Capítulo Único
Segunda-feira, 15 de outubro.
Às 8:45h de uma segunda-feira, eu jurava que teria sangue frio suficiente para me deparar com aquele olhar novamente, , frios, firmes, desafiadores. Ele estava parado na porta do mesmo endereço escrito nas minhas anotações, despretensiosamente descalço, vestido de jeans e moletom. Uma rua comum, em um bairro de subúrbio normal, na casa 12B.
— Pois não?
Okay, ele falou comigo. E naquele momento, perdida entre segurar o guarda-chuva que tombava na direção do vento para tentar me proteger da chuva fina insistente que caía desde ontem e equilibrar papéis com o elegante timbre da empresa, eu decidi fingir costume. Aquele era meu cliente e nada além disso. Por mais que os flashes insistissem em surgir toda vez que eu piscava os olhos, ao examinar aquele homem dos pés à cabeça eu não reconhecia o mesmo rapaz de três anos atrás. Eu estava em frente a uma pessoa diferente, embora o modo desafiador de manter o queixo erguido e a cabeça levemente inclinada fosse o mesmo.
— Não vai falar nada? Você devia sair correndo depois de tocar a campainha, então. - ele disse, dando um passo para trás, voltando para dentro de casa.
Se aquela porta fosse fechada, eu perderia totalmente a coragem e ligaria para meu chefe jurando de pés juntos que não tive como chegar até o endereço do cliente. Vale dizer que fui atropelada por um turista desavisado e acabei caindo em um bueiro? Londres tem suas vantagens, turistas perdidos são frequentes; bueiros abertos, nem tanto. Deixa para lá, respira fundo.
— Senhor , bom dia. Sou , representante da Smith & Lynch Advogados. Estou aqui para tratar do processo movido contra a Mont Blanc Records. - prendi os documentos debaixo do mesmo braço que segurava o guarda-chuva e estendi a mão para que ele apertasse.
Por favor, papelada, não caia.
Ele segurou minha mão e devolveu o cumprimento. O toque gelado era o mesmo, dedos tão frios que faziam a chuva parecer agradavelmente morna. Um metro era toda a distância que nos separava, nossas palmas continuaram em contato pelo que pareceu uma pequena eternidade. O mundo girou rápido demais, o ar faltou em meus pulmões por frações de segundo. Uma descarga elétrica subiu pelo meu braço.
Por favor, , não caia.
— Você é pontual. Entre. - afastou o corpo, dando-me passagem. - Deixe o guarda-chuva aí fora.
Era uma casa pequena, porém gigante perto do minúsculo apartamento que ele costumava chamar de lar anos antes, onde eu havia conhecido o que achava ser muito sobre a vida de . Agora desconfio que mal fui apresentada ao próprio. Retirei os sapatos no hall como ele gostava que fosse feito, seguindo-o até a sala com os pés cobertos apenas pela meia-calça, caminhando sobre o carpete felpudo para dar de cara com pilhas e pilhas de folhas de papel rasgadas ao lado da mesa de centro. Permaneci parada, fazendo uso de toda minha educação enquanto esperava que ele me autorizasse ocupar um dos assentos dos sofás.
— Sente-se, garota. Você nunca fez o tipo rogada.
— Garota… - repeti baixinho. Não esperava que ele fosse se referir a mim de forma tão pessoal assim. Não depois de tudo que aconteceu. Se a intenção era deixar-me desconfortável, conseguiu.
— Prefere “senhorita ”? - ergueu a sobrancelha - Erro meu, suponho que devemos manter o profissionalismo por aqui. Então vamos recomeçar e eu entro nessa sua ceninha onde você é a advogada fodona e eu sou o cliente fodido.
— Não há necessidade disso tudo, , por favor. - observei ele se sentar em frente a mim, cruzar as pernas esguias e me olhar atentamente, deleitando-se com o rubor que tomava minhas bochechas - Você tem estado na TV ultimamente, sua música toca em todas as estações de rádio, é bastante inoportuno que isso tenha se dado de forma tão difícil por trás das câmeras.
— E seu chefe sabe dos acontecimentos prévios? Se ele sabe e mesmo assim te mandou aqui, que grande sacana ele é.
— Preferi não entrar em detalhes com o Sr. Smith, não vem ao caso e tampouco interferirá no meu trabalho aqui. Ele tem conhecimento do que me trouxe aqui. - tamborilei as unhas sobre a pasta de documentos em meu colo.
Uma gargalhada cortou o ar, um riso repleto de ironia.
— , você tem noção que estou movendo um processo contra ? - seus olhos quase lacrimejavam de tamanho… Deleite? Não é possível que ele pudesse encontrar algum tipo de prazer nessa situação. - Esse desgraçado levou tudo de mim, invadiu minha casa, roubou minhas músicas e isso não vai interferir no seu trabalho? Meus parabéns, seu sangue frio é notável.
De repente, se levantou em direção à cozinha, se serviu de uma xícara de uma bebida fumegante e me deu uma outra idêntica. Pelo cheiro, reconheci do que se tratava.
— Chá preto. Você ainda mantém o velho preso no seu porão. - comentei, um sorriso tímido tentou surgir em meu rosto - não será um problema, vamos mover a ação e a causa será ganha, você foi claramente prejudicado. Para isso, preciso que me conte com detalhes como tudo aconteceu e me ponha a da ocorrência.
— Ah é, esqueci que você precisa ser atualizada porque foi embora viver sua vida na primeira oportunidade e me considerou morto. Agora você aparece na minha porta, toda cheia de si, fingindo que não me conhece, fingindo que não sumiu no mundo sem ter dito nada!
— Eu não tive escolha, era a oportunidade de me manter viva! Se minha família soubesse que eu mantinha contato com você, estaria tudo acabado para nós dois. Qualquer passo em falso seria imperdoável.
— Tudo bem, . Não é da minha conta o que se passa com você, sua presença aqui é temporária. Como tudo aconteceu, você quer saber? Primeiro, eu acreditei que você era minha amiga, minha única amiga, e estava disposta a me ajudar. Venci aquele concurso, a gravadora do seu padrasto me contratou, me fez trabalhar que nem um condenado por três anos sem receber nem metade do que eu tinha direito, me botou no olho da rua sem motivo algum quando eu finalmente reclamei e olha que engraçado: lançou a carreira do seu meio-irmão com as músicas que eu tinha composto pro meu álbum assim que botei os pés fora de lá.
Enquanto falava, eu fazia anotações rápidas. Meu coração estava tão apertado… Eu deveria ter feito mais por ele.
— Encontrei outra gravadora rápido, levei tudo de inédito que tinha produzido em rascunho para eles e adivinha só! tinha registrado todas as letras no nome dele no mesmo dia que me chutaram da Mont Blanc.
— Sinto muito, . - disse baixinho.
— Sente muito? Vá à merda! Eu perdi tudo, todas as músicas que gravei, todo o meu trabalho, ! Eu não tenho nada, você consegue entender? Nem essa casa é minha, tudo está no nome deles. Vivo sozinho desde os 16 anos, lutei esse tempo todo, dia e noite vivendo de migalhas e continuo não tendo nada, nem para onde ir.
Me levantei e permiti-me caminhar pelo cômodo, delineando em minha mente os detalhes da cena que sabia vir a seguir. Apesar de pedir que o cliente dê sua versão dos fatos, é dever de um bom advogado levantar as circunstâncias do caso. Na quina da moldura da lareira havia um filete de sangue seco. Tão discreto que passaria despercebido para quem não soubesse o que procurar.
— Foi aqui que ele bateu sua cabeça, né? - sabia que a resposta não viria, por isso prossegui - Reparei o corte na sua testa, por mais que o cabelo esconda. Sabe se ele fazia uso de drogas, como... Cocaína? foi visto em companhias suspeitas.
— Sei lá, fico longe desse tipo de coisa, até evito pensar sobre. Passei o dia fora, quando cheguei a porta estava aberta, tudo revirado, tinha vômito no tapete. Pensei que fosse o filho da puta do vizinho, não seria a primeira vez que ele invade minha casa caindo de bêbado achando que é a casa dele. Quando cheguei no quarto, estava mexendo nas gavetas. Nós brigamos, porrada mesmo. Ele estava fora de si, olhos esbugalhados, todo amassado, um demônio. Ele correu pra fora do quarto, achei que pudesse ir pegar uma faca, alguma coisa assim, então fui atrás e consegui mantê-lo imobilizado no chão da sala. Soquei tanto aquela cara nojenta dele… - uma vez mais, o deleite tomava conta de sua voz - Enfim, ele tinha um canivete em algum lugar e me furou, tentou me jogar de cara na lareira, mas estava apagada, então achou uma boa meter minha cabeça na moldura até que eu desmaiasse.
— Como você está agora? - questionei-o preocupada, aproximando-me dele.
— Vivo, não tá vendo?
— Me mostra onde o canivete entrou.
ergueu o moletom e a camisa, expondo o corte ainda vermelho vivo na cintura. Não era irrelevante como ele fazia parecer. Era mais que um furo, era um corte de cerca de cinco centímetros e bastante fundo. Passei os dedos levemente ao redor do ferimento, sentindo a pele enrubescida levemente quente pela inflamação. Permiti que o toque se estendesse alguns centímetros acima para fazer a eletricidade correr de novo pelo meu corpo ao encontrar a tez gelada. Guilty pleasure.
— Você devia ir ao hospital para darem pontos nisso. Não é porque viveu anos por conta própria, arrumando briga por aí, que vai estar isento de arranjar uma infecção nesse machucado. - ergui o rosto procurando seus olhos. Será que ele sabia o quanto era capaz de mexer comigo?
— Não quero ter de dar explicações pra ninguém sobre isso, toda burocracia infernal da justiça já é muito pra mim. Tudo que eu quero são minhas músicas de volta, . Não interessa quantas vezes eu precise recomeçar. Não posso trabalhar, seu padrasto e a empresinha de merda dele vão comer meu rabo num processo por plágio e violação de direitos autorais caso eu me apresente em qualquer lugar, já que agora é tudo do . O que mais vão tirar de mim?
Era quase insano observar a expressão dele se contorcer de raiva, enquanto seu corpo mantinha-se neutro, parado no mesmo ponto do caminho entre a cozinha e a sala, segurando sua xícara sem um único tremor. O tom de voz sofria alterações de mínimos agudos, só um ouvido treinado perceberia. sempre fora uma muralha, pronto para aguentar qualquer confronto. Eu não fazia ideia de quanto sangue foi derramado para erguer aquela fortaleza. Pela profundidade das olheiras sob os olhos cansados, diria que esse homem não vê paz há muito tempo.
