguido um lugar fixo em seu coração e não mostrava nem sinais de que pudesse decidir se retirar dali tão cedo.
Faltava pouco mais de um mês para o grande dia. O torneio se aproximava e a agitação já podia começar a ser sentida. tinha decidido assistir a um treino da coreografia final da filha e estava deslumbrada com o que a garota havia alcançado. Clarice cobrava cada dia mais e mais esforço e fazia shakes de suplementos multivitamínicos e proteicos como se fossem um simples suco para o café da tarde. e decidiram juntar a pouca habilidade artística que compartilhavam para arriscar fazer alguns cartazes e faixas para que pudessem torcer por . Ela, por sua vez, estava quase explodindo de ansiedade e nervosismo, levando-a a fazer longos exercícios diários de respiração e algo relativamente próximo de meditação que vira na televisão algumas semanas atrás.
Todo o pânico pelo que estava por vir aumentava só de pensar no que estava prestes a acontecer: a apresentação dos competidores aos organizadores responsáveis pelo torneio. Todos os participantes se reuniriam no local da competição para apresentar suas séries na categoria escolhida: solo, argolas, cavalo, trave ou barras paralelas. Os jurados assistiriam às performances e, por consequência, a concorrência também veria com o que estariam lidando dentro de algumas semanas. Só de pensar em se apresentar para tanta gente, já sentia seu estômago embrulhando.
Clarice avisou no dia anterior que a buscaria às oito da manhã em ponto e, no horário exato, lá estava o carro esportivo buzinando em frente à humilde casa dos .
- Nervosa? – perguntou assim que se acomodou no banco traseiro.
- Mais do que nunca. – Foi a resposta da garota, acompanhada de sua respiração pesada.
- Não fique – Clarice interveio. – Tudo vai correr perfeitamente bem. Nós treinamos muito para isso. É só respirar fundo e fazer o que você faz de melhor, que claramente é ser a melhor ginasta amadora que eu já vi.
- Você sabe que terão garotas com anos de treinamento em academias especializadas e profissionais, Clarice.
- E você, além do dom nato, treinou com uma das maiores promessas da história da ginástica nacional. Academias profissionais especializadas não significam absolutamente nada depois de todo o trabalho que tivemos. Se você continuar se rebaixando desse jeito, eu mesma vou descer desse carro e te dar uns safanões, garota.
riu, jogando as mãos para o alto em sinal de rendição:
- Bom, não está mais aqui quem falou.
Estacionaram o carro no amplo espaço reservado para a competição. O ambiente já estava lotado de homens e mulheres uniformizados andando em grupos – ou melhor, equipes. respirou fundo antes de continuar andando atrás de , que decidiu segurar sua mão para tentar tranquilizá-la. Clarice sorriu de lado ao ver a cena em que os dois se encontravam. Sabia que o filho estava mais envolvido do que provavelmente admitia para si mesmo.
A garota foi levada por uma auxiliar de organização do evento até a tenda de sua categoria no solo. Várias meninas de coques perfeitamente arrumados e uniformes coloridos estavam ali, ao redor de uma loira com os olhos decorados com glitter dourado que falava sem parar, gesticulando abertamente. Todas pareciam rir de absolutamente tudo que ela falava, apesar de ter percebido que, em pelo menos noventa e nove por cento das vezes, aquilo não tinha a menor graça.
Pelo que constava na etiqueta em seu peito, seu nome era Abigail. Estava focada em contar às outras meninas cada detalhe de sua estadia na Suíça para treinar com o instrutor da equipe olímpica, enquanto balançava os brincos de ouro branco e pérolas. Ela própria havia se intitulado como a favorita da categoria e não se importava em tentar mostrar um pingo sequer de humildade e modéstia. só conseguia revirar os olhos para o discurso, enquanto tentava secar as palmas suadas de suas mãos nas próprias pernas ou braços.
Quando anunciaram que começariam a chamar as meninas, se levantou, gritando um “Vai, anãzinha!” e tomando um tapa de sua mãe por isso logo em seguida.
Após um breve alongamento, as apresentações começaram, mostrando o quão forte a concorrência estava. Fora algumas meninas que pareciam mais dançarinas que ginastas, as outras se mostravam muito habilidosas e bem preparadas. A complexidade das coreografias também era impressionante. Clarice, no entanto, continuava impassível, dizendo que elas eram boas, mas era melhor.
Finalmente chegou a vez dela. A música que escolhera para sua série começou a soar pelos alto-falantes e ela respirou fundo, pedindo a Deus que pelo menos não passasse vergonha.
No entanto, a música travou e um barulho esquisito começou a ser ouvido. O jurado que estava coordenando as apresentações pediu que a garota esperasse até que a cabine de áudio tentasse corrigir o problema do som. Ela gelou, sentindo o peso de todos os olhos sobre ela.
- Coitada! Era óbvio que ela ia passar vergonha, mas isso é triste demais. – Ouviu a voz de Abigail, acompanhada de risinhos dela e de algumas meninas que ainda a rodeavam. – Quero dizer, olhem para ela tremendo desse jeito. Claramente não deveria estar aqui.
“Não, isso não. Não de novo.” pensava, lembrando-se do episódio que quase a fizera desistir do esporte aos cinco anos. Queria ignorar, mas nem todo o autocontrole do mundo seria suficiente para isso.
