Última atualização: 29/06/2020

I

23 de Janeiro de 2019, 10:47 AM

tinha uma manta grossa sobre os ombros, enquanto observava, de sua sacada, o tempo nublado lá fora. Nem com outra caneca daquele chocolate quente cremoso e fumegante sentiria seu corpo realmente aquecido. Aparentemente, ela não conseguia esquentar o grande vazio que tinha dentro de si.
Também não conseguia mais chorar. Sentia-se desidratada e drenada de qualquer tipo de energia até para esboçar seus sentimentos. Não era mais capaz de permanecer remoendo a tristeza, a sensação de culpa ou o arrependimento e o desespero que haviam passado os últimos dias entalando sua garganta, impedindo-a de respirar adequadamente enquanto se questionava incansavelmente acerca de tudo o que podia ter feito diferente.
A única coisa que ainda não havia a abandonado era a última fagulha de esperança. Esperança de que a chuva não caísse tão cedo naquele dia. Esperança de que ouvisse um barulho à porta. Esperança de que seu sorriso fácil a desmontasse, bem ali, esperando-a tão de perto. Esperança de que aquele não fosse realmente o fim. Mas mesmo a sua esperança estava enfraquecendo a cada segundo, tremeluzindo como a chama fraca de uma vela, prestes a se extinguir, perguntando-se quem lhe apagará de vez: o tempo ou um sopro. se sentia muito fraca, capaz de sucumbir ao mínimo sopro. Não precisava de mais tempo. Já sabia que tinha perdido.
Na verdade, olhando em retrospecto para tudo o que havia acontecido, não é como se fosse realmente tão surpreendente o rumo que as coisas tinham tomado.
Ela só escolhera deliberadamente ignorar tudo aquilo. E torcer. Era uma pena que mesmo seus amigos sempre tivessem dito que ela era a maior “pé frio” da história.


II

03 de Outubro de 2018, 08:22 PM

— Sim, Hill, eu entendi - respondeu, com o telefone celular preso entre a orelha direita e o ombro do mesmo lado. — Já te disse que sou completamente capaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo.
A mulher bufou, olhando para si mesma no longo espelho, enquanto segurava um vestido preto longo na frente do corpo. Teria que ser aquele. Era a melhor opção para o evento e um dos poucos que não precisaria de ajustes ou repaginadas por já terem sido utilizados previamente.
— Hillary. Eu já entendi - ela repetiu, pausadamente. — Será que você pode confiar na sua amiga uma vez na vida? Já está tudo certo para quando ele chegar.
revirou os olhos mais uma vez, antes de finalizar a ligação e arremessar o aparelho na cama. Hillary era uma ótima amiga, mas definitivamente precisava tentar ser menos controladora e aflita. Era talentosa, bela, gentil, educada, determinada, mas definitivamente não conseguia confiar em absolutamente ninguém fazendo as coisas se não fosse ela própria.
— Sinto muito, querida. Dessa vez você realmente não tem escolha a não ser confiar em mim - murmurou para si mesma, observando o próprio reflexo.
Começou a se questionar sobre o decote do vestido. Será que ele poderia ser considerado revelador demais para um evento beneficente? Mas era um jantar formal. Duvidava que mais da metade de seus conhecidos entre os convidados fosse se vestir de uma forma que se aproximasse do conceito de ‘básico’, ainda mais aqueles que, assim como ela, estampavam constantemente o que se entendia como símbolos da moda atual.
— Dane-se. É você mesmo - disse, pendurando-o de volta em seu respectivo cabide e fechando a porta do armário.
Já estava prestes a deixar seu closet quando ouviu o som da campainha soando por todo o apartamento. Correu para o banheiro, escovando os dentes - só por garantia - rapidamente, antes de chegar à porta com um sorriso educado, que tentava demonstrar simpatia e hospitalidade. Afinal, Hillary não demoraria a ligar gritando em todas as línguas que conhecia se ela fosse qualquer coisa menos que uma anfitriã impecável.
— Olá! - Ela tentou não olhá-lo de cima a baixo, fazendo uma nota mental de algo que a amiga definitivamente havia se esquecido de mencionar: ele era absurdamente bonito. — Você deve ser o .
O rapaz repuxou os próprios lábios, sorrindo levemente, enquanto assentia.
— E você deve ser a .
— Ah, não. Pelo amor de Deus, por favor, pode me chamar só de .
— Não gosta do seu nome? - O sorriso dele aumentou um pouco, enquanto a questionava.
A mulher fez uma careta.
— Acho que me faz parecer uma senhora de 92 anos. Como a sua rainha - ela brincou e esperou que ele não se sentisse ofendido pela piada sem graça. O patriotismo de algumas pessoas conseguia assustá-la e ela, sinceramente, esperava não ser o caso dele ou teriam começado com o pé esquerdo.
Mas ele riu. E ela só foi capaz de respirar aliviada.
— Faz sentido. Como a rainha - ele repetiu, fazendo-a notar ainda mais o sotaque britânico acentuado.
Por sorte, tinha bom senso o suficiente para saber que seria muito estranho pedir que ele ficasse falando ao pé de sua orelha com aquela voz forte e acolhedora. Contudo, não tentava sequer refutar a ideia de que, naquele momento, aquilo era exatamente o que ela queria.
— Entra, fica à vontade. - Ela deu passagem para que ele entrasse com as malas. — E, bom, bem-vindo a Nova York.
olhou ao seu redor, girando sobre os próprios pés, como se estivesse capturando uma imagem panorâmica mental da cobertura. deveria admitir, se ele realmente vinha de uma família tão humilde quanto Hillary dissera, talvez aquilo tudo fosse um pouco demais para se absorver de cara.
— Tudo aqui é grande desse jeito? - Ele se virou para ela. — Desculpa, eu não deveria ter me expressado dessa forma. É um lugar muito bonito e eu agradeço muito por me receber aqui.
deu uma risada, enquanto andava até ele.
— A educação britânica é mesmo uma graça. - Olhou no fundo dos olhos dele, evitando encarar as bochechas que começavam a ficar mais vermelhas que os famosos ônibus ingleses. — Vem, vou te mostrar o seu quarto.
Ele a acompanhou por alguns corredores, virando três vezes antes de finalmente alcançar o mencionado cômodo. Aquilo era totalmente diferente de tudo o que ele conseguia imaginar quando alguém mencionava um apartamento. Um labirinto cuidadosamente mobiliado, talvez, mas não um simples apartamento.
— Eu esvaziei os armários, pode colocar as suas coisas. Na gaveta mais baixa tem mais roupa de cama e de banho. A porta bem do lado do quarto é um banheiro, você pode usá-lo sem preocupações. Ah! Também pode se sentir super livre para pegar o que você quiser na cozinha para comer, certo? E se quiser algo do mercado, só me avisa.
— Eu nem sei como te agradecer. É muita coisa. - ainda estava visivelmente chocado. — Eu posso ir ao mercado para você, sabe? Fazer algo para ajudar.
— Não precisa se preocupar, sério.
— Eu quero mesmo - ele reforçou.
concordou com a cabeça.
— Tudo bem. Eu ia até lá amanhã cedo. Se você quiser, podemos ir juntos para eu te mostrar o caminho. Daí você pode começar a caminhar até lá sozinho.
— Seria ótimo. Obrigado, . - A careta que ela fez causou a correção quase instantânea. — Quer dizer, . Desculpa, juro que logo me acostumo.
Ela riu alto.
— Sem problemas. Vou deixar você descansar, deve estar exausto da viagem.
— Mais as cinco horas de fuso - ele acrescentou. — Acho que vou aceitar a oferta. Obrigado mais uma vez.
— Não há de quê. Todo amigo da Hillary é automaticamente meu amigo. Fica à vontade.
E ela abandonou o quarto de hóspedes, seguindo até o próprio. Tinha um trabalhinho a fazer no facebook. Se quisesse mesmo ser uma boa anfitriã, precisava saber tudo o que pudesse sobre ele. Ao menos, era o que ela dizia a si mesma enquanto clicava no aplicativo azul e digitava rapidamente o nome do rapaz que passaria algum tempo sob seu teto.