Ele sequer zelava mais por sua própria integridade: a casa não tinha portão, a porta abria tão facilmente que o vizinho bêbado podia entrar, nada de câmeras, nem mesmo um segurança ele contratou. Jamais alguém seria capaz de dizer que naquela casa morava um verdadeiro artista, cuja voz ecoou em apresentações por todo país, até nos programas de TV; um cantor com vendas sólidas e crescentes. era o pacote completo e se valorizava tanto quanto um cantor desafinado de chuveiro.
— levou alguma coisa?
— Não.
— Tem ideia do motivo pelo qual ele teria invadido sua casa?
— Não.
— E esses papéis rasgados? - apontei com a cabeça na direção da pilha ao lado do sofá.
— Apenas rabiscos.
— Comentou com alguém sobre estar escrevendo novas músicas?
— Que porra de interrogatório é esse?
— Passe uns dias no meu apartamento, . - falei convicta.
Logo ele saiu de perto para deixar a xícara na pia.
— Essa é a ideia mais burra que já saiu da sua boca. Está deixando sentimentos interferirem no seu raciocínio. - declarou, distraindo-se com a louça que lavava.
— Essa rua não tem câmeras, você fica sozinho aqui, sem segurança alguma. Ele vai voltar. está decidido a te tirar do caminho, conheço meu irmão. Não posso permitir que isso aconteça.
— Não quer perder o cliente.
— Não quero perder você, idiota. - rebati. - Tenha certeza que ele vai pagar alguém mais corajoso do que ele para terminar o serviço.
— O desgraçado é seu irmão, óbvio que seu apartamento é o pior lugar possível. Se ele aparecer aqui, vai aparecer lá também.
— Ele não sabe onde eu moro. Na verdade, sequer sabe que voltei à Inglaterra. Cortei laços com a família depois do casamento da minha irmã. - dei de ombros. - Vai ser bom para o andamento do processo alegar que você se sentiu ameaçado ao ponto de abandonar sua residência.
Juntei os documentos que levara e me pus a caminho da saída.
— Vou resolver umas pendências e passar no escritório. Me encontre no horário do almoço. Esteja de malas prontas.
— Você só pode estar louca, garota.
— Não discuta, apenas esteja no lugar de sempre. Seja discreto.
Calcei o último pé do sapato, apanhei o guarda-chuva e parti.
Três horas mais tarde, sentei-me numa mesa de canto no McDonald's da Leicester Square. O restaurante estava cheio, havia sido difícil desviar de tantas pessoas segurando a bolsa, o guarda-chuva molhado e a bandeja. À minha frente, terminava de comer um sanduíche. O capuz do moletom preto cobria-lhe a cabeça, ajudando-o na tarefa de manter-se anônimo no meio de tanta gente. As lentes dos óculos de grau estavam salpicadas de gotículas, indicando que, como sempre, ele viera na chuva. Era raro vê-lo de óculos, esta cena despertava em mim um aconchego que alguns diriam ser nostalgia. Quantas vezes nos encontramos neste mesmo McDonald’s? O violão apoiado no banco ao lado, pessoas conversando, a visão da praça do outro lado da janela…
Era tudo, ao mesmo tempo, completamente igual e completamente diferente.
— Você sempre pede a mesma coisa. - ele disse, analisando meu almoço.
Nós não éramos os mesmos.
Não apenas em termos de aparência, o mundo havia mudado totalmente.
Terminei de comer rapidamente, fiz sinal para sairmos dali e assim seguimos, atravessamos a Leicester Square em silêncio, ligeiramente distantes um do outro, de modo que não parecesse que estávamos andando juntos. Paramos lado a lado para atravessar a rua, onde aproveitei para falar baixo:
— Amarelo. 2. 2.
A luz verde autorizou a travessia de pedestres, me permitindo seguir em frente.
— Voltou depressa, senhorita.
— O rapaz com o violão está comigo, deixe-o subir. - informei ao homem parado na portaria.
Entrei no elevador logo apertando o botão do segundo andar. Girei a chave na porta do apartamento 202, tomando cuidado para não trancá-la novamente por hábito. Me joguei no sofá, não sem antes despir o pesado casaco e soltar os grampos que sustentavam o coque. Os fios ruivos podiam, enfim, sair de controle.
Controle.
Sob controle.
Coesa, firme, constante.
Volte ao centro, .
— Você não será vista se estiver no meio da multidão. - pronunciou-se tal logo entrou no apartamento.
— Essa é a intenção. A cidade é minha camuflagem.
Estamos no olho do furacão.
— Onde deixo minhas coisas? - perguntou.
Apontei para o escritório que fora transformado em quarto de hóspedes pouco antes de chegarmos.
— O banheiro é a primeira porta à esquerda, fique à vontade. Tem uma caixa de primeiros socorros lá, faça um curativo no corte.
Mal ele virou as costas e comecei a suar. Estômago agitado. Cabeça confusa. Coração descompassado.
Quando bati na porta da casa 12B, tinha 80 por cento dos passos seguintes elucidados. Os demais 20 dependeriam de como se comportaria. Contudo, me vi tendo de improvisar não pelas flutuações de humor dele, já que seu modo de agir mantivera-se praticamente o mesmo, mas sim pela inconsistência dos meus pensamentos. Ora, seguia o planejado; ora, me via tomada por sentimentos que julgara enterrados. Trazer para minha casa não era um de meus projetos. Sabia que quão mais próxima dele eu permanecesse, mais vulnerável estaria. Maior seria a chance de me ver envolvida outra vez.
O som de notificação do celular fez-me voltar à realidade, li a mensagem rapidamente, levantei-me e fui bater na porta do banheiro.
— Venha ao meu quarto assim que puder, precisamos acertar os pontos do processo.
Poucos minutos depois, um de cabelos úmidos, camisa preta e calças de moletom apoiou-se na mesa de trabalho cheia de papéis timbrados com o selo da Smith & Lynch Advogados.
— Como caralhos, dentre todos os escritórios de advocacia da Inglaterra, eu fui parar justamente no que você trabalha? - como sempre, sua expressão era neutra, quase despretensiosa, porém era nítido que ele esperava uma resposta que o satisfizesse.
— Porque eu tinha certeza que, mais cedo ou mais tarde, a bomba explodiria e você precisaria de mim. A Smith & Lynch tem excelente reputação tratando de casos envolvendo direitos autorais, propriedade intelectual e violação dos direitos trabalhistas. Hoje, meu cliente é você. Amanhã, posso estar processando um produtor desonesto da Jessie J, por exemplo. Obviamente você procuraria um serviço especializado, não pode perder a causa ou isso custaria sua vida. Literalmente.
Silêncio.
— Eu te meti nessa situação, eu vou te tirar dela. - prossegui - De brinde, vamos mandar e o pai dele para a cadeia por um longo tempo.
Pelas horas que seguiram até tarde da noite, todas as estratégias foram traçadas, as evidências que tínhamos a nosso favor foram postas na mesa, de modo a termos ampla visão do que precisávamos correr atrás. Determinadas aparas ainda precisavam ser cortadas para que o círculo fechasse perfeitamente. Após o envio de alguns e-mails, o processo estava oficialmente aberto. Pelas minhas estimativas, estaríamos no tribunal em duas semanas.
— Todos os seus pertences importantes estão naquela mochila que você trouxe? — perguntei. - virei-me para encará-lo, sentado na ponta da cama de casal em que eu dormia.
— Basicamente sim.
— Ótimo. Amanhã vou enviar uma pessoa de confiança até sua casa assim que a perícia liberá-la para juntar uma coisa ou outra que você tenha deixado para trás. A casa será devolvida à imobiliária ao fim do processo e, até que isso aconteça, em hipótese alguma vá até lá. Estou entrando em contato com sua gravadora atual, preciso que um representante deles faça um enorme favor para mim.
— Certo, faça o que achar que deve ser feito. - levantou e encaminhou-se à porta, fiz menção de segui-lo - Se não se importa, preciso dormir um pouco. Será que você pode me deixar quieto no meu quarto e voltar só quando amanhecer?
— Não vai jantar?
— Estou enjoado depois dessa merda toda.
As sobrancelhas quase se tocavam tamanho contraídas estavam. Isso estava além do que imaginei.
— O que houve, ? - sentei ao seu lado na cama recém-montada.
— Às vezes eu esqueço que você e cresceram juntos. A frieza é a mesma. O inferno de mania de transformar as pessoas em peças do joguinho de vocês também.
— Não é bem assim. - toquei seu braço.
— É exatamente assim, . Se tinha ideia que a desgraça que eu vivi poderia realmente acontecer, por que me deixou ser parte disso? - afastou-se - Eu era só um rato pro seu experimento. Você me tirou do lixo, não foi? Perfeito! O próximo passo era lançar o rato aos leões e observar de longe, muito longe.
— Já te disse que não podia ficar em Londres, eles estavam desconfiados de mim. Se descobrissem que estava colaborando com a polícia, eu não estaria aqui hoje. Era minha segurança em jogo, assim como a sua, porque você não sabia de nada. Me desculpa, .
— Eu te liguei. Enviei inúmeras mensagens. Lotei sua caixa de e-mail. Mandei cartas e mais cartas pro endereço que você deixou, todas foram devolvidas porque o destinatário não havia sido encontrado. - o tom era pesado, densificado por tanta mágoa extravasada.
— Eu sei. Ouvi os recados que deixou na caixa postal, li os e-mails e as mensagens. Todos eles. Era assim que eu sabia o que estava acontecendo por dentro da Mont Blanc. Era a garantia de que você estava vivo. - respondi com honestidade, mesmo sabendo que doeria como estacas sendo enfiadas em seu peito.
— Inacreditável. Não sei o que estou fazendo aqui com você, garota. Não sei! Você é uma mentira, o que tivemos foi uma mentira, eu sou uma mentira!
— Claro que não! - rebati indignada. - , me escuta. Não menti para você, principalmente sobre isso. Eu realmente…
— Cala a boca! - gritou. - Eu acreditei. Caí no seu papo, te dei o que você queria. Você queria um soldado pra lutar o caralho da sua guerra por poder, eu estava aqui. Você queria alguém pra te esquentar na cama, eu te fiz gritar muitas vezes. Foi bom, não foi? Valeu até sair do seu pequeno palácio pra dormir num muquifo de subúrbio, desde que tivesse um homem entre suas pernas.