A música não voltou. Infelizmente, o arquivo tinha sido danificado e ela teria que seguir com sua série sem o som. Quase podia sentir o olhar de deboche de Abigail às suas costas, com toda sua falsa piedade.
Fez sua série tentando dar o melhor de si e tudo corria relativamente bem até que, em um dos movimentos, ela acabou caindo sentada de uma vez só. Nem a dor da queda poderia ser pior que as risadas de suas concorrentes ao seu redor.
Levantou o mais rápido que pôde, calçou os chinelos e saiu rapidamente pelos portões do estabelecimento, correndo até o local onde o carro estava estacionado. Sentou-se nos cascalhos da calçada e se permitiu chorar, escondendo o rosto nas mãos. Recusava-se a acreditar que a história estava se repetindo. Queria crer que tudo aquilo era apenas um pesadelo e tudo estaria bem novamente assim que abrisse os olhos. Mas sabia que não era assim que as coisas aconteciam com ela. Não era assim que a vida funcionava.
Sentiu dois braços fortes ao seu redor e a voz de em suas orelhas, pedindo que ela ficasse calma e repetindo que estava tudo bem.
- Olhe para mim – Clarice disse de forma firme, obrigando a enxugar os olhos de qualquer jeito e encará-la. – Não quero ver você chorando. O que aconteceu ali dentro não foi culpa sua. Você é nova nesse tipo de coisa e ainda não sabe lidar muito bem com seu nervosismo. Grande coisa, todos os atletas já passaram por isso. Minhas mãos tremeram antes de todas as minhas provas, não importava o quanto de experiência eu tinha acumulado.
- Eu duvido que as pessoas riam de você, Clarice – respondeu, fungando. – Eu não posso passar por isso de novo. Não sou boa o suficiente, é óbvio. Vou procurar os responsáveis pelo torneio quando meu rosto desinchar e pedir para cancelar minha participação.
Clarice ajoelhou em sua frente, levantando seu rosto pelo queixo até que ela não tivesse alternativa a não ser olhar em seus olhos.
- Somos seres humanos. Somos passíveis de erro e falhamos. Mas você não treinou esse tempo todo para desistir agora. Eu não vou permitir que você volte atrás. Não depois de tudo o que fizemos e construímos. Você vai competir, vai dar seu melhor e vai mostrar para aquelas garotas ridículas e mimadas a que veio. Se você não quer vê-las rindo, seja incrível o suficiente para que elas se arrependam disso. E não tem como fazer isso se desistir.
- Eu não sei se posso fazer isso, Clarice.
- Mas eu sei – a mulher retrucou, abaixando-se até ficar na altura da garota. – Você pode e você vai. Pela sua família, pelo seu irmão, mas principalmente, por você mesma e pela sua paixão pelo esporte. Eu acredito em você, .
- Se serve de alguma coisa, eu também – interveio.
sorriu para ele, recostando-se ao ombro do rapaz novamente e segurando as mãos de sua treinadora.
- Vamos fazer isso – ela anunciou. – Elas vão se arrepender de zombar de mim.
See Me Now
Chovia. Grossos pingos caíam do céu como se alguém lá em cima não estivesse muito feliz. Não havia raio ou trovão, permitindo que ficasse na chuva sem se preocupar com nada além de um possível resfriado. Agradecia seu sistema imunológico pela grande dificuldade que tinha de adquirir alguma doença. Nem se lembrava da última infecção de garganta, enquanto os colegas de sala estavam sempre transferindo bactérias e vírus uns para os outros.
I feel the rain on my skin
(Eu sinto a chuva em minha pele)
Wash away all the pain I was in
(Lavando toda a dor em que eu me encontrava)
Estava se alongando ao ar livre depois de repetir a série da competição por horas. A mãe pedira para que ela pelo menos colocasse um casaco com capuz, mas tudo o que ela queria naquele momento era sentir a água gelada escorrendo pelo rosto e encharcando suas roupas finas.
E então veio o sol, aquecendo sua pele sem afastar as lágrimas celestes. sorriu de uma forma um tanto infantil, percebendo que tudo que conseguia pensar naquele momento era que um lindo arco-íris apareceria para colorir o céu em algum tempo. Naquele momento, não havia dor. Não havia mágoa, decepção ou derrota. Mas tinha um arco-íris e ele era tão lindo.
I see the sun in the sky
(Eu vejo o sol no céu)
No longer know how it feels to cry
(Já não sei mais como é chorar)
- O que você está fazendo? – gritava da porta de casa.
- Vivendo, pequeno. Por nós. Vou ganhar aquele prêmio para a nossa família. Você vai ver – disse, abraçando o garoto que ainda tentou desviar do gesto para não se molhar.
- Eu sei que você vai ganhar, chata. Mas eu não estou muito a fim de me molhar agora. Eu acabei de tomar banho, poxa – ele reclamou, arrancando uma risada da menina. – Você é maluca, . Credo.
*****
O ginásio estava pelo menos umas dez vezes mais cheio do que no dia da apresentação aos jurados. segurou a mão de no exato instante em que percebeu os olhos dela se arregalando ao ver a multidão.