❈❈❈



04 de Outubro de 2018, 09:46 AM

já estava esperando-a quando ela finalmente encontrou o par de tênis esportivos que caíam melhor com aquele conjunto. Sorriu um pouco envergonhada, sem saber ao certo se deveria se desculpar dentro de sua própria casa por algo que ela realmente não julgava como um problema.
— O supermercado fica a umas quatro quadras daqui, então eu costumo ir até lá a pé mesmo. Acabo aproveitando para dar uma caminhada e eu não compro muitas coisas mesmo. Dá para trazer as compras nas mãos e ainda fazer um exercício de braço na volta - ela brincou.
Ele concordou, sorrindo. se adiantou para destrancar a porta, enquanto pensava em como seu sorriso era igualzinho ao do pai. Aquele pai que estava em pelo menos metade de todas as suas fotos publicadas no facebook. Mas ela seria, ao mesmo tempo, inconveniente e assustadora se optasse por verbalizar aquilo.
— Hill disse que você tinha recebido uma bolsa aqui - ela começou, tentando puxar assunto enquanto andavam.
— Ah, sim - ele respondeu. — É um intercâmbio estendido, na verdade. Eu terminaria o tempo que falta da graduação e já aliaria isso ao meu projeto de pesquisa do mestrado.
— Que legal. - nunca havia sido tão sincera. — E você estuda o quê?
— Engenharia química.
— Parece difícil. Se tem números, automaticamente eu considero muito difícil.
— Trauma de exatas?
— Meu pai nunca teve um pingo de paciência sequer para me ajudar e me ensinar. Na verdade, ele fazia questão de reforçar o quanto me achava totalmente patética por ser tão burra e que, por isso, não ia perder seu tempo ou dinheiro com uma professora particular.
— Isso é horrível.
— Ele sempre foi horrível. - Ela deu de ombros. — Não é à toa que eu pedi emancipação judicial assim que me vi com idade o suficiente para isso. Morei com uma tia por alguns meses e acabei recebendo uma proposta de um amigo dela para ser modelo fotográfica para uma marca de produtos capilares.
— Foi assim que você começou a carreira de modelo?
Ela assentiu, sorrindo.
— Começou com umas fotos, então vieram mais várias fotos, algumas passarelas, algumas figurações em filmes e séries, aparições em festas… Em algum tempo, eu tinha conquistado o meu espaço e minha estabilidade financeira para poder acenar um longo adeus para toda a minha família.
— E sua mãe?
— Morreu quando eu tinha quatro anos. Acidente de carro.
— Eu sinto muito - ele murmurou, arrependendo-se de ter feito aquela pergunta. Se ela só tinha falado sobre o pai, ele deveria ter presumido e simplesmente calado a boca.
— Não tem problema - ela garantiu. — Já faz tanto tempo.
“Mas me conta mais sobre a sua família.”
coçou um pouco um ponto de sua testa onde os cabelos faziam um movimento estranho, criando um redemoinho de fios.
— Sou o terceiro de seis filhos. Duas irmãs mais velhas, uma irmã e dois irmãos mais novos. Meu pai é marceneiro e minha mãe dá aulas de geografia. Sempre fomos bem unidos, daquelas famílias que vão caminhar e brincar no parque aos domingos e fazem questão de ter pelo menos os jantares em família, todos reunidos, querendo saber sobre o dia do outro. Sempre foi tudo muito simples, mas dificilmente solitário.
sorriu imediatamente, apesar de saber que havia um fundo de tristeza em sua expressão. Desde que a mãe falecera, soubera muito pouco o que era realmente ter uma família. Maquiadores, estilistas, cabeleireiros e outros modelos tinham se tornado, com o tempo, o mais próximo de qualquer noção de família que ela pudesse ter. No entanto, ainda era uma família torta, desmembrada, que nem sempre se via com frequência e ganhava e perdia membros a todo momento.
Mas ela realmente achava lindo e incrível que ele pudesse viver isso tudo.
— Eles parecem ótimos - disse. — Deve ter sido bem complicado para você aceitar essa proposta em outro continente, então.
assentiu, expirando o ar com mais força. se perguntou se era um indício de tristeza ou de cansaço pela caminhada.
— Eles sempre nos incentivaram cegamente em relação aos nossos sonhos; especialmente aqueles que estavam relacionados a uma carreira estável e, possivelmente, promissora. Mesmo com todas as lágrimas de todos, eu fui praticamente enxotado para pegar o avião até aqui. Era uma oportunidade que eu simplesmente não poderia perder.
— Você poderia ter ficado - ela concluiu. — Mas eles nunca te apoiariam a se contentar com qualquer coisa menos do que o absoluto máximo que pudesse ter.
Ele sorriu um pouco para ela, parando na entrada do supermercado.
— Exatamente.
— Tenho certeza de que o orgulho é maior que as saudades - ela completou. — Vamos entrar?
Caminharam até o local. Não era grande demais. Era bem acolhedor, na verdade. achava incrível como conhecia absolutamente todos os funcionários dali.
— Senhorita Cameron - um dos atendente a cumprimentou. — E que rapaz bonito! Não sabia que estava namorando.
— Primeiramente, Jon, eu já pedi mil vezes para me chamar só de . E, em segundo lugar, esse é o , amigo de uma amiga. Ele está se hospedando lá em casa até se habituar com a cidade e encontrar um lugar. Ele chegou ontem da Inglaterra.
— Ah, perdão pelo meu mau entendimento - ele pediu, sorrindo. — Seja bem-vindo, ! Espero que goste da cidade.
— Obrigado.
Com um aceno, a mulher seguiu adiante, pegando uma cesta para si e entregando outra a .
— Pode pegar o que você quiser e precisar.
— Eu vou pagar pelo que pegar.
— Não, não vai. Eu vou pagar. Você ainda é meu hóspede e não vou deixar que me faça essa desfeita. Além de que, a menos que você pretenda fugir de mim no meu próprio apartamento, vamos comer juntos. Então é um gasto nosso, não seu.
— Eu não me sinto confortável dessa forma.
— Acho que vai ter que aprender a lidar com isso, - ela brincou, enquanto colocava os tomates na própria cesta.
— Posso ao menos fazer o jantar?
piscou algumas vezes antes de se virar para ele, confirmando que, sim, ela tinha ouvido bem.
— Você cozinha?
Ele deu de ombros.
— Sei fazer algumas coisas - admitiu. — Sou relativamente bom, apesar de não ter nenhuma formação na área.
— Posso te garantir que não é necessária formação alguma para agraciar um estômago faminto como o meu. Não deixe a palavra ‘modelo’ te enganar. Eu como bem.
— Pois farei o jantar, então. Alguma preferência?
— Aceitarei as sugestões do chef.
Seguiram seus caminhos por corredores diferentes, encontrando-se dali a algumas dezenas de minutos perto do caixa.
— Pegou tudo que queria?
Ele confirmou com a cabeça.
— Não vai mesmo me deixar pagar a minha parte?
— Vai me pagar com um jantar, . Eu não vou trocar isso.
Ele riu, enquanto esvaziava a cesta, transferindo seu conteúdo sobre a esteira, enquanto ouvia o apito sucessivo dos preços sendo checados.
tirou um de seus cartões de crédito, entregando-o para Jon, que mantinha um sorrisinho no rosto.
— Vou te esperar lá fora, ok? - perguntou. — Quero dar uma olhada melhor na rua para memorizar o lugar para as próximas vezes.
— Claro.
Com o rapaz já do lado de fora do estabelecimento, Jon a olhou, ainda sustentando a mesma fisionomia no rosto.
— Posso saber qual a graça, Jon? - Ela o encarou, com um olhar inquisidor e a sobrancelha arqueada.
— Ele é mesmo bonito - ele repetiu o comentário.
— Está interessado? Posso te passar o número dele.
— Eu? Jamais. - O homem riu. — Mas tenho a impressão de conhecer alguém que está.
— Olha só que absurdo - ela reclamou, rindo.
— Eu vi a forma que a senhorita o olha.
— Com os olhos, Jon. Por Deus, o rapaz chegou ontem. É um completo estranho.
— Eu disse interessada e não apaixonada - ele emendou. — Espero que seja feliz, senhorita Cameron.
— Que bom que eu não conheço ninguém que responda a esse vocativo. - Ela lhe deixou uma piscadela, enquanto pegava as sacolas. — Até mais, Jon.
— Bom jantar, - ele fez questão de arrastar o apelido dela, enfatizando-o após a provocação.
Ela saiu rindo, chamando a atenção de , que a esperava.
— Ele parece um homem adorável - o rapaz pontuou.
— Ele é. Bem adorável - ela repetiu o adjetivo, tipicamente usado pelos britânicos nas mais variadas situações.
Poderia, inclusive, apontar facilmente outra coisa adorável por ali.



04 de Outubro de 2018, 07:30 PM

O cheiro estava simplesmente divino e fazendo passar uma vergonha brutal a cada vez que seu estômago se expressava, concordando com isso.
Aparentemente, peixes eram a especialidade de . Além de um molho de qualquer coisa que ela não entendia, mas tinha um aroma tão bom quanto. Ele tinha sido um pouco modesto demais ao dizer que era apenas ‘relativamente bom’ e ela estava louca para poder confirmar aquela informação em seu palato.
— Você fica todo concentrado olhando esse forno - ela chamou sua atenção. — É fofo.
— Não sei exatamente a potência do seu fogão - ele explicou. — Estou um pouco preocupado que o peixe possa queimar.
Ela assentiu, fingindo entender. Tinha o eletrodoméstico há tanto tempo e não se lembrava da última vez em que tinha usado qualquer um que não fosse aquele. Nem sabia que poderiam haver diferenças entre um e outro. Mas se ele dizia, quem era ela para questionar?
desceu da bancada da cozinha, buscando uma garrafa de Chardonnay e duas taças.
Os dois brindaram rapidamente, dando o primeiro gole curto na bebida.
— Como você conheceu a Hillary?
— Os tios dela moravam na mesma rua que eu - ele respondeu. — Ela sempre ia passar as férias na casa deles, com os primos. Eu e meus irmãos crescemos junto com eles, sempre brincando na rua e arranjando algo para fazer em grupo.
— Ela tem um carinho muito grande por você.
— Ela me trata como um dos primos. Mas e você? Como vocês duas se conheceram?
— Em uma campanha fotográfica da Calvin Klein. Fizemos amizade no camarim, reclamando de como o modelo masculino se achava o próprio Mister Universo.
riu.
— Isso é totalmente a cara da Hill.
— Nada une tanto duas pessoas quanto o ranço por alguém em comum.
— Assumo que seja verdade.
abriu a porta do forno, usando uma luva térmica para retirar a travessa com o peixe e os legumes assados.
fez uma careta, demonstrando estar impressionada. Provavelmente tinha passado por algumas dezenas de restaurantes estrelados e premiados ao longo dos últimos anos e não trocaria aquele prato por nenhum deles.
— Você quer os aplausos agora ou depois que eu tiver comido?
— Pode ser depois. Vai que você não gosta.
— Impossível.
Levaram o molho e a travessa para a mesa, já posta e arrumada com as louças e talheres. Retornaram à cozinha apenas para pegar as taças de vinho que tinham ficado para trás.
ia fazer algum comentário descontraído quando viu com a cabeça levemente inclinada para a frente, os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o colo. Ela já deveria ter imaginado que, além de tudo, ele seria uma pessoa que agradece pelas refeições antes de iniciá-las. Na verdade, observando agora, esse era exatamente o tipo de coisa que ela esperaria dele. Prestou atenção em alguns fiapos da saia que usava, respeitando seu tempo e espaço.
Só deu a primeira garfada quando o percebeu observando-a novamente, com um sorriso agradecido, reconhecendo seu instante de aguardo e consideração silenciosa.
A explosão de sabores foi automática. Provavelmente existiam milhares de termos gastronômicos cultos e refinados para ela usar naquele momento. Acidez. Agridoce. Textura. Ponto perfeito. Cocção. Equilíbrio. Todas aquelas palavras que os jurados de programas culinários adoravam utilizar por horas de degustação a fio.
Como ela provavelmente não sabia o que metade daquelas coisas deveria fielmente significar, a garota disse exatamente o que tinha em mente:
— Isso está muito gostoso.
sorriu, orgulhoso.
— A receita original é da minha mãe, mas eu gosto de adaptar o molho. Acho que combina melhor com esse tipo de peixe.
— Está perfeito, então eu confio plenamente em absolutamente tudo o que você disser sobre o prato.
O rapaz riu, levando um pouco da comida à própria boca.
— Cozinhar é seu hobby ou algo do tipo? - Foi o questionamento que ela fez.
Ele ponderou por alguns curtos instantes.
— Acho que pode-se considerar que sim. Eu me sinto bem e relaxado enquanto cozinho. E gosto de fazer isso para outras pessoas, sabe? Acho algo especial para se compartilhar.
— E está compartilhando comigo - ela emendou, com um sorriso de canto. — Estou me sentindo incrivelmente lisonjeada.
— Era o mínimo que eu poderia fazer para compensar toda a sua gentileza.
jogou o cabelo atrás dos ombros teatralmente, dando uma risada na sequência.
— E você? - questionou, pegando-a de surpresa enquanto levava o vinho à boca.
— O que tem eu?
— Qual é o seu hobby?
Ela fez um biquinho, olhando para os lados de uma forma quase furtiva, como se a mobília ao seu redor pudesse lhe soprar uma resposta qualquer. Não é como se ela pretendesse mentir ou algo do tipo. O ‘X’ da questão residia no fato de que ela era a pior pessoa do universo quando se tratava de falar qualquer coisa sobre si mesma. Às vezes sentia-se como uma grande cartolina em branco que nem ela própria entendia.
— Acho que poesia - ela disse por fim. — Eu gosto bastante.
— Escreve muito?
— Ah, não. - Ela riu. — Sou uma escritora lastimável. Mas gosto de ler, pensar.
assentiu.
— Isso explica os livros no quarto de hóspedes.
— Ai, caramba, desculpa. Eu me esqueci de tirá-los da prateleira.
— Não é para se desculpar. Primeiro que essa é a sua casa. Segundo que não me atrapalha em absolutamente nada. Mas acabei dando uma olhada em um deles de tarde. Espero que não se importe.
— Claro que não me importo. Como eu já te disse, pode ficar à vontade.
A conversa prosseguiu, perambulando por vários tópicos e assuntos distintos, vagando de uma forma tão leve que teve a impressão de que poderia ser clichê como nos filmes e admitir que se sentia como se o conhecesse há tempos. era a pessoa mais fácil de conversar com quem ela tinha lidado nos últimos tempos. Já havia perdido as contas de quantas vezes tinha rido, reagindo a cada um dos comentários casuais bem humorados e também às pequenas piadas despreocupadas. Ele era definitivamente uma ótima companhia.
Quando um som repetitivo que ela conhecia muito bem soou pelo ambiente, ela revirou os olhos antes de pegar o celular que tinha deixado sobre a mesa, virado para baixo, para demonstrar que tinha sua atenção no convidado.
Leu o nome do contato que ligava, mas o homem do outro lado da linha foi mais rápido que ela, finalizando a chamada antes mesmo que ela pudesse cogitar atendê-la.
— Sem noção - ela murmurou, desbloqueando o aparelho para ler as mensagens que ele havia enviado antes de basicamente decidir desligar na sua cara.