Lágrimas ameaçavam escorrer pela minha face, engoli seco para contê-las. Ouvir cada uma daquelas palavras era como levar um soco na boca do estômago, era torturante. A ânsia subia pela garganta queimando tudo em seu caminho. Eu havia brincado com fogo e finalmente estava sentindo a dor das queimaduras.
— Você me usou, . - continuou - E da pior forma que podia, se apoderando do meu tão caro afeto. Agora você tem as provas de que precisa pra destruir seu padrasto e o babaca do seu irmão, ao custo da sanidade que restou em mim. Eles sonegam impostos, aliciam menores e as usam como moeda de troca, mexem com gente barra pesada, mantêm empregados em situação precária, subornam figurões do governo e têm o simpático hábito de sumir com os desafetos. – enumerou, contando nos dedos - Mas você sabia disso, afinal era esse dinheiro imundo que bancava seus luxos, princesinha. Te faltavam provas, mas seu faro nunca te enganou. Você é esperta demais pro bem de quem tá ao seu redor. Mesmo assim, jamais recusou o conforto que a grana da sua família podia te oferecer.
As paredes do quarto pareciam fechar pouco a pouco, me sufocando.
— Em poucos dias você estará livre de mim e de tudo que trouxe para sua vida, se essa for sua vontade. - murmurei - Vamos vencer o processo, você poderá fazer o que quiser dali para frente. Nunca mais precisa olhar para mim, se quiser. Ainda assim, não deixarei de pensar em você nenhum dia, tal como nos últimos três anos.
— Não tente me convencer com sua balela. Achei que te conhecia, . Vejo que me enganei redondamente. Você merece a família que tem.
— Não tenho mais família. - dei de ombros com a voz embargada pelo choro que tentava controlar - Minha irmã ficou na Nova Zelândia, minha mãe está morta, é filho do demônio e eu destruí tudo que pudesse vir a construir contigo. Estamos no mesmo barco agora, . Órfãos, com a vida ameaçada, meio sem saber para onde ir, mantidos de pé pela busca pelo que nos é de direito.
Me joguei na cama de olhos fechados, segundo depois escutei a porta do quarto de hóspedes sendo batida com força.
As horas tinham muito mais de 60 minutos naquela madrugada. Dormir parecia impossível, me restando, então, trabalhar para passar o tempo. Às três da manhã, não havia mais o que ser feito. Tomei um banho e tentei, em vão, adormecer. Estiquei a mão para alcançar o celular na mesa de cabeceira, rapidamente meus dedos deram corpo à mensagem:
“Sua foto vai estar na capa de todos os jornais de grande circulação assim que raiar o dia. Desculpe te expor dessa forma, é para sua segurança.”
Desde que saíra do meu quarto, não abrira a porta do cômodo onde estava instalado. Não sabia com que coragem o encararia, logo, optei por vestir a máscara profissional novamente. Tinha de me proteger do efeito que ele tinha sobre mim, mas, em especial, proteger-me de mim mesma. Ele estava profundamente magoado e eu me sentia a pior pessoa que já caminhou pela face da Terra. A certeza que me movia era, não obstante, indubitável. Precisara de tempo para reunir as evidências para dar um tiro único e certeiro, agora as tinha. O alvo tinha de ser abatido de uma vez só. Esperar mais tempo para revelar todo o esquema criminoso por trás da Mont Blanc estava fora de cogitação, tanto pela capacidade destrutiva de Griffin quanto pela forma como havia sido criado para dar continuidade ao império de violência.
“Tá.”
O acender repentino da tela do celular me assustou. Ele era insone, claro. Foi burrice enviar a mensagem imaginando que ele só a veria no dia seguinte. Quantas vezes fui para a faculdade sem dormir para fazer companhia a ele?
O teto de cimento batido, o colchão duro, as respirações descompassadas, as conversas aleatórias, tudo seguia vívido em minha mente. De volta ao presente, o teto com arabescos em gesso não saciava a saudade em meu coração; a cama era macia; os lençóis, do linho de melhor qualidade; ao meu lado, apenas a solidão amarga.
“Quando tudo isso acabar, lembre-se que sempre serei sua amiga.”
Três anos não foram o suficiente para enterrar os sentimentos que carregava no peito. De que adiantou a distância física se nunca consegui apagar da memória o cheiro da pele dele? tinha razão, eu era uma grande piada.
“Não sei se há tempo de dar meia-volta, ."
Mesmo depois de machucar um coração com tantas cicatrizes, eu ainda era dependente demais das lembranças para deixá-lo em paz. Por que precisava tanto tê-lo por perto?
"Estou sem sono. Se quiser companhia, a porta está destrancada."
Patética, fraca, ridícula, apelativa, desesperada.
"Melhor não. Onde tem papel e caneta?"
É, melhor não. Onde estava com a cabeça?
“Perto da impressora.”
Mal havia acabado a segunda-feira.
Quinta-feira, 1 de novembro.
Desde que foi para minha casa, poderia contar nos dedos quantas vezes nos falamos diretamente. Uma troca rápida sobre o processo aqui, um café feito em lembrança do outro ali, uma entrega de delivery acolá, não mais que isso. Poucas também foras as vezes em que um de nós saiu de casa, para preservar nossa própria segurança. Policiais à paisana conduziram para exame de corpo delito e, finalmente, suturar o corte provocado por . Me ausentava apenas para ir à Smith & Lynch e para visitar alguns contatos.
Notícias chegavam o tempo todo, alterando os rumos do processo, tornando mais difícil dormirmos sem sentir medo. Medo porque a situação estava afunilando. Primeiro, os jornais anunciaram o escândalo envolvendo a Mont Blanc, uma das maiores gravadoras do Reino Unido, acusada de roubo e exploração de seu mais promissor artista, . Tal logo foi concluída a perícia comprovando o arrombamento da casa de , os tabloides voltaram a mostrar seu rosto na primeira página, desta vez ao lado de , filho e sócio de Griffin , CEO da Mont Blanc Records. Dia após dia, a imprensa desenterrava mais e mais detalhes cuidadosamente vazados, empurrando a opinião pública contra a empresa. O circo precisava estar armado para pegar fogo e, só então, nunca mais armar a lona novamente.
Foi necessário contratar seguranças, sair de casa era cada vez mais arriscado. As ameaças chegavam por telefone, correspondência, e-mail, na porta do escritório. Depois que a polícia revirou a casa dos e a gravadora de cima a baixo em busca de provas, expondo-os ao ridículo, as janelas do apartamento passaram a ter o reforço de placas à prova de balas. Seus passaportes foram apreendidos, suas fotos estavam em todos os portos, rodoviárias, estações de trem e aeroportos da Europa, não tinham para onde ir a não ser olhar no fundo dos meus olhos, sentados no banco dos réus, e admitir toda a desgraça que trouxeram a vida de .
O cerco estava se fechando. O tique taque do relógio ficava mais e mais lento. Minhas mãos suavam. Era chegado o momento. Extraordinariamente foi estabelecida trégua em nossos embates e questões pessoais para que pudéssemos trabalhar bem em conjunto para o sucesso do julgamento. Lá estava ele, solto, confortável, presenteando-me com sua presença aconchegantemente rabugenta. Desde o amanhecer pude deleitar-me com vislumbres do homem que tomara meu coração por completo e desfrutar de sua companhia por minutos que valiam como meses inteiros. A trégua valia também para os meus esforços em negar o que era óbvio: eu seguia plenamente encantada e apaixonada por .
Chegar até o tribunal foi difícil, a escadaria principal estava repleta de repórteres com suas câmeras e microfones, aguardando o melhor ângulo para capturar a imagem de um dos envolvidos naquele caso que começou pequeno e ganhou força estrondosa. Os réus entrariam pelos fundos do prédio, a fim de evitar comoção e preservar a integridade dos mesmos. Nós, a acusação, chegaríamos com todos os holofotes sobre nós. E era exatamente isso que queríamos.
— , tem algo para comentar?
— Senhor, é verdade que teve sua vida ameaçada por ?
Os jornalistas esticavam os microfones e gravadores o máximo que podiam, quase enfiando-os na nossa boca. Cada passo que dávamos era à base de empurrões, cercados por policiais cuja missão era salvaguardar nossa integridade. O mais importante, contudo, era garantir que não disséssemos nada comprometedor. A orientação era para permanecermos em silêncio.
Era a primeira vez que meu nome estaria exposto como advogada de acusação em um processo tão importante. O scarpin apertava meus pés, a pasta tinha um peso incômodo, a beca vinha pendurada no braço, no meio de tudo isso, segurava-me em para não nos separarmos em meio à aglomeração. Vestir-me à altura da ocasião era o menor dos meus desafios, árduo mesmo era esconder o turbilhão dentro de mim.
— Dra. , por que escondeu ter namorado o Sr. ? - uma repórter à direita indagou, atraindo a atenção dos demais - Tivemos acesso a imagens que comprovam o relacionamento.
Siga em frente, .
— A dra. julga estar apta a defender um ex-namorado em um processo contra seu padrasto e seu meio-irmão? O que vai pesar mais, a família ou o amor do passado?
Senti um leve chute na canela, era ao meu lado. Um silencioso incentivo a não dar ouvidos. Continue a andar. Não olhe para trás. Não dê atenção a eles.
Degrau após degrau, chegamos ao nosso destino. Atravessamos o enorme corredor, piso e paredes de madeira.
Tec-tec.
Meus passos aparentavam ecoar por todo o prédio. Se fechasse os olhos, diria pertencerem a um gigante.
— Não lembro de um dia termos oficializado nosso relacionamento. - falou num tom tão baixo que apenas eu escutaria.
— Nem eu. Agora você tem o título oficial de ex-namorado dado por alguém que não eu.
— Porra...
O silêncio imperou entre nós. Deixei-o desconfortável. Não é possível que você seja tão burra, ! Não tinha tempo para tentar consertar, as pesadas portas duplas de madeira abriam-se. O julgamento iria começar.
O juiz, um sujeito que eu sabia estar tendenciosamente a nosso favor, solicitou que assumíssemos rapidamente nossos lugares, pois os réus entrariam. Por uma porta menor, Griffin e foram conduzidos ao banco dos réus. Cruzei as pernas por baixo da mesa, assumi uma expressão segura de modo a manter-me íntegra e, assim, suportar o ódio do olhar deles. Logo reconheci o advogado de defesa como sendo um figurão da criminalística, eles não estavam ali para brincar. Nem eu. Meu desejo era que eles entrassem algemados, porém tive o pedido de prisão preventiva negado todas as vezes. Todos tinham um preço, inclusive a promotoria.