- Vai dar tudo certo, anãzinha – sussurrou ao seu ouvido, recebendo um sorriso nervoso em resposta.
- Espero que sim, gigante.
abraçou a filha com força, juntando todas as suas preces naquele curto espaço de tempo. colocou um pingente do Ben 10 na gola da roupa da irmã, dizendo que era o seu preferido e por isso tinha certeza de que o herói a ajudaria. Clarice relembrou algumas instruções e deu dicas rápidas de como se portar para causar uma boa imagem antes mesmo de começar a apresentação. foi o último a se aproximar, com uma das mãos enfiada no bolso da bermuda e a outra segurando o grande cartaz colorido.
- Vamos torcer muito na arquibancada – começou meio sem jeito. Não tinha lá muita experiência em estar do lado que apoiava. – Bom, sei que todos já disseram isso, mas tenho certeza de que você vai se sair incrivelmente bem. Só nós sabemos o quanto você se empenhou para isso. Seu esforço será recompensado, principalmente com tanto talento.
- Obrigada – respondeu, retorcendo os lábios. – Acho que é aqui que nos separamos.
- Boa sorte, anãzinha. Arrasa.
Ela sorriu, ajeitando o penteado e se certificando que o pingente do irmão estava bem encaixado em sua roupa, em meio a toda a pedraria prateada que Clarice fez questão de escolher.
Encaminhou-se para o local de concentração das ginastas, sentando-se em uma das cadeiras de plástico branco. Tentava ao máximo não focar nas outras garotas, preocupando-se apenas em controlar a própria respiração e se manter tranquila para que tudo desse certo. Não deixaria que o nervosismo a atrapalhasse dessa vez. Aquele era o seu momento e nada mudaria aquilo.
- Ah, meu Deus. – Era a voz de Abigail. – Eu não acredito no que meus olhos estão vendo. Por favor, alguém me diz que essa maluca não está usando um pingente de desenho infantil na roupa de competição dela.
- Sim, a maluca está – respondeu de maneira direta, voltando a olhar para a frente sem esboçar maiores reações. – Não que isso seja da sua conta.
- Quem você pensa que é, garota? Você nem deveria estar aqui. Aliás, acho que você só veio para cair sentada de novo. Foi um grande espetáculo mesmo, mas lugar de palhaço é no circo, querida.
respirou fundo e acabou rindo levemente, ajeitando as mangas de sua roupa.
- Não vim para ser a piada do dia. Sinto muito em te decepcionar. E realmente não me importa o que você diz ou pensa sobre mim. Não preciso da sua opinião e muito menos da sua aprovação. Agora, se não se incomoda, vou voltar a não perder meu tempo com gente desocupada.
And it reallu doesn’t matter. So what? So what?
(E realmente não importa. E daí? E daí?)
That I’ve been hesitating so long, so long
(Que eu tenha hesitado por tanto tempo, por tanto tempo)
As garotas começaram a ser chamadas na ordem dos números de inscrição, o que colocava mais ou menos no meio das apresentações.
As coreografias das outras competidoras estavam incríveis, ela deveria admitir. Por mais que quase todas as garotas até aquele momento tivessem errado algo – ou saindo da demarcação do solo ou não conseguindo cravar perfeitamente os saltos -, as notas provavelmente estavam bem altas.
ouviu seu nome completo ser anunciado e andou com a postura mais ereta que conseguiu até a entrada. Ouviu as vozes da família gritando mensagens de incentivo e tentou controlar o inevitável sorriso ao ver a faixa que o irmão estendera na arquibancada. O pequeno ruído que funcionava como sinal de que soltariam a música foi ouvido. Respirou novamente e começou sua apresentação.
Somebody turn up the lights
(Alguém acenda as luzes)
‘Cause right now must be my time to shine
(Porque agora deve ser a minha hora de brilhar)
Começou com algumas poses, seguidas por acrobacias que iam aumentando o nível de complexidade conforme a coreografia se desenrolava. Deu um salto, dois, três. Cravou todos eles, controlando-se mentalmente para não dar gritinhos de felicidade e perder o andamento da série.
Entre flic-flacs, mortais carpados e alguns passos de dança adaptados, terminou sua série com os braços erguidos, agradecendo em seguida. Aplausos preencheram o ambiente e ela podia ouvir claramente os gritos de comemoração do irmão ao fundo.
Enquanto se dirigia à saída, viu o olhar de reprovação e nojo que Abigail mantinha para ela. Riu, meneando a cabeça. Não se importava mais. Qualquer que fosse o resultado, sabia que tinha feito seu melhor e havia superado seus medos e traumas. Não interessava o quanto as outras pessoas a subestimavam, a garota tinha definitivamente provado que era superior à qualquer pré-julgamento.
They said I couldn’t, they told me that I wouldn’t
(Eles disseram que eu não conseguiria, disseram que eu não faria)
But if they could see me now
(Mas se eles pudessem me ver agora)
They’d see I’m something, that I’m not scared of nothing
(Eles veriam que eu sou alguém, que eu não tenho medo de nada)
And the world will hear me shout
(E o mundo vai me ouvir gritar)
Sentou-se junto às outras participantes que já haviam se apresentado, sendo cumprimentada por algumas e recebendo reviradas de olhos de outras. Sentia a adrenalina ainda correndo por todo seu corpo. Era uma sensação única, como em um misto de satisfação, orgulho e dever cumprido. Seu sonho de criança estava logo ali em sua frente enfim.