“Não vou poder ir com você ao jantar amanhã. Mudança de planos”

bufou frustrada. Meneou a cabeça, mais furiosa ainda por saber que sequer precisava perguntá-lo o motivo da tal ‘mudança de planos’. George sempre mudava os próprios planos quando uma mulher mais interessante aparecia. Especialmente quando os planos com ela incluíam sexo casual no fim da noite. E, bem, ele sabia perfeitamente que não era isso que aconteceria após um jantar beneficente ao qual ele sequer queria realmente ir.
Mas ela sabia muito bem como passaria uma vergonha monstruosa e viraria o centro das atenções ao chegar ao evento sozinha depois de ter dito a todos os conhecidos que iria acompanhada de alguém ao menos um trilhão de vezes. Seria patético e ela já podia sentir a vergonha queimando suas bochechas como se tivessem ateado gasolina a elas e arremessado um fósforo aceso em seguida. Aquele era definitivamente o pior momento da história para George ser tão… George.
— Aconteceu alguma coisa? - A voz grave e, de repente, séria de a tirou de seus devaneios momentâneos.
Ela se ajeitou na cadeira, piscando algumas vezes a mais do que realmente era necessário. O que tinha literalmente acabado de pensar quando o desgraçado do George a fez ter vontade de estrangular alguém? Ah, sim. era uma ótima companhia. E talvez tivesse piedade o suficiente para salvá-la do mico da semana.
— Se eu te pedisse para me acompanhar em um jantar beneficente amanhã, você aceitaria? Quer dizer, não vou nem pedir. Posso implorar de joelhos se você quiser.
— O quê? Como assim? , o que aconteceu?
— O amigo duas caras maldito que ia me acompanhar literalmente acabou de me dar um fora e eu não posso chegar lá sem ninguém quando todo mundo espera que eu vá acompanhada.
O rapaz estava estático. Ela concluiu que seria infantil e tosco balançar a mão para ver se o tirava daquele transe e decidiu não fazê-lo. Afinal, era ela quem estava pedindo demais.
— E você precisa de um acompanhante.
Até a fala dele havia se tornado estranhamente vaga.
— Preciso de um amigo - ela disse, adicionando alguma pitada de drama de forma levemente proposital. Talvez conseguisse adicionar um tanto de sensibilização à situação se acrescentasse uma cara de pena ao pacote.
— Não acho que eu seja exatamente o tipo de companhia que você precise em um evento chique desses.
— Acho que você é exatamente o tipo de companhia de que eu preciso. , você é uma das pessoas mais educadas que eu já conheci, especialmente com todos esses seus bons modos britânicos. Por que raios você não seria uma boa companhia?
Ele parecia no mínimo enjoado. E o peixe estava bom e fresco demais para usá-lo como tentativa de desculpa.
— É um evento grande, fino e importante demais. Eu não sei como me portar. Os eventos de onde eu venho se resumiam a Natal, Ano Novo e Páscoa. E um deles inclui caça aos ovos, ainda de pijama, ao redor do quintal e da vizinhança toda, então você pode imaginar que eu não tenho muita ideia de como me portar.
Ela riu, meneando a cabeça.
— Não é nada tão bizarro quanto você pensa. É só colocar um smoking, sorrir para as pessoas e conversar normalmente, como estávamos fazendo até agora pouco. Não tem segredo algum, eu te prometo. Tenho certeza de que todos te adorariam.
continuava inseguro. No entanto, pior do que enfrentar o seu total pavor em relação a um evento daquele porte era sequer cogitar negar algo para alguém que estava oferecendo tanto a ele ao disponibilizar a própria casa para um desconhecido.
— Eu não me sinto totalmente confortável com a ideia - ele admitiu. — Além disso, eu sequer cogitei trazer um smoking.
— Não se preocupe, isso é o de menos - ela assegurou. — Podemos tranquilamente sair para fazer umas comprinhas amanhã cedo.
O rapaz concordou, mexendo a própria cabeça da forma mais lenta que ela já havia visto. Nem um efeito intencional de ‘slow motion’ seria capaz de ser devagar.
— Podemos ir embora mais cedo se você não se sentir bem lá, eu prometo - ela retomou a fala. — Tudo que eu preciso é de umas duas horas.
respirou fundo, pesando as possíveis consequências de suas escolhas.
— Tudo bem. - Ela interrompeu sua fala com um gritinho. — Eu vou tentar.
— Você é incrível - ela disse e, em segundos, estava de pé, abraçada a ele, repetindo milhares de agradecimentos.


❈❈❈



05 de Outubro de 2018, 02:11 PM

— Eu não sei - ele disse, virando o corpo em alguns graus para checar a própria imagem de perfil.
— Você está incrível.
— Eu pareço um…
— Não diga pinguim - ela o interrompeu, sabendo exatamente o que ele diria. Não conseguiu, contudo, evitar a risada, a qual ele acompanhou sem pestanejar.
— Então não digo.
— Inclusive, achei que realçou seus olhos, mesmo que seja um tecido preto aleatório. Basicamente, quero dizer que você está lindo - Ela lhe deu uma piscadela, que foi recebida com um sorriso de canto e um olhar envergonhado para o chão, que apenas a fez achar graça da situação.
Era isso que ele era, afinal: uma graça. E ela tinha bastante consciência de que tinha dito aquelas exatas palavras bêbada na noite anterior, fazendo com que repeti-las fosse ainda mais fácil e inofensivo.
estava tão acostumada com a presença de que mal podia dizer que só o conhecia há alguns dias. Tinham praticamente virado a noite, navegando madrugada adentro em um bate-papo intenso, permeado por perguntas de especificidade variável e regado a duas garrafas completas de vinho. A conversa tinha se deslocado da mesa da sala de jantar para o tapete da sala de estar e lá estavam eles, como dois amigos de longa data, bocejando e rindo do seu entorno como se o álcool tivesse feito com que tudo se tornasse magicamente muito mais engraçado.
— Tem certeza de que está bom? - Ele questionou, ainda preocupado.
— Digno de um tapete vermelho.
— Vai ter tapete vermelho?
segurou uma risada ao perceber os olhos arregalados do rapaz, berrando de pânico.
— Não um desses de Hollywood - ela se adiantou, prontificando-se a explicar. — Mas com certeza terão fotógrafos na entrada, registrando a chegada dos convidados. E, sabe, geralmente tem um tapete na decoração de propósito para dar esse ar.
— Um vermelho?
— Geralmente - ela respondeu, sorrindo. — A proposta de ir embora se a situação ficar desconfortável ainda está de pé, viu?
— Ah, ficou ótimo! - O alfaiate berrou, praticamente invadindo a sala de provas e assustando a mulher. — Sorte sua, nem vai precisar de ajustes.
— Vamos levar - ela avisou.
— É claro que vão! Como não comprar uma peça com um caimento tão perfeito? Ficou maravilhosa. Digna de qualquer catálogo de moda. O sonho de todos os alfaiates do universo.
revirou os olhos para o discurso comerciável exagerado, pegando o cartão de crédito na bolsa, torcendo para que a alusão ao dinheiro o fizesse calar a boca de uma vez por todas ao perceber que já havia atingido seu objetivo por ali.
Saíram do atelier dando risada.
— Minha cabeça vai explodir a qualquer momento de tanto que esse cara inflou meu ego.
— É isso o que o dinheiro faz com as pessoas, querido.
— Não fez com você - ele apontou. — Mesmo com o apartamento enorme, não acho que isso tenha te feito um desses caras.
Ela riu.
— Eu posso ser bem chata às vezes, mas considere isso um fardo genético e não monetário. - Foi então que ela notou o resto do seu comentário. — Você realmente acha meu apartamento grande demais, não é?
Ele respirou fundo, expirando com mais força.
— Não quis dizer de uma forma ruim. Eu só não estou acostumado com isso.
— E vai se acostumar?
acenou com a cabeça, sinalizando que sim. sorriu em resposta, sabendo perfeitamente que ele estava mentindo, educado demais para dizer a verdade em sua frente.