— Nunca na vida achei que eles fossem se prestar a esse papel. - comentou.
— Eles não planejam perder, veja como não estão preocupados.
— Senhoras e senhores, estamos reunidos nesta manhã para dar início à sessão deste Tribunal. - o juiz chamou a atenção para si - Hoje será levado a júri o processo movido pela Dra. contra a empresa Mont Blanc Records, na figura dos Srs. e Griffin , sendo vítima seu cliente, o Sr. . Estando todos aqui presentes, acusação, réus, vítima, defesa e testemunhas, damos início aos trabalhos.
— Temos testemunhas? - sussurrou para mim, ligeiramente surpreso.
— Não me subestime, garoto. - respondi com um sorriso ladino.
— Jamais, garota.
Então ele riu. O sorriso se abriu ainda tímido, os olhos fecharam-se e a cabeça pendeu para baixo.
Meu coração se aqueceu de uma forma gostosa, indo além do nervosismo. Totalmente inesperado, totalmente . Meu Deus, como sentia falta dele, de tê-lo presente.
— Por favor, diga seu nome, idade e o nome do advogado que o representa. - pediu o juiz, dirigindo-se a .
— Adam , 25 anos. Sou cliente do Dr. Jacob Strauss. - respondeu tranquilamente, porém sua voz tinha claros traços de soberba.
Ao virar-se para voltar ao lugar onde estava sentado, encarou-me com desprezo. Griffin repetiu o mesmo procedimento logo em seguida, sustentando também o olhar ameaçador sobre e eu.
— Apresentados os réus, convido o Dr. Strauss para tomar lugar na tribuna de defesa.
— Vão interrogá-lo logo, logo. Seja o grande sacana que você é e vai dar tudo certo. Não deixe que te desestabilizem. - informei . — Mas antes, dance comigo.
Nas poucas conversas que tivemos nas duas semanas em que vivemos sob o mesmo teto, o planejamento da arguição nos tomou bastante tempo. Ele sabia o que eu perguntaria e, principalmente, sabia como responder de forma bastante convincente. Era um balé muito bem ensaiado, uma dança em que envolveríamos um ao outro com palavras, gestos e expressões que seriam minuciosamente analisados por todos naquele recinto.
O silêncio da sala foi quebrado novamente pela voz grave do juiz:
— Acusação, deseja apresentar e ouvir a vítima?
— Sim. - pus-me de pé. - Meritíssimo, cá temos sentado para oitiva o Sr. Jan , de 28 anos, nascido em Leipzig, Alemanha, naturalizado cidadão britânico. Órfão de pai e mãe, o Sr. teve uma vida árdua, vencendo batalhas diárias para garantir seu sustento neste país. Notavelmente talentoso, viu na música um porto seguro de onde poderia tirar sua subsistência. - caminhava de um lado para o outro, ora focando meu olhar no juiz, ora em , ora nas pessoas que compunham a plateia - Como já deve ser de conhecimento de muitos, o Sr. apresentava-se em frente à Universidade de Londres, tocando violão e cantando por horas a fio e foi ali que o conheci. O foco desta audiência não tange a vida íntima do meu cliente, tampouco a minha, porém, a fim de evitar burburinhos, adianto que o fato de termos mantido um relacionamento amoroso não é redutor da minha capacidade como sua advogada. - virei-me para a tribuna da defesa e encarei firmemente e seu pai, dando as costas a - É preciso coragem para defender uma pessoa que deixou marcas em minha vida, porém é necessário muito mais coragem para expor publicamente os crimes de familiares. sofreu abuso psicológico, ameaças, roubo de propriedade intelectual, exploração laboral, violação dos direitos trabalhistas, desvio de recursos financeiros, negligência, agressões e, por fim, tentativa de homicídio por parte de seus empregadores, os Srs. , enquanto afiliado à Mont Blanc Records.
Era estranho o quanto as faces dos estavam tranquilas. Meu irmão parecia, inclusive, estar se divertindo. Os dedos batucavam a mesa, comportamento característico de euforia que aprendi a reconhecer pelos anos de convívio. Não era nervosismo, não era apreensão, era euforia. Como quando esperávamos a meia-noite passar para abrirmos os presentes de Natal.
Algo estava errado.
Virei-me para e deparei-me com o porquê da satisfação repentina de .
Algo estava errado. Totalmente errado.
Um ponto vermelho marcava o exato centro de sua testa. Um laser.
— Abaixa! - gritei a plenos pulmões.
lançou-se ao chão, derrubando a cadeira em que estava sentado, milésimos de segundo antes do projétil atravessar a enorme janela lateral. No mesmo local onde estivera o homem de olhos havia uma bala cravada na parede.
— O que está acontecendo? Guardas! Guardas! - gritava o juiz.
Duas das cinco fileiras de espectadores se levantaram, cada um empunhando uma pistola. Todas apontavam para nós. Da porta por onde haviam adentrado os réus vieram outros homens vestidos de preto com os rostos cobertos. Dediquei um segundo ou dois a contar quantas pessoas naquela sala poderiam me matar. 13. Quantos policiais estavam presentes? Cinco. Talvez outros dois do outro lado da pesada porta dupla de madeira.
Merda.
Havia pelo menos um atirador do lado de fora. Talvez mais.
Fodeu.
Não dava tempo de pensar, precisávamos continuar vivos.
— Guardas, façam alg-
O estampido abafado tomou conta do recinto. O juiz levou as mãos no peito, de onde uma cascata de sangue vivo descia por entre seus dedos.
O que estava acontecendo?
Muito lentamente, retirei os sapatos um de cada vez e caminhei de costas para próximo de , que seguia escondido protegendo-se embaixo da tribuna do juiz.
Passo a passo. Bem devagar.
De relance, vi Griffin ser levado para longe através da porta auxiliar, escoltado por dois dos homens de preto. Espera, onde estava ?
O toque frio da lâmina contra minha garganta fez-me parar.
— Vai pra onde, sua putinha? Salvar o namorado? - disse a voz atrás de mim. - Mais um passo e o chão vai ficar vermelho com seu sangue.
— Me deixa ir, . - levei as mãos ao canivete pressionado contra meu pescoço. - Larga essa merda. O que você está fazendo?
Eu estava tremendo. Os músculos de minhas pernas foram trocados por gelatina da pior qualidade. Lutei contra a respiração que queria tornar-se ofegante.
— Você achou que podia me derrubar, vadia. Como você é estúpida... Tão estúpida que merece morrer.
Havia menos de meio policial para cada capanga armado. Eles estavam imóveis, quem sabe fazendo os mesmos cálculos que eu, tão tensos quanto eu estava.
Precisava arriscar ou morreríamos todos.
— Cansou de viver embaixo da saia do papai, Seb? Aposto que não gostou de ver a mesa virar contra você, que dirá sentar na frente de um juiz. Vamos lá, aperta sua faquinha e me mata. Aperta, . - falei alto. - Aperta!
Sirenes de emergência tocaram estrondosamente por todo o prédio.
compreendeu minha mensagem: embaixo da mesa do juiz tinha um botão de emergência que o próprio, por nervosismo, não fora capaz de acionar. Mentalmente, agradeci a Deus por ter pensado rápido. Aquela era nossa chance.
Cortinas de metal cobriram as janelas, impedindo a visão do mundo exterior. As portas automaticamente se abriram, gritos foram ouvidos do lado de fora. O código era claro, havia problemas no tribunal. Os inocentes se abaixaram instantaneamente.
Sabia que era uma fração de segundo até perder o controle e realmente passar o canivete na minha garganta ou um daqueles homens atirar contra mim. Os policiais que guardavam o lado externo entraram rapidamente, atirando contra os que empunhavam armas.
Rápido. Rápido.
O barulho tornou-se ensurdecedor. Eu tremia sem parar, o ar faltava em meus pulmões. Meu irmão me puxou, obrigando-me a caminhar para o canto, um local mais seguro. Talvez ele tentasse alcançar a porta secundária.
— Larga ela, seu filho da puta! - entrou no campo de visão de , segurava uma arma que encontrara perdida no meio da confusão.
prendeu a respiração e fez mais força contra mim. Minha pele começou a ceder à pressão da lâmina, doía. Filetes escorriam pescoço abaixo. Sangue.
— Foi bom comer minha irmã, ? - riu - Nós descobrimos tudo, acharam mesmo que ninguém ia saber? O único idiota aqui é você. Espero que tenha valido a pena morrer por causa dessa vadia.
Um tiro.
Meu captor chacoalhou, seu corpo endureceu e pendeu para o lado direito.
— Que merda é ess-
Mais um.
O canivete desceu minha garganta, a dor era lancinante. caiu de joelhos. Tudo ao nosso redor era vermelho. O sangue, as luzes de emergência, a raiva, o medo.
Minha vista foi escurecendo aos poucos, respirar era insuportável. correu até mim, apoiando minha cabeça em suas mãos.
— Fica comigo, . Porra, não fecha os olhos! Aguenta firme. Que inferno! Eu odeio te amar tanto, garota. Fica aqui, não vai embora.
Se a visão do seu rosto era a última coisa que eu veria, tudo bem. Poderia levar essa imagem ao paraíso. Os olhos , o piercing no nariz, o pequeno alargador na orelha esquerda.
Como ele era bonito.
Segunda-feira, 24 de dezembro.
— Por favor, cante para nós, . - disse o apresentador. A plateia aplaudiu fortemente quando ele se posicionou no centro do palco com o violão.
— Essa é a primeira vez que me apresento depois de tudo o que aconteceu, espero que gostem.
I'm not a rapper
I'm a singer with a flow
I've got a habit of spitting
Quicker lyrics you know
You found me ripping the writtens
Out of the pages they sit in
And never want to get bitten
Cause plagiarism is hidden
Watch how I sit on the rhythm
Prisoner with a vision
(...)
Nos bastidores, o orgulho não cabia em mim.
O que aconteceu com depois que foi preso, para onde tinha ido Griffin, nada disso interessava por hora. estava de volta aos palcos de onde nunca devia ter saído e eu estava ao seu lado, apoiando-o silenciosamente do backstage.
Havíamos conseguido.
Às 8:45h de uma segunda-feira, eu jurava que teria sangue frio suficiente para me deparar com aquele olhar novamente, , frios, firmes, desafiadores. Ele estava parado na porta do mesmo endereço escrito nas minhas anotações, despretensiosamente descalço, vestido de jeans e moletom. Uma rua comum, em um bairro de subúrbio normal, na casa 12B.