Might call me crazy but I’ve been thinking maybe
(Pode me chamar de louca, mas eu estive pensando que talvez)
You would change your mind if you could see me now
(Você mudasse sua mente se pudesse me ver agora)
Aproveitou o tempo de computação das notas e resultados para assistir às apresentações nas barras e nas argolas. Ficava impressionada com a força que aqueles homens tinham ao sustentar seu peso corporal completo apenas com a força dos braços naquelas argolas que a assustavam um bocado. Era lindo, mas bem intimidante.
Naquele momento, sentia-se completa. Sabia que ali era o seu lugar. Desde o fatídico dia em que vira aquela apresentação na televisão, soubera que era para isso que tinha nascido.
Os jurados chamaram todos os participantes para que retornassem a seus postos e se preparassem para receber os resultados finais, bem como as premiações de cada categoria.
e se revezavam entre estender a faixa decorada e revezar o peso entre os pés, tentando não roer as unhas de tanto nervosismo. Clarice estava incrivelmente satisfeita com o desempenho de sua aprendiz, mas só conseguia pensar no quanto queria que ela conseguisse aquele prêmio por saber o quanto era importante para aquele garotinho de sorriso fácil que brincava de lutinha com seu filho e jogava ‘Subway Surfers’ no seu celular. não tinha muita noção do que os outros estavam fazendo à sua volta; estava concentrada no terço de contas entalhadas em madeira enrolado entre seus dedos. , no centro do ginásio, podia praticamente sentir seus batimentos cardíacos na cabeça, ressoando em suas orelhas. Chegara, por fim, o tão esperado momento.
Começaram anunciando as categorias masculinas, o que fez com que todas as meninas bufassem de frustração. Não era justo brincar assim com a ansiedade dos outros. As mãos de todas já estavam ardendo de tantos aplausos mecânicos pelas conquistas de nomes que nunca antes tinham ouvido falar e talvez nunca voltassem a ouvir. Só começaram a prestar atenção verdadeiramente quando anunciaram o início da premiação feminina.
- Primeiramente, gostaríamos de agradecer profundamente a participação de todas vocês – a jurada principal anunciou. – Vocês foram incríveis e mostraram um amor lindo de ver pelo nosso esporte maravilhoso.
A chuva de aplausos foi quase automática, como se estivessem em um daqueles programas de auditório em que as pessoas erguiam placas com dizeres como “risadas”, “palmas”, como se pudessem fazer aquilo soar natural de alguma forma. Com toda a tensão que carregava o ambiente, isso era quase impossível.
Começaram a anunciar os três primeiros lugares de cada categoria, deixando o solo por último por ser a prova de maior procura das participantes. lamentava não ter escolhido algo menos disputado para poder receber sua resposta logo.
- Anunciaremos agora as três primeiras colocadas no solo.
Algumas meninas deram as mãos entre si, deixando os dedos das outras brancos e implorando para poder receber sua circulação sanguínea normal de volta. Outras cruzavam os próprios dedos ou escondiam o rosto, tentando parar de tremer.
- Em terceiro lugar – o jurado mais velho assumiu o microfone -, Liana Capelato.
Uma garota ruiva muito sorridente subiu ao pódio, recebendo uma medalha de bronze e os cumprimentos dos jurados, além dos aplausos dos demais participantes e torcida.
- Em segundo lugar, .
Os aplausos começaram imediatamente, mas nada conseguiu ouvir. Parecia que o mundo ao seu redor tinha sido congelado e estava distante demais enquanto ela caminhava até o patamar com um gigantesco número dois no pódio. Tentava focar em sua superação, mas não conseguia disfarçar a decepção de não levar o prêmio. Forçou um sorriso quando recebeu a medalha de prata em seu pescoço e agradeceu a jurada. Segurou o choro quando viu o pingente do Ben 10 perto daquele metal cinzento, lembrando-a de que não conseguira.
- E, nossa grande campeã – o senhor voltou a anunciar – Abigail Reis.
Foram gritos para todos os lados em meio à falsa demonstração de surpresa de Abigail ao receber a medalha de ouro e um daqueles cheques simbólicos enormes que não representavam lá muita coisa, mas saíam bem na foto.
Pediram que as três se aproximassem e sorrissem para uma foto juntas.
- Parabéns, querida – Abigail disse para , com aquele sorriso que parecia ter sido colado em seu rosto. – Pelo menos você conseguiu parecer menos fracassada dessa vez.
Antes que pudesse responder, uma movimentação estranha entre os jurados acabou chamando sua atenção e desviando seu olhar. Havia um rapaz esguio de óculos com lentes grossas entre eles que não estava ali antes.
- Um momento, por favor – o mais velho se pronunciou, fazendo com que um burburinho se instalasse no local ao passo que todos tentavam entender o que poderia estar havendo ali.
O coração de que antes parecia ter se tornado um nó apertado, tinha voltado a bater acelerado, quase como um último suspiro de esperança.