05 de Outubro de 2018, 08:50 PM

— Tome seu tempo. Descemos quando você estiver pronto.
Os dois estavam sentados no banco traseiro de um carro preto chique demais, comandado por um motorista particular que fez se perguntar se aquele era um comportamento normal entre as pessoas que dirigiam do lado esquerdo do carro - ou pelo menos, ao que parecia, contratavam alguém para fazê-lo.
Em algum momento ao longo de sua ansiedade absurda e crescente dos últimos minutos - a reação básica ao ver aquela enorme quantidade de pessoas, bem vestidas e conversando como se pudessem ter simultaneamente uns cinquenta e três melhores amigos íntimos -, tinha segurado sua mão, oferecendo uma pressão leve, apenas para tentar lembrá-lo de que ela estava ali, grata pelo que ele estava fazendo por ela e disposta a oferecê-lo qualquer conforto que estivesse ao seu alcance. Seu sorriso para ele era sincero e o fez pensar que ele valia muito mais do que o colar de diamantes que ela trazia no pescoço. E que ele não deveria estar tão contente com o toque dela em sua mão, mesmo que de uma forma tão singela e não intencional. Ao menos, era isso o que ele pensava, crente de que não poderia de forma alguma estar equivocado.
— Acho que podemos ir - ele disse, finalmente, torcendo para que a sua voz não falhasse, cedendo ao nervosismo que ele temia começar a sentir por meio de manifestações explícitas e incômodas demais nas próprias axilas.
A porta aberta permitiu que os dois fossem recebidos pelo som alto e constante, além dos flashes, sem a proteção da acústica ou do insulfilm da janela. engoliu em seco, utilizando-se de todas as suas forças para sorrir como se não houvesse um conflito interno do porte de uma guerra ocorrendo dentro de si.
! - Uma voz feminina disse, acenando. — Estávamos esperando você.
— Pearl, Conan - ela cumprimentou o casal à sua frente. — Como vão?
— Muito bem - o homem respondeu. — Feliz em vê-la. Especialmente acompanhada.
— Quando disse que viria acompanhada, pensei que fosse George - Pearl disse, sem se importar com a presença óbvia de alguém que, sem dúvida alguma, não era George e poderia se sentir mal pelo comentário. Bom senso nunca havia sido seu forte.
— George? - riu alto. deveria admitir que estava impressionado com o teatro. — Claro que não! Eu tinha planos muito melhores. Esse é o .
O rapaz apertou as mãos dos dois, entrando no espírito da situação. Ou pelo menos tentando.
— Acho que vamos entrar para conversar com os outros - disse. — Foi ótimo encontrá-los.
E, puxando pelo pulso, levou-o dali até a entrada, onde pararam rapidamente para posar para algumas fotos.
— Eu oficialmente detesto câmeras fotográficas - ele murmurou, enquanto a seguia.
— Existem coisas piores. - Ela deu de ombros. — Como os dois sem noção lá na frente.
— Você não pareceu muito à vontade com eles.
— Não existe a mínima chance de ficar à vontade com eles. São duas cobras que se divertem às custas de fofoca e constrangimento alheio, preparadas para dar o bote quando você menos esperar.
— E todo mundo é assim por aqui?
— Não. Tem pessoas bem legais, vem.
E o arrastou para dentro, acenando cumprimentos rápidos e cordiais enquanto procurava seus amigos decentes e não apenas pessoas a quem ela oferecia a mínima educação com a qual tinha sido criada.
— Finalmente - falou um pouco mais alto, chamando a atenção dos amigos. — Kimmy, Sam, esse é o . , essas são Kimmy e Sam, minhas melhores amigas junto com a Hillary.
— Ah, o amigo da Hill - Kimmy se espantou, abraçando-o sem aviso prévio. — Você é bem mais bonito do que eu esperava.
— Garota, pelo amor de Deus, aprende a se comportar - Sam reclamou.
— Não precisa ficar com ciúmes - Kimmy brincou, dando um selinho rápido na namorada. — Mas e aí? Como está a mudança até agora? já conseguiu fazer você implorar para estar em qualquer lugar que não fosse aqui com ela?
— E eu ainda te apresentei como melhor amiga - a outra ralhou, revirando os olhos.
riu de leve.
— Na verdade, ela está sendo ótima. Nem tenho como agradecer por tudo.
— E essa é a coisa que ele mais fala - ela completou, fazendo-o sorrir para ela. — Mas nos demos bem de verdade. Ele é uma boa companhia. E um bom cozinheiro.
— E você, como sempre, uma boa interesseira - Sam caçoou. — Kimmy bem podia começar a cozinhar.
— Por que o comentário? - Foi a pergunta da namorada. — Está passando fome? O garçom está logo ali atrás com canapés, só um minuto.
Os três se entreolharam, sem entender muito bem o que tinha acontecido. Kimmy logo retornou com o funcionário a tiracolo, acompanhado de sua bandeja de prata.
— Pronto. Agora todo mundo pode comer em vez de reclamar.
Apesar da crítica, Sam aceitou o aperitivo refinado. Os outros a seguiram. Era bom, deveria admitir. Era o tipo de coisa que gritava ingredientes caros e luxo. Mesmo assim, ele também tinha de assumir que preferia várias outras coisas, de preferência aquelas que, além de saborosas, eram realmente capazes de sustentar uma refeição normal. E isso incluía até mesmo o tradicional peixe com fritas inglês, com toda a sua simplicidade e seu óleo excessivo em vários carrinhos pelas ruas.
Alguns homens chegaram perto deles, conversando de uma forma pomposa, com a postura tão perfeita que fez se perguntar se eles não sentiam o mesmo aperto asfixiante no pescoço que ele com aquela porcaria de gravata borboleta.
Ele estava cansado de sorrir como um boneco; estático, artificial, nada sincero. Não aguentava mais ouvir falar de tantas marcas e sobrenomes de estilistas que ele tinha acabado de descobrir que existiam. Não aguentava mais aquela comida menor que a ponta do seu dedo. Não aguentava mais a multidão e o barulho. A única coisa que o tinha feito aplaudir com qualquer resquício de honestidade fora o anúncio de que o evento já tinha arrecadado mais de um milhão de dólares para distribuição entre as instituições de caridade de Nova York. Ao menos havia alguma finalidade decente em meio àquela tortura completa e infinita.
— Acho que é melhor irmos - disse alto, pegando-o pela mão.
— Mas já? Não está cedo? - Um homem grisalho, com um bigode que definitivamente havia recebido cera demais para ficar pontudo e erguido daquela forma, disse. sequer conseguia recordar o nome dele.
— Tenho um ensaio fotográfico amanhã cedo, Yves - ela respondeu, com um muxoxo. — Sabe como é, não? Preciso de um longo e revigorante sono de beleza.
— Como se você soubesse ser qualquer coisa além de bela - ele brincou, despedindo-se dela com dois beijinhos estalados nas bochechas.
Quando finalmente chegaram ao carro, a encarou, observando enquanto ela afrouxava um pouco a fivela que prendia os saltos agulha aos seus pés.
— Não sabia que você teria um ensaio fotográfico amanhã.
— Não tenho - ela respondeu, deixando-o com o rosto torcido. — Você não estava nada confortável e eu te fiz uma promessa.Fizemos uma saída tranquila, sem chamar muita atenção, sem parecer que estávamos desrespeitando os convidados ou a causa. Está tudo certo e eu realmente agradeço muito pela noite. Você me salvou de uma forma que jamais vai entender.
— As cobras da entrada? - Ele questionou, lembrando-se de como ela se referira a Pearl e Conan.
Ela riu alto, concordando.
— Tem vários outros como eles.
— Que droga.
— É mesmo, mas eu acho que a gente acaba se acostumando. — Ela deu de ombros. — Quer parar para comer alguma coisa?
— Ah? Não sei, quer dizer…
— Para de tentar ser educado. Eu sei que você está com fome e eu também estou. Ninguém sobrevive com aquelas frescuras em miniatura.
Ele riu, verdadeiramente surpreso com o comentário. A cada momento que passava ao seu lado, parecia descobrir algo novo que quebrava totalmente o estereótipo tosco que ele próprio tinha construído em sua cabeça quando a amiga a descrevera. Com certeza teria, dali para frente, a obrigação de não criar suposições e pré-conceitos só por ouvir o título ‘modelo’. Já deveria ter aprendido isso com a própria Hillary no fim das contas.
Pararam no primeiro restaurante simples e relativamente vazio que encontraram. Os poucos clientes encaravam os dois com completo estranhamento. Aquele definitivamente não era um estabelecimento que costumava receber consumidores à noite vestidos como se tivessem - e literalmente tinham - acabado de deixar uma festa de gala. Ainda mais quando um deles já estava sem gravata, com os dois últimos botões da camisa abertos, e o outro calçando um par de chinelos que havia deixado estrategicamente sob o banco do motorista, sabendo que os saltos seriam deixados de lado o mais rápido possível. Seus pés agradeciam os mimos.
Fizeram os pedidos e começaram a comer.
— Finalmente comida de verdade.
— Você é engraçada - ele falou, fazendo-a corar, apesar de rir do comentário.
— Vai me dizer que você também não estava morrendo para comer um lanche?
— Estava - ele admitiu. — Mas fazer isso contigo é um bônus.
— Caramba, . Eu sei que eu sou incrível, mas você podia flertar comigo de uma forma menos explícita - ela brincou, dando um gole no seu suco de laranja.
O rosto do rapaz se transformou completamente em questão de segundos, os olhos arregalados, preocupados, as mãos rápidas encontrando os cabelos. Ela chegou um pouco para trás.
— Não foi a minha intenção. Não desse jeito, eu juro - ele se prontificou, tentando se posicionar. — Você é mesmo incrível, mas foi um comentário desconectado de segundas intenções, de verdade.
— Eu sei. - Ela riu. — Eu só estou brincando com você. Precisa levar as coisas menos a sério.
Ele assentiu, respirando em uma frequência mais normal, demonstrando todo o seu alívio. Não queria de forma alguma passar uma má impressão e tomaria mais cuidado com suas palavras. Ela, por sua vez, abaixou a cabeça e se concentrou em seu prato, tentando ignorar a sensação no peito, como uma pontada, gritando para si própria que, no fundo, ela não estava brincando tanto assim. E, quaisquer que fossem as segundas intenções que ele poderia ter dado a entender, ela também as nutria.