— Pois não?
Okay, ele falou comigo. E naquele momento, perdida entre segurar o guarda-chuva que tombava na direção do vento para tentar me proteger da chuva fina insistente que caía desde ontem e equilibrar papéis com o elegante timbre da empresa, eu decidi fingir costume. Aquele era meu cliente e nada além disso. Por mais que os flashes insistissem em surgir toda vez que eu piscava os olhos, ao examinar aquele homem dos pés à cabeça eu não reconhecia o mesmo rapaz de três anos atrás. Eu estava em frente a uma pessoa diferente, embora o modo desafiador de manter o queixo erguido e a cabeça levemente inclinada fosse o mesmo.
— Não vai falar nada? Você devia sair correndo depois de tocar a campainha, então. - ele disse, dando um passo para trás, voltando para dentro de casa.
Se aquela porta fosse fechada, eu perderia totalmente a coragem e ligaria para meu chefe jurando de pés juntos que não tive como chegar até o endereço do cliente. Vale dizer que fui atropelada por um turista desavisado e acabei caindo em um bueiro? Londres tem suas vantagens, turistas perdidos são frequentes; bueiros abertos, nem tanto. Deixa para lá, respira fundo.
— Senhor , bom dia. Sou , representante da Smith & Lynch Advogados. Estou aqui para tratar do processo movido contra a Mont Blanc Records. - prendi os documentos debaixo do mesmo braço que segurava o guarda-chuva e estendi a mão para que ele apertasse.
Por favor, papelada, não caia.
Ele segurou minha mão e devolveu o cumprimento. O toque gelado era o mesmo, dedos tão frios que faziam a chuva parecer agradavelmente morna. Um metro era toda a distância que nos separava, nossas palmas continuaram em contato pelo que pareceu uma pequena eternidade. O mundo girou rápido demais, o ar faltou em meus pulmões por frações de segundo. Uma descarga elétrica subiu pelo meu braço.
Por favor, , não caia.
— Você é pontual. Entre. - afastou o corpo, dando-me passagem. - Deixe o guarda-chuva aí fora.
Era uma casa pequena, porém gigante perto do minúsculo apartamento que ele costumava chamar de lar anos antes, onde eu havia conhecido o que achava ser muito sobre a vida de . Agora desconfio que mal fui apresentada ao próprio. Retirei os sapatos no hall como ele gostava que fosse feito, seguindo-o até a sala com os pés cobertos apenas pela meia-calça, caminhando sobre o carpete felpudo para dar de cara com pilhas e pilhas de folhas de papel rasgadas ao lado da mesa de centro. Permaneci parada, fazendo uso de toda minha educação enquanto esperava que ele me autorizasse ocupar um dos assentos dos sofás.
— Sente-se, garota. Você nunca fez o tipo rogada.
— Garota… - repeti baixinho. Não esperava que ele fosse se referir a mim de forma tão pessoal assim. Não depois de tudo que aconteceu. Se a intenção era deixar-me desconfortável, conseguiu.
— Prefere “senhorita ”? - ergueu a sobrancelha - Erro meu, suponho que devemos manter o profissionalismo por aqui. Então vamos recomeçar e eu entro nessa sua ceninha onde você é a advogada fodona e eu sou o cliente fodido.
— Não há necessidade disso tudo, , por favor. - observei ele se sentar em frente a mim, cruzar as pernas esguias e me olhar atentamente, deleitando-se com o rubor que tomava minhas bochechas - Você tem estado na TV ultimamente, sua música toca em todas as estações de rádio, é bastante inoportuno que isso tenha se dado de forma tão difícil por trás das câmeras.
— E seu chefe sabe dos acontecimentos prévios? Se ele sabe e mesmo assim te mandou aqui, que grande sacana ele é.
— Preferi não entrar em detalhes com o Sr. Smith, não vem ao caso e tampouco interferirá no meu trabalho aqui. Ele tem conhecimento do que me trouxe aqui. - tamborilei as unhas sobre a pasta de documentos em meu colo.
Uma gargalhada cortou o ar, um riso repleto de ironia.
— , você tem noção que estou movendo um processo contra ? - seus olhos quase lacrimejavam de tamanho… Deleite? Não é possível que ele pudesse encontrar algum tipo de prazer nessa situação. - Esse desgraçado levou tudo de mim, invadiu minha casa, roubou minhas músicas e isso não vai interferir no seu trabalho? Meus parabéns, seu sangue frio é notável.
De repente, se levantou em direção à cozinha, se serviu de uma xícara de uma bebida fumegante e me deu uma outra idêntica. Pelo cheiro, reconheci do que se tratava.
— Chá preto. Você ainda mantém o velho preso no seu porão. - comentei, um sorriso tímido tentou surgir em meu rosto - não será um problema, vamos mover a ação e a causa será ganha, você foi claramente prejudicado. Para isso, preciso que me conte com detalhes como tudo aconteceu e me ponha a da ocorrência.
— Ah é, esqueci que você precisa ser atualizada porque foi embora viver sua vida na primeira oportunidade e me considerou morto. Agora você aparece na minha porta, toda cheia de si, fingindo que não me conhece, fingindo que não sumiu no mundo sem ter dito nada!
— Eu não tive escolha, era a oportunidade de me manter viva! Se minha família soubesse que eu mantinha contato com você, estaria tudo acabado para nós dois. Qualquer passo em falso seria imperdoável.
— Tudo bem, . Não é da minha conta o que se passa com você, sua presença aqui é temporária. Como tudo aconteceu, você quer saber? Primeiro, eu acreditei que você era minha amiga, minha única amiga, e estava disposta a me ajudar. Venci aquele concurso, a gravadora do seu padrasto me contratou, me fez trabalhar que nem um condenado por três anos sem receber nem metade do que eu tinha direito, me botou no olho da rua sem motivo algum quando eu finalmente reclamei e olha que engraçado: lançou a carreira do seu meio-irmão com as músicas que eu tinha composto pro meu álbum assim que botei os pés fora de lá.
Enquanto falava, eu fazia anotações rápidas. Meu coração estava tão apertado… Eu deveria ter feito mais por ele.
— Encontrei outra gravadora rápido, levei tudo de inédito que tinha produzido em rascunho para eles e adivinha só! tinha registrado todas as letras no nome dele no mesmo dia que me chutaram da Mont Blanc.
— Sinto muito, . - disse baixinho.
— Sente muito? Vá à merda! Eu perdi tudo, todas as músicas que gravei, todo o meu trabalho, ! Eu não tenho nada, você consegue entender? Nem essa casa é minha, tudo está no nome deles. Vivo sozinho desde os 16 anos, lutei esse tempo todo, dia e noite vivendo de migalhas e continuo não tendo nada, nem para onde ir.
Me levantei e permiti-me caminhar pelo cômodo, delineando em minha mente os detalhes da cena que sabia vir a seguir. Apesar de pedir que o cliente dê sua versão dos fatos, é dever de um bom advogado levantar as circunstâncias do caso. Na quina da moldura da lareira havia um filete de sangue seco. Tão discreto que passaria despercebido para quem não soubesse o que procurar.
— Foi aqui que ele bateu sua cabeça, né? - sabia que a resposta não viria, por isso prossegui - Reparei o corte na sua testa, por mais que o cabelo esconda. Sabe se ele fazia uso de drogas, como... Cocaína? foi visto em companhias suspeitas.
— Sei lá, fico longe desse tipo de coisa, até evito pensar sobre. Passei o dia fora, quando cheguei a porta estava aberta, tudo revirado, tinha vômito no tapete. Pensei que fosse o filho da puta do vizinho, não seria a primeira vez que ele invade minha casa caindo de bêbado achando que é a casa dele. Quando cheguei no quarto, estava mexendo nas gavetas. Nós brigamos, porrada mesmo. Ele estava fora de si, olhos esbugalhados, todo amassado, um demônio. Ele correu pra fora do quarto, achei que pudesse ir pegar uma faca, alguma coisa assim, então fui atrás e consegui mantê-lo imobilizado no chão da sala. Soquei tanto aquela cara nojenta dele… - uma vez mais, o deleite tomava conta de sua voz - Enfim, ele tinha um canivete em algum lugar e me furou, tentou me jogar de cara na lareira, mas estava apagada, então achou uma boa meter minha cabeça na moldura até que eu desmaiasse.
— Como você está agora? - questionei-o preocupada, aproximando-me dele.
— Vivo, não tá vendo?
— Me mostra onde o canivete entrou.
ergueu o moletom e a camisa, expondo o corte ainda vermelho vivo na cintura. Não era irrelevante como ele fazia parecer. Era mais que um furo, era um corte de cerca de cinco centímetros e bastante fundo. Passei os dedos levemente ao redor do ferimento, sentindo a pele enrubescida levemente quente pela inflamação. Permiti que o toque se estendesse alguns centímetros acima para fazer a eletricidade correr de novo pelo meu corpo ao encontrar a tez gelada. Guilty pleasure.
— Você devia ir ao hospital para darem pontos nisso. Não é porque viveu anos por conta própria, arrumando briga por aí, que vai estar isento de arranjar uma infecção nesse machucado. - ergui o rosto procurando seus olhos. Será que ele sabia o quanto era capaz de mexer comigo?
— Não quero ter de dar explicações pra ninguém sobre isso, toda burocracia infernal da justiça já é muito pra mim. Tudo que eu quero são minhas músicas de volta, . Não interessa quantas vezes eu precise recomeçar. Não posso trabalhar, seu padrasto e a empresinha de merda dele vão comer meu rabo num processo por plágio e violação de direitos autorais caso eu me apresente em qualquer lugar, já que agora é tudo do . O que mais vão tirar de mim?
Era quase insano observar a expressão dele se contorcer de raiva, enquanto seu corpo mantinha-se neutro, parado no mesmo ponto do caminho entre a cozinha e a sala, segurando sua xícara sem um único tremor. O tom de voz sofria alterações de mínimos agudos, só um ouvido treinado perceberia. sempre fora uma muralha, pronto para aguentar qualquer confronto. Eu não fazia ideia de quanto sangue foi derramado para erguer aquela fortaleza. Pela profundidade das olheiras sob os olhos cansados, diria que esse homem não vê paz há muito tempo.
Ele sequer zelava mais por sua própria integridade: a casa não tinha portão, a porta abria tão facilmente que o vizinho bêbado podia entrar, nada de câmeras, nem mesmo um segurança ele contratou. Jamais alguém seria capaz de dizer que naquela casa morava um verdadeiro artista, cuja voz ecoou em apresentações por todo país, até nos programas de TV; um cantor com vendas sólidas e crescentes. era o pacote completo e se valorizava tanto quanto um cantor desafinado de chuveiro.