- É com muita tristeza que anunciamos isso – o homem retornou ao microfone, fazendo com que todos prestassem atenção -, mas precisaremos fazer uma alteração nas premiações.
Todos se encararam chocados, sem entender muito. voltou a apertar o terço, passando um braço pelos ombros do filho.
- Acho que eles erraram sua classificação, querida – Abigail falou. – Estava achando estranha mesmo essa coisa toda de segunda colocada.
- Será que você pode fechar essa boca, garota? – estava tão nervosa que nem toda a educação do mundo seria capaz de impedir que ela desse aquela resposta.
- Infelizmente, seguindo as regras estabelecidas no manual liberado no dia de lançamento do torneio, somos obrigados a desclassificar Abigail Reis por uso de medicamentos proibidos para aumentar seu rendimento. Os exames são claros. Com isso, anunciamos Eva Vieira como nova terceira colocada, Liana se torna a segunda e é a nossa nova campeã.
- Mas isso é um absurdo! – Abigail gritava a plenos pulmões, enfiando o longo indicador na cara de todos por ali. – Vocês estão me prejudicando com essas mentiras! Onde já se viu? Eu não preciso de medicamentos para ganhar dessa morta de fome. Vocês estão fazendo isso por pena da pobre coitada!
A jurada principal chamou os seguranças do evento, que levaram Abigail pelos braços enquanto ela ainda se debatia. Em meio a todo o caos, ainda não tinha conseguido parar para assimilar a informação. Os vinte mil reais eram dela e pagariam a cirurgia do irmão. Respirou fundo, sentindo as lágrimas brotarem pelos olhos, enquanto beijava a nova medalha em seu pescoço. Dourado combinava bem mais com ela.
Agradeceu os jurados e tirou novas fotos, agora com a maquiagem à prova d’água tendo que provar toda sua eficiência em meio a tantas lágrimas. Recebeu os parabéns de várias participantes e, conforme a multidão foi diminuindo e as pessoas começaram a deixar o local, foi atrás de seus chinelos que haviam ficado para trás, esquecidos debaixo de alguma daquelas cadeiras de plástico. Quando estava prestes a abaixar para pegar o calçado, sentiu seu corpo ser levantado bruscamente do chão e girado no ar logo em seguida, fazendo com que ela soltasse um gritinho de susto.
- Socorro! Você quer me matar de susto, garoto? – reclamou, fazendo rir.
- Você foi tão incrível, meu Deus. Eu estou tão feliz que eu até podia te beijar agora.
Os dois pararam de rir quando se deram conta das palavras que tinham acabado de pousar sobre eles.
- Filha! – apareceu com , ambos gritando e correndo, tirando os dois jovens daquele momento. – Meu amor, eu estou tão orgulhosa de você que mal cabe no peito. Sabia que realizaria seu sonho, minha ginasta. Sempre soube que você conseguiria.
sorriu de lado, sentindo as lágrimas voltarem enquanto abraçava a mãe, agradecendo por tudo o que ela tinha feito desde que tinha lhe dado à luz. Não sabia o que seria dela sem uma mulher incrível e forte como aquela que a parabenizava.
Clarice abraçou sua aprendiz, expressando todo o orgulho e reiterando o quanto a garota era incrível.
- Com licença – um homem alto e bem vestido interrompeu a comemoração um tanto escandalosa do grupo. – Você é , certo? Sou Carlos Goes, responsável pelos novos talentos da Equipe Nacional de Ginástica Artística, e gostaria de te convidar para conhecer nosso time, nossos profissionais e, se gostar, talvez possa entrar para o grupo.
A garota arregalou os olhos, torcendo para que aquilo não fosse coisa da sua cabeça. Não poderia estar sonhando. Aquilo era grande, maior que tudo que ela poderia imaginar em seus sonhos mais loucos.
- Claro, senhor. Vou adorar.
O homem passou todas as informações básicas para ela, entregando aos presentes um cartão com seu contato como garantia de que estava disponível para eles.
, por sua vez, não conseguia parar de sorrir vendo tudo que conquistara naquele dia. Tudo parecia estar finalmente se encaixando em sua vida.
Por fim, só conseguia pensar em todas aquelas pessoas que a ignoraram e esnobaram sua força por tanto tempo. Elas disseram que ela nunca conseguiria. O que diriam se pudessem vê-la agora?
I feel the rain on my skin
(Eu sinto a chuva em minha pele)
Wash away all the pain I was in
(Lavando toda a dor em que eu me encontrava)
Estava se alongando ao ar livre depois de repetir a série da competição por horas. A mãe pedira para que ela pelo menos colocasse um casaco com capuz, mas tudo o que ela queria naquele momento era sentir a água gelada escorrendo pelo rosto e encharcando suas roupas finas.
E então veio o sol, aquecendo sua pele sem afastar as lágrimas celestes. sorriu de uma forma um tanto infantil, percebendo que tudo que conseguia pensar naquele momento era que um lindo arco-íris apareceria para colorir o céu em algum tempo. Naquele momento, não havia dor. Não havia mágoa, decepção ou derrota. Mas tinha um arco-íris e ele era tão lindo.
I see the sun in the sky
(Eu vejo o sol no céu)
No longer know how it feels to cry
(Já não sei mais como é chorar)
- O que você está fazendo? – gritava da porta de casa.