❈❈❈



30 de Outubro de 2018, 08:51 AM

Os dias que se passaram pareciam imagens de um filme adiantado no modo ‘x4’. Inclusive, por falar em cinema, tinham mesmo perdido as contas de a quantos filmes assistiram, praticamente garantindo que todas as indicações de suspense e comédia da Netflix tivessem sido zeradas.
Também tinham conversado sobre muitas coisas, conhecendo um ao outro cada vez mais profundamente, apesar de a primeira semana desde a festa ter sido um tanto conturbada, com uma vergonha nem um pouco requisitada surgindo após a insinuação de flerte. não poderia ter se arrependido mais de um comentário que, no começo, parecera-lhe tão inofensivo, mas havia acabado se tornando um grande problema. Precisou de muito esforço para silenciar tudo que ela poderia cogitar sentir, evitando novos possíveis constrangimentos. Não sabia quando exatamente deixaria o apartamento, mas sabia que precisava se manter o mais nula possível até lá. Mesmo que, a cada dia que passasse, ela quisesse ainda menos que ele encontrasse um lugar só para ele. Por sorte, e talvez fosse ser castigada pelos céus por considerar isso como sorte, a temporada imobiliária não era de grandes disponibilidades e ofertas, estendendo o tempo durante o qual ele seguia dependendo dela.
tinha perdido as contas de quantas vezes tinha o ouvido falar sobre a família, como era apegado a ela, suas histórias e peripécias e as coisas que mais fazia com cada um deles. E, apesar de ter sido obrigada a fingir que não fazia ideia de quem era a ‘Tia Mary que fazia os melhores biscoitos do universo’ - obrigada, facebook -, ela tinha gravado cada uma de suas narrações, prestando atenção ao que ele dizia com a mesma intensidade que fazia, no começo da carreira, em relação à passarela. A diferença entre os dois momentos era brutal; diametralmente oposta. Seu foco ao analisar meticulosamente onde pisava servia para evitar que ela caísse. A atenção sobre cada palavra que saía da boca de , por outro lado, só a lembrava de como já tinha caído de vez. E tinha certeza de que tinha tombado exatamente por não ter olhado bem onde pisava.
e ela não poderiam ter realidades mais diferentes quando se pensava na vida de ambos antes de se conhecerem. Ele era apegado a cada um de seus familiares e parentes; ela não tinha contato com ninguém e chegava a sentir profunda repulsa sempre que se lembrava do próprio pai. Ele continuava achando seu apartamento grande demais, exagerado em excesso, enquanto ela pensava em comprar um vestido novo para o próximo evento importante. os detestava. Todos os eventos. Sentia-se como se não conseguisse respirar direito em meio a tantas pessoas e não pudesse ver adequadamente com todas as luzes de cada fotografia batida em uma sequência insana. Ela mal os via. Tinha sido ensinada a andar sempre com a cabeça erguida, olhando ao longe, o queixo empinado e a postura mais ereta do universo. Nada daquilo importava. E, apesar de conhecer bem as cobras ao seu redor, tinha aprendido a ignorá-las, oferecendo um sorriso que qualquer pessoa perceberia ser de uma educação forçada e falsa. Ele, contudo, estava longe de ser fã das conversas sem sentido e profundidade, incapaz de manter aquele tipo de relação.
E, mesmo assim, ela o queria. Deus, como o queria. E passava todos os dias remoendo uma certeza dolorosa de que não era um sentimento recíproco. Jamais poderia ser. Mas, quando tentava se convencer de que eram diferentes demais para dar certo, ela distorcia o raciocínio de propósito, pensando em como talvez uma peça com corte distinto da sua fosse exatamente aquilo de que ela precisava para se encaixar e formar algo maior e melhor. Peças idênticas não ofereciam encaixe algum. Sem contar que eles tinham, sim, várias coisas em comum. Gostos, piadas, momentos de risada compartilhada e diversão fácil. Mas talvez tudo isso fosse só a sua esperança, forçando-se a existir e a encaminhando para um buraco ainda mais fundo.
Mas naquele dia ela não se importava. Tinha o sorriso mais largo do universo quando se olhou no espelho e decidiu que poderia sair sem maquiagem sem se importar com absolutamente nada. Queria se divertir um pouco ao sol sem se preocupar com esse tipo de coisa. Sua pele precisava mesmo de algum descanso, no final das contas. E ela também depois da semana cheia.
— Quanto tempo que eu não te via nesse horário - ele comentou, entregando a ela um copo de suco com alguns cubos de gelo.
— Tudo que eu quero é poder estar em casa nesse horário por uma semana pelo menos.
— Foi uma semana atribulada - ele concordou, tomando o conteúdo do próprio copo.
— E é por isso que eu decidi atribular esse dia e nós temos compromisso. Termina seu suco e se troca - ela disse, fazendo-o olhá-la com estranheza.
Ele o fez. Encontraram-se já à porta do apartamento, descendo o elevador juntos. não ousou questionar aonde iriam; já tinha passado tempo o suficiente perto dela para saber que ela simplesmente começaria a assobiar uma música infantil e irritante qualquer e fingir que ele nunca tinha sequer dirigido a palavra a ela.
O percurso cumprido em um táxi foi relativamente rápido, o que era um tanto atípico. permitiu a si mesma acreditar que até o trânsito havia decidido colaborar em prol de que aquele fosse um dia incrível. Até o sol estava agradável e essa era a opinião de alguém que não se dava incrivelmente bem com ele.
— Eu acho um absurdo que você já esteja em Nova York há quase um mês e nós nunca tenhamos vindo aqui. É bem ridículo da minha parte, na verdade. Sou uma nova-iorquina horrorosa.
— Eu nem me lembrava de que vocês tinham isso.
— Isso é choque? É surpresa? Ou é ódio? Ai, meu Deus. Você detestou.
— Claro que eu não detestei - ele respondeu, com uma risada. — É choque. E surpresa. Não é à toa que isso tudo virou cenário de tantos filmes e seriados.
sorriu abertamente, mostrando todos os dentes perfeitamente alinhados pela infância de aparelhos ortodônticos.
, seja oficialmente muito bem-vindo ao Central Park.
Ele agradeceu com um gesto, como se fosse algum tipo de reverência torta, fazendo-a rir. Que bom que ele nunca tinha visto a família real à sua frente. Não teria sido uma cena nem um pouco bonita se fosse séria.
— Eu lembro que lá atrás, quando nos conhecemos, você comentou que gostava de ir a parques com a sua família. Daí eu pensei, caramba, ele está longe de casa há um tempo, deve sentir muita falta de lá. E eu não posso incluir a sua família ou os parques de vocês nesse dia, mas pensei que pudesse ser legal passear um pouco, conhecer o lugar.
— É muito legal da sua parte ter pensado nisso. Muito obrigado. Só tem uma coisinha.
— O quê? - Ela sentiu a grama ficando mais rala embaixo de seus pés. Seu mundo dando sinais de que poderia ruir a qualquer instante, pendurado por um fio pouco resistente, só aguardando a resposta.
— Eu sou um completo turista e você é oficialmente guia. Então lidere o passeio.
— Eu sou uma guia de turismo sensacional - ela se gabou, sabendo que nunca tinha sequer tentado sê-lo por minutos que fossem. Mas ele não precisava saber daquilo. — Sei exatamente por onde começar.
Ele a acompanhou, sendo praticamente arrastado por ela, cujos dedos estavam presos aos seus involuntariamente. Ele sorriu sozinho ao se dar conta do quão natural e impensado aquele simples momento havia sido. Sabia que, se fosse possível, a seguiria aonde quer que ela fosse.
Já estavam perto o suficiente da avenida Central Park West para que reconhecesse a aproximação de seu primeiro destino. Qualquer um ali conhecia bem o Edifício Dakota e a multidão apreciando a melodia suave vinda de um violão já dava pistas claras do que ocorria por ali com frequência. Até já estava sorrindo, reconhecendo os primeiros acordes de Yesterday.
O mosaico italiano, delicadamente composto por peças brancas e pretas, compunha um grande círculo com raios geometrizados em cujo centro se lia a palavra ‘Imagine’.
— Strawberry Fields - ela falou. — Por causa da música, sabe? É o memorial em homenagem ao John Lennon, uma lembrança em nome do mundo cheio de amor e paz que ele tanto sonhou.
Ele assentiu, olhando em volta, reparando em cada detalhe. O cantor ali, entoando a letra de Yesterday com doçura, enquanto vários fãs se dividiam entre curtir a música, derrubar algumas lágrimas e deixar flores e cartazes sobre o mosaico. Viu o prédio, reconhecendo-o pelas fotos que vira na internet. O local em que Lennon vivera e também o qual ele fora alvejado em frente.
Quando a música foi trocada para Here Comes The Sun, notou a garota ao seu lado, balançando o corpo de leve para os lados e murmurando a letra. Ele acabou sorrindo e se aproximando dela, fazendo-a rir baixinho ao vê-lo se movimentando de forma síncrona a seus próprios movimentos.
— Eu poderia ouvir Beatles o dia todo - ela admitiu. — Mas temos outros lugares para conhecer.
E lá estava , puxando-o mais uma vez. estava com uma camisa larga o suficiente para sentir a brisa - potencializada pela presença de árvores em todo canto - passando por baixo do tecido, afastando-o de sua pele enquanto balançava ao sabor do vento.
Enquanto passeavam, vendo vários pontos, ela os descrevia, nomeando-os e os explicando - ao menos o que ela já tinha ouvido sobre cada um deles. Era como uma grande aula de história da arte a céu aberto. Pontes vitorianas, adornadas por piso de ipê e vasos de flores presos aos muros. Fontes neoclássicas, repletas de lótus e lírios d’água e reconhecidas de longe pela imagem da escultura do ‘Anjo das Águas’, marco comemorativo da abertura do aqueduto que levaria água doce à região. O Bethesda Terrace, dividido entre as representações das quatro estações e as das vinte e quatro horas de um mesmo dia, sob cujo arco outros instrumentistas demonstravam suas habilidades em sopro e cordas, aproveitando-se da acústica incrível que a própria maneira pela qual a construção tinha sido projetada fornecia.