— levou alguma coisa?
— Não.
— Tem ideia do motivo pelo qual ele teria invadido sua casa?
— Não.
— E esses papéis rasgados? - apontei com a cabeça na direção da pilha ao lado do sofá.
— Apenas rabiscos.
— Comentou com alguém sobre estar escrevendo novas músicas?
— Que porra de interrogatório é esse?
— Passe uns dias no meu apartamento, . - falei convicta.
Logo ele saiu de perto para deixar a xícara na pia.
— Essa é a ideia mais burra que já saiu da sua boca. Está deixando sentimentos interferirem no seu raciocínio. - declarou, distraindo-se com a louça que lavava.
— Essa rua não tem câmeras, você fica sozinho aqui, sem segurança alguma. Ele vai voltar. está decidido a te tirar do caminho, conheço meu irmão. Não posso permitir que isso aconteça.
— Não quer perder o cliente.
— Não quero perder você, idiota. - rebati. - Tenha certeza que ele vai pagar alguém mais corajoso do que ele para terminar o serviço.
— O desgraçado é seu irmão, óbvio que seu apartamento é o pior lugar possível. Se ele aparecer aqui, vai aparecer lá também.
— Ele não sabe onde eu moro. Na verdade, sequer sabe que voltei à Inglaterra. Cortei laços com a família depois do casamento da minha irmã. - dei de ombros. - Vai ser bom para o andamento do processo alegar que você se sentiu ameaçado ao ponto de abandonar sua residência.
Juntei os documentos que levara e me pus a caminho da saída.
— Vou resolver umas pendências e passar no escritório. Me encontre no horário do almoço. Esteja de malas prontas.
— Você só pode estar louca, garota.
— Não discuta, apenas esteja no lugar de sempre. Seja discreto.
Calcei o último pé do sapato, apanhei o guarda-chuva e parti.
Três horas mais tarde, sentei-me numa mesa de canto no McDonald's da Leicester Square. O restaurante estava cheio, havia sido difícil desviar de tantas pessoas segurando a bolsa, o guarda-chuva molhado e a bandeja. À minha frente, terminava de comer um sanduíche. O capuz do moletom preto cobria-lhe a cabeça, ajudando-o na tarefa de manter-se anônimo no meio de tanta gente. As lentes dos óculos de grau estavam salpicadas de gotículas, indicando que, como sempre, ele viera na chuva. Era raro vê-lo de óculos, esta cena despertava em mim um aconchego que alguns diriam ser nostalgia. Quantas vezes nos encontramos neste mesmo McDonald’s? O violão apoiado no banco ao lado, pessoas conversando, a visão da praça do outro lado da janela…
Era tudo, ao mesmo tempo, completamente igual e completamente diferente.
— Você sempre pede a mesma coisa. - ele disse, analisando meu almoço.
Nós não éramos os mesmos.
Não apenas em termos de aparência, o mundo havia mudado totalmente.
Terminei de comer rapidamente, fiz sinal para sairmos dali e assim seguimos, atravessamos a Leicester Square em silêncio, ligeiramente distantes um do outro, de modo que não parecesse que estávamos andando juntos. Paramos lado a lado para atravessar a rua, onde aproveitei para falar baixo:
— Amarelo. 2. 2.
A luz verde autorizou a travessia de pedestres, me permitindo seguir em frente.
— Voltou depressa, senhorita.
— O rapaz com o violão está comigo, deixe-o subir. - informei ao homem parado na portaria.
Entrei no elevador logo apertando o botão do segundo andar. Girei a chave na porta do apartamento 202, tomando cuidado para não trancá-la novamente por hábito. Me joguei no sofá, não sem antes despir o pesado casaco e soltar os grampos que sustentavam o coque. Os fios ruivos podiam, enfim, sair de controle.
Controle.
Sob controle.
Coesa, firme, constante.
Volte ao centro, .
— Você não será vista se estiver no meio da multidão. - pronunciou-se tal logo entrou no apartamento.
— Essa é a intenção. A cidade é minha camuflagem.
Estamos no olho do furacão.
— Onde deixo minhas coisas? - perguntou.
Apontei para o escritório que fora transformado em quarto de hóspedes pouco antes de chegarmos.
— O banheiro é a primeira porta à esquerda, fique à vontade. Tem uma caixa de primeiros socorros lá, faça um curativo no corte.
Mal ele virou as costas e comecei a suar. Estômago agitado. Cabeça confusa. Coração descompassado.
Quando bati na porta da casa 12B, tinha 80 por cento dos passos seguintes elucidados. Os demais 20 dependeriam de como se comportaria. Contudo, me vi tendo de improvisar não pelas flutuações de humor dele, já que seu modo de agir mantivera-se praticamente o mesmo, mas sim pela inconsistência dos meus pensamentos. Ora, seguia o planejado; ora, me via tomada por sentimentos que julgara enterrados. Trazer para minha casa não era um de meus projetos. Sabia que quão mais próxima dele eu permanecesse, mais vulnerável estaria. Maior seria a chance de me ver envolvida outra vez.
O som de notificação do celular fez-me voltar à realidade, li a mensagem rapidamente, levantei-me e fui bater na porta do banheiro.
— Venha ao meu quarto assim que puder, precisamos acertar os pontos do processo.
Poucos minutos depois, um de cabelos úmidos, camisa preta e calças de moletom apoiou-se na mesa de trabalho cheia de papéis timbrados com o selo da Smith & Lynch Advogados.
— Como caralhos, dentre todos os escritórios de advocacia da Inglaterra, eu fui parar justamente no que você trabalha? - como sempre, sua expressão era neutra, quase despretensiosa, porém era nítido que ele esperava uma resposta que o satisfizesse.
— Porque eu tinha certeza que, mais cedo ou mais tarde, a bomba explodiria e você precisaria de mim. A Smith & Lynch tem excelente reputação tratando de casos envolvendo direitos autorais, propriedade intelectual e violação dos direitos trabalhistas. Hoje, meu cliente é você. Amanhã, posso estar processando um produtor desonesto da Jessie J, por exemplo. Obviamente você procuraria um serviço especializado, não pode perder a causa ou isso custaria sua vida. Literalmente.
Silêncio.
— Eu te meti nessa situação, eu vou te tirar dela. - prossegui - De brinde, vamos mandar e o pai dele para a cadeia por um longo tempo.
Pelas horas que seguiram até tarde da noite, todas as estratégias foram traçadas, as evidências que tínhamos a nosso favor foram postas na mesa, de modo a termos ampla visão do que precisávamos correr atrás. Determinadas aparas ainda precisavam ser cortadas para que o círculo fechasse perfeitamente. Após o envio de alguns e-mails, o processo estava oficialmente aberto. Pelas minhas estimativas, estaríamos no tribunal em duas semanas.
— Todos os seus pertences importantes estão naquela mochila que você trouxe? — perguntei. - virei-me para encará-lo, sentado na ponta da cama de casal em que eu dormia.
— Basicamente sim.
— Ótimo. Amanhã vou enviar uma pessoa de confiança até sua casa assim que a perícia liberá-la para juntar uma coisa ou outra que você tenha deixado para trás. A casa será devolvida à imobiliária ao fim do processo e, até que isso aconteça, em hipótese alguma vá até lá. Estou entrando em contato com sua gravadora atual, preciso que um representante deles faça um enorme favor para mim.
— Certo, faça o que achar que deve ser feito. - levantou e encaminhou-se à porta, fiz menção de segui-lo - Se não se importa, preciso dormir um pouco. Será que você pode me deixar quieto no meu quarto e voltar só quando amanhecer?
— Não vai jantar?
— Estou enjoado depois dessa merda toda.
As sobrancelhas quase se tocavam tamanho contraídas estavam. Isso estava além do que imaginei.
— O que houve, ? - sentei ao seu lado na cama recém-montada.
— Às vezes eu esqueço que você e cresceram juntos. A frieza é a mesma. O inferno de mania de transformar as pessoas em peças do joguinho de vocês também.
— Não é bem assim. - toquei seu braço.
— É exatamente assim, . Se tinha ideia que a desgraça que eu vivi poderia realmente acontecer, por que me deixou ser parte disso? - afastou-se - Eu era só um rato pro seu experimento. Você me tirou do lixo, não foi? Perfeito! O próximo passo era lançar o rato aos leões e observar de longe, muito longe.
— Já te disse que não podia ficar em Londres, eles estavam desconfiados de mim. Se descobrissem que estava colaborando com a polícia, eu não estaria aqui hoje. Era minha segurança em jogo, assim como a sua, porque você não sabia de nada. Me desculpa, .
— Eu te liguei. Enviei inúmeras mensagens. Lotei sua caixa de e-mail. Mandei cartas e mais cartas pro endereço que você deixou, todas foram devolvidas porque o destinatário não havia sido encontrado. - o tom era pesado, densificado por tanta mágoa extravasada.
— Eu sei. Ouvi os recados que deixou na caixa postal, li os e-mails e as mensagens. Todos eles. Era assim que eu sabia o que estava acontecendo por dentro da Mont Blanc. Era a garantia de que você estava vivo. - respondi com honestidade, mesmo sabendo que doeria como estacas sendo enfiadas em seu peito.
— Inacreditável. Não sei o que estou fazendo aqui com você, garota. Não sei! Você é uma mentira, o que tivemos foi uma mentira, eu sou uma mentira!
— Claro que não! - rebati indignada. - , me escuta. Não menti para você, principalmente sobre isso. Eu realmente…
— Cala a boca! - gritou. - Eu acreditei. Caí no seu papo, te dei o que você queria. Você queria um soldado pra lutar o caralho da sua guerra por poder, eu estava aqui. Você queria alguém pra te esquentar na cama, eu te fiz gritar muitas vezes. Foi bom, não foi? Valeu até sair do seu pequeno palácio pra dormir num muquifo de subúrbio, desde que tivesse um homem entre suas pernas.
Lágrimas ameaçavam escorrer pela minha face, engoli seco para contê-las. Ouvir cada uma daquelas palavras era como levar um soco na boca do estômago, era torturante. A ânsia subia pela garganta queimando tudo em seu caminho. Eu havia brincado com fogo e finalmente estava sentindo a dor das queimaduras.