- Vivendo, pequeno. Por nós. Vou ganhar aquele prêmio para a nossa família. Você vai ver – disse, abraçando o garoto que ainda tentou desviar do gesto para não se molhar.
- Eu sei que você vai ganhar, chata. Mas eu não estou muito a fim de me molhar agora. Eu acabei de tomar banho, poxa – ele reclamou, arrancando uma risada da menina. – Você é maluca, . Credo.
O ginásio estava pelo menos umas dez vezes mais cheio do que no dia da apresentação aos jurados. segurou a mão de no exato instante em que percebeu os olhos dela se arregalando ao ver a multidão.
- Vai dar tudo certo, anãzinha – sussurrou ao seu ouvido, recebendo um sorriso nervoso em resposta.
- Espero que sim, gigante.
abraçou a filha com força, juntando todas as suas preces naquele curto espaço de tempo. colocou um pingente do Ben 10 na gola da roupa da irmã, dizendo que era o seu preferido e por isso tinha certeza de que o herói a ajudaria. Clarice relembrou algumas instruções e deu dicas rápidas de como se portar para causar uma boa imagem antes mesmo de começar a apresentação. foi o último a se aproximar, com uma das mãos enfiada no bolso da bermuda e a outra segurando o grande cartaz colorido.
- Vamos torcer muito na arquibancada – começou meio sem jeito. Não tinha lá muita experiência em estar do lado que apoiava. – Bom, sei que todos já disseram isso, mas tenho certeza de que você vai se sair incrivelmente bem. Só nós sabemos o quanto você se empenhou para isso. Seu esforço será recompensado, principalmente com tanto talento.
- Obrigada – respondeu, retorcendo os lábios. – Acho que é aqui que nos separamos.
- Boa sorte, anãzinha. Arrasa.
Ela sorriu, ajeitando o penteado e se certificando que o pingente do irmão estava bem encaixado em sua roupa, em meio a toda a pedraria prateada que Clarice fez questão de escolher.
Encaminhou-se para o local de concentração das ginastas, sentando-se em uma das cadeiras de plástico branco. Tentava ao máximo não focar nas outras garotas, preocupando-se apenas em controlar a própria respiração e se manter tranquila para que tudo desse certo. Não deixaria que o nervosismo a atrapalhasse dessa vez. Aquele era o seu momento e nada mudaria aquilo.
- Ah, meu Deus. – Era a voz de Abigail. – Eu não acredito no que meus olhos estão vendo. Por favor, alguém me diz que essa maluca não está usando um pingente de desenho infantil na roupa de competição dela.
- Sim, a maluca está – respondeu de maneira direta, voltando a olhar para a frente sem esboçar maiores reações. – Não que isso seja da sua conta.
- Quem você pensa que é, garota? Você nem deveria estar aqui. Aliás, acho que você só veio para cair sentada de novo. Foi um grande espetáculo mesmo, mas lugar de palhaço é no circo, querida.
respirou fundo e acabou rindo levemente, ajeitando as mangas de sua roupa.
- Não vim para ser a piada do dia. Sinto muito em te decepcionar. E realmente não me importa o que você diz ou pensa sobre mim. Não preciso da sua opinião e muito menos da sua aprovação. Agora, se não se incomoda, vou voltar a não perder meu tempo com gente desocupada.
And it reallu doesn’t matter. So what? So what?
(E realmente não importa. E daí? E daí?)
That I’ve been hesitating so long, so long
(Que eu tenha hesitado por tanto tempo, por tanto tempo)
As garotas começaram a ser chamadas na ordem dos números de inscrição, o que colocava mais ou menos no meio das apresentações.
As coreografias das outras competidoras estavam incríveis, ela deveria admitir. Por mais que quase todas as garotas até aquele momento tivessem errado algo – ou saindo da demarcação do solo ou não conseguindo cravar perfeitamente os saltos -, as notas provavelmente estavam bem altas.
ouviu seu nome completo ser anunciado e andou com a postura mais ereta que conseguiu até a entrada. Ouviu as vozes da família gritando mensagens de incentivo e tentou controlar o inevitável sorriso ao ver a faixa que o irmão estendera na arquibancada. O pequeno ruído que funcionava como sinal de que soltariam a música foi ouvido. Respirou novamente e começou sua apresentação.
Somebody turn up the lights
(Alguém acenda as luzes)
‘Cause right now must be my time to shine
(Porque agora deve ser a minha hora de brilhar)
Começou com algumas poses, seguidas por acrobacias que iam aumentando o nível de complexidade conforme a coreografia se desenrolava. Deu um salto, dois, três. Cravou todos eles, controlando-se mentalmente para não dar gritinhos de felicidade e perder o andamento da série.
Entre flic-flacs, mortais carpados e alguns passos de dança adaptados, terminou sua série com os braços erguidos, agradecendo em seguida. Aplausos preencheram o ambiente e ela podia ouvir claramente os gritos de comemoração do irmão ao fundo.
Enquanto se dirigia à saída, viu o olhar de reprovação e nojo que Abigail mantinha para ela. Riu, meneando a cabeça. Não se importava mais. Qualquer que fosse o resultado, sabia que tinha feito seu melhor e havia superado seus medos e traumas. Não interessava o quanto as outras pessoas a subestimavam, a garota tinha definitivamente provado que era superior à qualquer pré-julgamento.