— Isso é mesmo o que eu estou pensando? - perguntou ao pararem à frente da grande estátua de bronze.
— Se você está pensando que essa deve ser uma estátua de três metros e meio dos personagens de Alice no País das Maravilhas, a resposta é sim. Qualquer outra coisa não.
Alice sentava-se ali, grandiosamente rodeada pelo Coelho Branco, o Gato de Cheshire e o Chapeleiro Maluco.
Os dois aproveitaram o momento e o monumento para tirar algumas selfies. A maioria delas em caretas toscas. A última, por sua vez, pegou um tanto de surpresa. Quando ergueu a tela do celular e se virou para beijá-la na bochecha, ela fez um biquinho e arregalou os olhos. Uma pose que poderia até ter parecido natural e proposital na fotografia, mas que ela sabia ter feito seu coração acelerar instantaneamente pela ação inesperada.
Enquanto esperavam na fila do maior carrossel dos Estados Unidos - quem disse que uma atração retrô daquelas tinha que se limitar aos pequenos puxando as mães pelas mangas das blusas? - comeram cachorro-quente e dividiram um saquinho de pipoca salgada, que causou uma piadinha sobre uma possível crise hipertensiva na sequência.
Sentaram-se em cavalos coloridos ao lado um do outro, soltando gritinhos de comemoração junto com as crianças quando a música repetitiva - e por isso tão facilmente utilizada em filmes de terror - reiniciou, acompanhada dos primeiros movimentos do brinquedo, girando e se erguendo rapidamente apenas para descer novamente em um ciclo constante.
— Sem as mãos - brincou, erguendo os dedos e posando de garoto radical.
— Mãe, fala para ele que ele tem que segurar com as duas mãos para não cair - um menininho mais novo disse, sentado à frente dos dois.
A mulher sentada com ele nem precisou se mexer para que colocasse as mãos de volta nas alças de seu cavalo, sorrindo amarelo como se pedisse desculpas ao garoto, que apenas meneou a cabeça, repreendendo intensamente sua atitude.
tinha as bochechas levemente infladas, segurando uma gargalhada alta ao ver o rapaz ficando vermelho, genuinamente envergonhado por receber uma bronca de uma criança que o considerava um mau exemplo.
— Não tem graça - ele murmurou, um tanto frustrado.
— Ah, até você tem de admitir que tem um pouco de graça, sim - ela comentou rindo.
jamais confessaria aquilo em voz alta, mas começou a andar um pouco mais devagar com o intuito de recuperar seu próprio equilíbrio. Não sabia se o quase almoço tinha piorado a situação, mas talvez devesse fazer alguns exames para ver se não tinha desenvolvido labirintite repentina. Não era possível que um brinquedo infantil daqueles, girando em câmera quase lenta, tivesse deixado sua capacidade de ficar em pé e andar em linha reta sem ver o mundo todo girando prejudicada.
Entre passos não completamente estáveis e risadas altas, subiram até a parte mais alta do Belvedere Castle.
— Deve parecer um brinquedo da ‘Toys R Us’ para você - ela comentou. — Umas pedras empilhadas patéticas em comparação ao Palácio de Buckingham.
— É bem mais cavaleiros medievais do que Buckingham - ele pontuou. — Eu gosto. Mas o que eles fazem aqui?
— Acho que medem os ventos. - Ela deu de ombros. — É bem decepcionante, na verdade.
Mas dava para entender perfeitamente o porquê. estreitou os olhos, tentando cerrar os cílios o máximo possível de forma a proteger seus globos oculares sem fechá-los por completo. O vento não estava colaborando e nem causando grandes agrados aos visitantes; a não ser por , que não parava de rir, enquanto se aproximava dela.
A garota sentiu um arrepio percorrer suas costas quando o toque das mãos dele encontrou a concavidade funda de sua cintura, apoiando-se em ambos os lados. Por sorte o vento uivava em suas orelhas, garantindo-a de que ninguém estava ouvindo a sua respiração se tornando mais pesada.
— Você precisa abrir os braços para ter graça - ele comentou, arrancando-a de volta para a realidade ao finalmente compreender o que estava se passando por ali.
— Ai, meu Deus, Jack! - Ela abriu os braços, cantarolando a melodia batida de Céline Dion. — Isso significa que eu preciso sacrificar a sua vida em cima de um pedaço de madeira?
— Eu espero não morrer por causa de uma porta. Se dependermos das do seu apartamento, estou salvo. São todas enormes e podem abrigar nós dois facilmente.
— Estamos há zero dias sem que faça algum comentário sobre o tamanho do apartamento. Nosso recorde é de zero dias.
O rapaz riu alto, afastando-se dela.
— Em minha defesa, eu falei da porta. A questão do imóvel fica meio subentendida.
— Vem, tem mais um canto aqui que pode te lembrar um pouquinho da sua casa - ela disse, puxando-o pela mão. — Quem sabe assim você fala um pouco menos da minha.
Ele balançou a cabeça, gargalhando ao ver a careta que ela fizera. Às vezes se perguntava se todas aquelas brincadeiras que vinham em formato de expressão facial excessiva não seriam algum tipo de malefício à carreira dela como modelo, especialmente fotográfica. não parecia fazer muito o estilo do botox. Hillary com certeza seria muito mais facilmente adepta à intervenção. Ele tinha certeza daquilo.
Enquanto ele percebia como entendia um total de zero coisas sobre estética e cirurgias plásticas, chegaram a um grande jardim. Do tipo realmente grande. Bem maior do que ele esperava mesmo já tendo percebido que claramente aquele parque era muito maior do que os parques aos quais ele se referira quando tinha conhecido a modelo.
Dava para perceber que aquele paisagismo tinha sido minuciosamente planejado em cada mísera folha. Com a proibição de corredores e ciclistas, aquela área estava consideravelmente mais vazia do que a maioria daquelas que eles já haviam visitado. Flores. Fonte. Os canteiros principais, cada um seguindo o padrão de estilo de uma nação europeia: Itália, França, Inglaterra. sentiu certo orgulho de si mesmo por perceber aquilo e saber fazer a correspondência sem equívoco algum quando seus conhecimentos em botânica e jardinagem tendiam a zero.
respirou fundo, sorrindo ao inalar as leves nuances ainda presentes no cheiro de terra molhada que permanecia suspenso na atmosfera. Aquele era, particularmente, seu canto preferido do parque. Não era mais capaz de contabilizar nos próprios dedos a quantidade de vezes em que fora até ali e permanecera sentada, observando de longe enquanto noivos apaixonados realizavam seus ensaios fotográficos para o casamento. Sempre sorria sozinha, pensando se algum dia estaria tão confortável em frente a uma câmera simplesmente porque estava no seu lugar favorito com alguém que seria capaz de fazer todo o universo ao seu redor simplesmente desligar e deixar de existir mesmo que apenas por alguns deliciosos e impagáveis segundos.
Fechou os olhos, sentindo o calor do sol poente e alaranjado aquecendo sua pálpebras em um abraço confortável. Sorriu sozinha ao se lembrar de repente que seu protetor solar provavelmente já havia extrapolado o tempo de validade. Mas ela não ligava. Poderia ficar mais um pouco ali e, acima de tudo, queria fazê-lo. Só abriu os olhos ao sentir outro par lhe queimando ao observá-la, ocupando a posição do sol em transmitir aquela sensação cálida em ondas por cada parte de si, sem esquecer canto algum para trás.
— É um lugar lindo - ele comentou, vendo-a olhando-o de volta.
— Consegue ficar ainda mais perfeito na primavera.
— Então voltamos daqui duas estações.
Ela sorriu, assentindo em concordância.
— Eu me sinto tão em paz aqui - ela confessou, sabendo que ainda tinha toda a atenção dele sobre si. — Não sei explicar. Mas é uma sensação de plenitude tão grande. Em algum lugar entre esses canteiros e a lagoa, sempre vai ter alguém sendo amado da forma mais genuína e pura possível. Casais cujos casamentos se aproximam; crianças fascinadas com a natureza; pais encantados pela descoberta dos filhos e emocionados por vê-los crescendo; velhinhos simplesmente curtindo a companhia um do outro em um fim de tarde de domingo… É tudo tão especial e tão real. Com tanta fofoca, maquiagem, câmeras enormes e editores de imagem, coisas reais assim começam a fazer ainda mais falta.
— Imagino que não seja simples.
Ela balançou os próprios pés de leve, vendo-os pendendo no ar, exatamente da forma que uma criança faria.
— Não é - ela admitiu. — Mas esse pedacinho real de um mundo feliz me traz essa paz. Obrigada por estar aqui comigo.
Ele não tirava os olhos dela e isso estava começando a preocupá-la.
— Aconteceu alguma coisa? - Ele balançou a cabeça, respondendo de forma negativa. — Então no que você está pensando.
Ela de repente se deu conta de como os dois estavam próximos e de como ouvia os próprios batimentos como tambores altos em seus tímpanos.
— Em como tudo que eu queria era te beijar agora.
Ela expirou o ar com força, sentindo os ombros amolecerem.
— Finalmente - murmurou antes de tomar a iniciativa e colar seus lábios aos dele.
Já não sabia ao certo há quanto tempo tinha desejado aquele momento, sonhando com cenas de todas as possibilidades e formas com que ele poderia acontecer e afastando todas as visualizações de futuros nos quais aquele instante jamais chegaria. Tinha certeza de que ele sentia cada pedaço de seu alívio e de sua expectativa acumulada embrenhado em seu toque como uma erva daninha. Mas quando a mão dele acariciou sua nuca, puxando de leve a base de seus fios, ela soube que nada daquilo importava além da esperança intensa de que as coisas pudessem dar certo, mesmo que absolutamente todos os deuses decidissem ser contrários àquilo.
E se o fizessem, ela ainda daria sua missão como cumprida, deleitando-se com a sua duração e morrendo com a ciência de ter vivido aquilo com ele e por ele.