— Você me usou, . - continuou - E da pior forma que podia, se apoderando do meu tão caro afeto. Agora você tem as provas de que precisa pra destruir seu padrasto e o babaca do seu irmão, ao custo da sanidade que restou em mim. Eles sonegam impostos, aliciam menores e as usam como moeda de troca, mexem com gente barra pesada, mantêm empregados em situação precária, subornam figurões do governo e têm o simpático hábito de sumir com os desafetos. – enumerou, contando nos dedos - Mas você sabia disso, afinal era esse dinheiro imundo que bancava seus luxos, princesinha. Te faltavam provas, mas seu faro nunca te enganou. Você é esperta demais pro bem de quem tá ao seu redor. Mesmo assim, jamais recusou o conforto que a grana da sua família podia te oferecer.
As paredes do quarto pareciam fechar pouco a pouco, me sufocando.
— Em poucos dias você estará livre de mim e de tudo que trouxe para sua vida, se essa for sua vontade. - murmurei - Vamos vencer o processo, você poderá fazer o que quiser dali para frente. Nunca mais precisa olhar para mim, se quiser. Ainda assim, não deixarei de pensar em você nenhum dia, tal como nos últimos três anos.
— Não tente me convencer com sua balela. Achei que te conhecia, . Vejo que me enganei redondamente. Você merece a família que tem.
— Não tenho mais família. - dei de ombros com a voz embargada pelo choro que tentava controlar - Minha irmã ficou na Nova Zelândia, minha mãe está morta, é filho do demônio e eu destruí tudo que pudesse vir a construir contigo. Estamos no mesmo barco agora, . Órfãos, com a vida ameaçada, meio sem saber para onde ir, mantidos de pé pela busca pelo que nos é de direito.
Me joguei na cama de olhos fechados, segundo depois escutei a porta do quarto de hóspedes sendo batida com força.
As horas tinham muito mais de 60 minutos naquela madrugada. Dormir parecia impossível, me restando, então, trabalhar para passar o tempo. Às três da manhã, não havia mais o que ser feito. Tomei um banho e tentei, em vão, adormecer. Estiquei a mão para alcançar o celular na mesa de cabeceira, rapidamente meus dedos deram corpo à mensagem:
“Sua foto vai estar na capa de todos os jornais de grande circulação assim que raiar o dia. Desculpe te expor dessa forma, é para sua segurança.”
Desde que saíra do meu quarto, não abrira a porta do cômodo onde estava instalado. Não sabia com que coragem o encararia, logo, optei por vestir a máscara profissional novamente. Tinha de me proteger do efeito que ele tinha sobre mim, mas, em especial, proteger-me de mim mesma. Ele estava profundamente magoado e eu me sentia a pior pessoa que já caminhou pela face da Terra. A certeza que me movia era, não obstante, indubitável. Precisara de tempo para reunir as evidências para dar um tiro único e certeiro, agora as tinha. O alvo tinha de ser abatido de uma vez só. Esperar mais tempo para revelar todo o esquema criminoso por trás da Mont Blanc estava fora de cogitação, tanto pela capacidade destrutiva de Griffin quanto pela forma como havia sido criado para dar continuidade ao império de violência.
“Tá.”
O acender repentino da tela do celular me assustou. Ele era insone, claro. Foi burrice enviar a mensagem imaginando que ele só a veria no dia seguinte. Quantas vezes fui para a faculdade sem dormir para fazer companhia a ele?
O teto de cimento batido, o colchão duro, as respirações descompassadas, as conversas aleatórias, tudo seguia vívido em minha mente. De volta ao presente, o teto com arabescos em gesso não saciava a saudade em meu coração; a cama era macia; os lençóis, do linho de melhor qualidade; ao meu lado, apenas a solidão amarga.
“Quando tudo isso acabar, lembre-se que sempre serei sua amiga.”
Três anos não foram o suficiente para enterrar os sentimentos que carregava no peito. De que adiantou a distância física se nunca consegui apagar da memória o cheiro da pele dele? tinha razão, eu era uma grande piada.
“Não sei se há tempo de dar meia-volta, ."
Mesmo depois de machucar um coração com tantas cicatrizes, eu ainda era dependente demais das lembranças para deixá-lo em paz. Por que precisava tanto tê-lo por perto?
"Estou sem sono. Se quiser companhia, a porta está destrancada."
Patética, fraca, ridícula, apelativa, desesperada.
"Melhor não. Onde tem papel e caneta?"
É, melhor não. Onde estava com a cabeça?
“Perto da impressora.”
Mal havia acabado a segunda-feira.
Quinta-feira, 1 de novembro.
Desde que foi para minha casa, poderia contar nos dedos quantas vezes nos falamos diretamente. Uma troca rápida sobre o processo aqui, um café feito em lembrança do outro ali, uma entrega de delivery acolá, não mais que isso. Poucas também foras as vezes em que um de nós saiu de casa, para preservar nossa própria segurança. Policiais à paisana conduziram para exame de corpo delito e, finalmente, suturar o corte provocado por . Me ausentava apenas para ir à Smith & Lynch e para visitar alguns contatos.
Notícias chegavam o tempo todo, alterando os rumos do processo, tornando mais difícil dormirmos sem sentir medo. Medo porque a situação estava afunilando. Primeiro, os jornais anunciaram o escândalo envolvendo a Mont Blanc, uma das maiores gravadoras do Reino Unido, acusada de roubo e exploração de seu mais promissor artista, . Tal logo foi concluída a perícia comprovando o arrombamento da casa de , os tabloides voltaram a mostrar seu rosto na primeira página, desta vez ao lado de , filho e sócio de Griffin , CEO da Mont Blanc Records. Dia após dia, a imprensa desenterrava mais e mais detalhes cuidadosamente vazados, empurrando a opinião pública contra a empresa. O circo precisava estar armado para pegar fogo e, só então, nunca mais armar a lona novamente.
Foi necessário contratar seguranças, sair de casa era cada vez mais arriscado. As ameaças chegavam por telefone, correspondência, e-mail, na porta do escritório. Depois que a polícia revirou a casa dos e a gravadora de cima a baixo em busca de provas, expondo-os ao ridículo, as janelas do apartamento passaram a ter o reforço de placas à prova de balas. Seus passaportes foram apreendidos, suas fotos estavam em todos os portos, rodoviárias, estações de trem e aeroportos da Europa, não tinham para onde ir a não ser olhar no fundo dos meus olhos, sentados no banco dos réus, e admitir toda a desgraça que trouxeram a vida de .
O cerco estava se fechando. O tique taque do relógio ficava mais e mais lento. Minhas mãos suavam. Era chegado o momento. Extraordinariamente foi estabelecida trégua em nossos embates e questões pessoais para que pudéssemos trabalhar bem em conjunto para o sucesso do julgamento. Lá estava ele, solto, confortável, presenteando-me com sua presença aconchegantemente rabugenta. Desde o amanhecer pude deleitar-me com vislumbres do homem que tomara meu coração por completo e desfrutar de sua companhia por minutos que valiam como meses inteiros. A trégua valia também para os meus esforços em negar o que era óbvio: eu seguia plenamente encantada e apaixonada por .
Chegar até o tribunal foi difícil, a escadaria principal estava repleta de repórteres com suas câmeras e microfones, aguardando o melhor ângulo para capturar a imagem de um dos envolvidos naquele caso que começou pequeno e ganhou força estrondosa. Os réus entrariam pelos fundos do prédio, a fim de evitar comoção e preservar a integridade dos mesmos. Nós, a acusação, chegaríamos com todos os holofotes sobre nós. E era exatamente isso que queríamos.
— , tem algo para comentar?
— Senhor, é verdade que teve sua vida ameaçada por ?
Os jornalistas esticavam os microfones e gravadores o máximo que podiam, quase enfiando-os na nossa boca. Cada passo que dávamos era à base de empurrões, cercados por policiais cuja missão era salvaguardar nossa integridade. O mais importante, contudo, era garantir que não disséssemos nada comprometedor. A orientação era para permanecermos em silêncio.
Era a primeira vez que meu nome estaria exposto como advogada de acusação em um processo tão importante. O scarpin apertava meus pés, a pasta tinha um peso incômodo, a beca vinha pendurada no braço, no meio de tudo isso, segurava-me em para não nos separarmos em meio à aglomeração. Vestir-me à altura da ocasião era o menor dos meus desafios, árduo mesmo era esconder o turbilhão dentro de mim.
— Dra. , por que escondeu ter namorado o Sr. ? - uma repórter à direita indagou, atraindo a atenção dos demais - Tivemos acesso a imagens que comprovam o relacionamento.
Siga em frente, .
— A dra. julga estar apta a defender um ex-namorado em um processo contra seu padrasto e seu meio-irmão? O que vai pesar mais, a família ou o amor do passado?
Senti um leve chute na canela, era ao meu lado. Um silencioso incentivo a não dar ouvidos. Continue a andar. Não olhe para trás. Não dê atenção a eles.
Degrau após degrau, chegamos ao nosso destino. Atravessamos o enorme corredor, piso e paredes de madeira.
Tec-tec.
Meus passos aparentavam ecoar por todo o prédio. Se fechasse os olhos, diria pertencerem a um gigante.
— Não lembro de um dia termos oficializado nosso relacionamento. - falou num tom tão baixo que apenas eu escutaria.
— Nem eu. Agora você tem o título oficial de ex-namorado dado por alguém que não eu.
— Porra...
O silêncio imperou entre nós. Deixei-o desconfortável. Não é possível que você seja tão burra, ! Não tinha tempo para tentar consertar, as pesadas portas duplas de madeira abriam-se. O julgamento iria começar.
O juiz, um sujeito que eu sabia estar tendenciosamente a nosso favor, solicitou que assumíssemos rapidamente nossos lugares, pois os réus entrariam. Por uma porta menor, Griffin e foram conduzidos ao banco dos réus. Cruzei as pernas por baixo da mesa, assumi uma expressão segura de modo a manter-me íntegra e, assim, suportar o ódio do olhar deles. Logo reconheci o advogado de defesa como sendo um figurão da criminalística, eles não estavam ali para brincar. Nem eu. Meu desejo era que eles entrassem algemados, porém tive o pedido de prisão preventiva negado todas as vezes. Todos tinham um preço, inclusive a promotoria.
— Nunca na vida achei que eles fossem se prestar a esse papel. - comentou.
— Eles não planejam perder, veja como não estão preocupados.