They said I couldn’t, they told me that I wouldn’t
(Eles disseram que eu não conseguiria, disseram que eu não faria)
But if they could see me now
(Mas se eles pudessem me ver agora)
They’d see I’m something, that I’m not scared of nothing
(Eles veriam que eu sou alguém, que eu não tenho medo de nada)
And the world will hear me shout
(E o mundo vai me ouvir gritar)
Sentou-se junto às outras participantes que já haviam se apresentado, sendo cumprimentada por algumas e recebendo reviradas de olhos de outras. Sentia a adrenalina ainda correndo por todo seu corpo. Era uma sensação única, como em um misto de satisfação, orgulho e dever cumprido. Seu sonho de criança estava logo ali em sua frente enfim.
Might call me crazy but I’ve been thinking maybe
(Pode me chamar de louca, mas eu estive pensando que talvez)
You would change your mind if you could see me now
(Você mudasse sua mente se pudesse me ver agora)
Aproveitou o tempo de computação das notas e resultados para assistir às apresentações nas barras e nas argolas. Ficava impressionada com a força que aqueles homens tinham ao sustentar seu peso corporal completo apenas com a força dos braços naquelas argolas que a assustavam um bocado. Era lindo, mas bem intimidante.
Naquele momento, sentia-se completa. Sabia que ali era o seu lugar. Desde o fatídico dia em que vira aquela apresentação na televisão, soubera que era para isso que tinha nascido.
Os jurados chamaram todos os participantes para que retornassem a seus postos e se preparassem para receber os resultados finais, bem como as premiações de cada categoria.
e se revezavam entre estender a faixa decorada e revezar o peso entre os pés, tentando não roer as unhas de tanto nervosismo. Clarice estava incrivelmente satisfeita com o desempenho de sua aprendiz, mas só conseguia pensar no quanto queria que ela conseguisse aquele prêmio por saber o quanto era importante para aquele garotinho de sorriso fácil que brincava de lutinha com seu filho e jogava ‘Subway Surfers’ no seu celular. não tinha muita noção do que os outros estavam fazendo à sua volta; estava concentrada no terço de contas entalhadas em madeira enrolado entre seus dedos. , no centro do ginásio, podia praticamente sentir seus batimentos cardíacos na cabeça, ressoando em suas orelhas. Chegara, por fim, o tão esperado momento.
Começaram anunciando as categorias masculinas, o que fez com que todas as meninas bufassem de frustração. Não era justo brincar assim com a ansiedade dos outros. As mãos de todas já estavam ardendo de tantos aplausos mecânicos pelas conquistas de nomes que nunca antes tinham ouvido falar e talvez nunca voltassem a ouvir. Só começaram a prestar atenção verdadeiramente quando anunciaram o início da premiação feminina.
- Primeiramente, gostaríamos de agradecer profundamente a participação de todas vocês – a jurada principal anunciou. – Vocês foram incríveis e mostraram um amor lindo de ver pelo nosso esporte maravilhoso.
A chuva de aplausos foi quase automática, como se estivessem em um daqueles programas de auditório em que as pessoas erguiam placas com dizeres como “risadas”, “palmas”, como se pudessem fazer aquilo soar natural de alguma forma. Com toda a tensão que carregava o ambiente, isso era quase impossível.
Começaram a anunciar os três primeiros lugares de cada categoria, deixando o solo por último por ser a prova de maior procura das participantes. lamentava não ter escolhido algo menos disputado para poder receber sua resposta logo.
- Anunciaremos agora as três primeiras colocadas no solo.
Algumas meninas deram as mãos entre si, deixando os dedos das outras brancos e implorando para poder receber sua circulação sanguínea normal de volta. Outras cruzavam os próprios dedos ou escondiam o rosto, tentando parar de tremer.
- Em terceiro lugar – o jurado mais velho assumiu o microfone -, Liana Capelato.
Uma garota ruiva muito sorridente subiu ao pódio, recebendo uma medalha de bronze e os cumprimentos dos jurados, além dos aplausos dos demais participantes e torcida.
- Em segundo lugar, .
Os aplausos começaram imediatamente, mas nada conseguiu ouvir. Parecia que o mundo ao seu redor tinha sido congelado e estava distante demais enquanto ela caminhava até o patamar com um gigantesco número dois no pódio. Tentava focar em sua superação, mas não conseguia disfarçar a decepção de não levar o prêmio. Forçou um sorriso quando recebeu a medalha de prata em seu pescoço e agradeceu a jurada. Segurou o choro quando viu o pingente do Ben 10 perto daquele metal cinzento, lembrando-a de que não conseguira.
- E, nossa grande campeã – o senhor voltou a anunciar – Abigail Reis.
Foram gritos para todos os lados em meio à falsa demonstração de surpresa de Abigail ao receber a medalha de ouro e um daqueles cheques simbólicos enormes que não representavam lá muita coisa, mas saíam bem na foto.
Pediram que as três se aproximassem e sorrissem para uma foto juntas.
- Parabéns, querida – Abigail disse para , com aquele sorriso que parecia ter sido colado em seu rosto. – Pelo menos você conseguiu parecer menos fracassada dessa vez.