We were crazy to think
(Nós éramos loucos de pensar)
Crazy to think that this could work
(Loucos de pensar que isso poderia funcionar)
Remember how I said I'd die for you?
(Lembra como eu disse que morreria por você?)


❈❈❈



26 de Novembro de 2018, 06:09 PM

We were stupid to jump
(Nós fomos estúpidos de saltar)
In the ocean separating us
(No oceano nos separando)
Remember how I’d fly to you?
(Se lembra de como eu voaria até você?)

verificou o rótulo da garrafa pelo que parecia já ser a quinta vez nos últimos dois minutos. tinha se recusado a deixar que ele a buscasse no aeroporto, convencendo-o a trocar aquele momento pelo trabalho de mais um de seus jantares incríveis. No caminho, ela também havia dito exatamente qual vinho queria que ele separasse para os dois, depois de repetir várias vezes como estava morrendo de saudades dele e esperava que ele estivesse disposto a tolerar seus momentos de compensação da carência extrema após duas semanas fora, com mais tempo de passarela e backstages do que de sono.
Ela o convidara para acompanhá-la até Paris e até sugerira uma quebra de caminho, parando para passar ao menos um fim de semana com a família dele. , com dor no coração, tinha sido obrigado a recusar a proposta. Tinha uma apresentação importante em meio àquele período e não tinha condição alguma de faltá-la sem arriscar a sua bolsa e a sua vaga. Mas disse, com um sorriso, que esperava que ela se divertisse sem ele. Ela, sorrateira, lembrou-o de que alguns tipos de diversão demandavam sua presença, mas ela sobreviveria por duas semanas apenas para redobrar a dose, carregando a noite com todas as saudades que sentiria. Exatamente como qualquer começo de relacionamento normal, a não ser pelo fato de não terem oficializado nada, mesmo que nenhum dos dois soubesse explicar exatamente o porquê disso.
— Eu senti tanto a sua falta - ela praticamente berrou da entrada do apartamento, antes mesmo que ele pudesse sair da cozinha e ir recebê-la.
abandonou as malas rapidamente, sem se importar com o fato de que o peso derivado da superlotação havia feito com que elas tivessem um encontro selvagem com o chão, e correu até ele, jogando-se em seus braços e o agarrando pela cintura com as próprias pernas. Segurou o rosto de com as duas mãos antes de enchê-lo de beijos. O rapaz a sustentava no alto como podia, rindo entre os beijos. Também tinha sentido saudades feito doido.
— Como foi em Paris?
Ela deu de ombros, finalmente se soltando dele para sentar sobre a bancada da cozinha, mantendo seu coração e seu estômago o mais perto possível de seus grandes amores.
— O de sempre. Cansativo, tumultuado, mas me lembrando de que eu sou realmente boa em alguma coisa e de como eu preciso me agarrar a essa sensação durante os momentos de insegurança e não deixar que absolutamente ninguém tome isso de mim.
— Você é boa em muitas coisas - ele emendou, roubando-lhe um selinho rápido. — Não só em desfilar e posar para fotos.
— Mas as coisas das quais você tomou conhecimento de que eu sou boa são coisas que eu não posso simplesmente sair por aí demonstrando e provando, sabe?
Ele assentiu, com um sorriso malicioso, completamente ciente de toda a situação. Tinha desperdiçado algumas horas de sono nos primeiros dias, perguntando-se o que ela estaria fazendo, com quem estaria saindo ou se o trocaria por qualquer um. Mas, mesmo que se conhecessem há pouco tempo, ele tinha a suposição clara em seu coração de que não fazia aquele tipo e, a cada vez que ela o ligava com a voz manhosa durante o dia, ele obtinha a confirmação de que precisava de que ela sentia sua falta tanto quanto ele sentia a dela.
— E como foram as coisas aqui em Nova York?
— Normais. Tive muito trabalho para me ocupar.
— Que bom, assim você pensava menos em mim e derrubava menos lágrimas - ela brincou, pulando da bancada e indo em direção ao armário para pegar os pratos.
Jantaram entre conversas e risadas, como de costume. tinha uma história bizarra envolvendo um colega de pesquisa, um cachorro de porte médio e spray de pimenta a qual fez rir descompassadamente por minutos a fio. Não fazia sentido algum e era tão estranha que ela jamais seria capaz de sequer tentar reproduzir para outra pessoa. Mas era boa o suficiente para fazer sua barriga doer.
aproveitou para reclamar de Pearl e Conan e de como era incrivelmente difícil passar tanto tempo ao lado deles sem sentir seu rosto congelado em um sorriso falso que escondia sua vontade de derrubá-los na passarela. Qualquer outra pessoa poderia pensar que aquilo era maldade, mas, considerando que os dois tinham ultrapassado os limites do pensamento e de fato tentado, anos atrás, derrubá-la, ela julgava apenas como a ideia de um retorno justo.
Dividiram-se entre lavar e secar a louça enquanto contava sobre uma de suas irmãs mais novas e como ela tinha simplesmente surtado ao saber que ele estava literalmente morando com uma modelo famosa.
— Ela diz que vai ser estilista desde que começou a desenhar bonecos palitos - ele disse. — Hoje, pelo menos, as pessoas têm formas mais parecidas com, bem… Pessoas.
riu, repousando as taças de vinho viradas sobre um tecido próprio, para escorrerem naturalmente sem que o pano de prato as enchesse de pelinhos.
— O fuso não colabora pelo horário, mas assim que você tiver um tempinho, podemos ligar para ela - sugeriu. — Quero ver seus desenhos. Já posso ir me preparando para os vestidos que vou usar daqui uns anos.
— Ela ia pirar totalmente.
— Então pode marcar esse momento fatídico na sua lista de afazeres dos próximos dias. Até porque agora sou eu quem está ansiosa.
— Sabe que não precisa fazer isso por mim, não sabe?
soprou o ar de uma forma estranha, bufando para ele.
— Até parece que isso é sobre você. Acorda, garoto! Eu tenho uma fã e futura estilista, então isso é entre nós duas e eu espero que você não se intrometa.
Ela mal teve tempo de encará-lo com falsa arrogância. Em questão de segundos, estava rindo e chutando o ar, tentando se desvencilhar das cócegas enquanto buscava recuperar o próprio fôlego.
— Desgraçado - ela reclamou entre dentes, arrumando os cabelos e respirando mais fundo.
— Você me adora.
— Eu não teria tanta certeza. E você vai pagar pelo que fez.
saiu correndo antes que ela pudesse prosseguir com as ameaças. Ela o seguiu pelos corredores, pulando as próprias malas jogadas pelo caminho. E falhando. O som de seu corpo atingindo o chão sem nenhuma delicadeza não havia sido nada agradável de se ouvir.
— Puta merda - suas palavras saíram em um guincho abafado, enquanto ela sentia a dor começando a correr por seu braço e ondular por sua cabeça, na região que tinha quicado contra o piso como uma bola de basquete.
— Meu Deus.
já tinha se ajoelhado ao seu lado.
— Sai, a culpa é sua - ela reclamou, chorosa.
— Está doendo muito?
— Eu meti a minha cabeça no chão. O que você acha?

I know heaven's a thing
(Eu sei que o paraíso existe)
I go there when you touch me, honey
(Eu vou até lá quando você me toca, querido)
Hell is when I fight with you
(Inferno é quando eu brigo com você)


— Amor, eu preciso que você me responda sério. Eu tenho que saber se preciso te levar para o hospital.
Todas as reclamações e palavras de caráter negativo pareciam ter simplesmente evaporado como a água fervente em uma chaleira, aguardando a infusão de um chá. tentou controlar os movimentos dos músculos do próprio rosto, buscando manter alguma pose antes que ele percebesse que uma simples palavra já havia conseguido derretê-la por completo.
— Sem hospital - respondeu, por fim. — Só preciso ficar deitada quietinha.
Ele assentiu, levando os próprios braços até suas costas e a dobra atrás de seus joelhos, erguendo-a e a carregando até o quarto.
— Quer que eu ligue a televisão?
— Quero que você se deite do meu lado.
Ele o fez, encaixando-se perto dela na cama e trazendo o cobertor para mais perto, aquecendo as pernas de ambos. se aproximou, deitando a cabeça em seu ombro.
— Não pode dormir - ele a lembrou. — Não depois de ter batido a cabeça.
— Então acho que você vai mesmo ter que ser minha babá porque eu estou morrendo de sono e posso dormir a qualquer segundo.
Ele riu, sabendo bem que ela só estava querendo sacaneá-lo.
— Só tem um probleminha - ela continuou. — Isso não existe. É só coisa de avó.
— Quieta.
— A gente pode abrir outro vinho - ela sugeriu.
— Nada disso. Como você mesma disse: deitada quietinha.
E enquanto ela bufava em resposta, também se aconchegava um pouco mais. se virou, repousando um beijo calmo e carinhoso no topo da sua cabeça. Ele não viu quando ela sorriu, mas não precisava. Sua expressão era apenas um espelho, refletindo o que ele mesmo sentia.


❈❈❈



17 de Dezembro de 2018, 02:24 AM

tinha certeza de que seus cílios estavam colados com alguma remela nojenta que não parecia querer sair independentemente de quanto ela esfregasse os olhos. Ia ficar cega antes de se livrar dos vestígios de seu sono interrompido.
estava em pé, parado contra a porta de vidro da varanda, perdido em meio a seus próprios pensamentos e à observação da selva de pedra enorme lá embaixo, iluminada em excesso, exatamente do jeito que acontecia naquelas fotos noturnas de satélite que todos idolatravam. Às vezes ele só conseguia pensar que queria um pouco menos daquelas luzes ofuscantes e inquisidoras. Um pouco mais de calma para compensar.
— Aconteceu alguma coisa? - Ela o questionou, com a voz inegavelmente sonolenta.
Ele apenas meneou a cabeça, negando.
— Está com dificuldades para dormir?
O rapaz apenas repetiu o gesto, sem desviar seu olhar por um instante sequer.
— Se precisar de alguma coisa, você me fala, ok?
Como ela esperava, não obteve resposta alguma. Nenhum movimento sequer foi iniciado enquanto ela caminhava de volta para o quarto, com os braços apertados em volta do próprio corpo, buscando se aquecer longe do conforto das próprias cobertas. , contudo, sabia que não era a temperatura do ambiente que lhe trazia frio. De forma silenciosa e dolorosa, seu coração sabia perfeitamente aquilo que não queria admitir para si mesmo: era o começo do fim.

And I can't talk to you when you're like this
(E eu não consigo falar com você quando você está desse jeito)
Staring out the window like I’m not your favorite town
(Olhando pela janela como se eu não fosse sua cidade favorita)
I'm New York City
(Eu sou Nova York)
I still do it for you, babe
(Eu ainda sirvo para você, querido)
They all warned us about times like this
(Todos nos avisaram sobre tempos como esse)
They say the road gets hard and you get lost
(Eles dizem que a estrada fica difícil e você se perde)
When you're led by blind faith, blind faith
(Quando você é guiado por uma fé cega, fé cega)