— Senhoras e senhores, estamos reunidos nesta manhã para dar início à sessão deste Tribunal. - o juiz chamou a atenção para si - Hoje será levado a júri o processo movido pela Dra. contra a empresa Mont Blanc Records, na figura dos Srs. e Griffin , sendo vítima seu cliente, o Sr. . Estando todos aqui presentes, acusação, réus, vítima, defesa e testemunhas, damos início aos trabalhos.
— Temos testemunhas? - sussurrou para mim, ligeiramente surpreso.
— Não me subestime, garoto. - respondi com um sorriso ladino.
— Jamais, garota.
Então ele riu. O sorriso se abriu ainda tímido, os olhos fecharam-se e a cabeça pendeu para baixo.
Meu coração se aqueceu de uma forma gostosa, indo além do nervosismo. Totalmente inesperado, totalmente . Meu Deus, como sentia falta dele, de tê-lo presente.
— Por favor, diga seu nome, idade e o nome do advogado que o representa. - pediu o juiz, dirigindo-se a .
— Adam , 25 anos. Sou cliente do Dr. Jacob Strauss. - respondeu tranquilamente, porém sua voz tinha claros traços de soberba.
Ao virar-se para voltar ao lugar onde estava sentado, encarou-me com desprezo. Griffin repetiu o mesmo procedimento logo em seguida, sustentando também o olhar ameaçador sobre e eu.
— Apresentados os réus, convido o Dr. Strauss para tomar lugar na tribuna de defesa.
— Vão interrogá-lo logo, logo. Seja o grande sacana que você é e vai dar tudo certo. Não deixe que te desestabilizem. - informei . — Mas antes, dance comigo.
Nas poucas conversas que tivemos nas duas semanas em que vivemos sob o mesmo teto, o planejamento da arguição nos tomou bastante tempo. Ele sabia o que eu perguntaria e, principalmente, sabia como responder de forma bastante convincente. Era um balé muito bem ensaiado, uma dança em que envolveríamos um ao outro com palavras, gestos e expressões que seriam minuciosamente analisados por todos naquele recinto.
O silêncio da sala foi quebrado novamente pela voz grave do juiz:
— Acusação, deseja apresentar e ouvir a vítima?
— Sim. - pus-me de pé. - Meritíssimo, cá temos sentado para oitiva o Sr. Jan , de 28 anos, nascido em Leipzig, Alemanha, naturalizado cidadão britânico. Órfão de pai e mãe, o Sr. teve uma vida árdua, vencendo batalhas diárias para garantir seu sustento neste país. Notavelmente talentoso, viu na música um porto seguro de onde poderia tirar sua subsistência. - caminhava de um lado para o outro, ora focando meu olhar no juiz, ora em , ora nas pessoas que compunham a plateia - Como já deve ser de conhecimento de muitos, o Sr. apresentava-se em frente à Universidade de Londres, tocando violão e cantando por horas a fio e foi ali que o conheci. O foco desta audiência não tange a vida íntima do meu cliente, tampouco a minha, porém, a fim de evitar burburinhos, adianto que o fato de termos mantido um relacionamento amoroso não é redutor da minha capacidade como sua advogada. - virei-me para a tribuna da defesa e encarei firmemente e seu pai, dando as costas a - É preciso coragem para defender uma pessoa que deixou marcas em minha vida, porém é necessário muito mais coragem para expor publicamente os crimes de familiares. sofreu abuso psicológico, ameaças, roubo de propriedade intelectual, exploração laboral, violação dos direitos trabalhistas, desvio de recursos financeiros, negligência, agressões e, por fim, tentativa de homicídio por parte de seus empregadores, os Srs. , enquanto afiliado à Mont Blanc Records.
Era estranho o quanto as faces dos estavam tranquilas. Meu irmão parecia, inclusive, estar se divertindo. Os dedos batucavam a mesa, comportamento característico de euforia que aprendi a reconhecer pelos anos de convívio. Não era nervosismo, não era apreensão, era euforia. Como quando esperávamos a meia-noite passar para abrirmos os presentes de Natal.
Algo estava errado.
Virei-me para e deparei-me com o porquê da satisfação repentina de .
Algo estava errado. Totalmente errado.
Um ponto vermelho marcava o exato centro de sua testa. Um laser.
— Abaixa! - gritei a plenos pulmões.
lançou-se ao chão, derrubando a cadeira em que estava sentado, milésimos de segundo antes do projétil atravessar a enorme janela lateral. No mesmo local onde estivera o homem de olhos havia uma bala cravada na parede.
— O que está acontecendo? Guardas! Guardas! - gritava o juiz.
Duas das cinco fileiras de espectadores se levantaram, cada um empunhando uma pistola. Todas apontavam para nós. Da porta por onde haviam adentrado os réus vieram outros homens vestidos de preto com os rostos cobertos. Dediquei um segundo ou dois a contar quantas pessoas naquela sala poderiam me matar. 13. Quantos policiais estavam presentes? Cinco. Talvez outros dois do outro lado da pesada porta dupla de madeira.
Merda.
Havia pelo menos um atirador do lado de fora. Talvez mais.
Fodeu.
Não dava tempo de pensar, precisávamos continuar vivos.
— Guardas, façam alg-
O estampido abafado tomou conta do recinto. O juiz levou as mãos no peito, de onde uma cascata de sangue vivo descia por entre seus dedos.
O que estava acontecendo?
Muito lentamente, retirei os sapatos um de cada vez e caminhei de costas para próximo de , que seguia escondido protegendo-se embaixo da tribuna do juiz.
Passo a passo. Bem devagar.
De relance, vi Griffin ser levado para longe através da porta auxiliar, escoltado por dois dos homens de preto. Espera, onde estava ?
O toque frio da lâmina contra minha garganta fez-me parar.
— Vai pra onde, sua putinha? Salvar o namorado? - disse a voz atrás de mim. - Mais um passo e o chão vai ficar vermelho com seu sangue.
— Me deixa ir, . - levei as mãos ao canivete pressionado contra meu pescoço. - Larga essa merda. O que você está fazendo?
Eu estava tremendo. Os músculos de minhas pernas foram trocados por gelatina da pior qualidade. Lutei contra a respiração que queria tornar-se ofegante.
— Você achou que podia me derrubar, vadia. Como você é estúpida... Tão estúpida que merece morrer.
Havia menos de meio policial para cada capanga armado. Eles estavam imóveis, quem sabe fazendo os mesmos cálculos que eu, tão tensos quanto eu estava.
Precisava arriscar ou morreríamos todos.
— Cansou de viver embaixo da saia do papai, Seb? Aposto que não gostou de ver a mesa virar contra você, que dirá sentar na frente de um juiz. Vamos lá, aperta sua faquinha e me mata. Aperta, . - falei alto. - Aperta!
Sirenes de emergência tocaram estrondosamente por todo o prédio.
compreendeu minha mensagem: embaixo da mesa do juiz tinha um botão de emergência que o próprio, por nervosismo, não fora capaz de acionar. Mentalmente, agradeci a Deus por ter pensado rápido. Aquela era nossa chance.
Cortinas de metal cobriram as janelas, impedindo a visão do mundo exterior. As portas automaticamente se abriram, gritos foram ouvidos do lado de fora. O código era claro, havia problemas no tribunal. Os inocentes se abaixaram instantaneamente.
Sabia que era uma fração de segundo até perder o controle e realmente passar o canivete na minha garganta ou um daqueles homens atirar contra mim. Os policiais que guardavam o lado externo entraram rapidamente, atirando contra os que empunhavam armas.
Rápido. Rápido.
O barulho tornou-se ensurdecedor. Eu tremia sem parar, o ar faltava em meus pulmões. Meu irmão me puxou, obrigando-me a caminhar para o canto, um local mais seguro. Talvez ele tentasse alcançar a porta secundária.
— Larga ela, seu filho da puta! - entrou no campo de visão de , segurava uma arma que encontrara perdida no meio da confusão.
prendeu a respiração e fez mais força contra mim. Minha pele começou a ceder à pressão da lâmina, doía. Filetes escorriam pescoço abaixo. Sangue.
— Foi bom comer minha irmã, ? - riu - Nós descobrimos tudo, acharam mesmo que ninguém ia saber? O único idiota aqui é você. Espero que tenha valido a pena morrer por causa dessa vadia.
Um tiro.
Meu captor chacoalhou, seu corpo endureceu e pendeu para o lado direito.
— Que merda é ess-
Mais um.
O canivete desceu minha garganta, a dor era lancinante. caiu de joelhos. Tudo ao nosso redor era vermelho. O sangue, as luzes de emergência, a raiva, o medo.
Minha vista foi escurecendo aos poucos, respirar era insuportável. correu até mim, apoiando minha cabeça em suas mãos.
— Fica comigo, . Porra, não fecha os olhos! Aguenta firme. Que inferno! Eu odeio te amar tanto, garota. Fica aqui, não vai embora.
Se a visão do seu rosto era a última coisa que eu veria, tudo bem. Poderia levar essa imagem ao paraíso. Os olhos , o piercing no nariz, o pequeno alargador na orelha esquerda.
Como ele era bonito.
Segunda-feira, 24 de dezembro.
— Por favor, cante para nós, . - disse o apresentador. A plateia aplaudiu fortemente quando ele se posicionou no centro do palco com o violão.
— Essa é a primeira vez que me apresento depois de tudo o que aconteceu, espero que gostem.
I'm a singer with a flow
I've got a habit of spitting
Quicker lyrics you know
You found me ripping the writtens
Out of the pages they sit in
And never want to get bitten
Cause plagiarism is hidden
Watch how I sit on the rhythm
Prisoner with a vision
(...)
Nos bastidores, o orgulho não cabia em mim.
O que aconteceu com depois que foi preso, para onde tinha ido Griffin, nada disso interessava por hora. estava de volta aos palcos de onde nunca devia ter saído e eu estava ao seu lado, apoiando-o silenciosamente do backstage.
Havíamos conseguido.
Fim.
Nota da autora: Essa é a primeira vez que escrevo para o FFOBS, diretamente saída da aposentadoria! Me senti tão acolhida pelas pessoas maravilhosas que conheci que estou em casa. Então, preparem-se pra me ver aqui outras vezes, seja em ficstapes, em outros especiais, podem ter certeza que estarei por perto. Espero que tenha gostado da história, de conhecer esses personagens tão queridos que pra mim nasceram como Emma e Lancelot. Eles voltarão, muita coisa precisa ser contada, eles têm muito pra viver.
Quer bater um papo? Pode me mandar um e-mail ou me chamar no Telegram, minhas redes sociais também estão listadas.
Ei, leitoras, vem cá! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso para você deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.
Nota da beta: Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.