Antes que pudesse responder, uma movimentação estranha entre os jurados acabou chamando sua atenção e desviando seu olhar. Havia um rapaz esguio de óculos com lentes grossas entre eles que não estava ali antes.
- Um momento, por favor – o mais velho se pronunciou, fazendo com que um burburinho se instalasse no local ao passo que todos tentavam entender o que poderia estar havendo ali.
O coração de que antes parecia ter se tornado um nó apertado, tinha voltado a bater acelerado, quase como um último suspiro de esperança.
- É com muita tristeza que anunciamos isso – o homem retornou ao microfone, fazendo com que todos prestassem atenção -, mas precisaremos fazer uma alteração nas premiações.
Todos se encararam chocados, sem entender muito. voltou a apertar o terço, passando um braço pelos ombros do filho.
- Acho que eles erraram sua classificação, querida – Abigail falou. – Estava achando estranha mesmo essa coisa toda de segunda colocada.
- Será que você pode fechar essa boca, garota? – estava tão nervosa que nem toda a educação do mundo seria capaz de impedir que ela desse aquela resposta.
- Infelizmente, seguindo as regras estabelecidas no manual liberado no dia de lançamento do torneio, somos obrigados a desclassificar Abigail Reis por uso de medicamentos proibidos para aumentar seu rendimento. Os exames são claros. Com isso, anunciamos Eva Vieira como nova terceira colocada, Liana se torna a segunda e é a nossa nova campeã.
- Mas isso é um absurdo! – Abigail gritava a plenos pulmões, enfiando o longo indicador na cara de todos por ali. – Vocês estão me prejudicando com essas mentiras! Onde já se viu? Eu não preciso de medicamentos para ganhar dessa morta de fome. Vocês estão fazendo isso por pena da pobre coitada!
A jurada principal chamou os seguranças do evento, que levaram Abigail pelos braços enquanto ela ainda se debatia. Em meio a todo o caos, ainda não tinha conseguido parar para assimilar a informação. Os vinte mil reais eram dela e pagariam a cirurgia do irmão. Respirou fundo, sentindo as lágrimas brotarem pelos olhos, enquanto beijava a nova medalha em seu pescoço. Dourado combinava bem mais com ela.
Agradeceu os jurados e tirou novas fotos, agora com a maquiagem à prova d’água tendo que provar toda sua eficiência em meio a tantas lágrimas. Recebeu os parabéns de várias participantes e, conforme a multidão foi diminuindo e as pessoas começaram a deixar o local, foi atrás de seus chinelos que haviam ficado para trás, esquecidos debaixo de alguma daquelas cadeiras de plástico. Quando estava prestes a abaixar para pegar o calçado, sentiu seu corpo ser levantado bruscamente do chão e girado no ar logo em seguida, fazendo com que ela soltasse um gritinho de susto.
- Socorro! Você quer me matar de susto, garoto? – reclamou, fazendo rir.
- Você foi tão incrível, meu Deus. Eu estou tão feliz que eu até podia te beijar agora.
Os dois pararam de rir quando se deram conta das palavras que tinham acabado de pousar sobre eles.
- Filha! – apareceu com , ambos gritando e correndo, tirando os dois jovens daquele momento. – Meu amor, eu estou tão orgulhosa de você que mal cabe no peito. Sabia que realizaria seu sonho, minha ginasta. Sempre soube que você conseguiria.
sorriu de lado, sentindo as lágrimas voltarem enquanto abraçava a mãe, agradecendo por tudo o que ela tinha feito desde que tinha lhe dado à luz. Não sabia o que seria dela sem uma mulher incrível e forte como aquela que a parabenizava.
Clarice abraçou sua aprendiz, expressando todo o orgulho e reiterando o quanto a garota era incrível.
- Com licença – um homem alto e bem vestido interrompeu a comemoração um tanto escandalosa do grupo. – Você é , certo? Sou Carlos Goes, responsável pelos novos talentos da Equipe Nacional de Ginástica Artística, e gostaria de te convidar para conhecer nosso time, nossos profissionais e, se gostar, talvez possa entrar para o grupo.
A garota arregalou os olhos, torcendo para que aquilo não fosse coisa da sua cabeça. Não poderia estar sonhando. Aquilo era grande, maior que tudo que ela poderia imaginar em seus sonhos mais loucos.
- Claro, senhor. Vou adorar.
O homem passou todas as informações básicas para ela, entregando aos presentes um cartão com seu contato como garantia de que estava disponível para eles.
, por sua vez, não conseguia parar de sorrir vendo tudo que conquistara naquele dia. Tudo parecia estar finalmente se encaixando em sua vida.
Por fim, só conseguia pensar em todas aquelas pessoas que a ignoraram e esnobaram sua força por tanto tempo. Elas disseram que ela nunca conseguiria. O que diriam se pudessem vê-la agora?
Fim
Nota da autora: Cá estou eu, então, com mais um ficstape para vocês. Espero que tenham gostado da história e, por favor, digam o que acharam aqui nos comentários.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo.
Outras Fanfics:
04. Someone New - Ficstape Hozier
06. If I Could Fly
4th of the July - Outros/Em Andamento
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