❈❈❈



08 de Janeiro de 2019, 11:56 AM

tentava não parecer desajeitada enquanto sustentava o cartaz exageradamente decorado. Mesmo que soubesse claramente a quem procurar, ela achou que seria uma recepção fofa para esperá-lo na área de desembarque do aeroporto. Talvez as letras rechonchudas e brilhantes pudessem transmitir ao menos um por cento de toda a falta que ele havia feito nas últimas semanas. Por outro lado, ela estava verdadeiramente feliz por ele ter conseguido passar as festas de fim de ano com a sua família, mesmo que isso significasse que ela o fizesse sozinha. Não era como se ela não estivesse acostumada, afinal, e ele precisava mesmo passar um tempo com seus familiares. Ela sabia perfeitamente que aquela era a melhor opção.
Havia se ocupado com o catálogo da Netflix e assinado a Amazon Prime só para garantir que teria conteúdo o suficiente para se ocupar e tirar sua mente de pensamentos negativos e inconvenientes. Fez biscoitos amanteigados no Natal, que ficaram muito bons na segunda tentativa. A primeira fornada tinha ido direto para o lixo, já que seu nariz não estava nada disposto a lidar com o cheiro do doce carbonizado. Estava tudo bem. Ao menos era isso que ela ficaria repetindo a si mesma incessantemente, enquanto driblava a própria ansiedade em vê-lo novamente. Provavelmente tinha o sorriso mais largo dentre todas as pessoas que, assim como ela, aguardavam alguém por ali.
E ele só se alargou ainda mais ao reconhecer um cabelo bagunçado, que já estava grande antes mesmo de ele viajar. Ela o apertou um pouco em seus braços, percebendo como tinha sentido falta daquele abraço, mesmo que ele não estivesse tão firme quanto ela se lembrava. Impressões bobas; ela tinha certeza disso.
— Como foi a viagem?
— Boa, mas cansativa.
— Imagino que sim. Como estão todos?
— Estão bem. Ah, Avril adorou o seu presente. Pediu que eu agradecesse à um milhão de vezes.
não conseguiu evitar o sorriso. Só mesmo uma irmã de para também decidir chamá-la pelo nome. Mas ficava feliz que ela tivesse gostado do kit de costura.
— Que bom! Ela me prometeu o primeiro modelo.
— Ela me contou. - Ele soltou uma risada cansada. — Disse que você desfilaria com ele na Paris Fashion Week. Não acho que ela tenha entendido muito bem como funciona.
— Deixe-a. Uma garota precisa sonhar.
O trajeto até o apartamento estava estranhamente silencioso. O fuso-horário era mesmo uma droga.
— Ah! - exclamou, de repente, insistindo em puxar qualquer tipo de assunto. — Comprei algumas coisinhas para o apartamento.
— Mais coisas? - Seu tom parecia levemente repreensivo. Ela fingiu não perceber.
— Alguns aparelhos de academia.
, você está montando uma academia dentro do apartamento?
Ela sorriu, assentindo orgulhosa.
— Não é incrível?
— Para que tudo isso? - sabia que estava soando tão exausto quanto de fato estava, mas não conseguia mais disfarçar.
— Eu pensei que pudesse ser legal.
foi direto ao quarto, deixando as malas ao lado da cama e seguindo para o banheiro. Assustou-se ao tentar abrir a torneira e ver que ela havia sido trocada. Quando ele aproximou a mão de uma pequena tela preta e a água morna escorreu livremente, ele se deu conta de que, ironicamente, aquela havia sido a gota d’água.
— Você trocou os misturadores normais por sensores de movimento - ele disse, incrédulo.
— O que tem de errado nisso? É até mais higiênico.
— É supérfluo, . Você não precisa de sensores, de uma academia dentro do apartamento… Na verdade, você não precisa nem da metade disso tudo - ele falou, apontando para o apartamento enorme ao seu redor.
— É conforto - ela rebateu.
— É exagero - retrucou. — Eu entendo que você tem seu dinheiro e pode gastá-lo como bem entender. Mas você precisa mesmo de tudo isso? Esse lugar é tão grande que faz eu me sentir sozinho em meio a um enorme vazio aqui dentro o tempo todo. Você não se sente só?
Ela engoliu em seco.
— Sinto ainda mais quando você fala assim, como se eu fosse uma pessoa ruim.
se aproximou, tomando seu rosto entre as mãos:
— Você não é uma pessoa ruim, . Você é incrível, mas entrou nesse modo automático em relação à vida. E eu amo você, mas não consigo me acostumar com toda essa grandiosidade e exuberância. Não é para mim. Eu sinto muito. De verdade.
Ela nunca pensou que sentiria seu coração se partindo em mil pedacinhos ao ouvir alguém lhe dizendo com todas as letras necessárias do alfabeto que a amava.
— Aonde você vai?
— Ficar em um hotel barato enquanto procuro um lugar para mim. Preciso pensar um pouco.
— Pensei que esse era o lugar para nós.
— Não é para mim. Talvez, no fim das contas, também nem seja para você.
Com um baque surdo, a porta foi fechada. Ela soltou o próprio corpo no sofá para cinco pessoas. Não sabia o que sentir, mas tinha certeza de que não queria sentir mais nada, mesmo que soubesse que aquela não era uma opção real.


III

23 de Janeiro de 2019, 11:03 AM

Apesar de duros e dolorosos, os últimos dias não tinham sido de todo ruins. havia entrado em uma espiral de pensamentos que a devoraram até que ela entendesse como diminuir a velocidade deles, podendo puxar cada um e realmente refletir. Tudo o que lhe dissera martelava em cada canto de sua cabeça e não a deixava dormir.
Por quê? Todas as suas primeiras indagações começavam assim.
Por que tinha comprado um apartamento tão grande para morar sozinha? Por mais que não quisesse admitir aquilo a si mesma, sabia perfeitamente que havia sido a forma que tinha encontrado de esfregar o próprio sucesso na cara do pai e fazê-lo engolir cada dígito da conta bancária daquela a quem ele repetidamente chamara de burra, incompetente e sem futuro. Não fora um desejo inocente. Ele estava carregado de um sentimento que beirava à vingança.
Por que não parara ali? Por que simplesmente tinha passado todos os anos que se sucederam comprando coisas de que não precisava? Nisso provavelmente estava certo, porque ela não sabia a resposta. Estava mesmo vivendo no automático, consumindo coisas só por consumir; comprando por comprar só porque podia fazê-lo.
E a pior parte, sinceramente… Ela se sentia, sim, sozinha. Toda vez que mudava de cômodo para encontrar mais vazio. Toda vez que se percebia entediada mesmo com tantas quinquilharias que ela havia simplesmente comprado para nunca fazer mais do que tirar das caixas. Toda vez que ela falava sozinha e ouvia a própria voz praticamente ecoar entre as largas paredes. Toda vez que via o espaço vazio que deixara para ele sem as roupas masculinas às quais tinha se acostumado sem grandes esforços.
Depois de tantos dias questionando a si mesma e a suas próprias motivações, ela se conhecera de uma forma tão profunda quanto jamais fizera. A última pergunta - e também a que mais doía - não saia de sua cabeça. Após responder a maioria dos porquês, precisava se perguntar: a que custo?
Com outro gole do espesso chocolate quente, algo em sua mente pareceu acender como as luzes de natal que ela só tomara coragem de retirar na semana anterior. Pegou o próprio celular rapidamente, antes que se arrependesse ou percebesse que a ideia era idiota demais. Clicou no contato sem se dar tempo de pensar duas vezes.
— Avril? É a , tudo bem? Eu preciso da sua ajuda.


❈❈❈



29 de Janeiro de 2019, 02:34 PM

Ela até tinha aceitado aquele papo todo de mindfullness, mas tinha apostado absolutamente todas as suas fichas na aula de respiração. Aquilo tinha que funcionar. A professora prometera que era um método infalível. Se ela acabasse morrendo do coração, com certeza voltaria para puxar o pé dela. Mesmo que tivesse de admitir que elas tinham funcionado bem, já que a impediram de agredir verbalmente todos os corretores que a tinham irritado profundamente.
Ao olhar ao seu redor, ela suspirou sonoramente. Um misto intenso de alívio, orgulho e muito nervosismo. Avril tinha lhe enviado algumas mensagens há pouco menos de uma hora, mas parecia ter sido décadas atrás. Sua audição já estava enganando-a, querendo reconhecer passos a cada sopro de vento lá fora; querendo acreditar que pés caminhavam até a porta, quando só passeavam pelas calçadas de West Village, como em qualquer outro dia comum. não aguentava mais o comum. Estava decidida a mudar em 360 graus toda a sua noção de normalidade. Mas, para isso, precisava que um irmão dedicado desse ouvidos à sua irmã mais nova.
O som da colisão dos nós dos dedos na porta fez com que ela desse um pulo literal, acompanhando o susto e a excitação de seu próprio coração desesperado. Passou as mãos pelos cabelos, arrumando os fios soltos nascentes atrás da orelha já que não conseguia de forma alguma prendê-los em seu coque alto. Respirou fundo três vezes antes de girar a maçaneta. Teria que ser o suficiente.
Vê-lo ali, lindo exatamente da forma que ela se lembrava, com as roupas soltas e o cabelo bagunçado, fez seus joelhos darem sinais de desobediência. relembrou, naqueles segundos extensos, como detestava aquela vontade de chorar que lhe engasgava e a fazia duvidar de sua própria força.
— Avril me pediu para vir.
— Eu pedi que ela tentasse te convencer. Achei que talvez não fosse levar em consideração meus pedidos considerando nosso estudo atual. Não fica bravo com ela, por favor.
— Ela é minha irmã. Sei que fez o que pensou ser melhor para mim.
Ela assentiu, impedindo a si mesma de verbalizar aquilo em que ela queria acreditar: que ela era o melhor para ele. Que Avril também sabia disso, mesmo a um oceano de distância.
— Que lugar é esse?
— Meu apartamento novo - ela respondeu, sentindo as próprias palavras tremendo como as que saíam de lábios febris. — Eu vendi o outro e comprei esse. Doei o lucro para uma ONG que ajuda pacientes reumatológicos infantis. Entra.
Ele o fez, olhando ao redor, procurando alguma armadilha ou pegadinha. Talvez uma piscina indoor dessa vez. Mas não. Havia uma cozinha suficientemente espaçosa, uma sala de estar aconchegante, dividindo o espaço com uma mesa de jantar para seis pessoas. Parecia normal.
— Por quê?
Ela engoliu em seco. Já tinha perdido todos os discursos que havia redigido e ensaiado em looping, tentando imaginar todas as possíveis cenas e desdobramentos enquanto o sono não vinha, respeitando o tempo que a ansiedade tomara para si.
— Porque você tinha razão. Eu não precisava daquilo tudo - disse simplesmente.
— Você não tem que fazer as coisas por mim, .
Ela deu uma risada nervosa.
— É exatamente esse o ponto, . Eu não fiz isso por você. Eu fiz isso por mim. Porque eu ostentava um luxo desnecessário só pelo gosto de provar ao meu pai que eu podia. Que eu tinha, sim, conquistado um futuro. Mas eu não preciso provar nada para ele ou para ninguém. Ele nunca se importou comigo e lá estava eu, mais uma vez, buscando uma atenção que nunca foi minha para cobrar. Eu preciso deixar isso para trás. Além do mais, era mesmo muito solitário.
a encarava, sem desviar os olhos por qualquer fração de segundos.
— Eu deixei o apartamento porque ele me atrasava. Eu continuava presa no passado e nessas provações hercúleas sem finalidade alguma. Acho que eu precisava de um chacoalhão para perceber que estava me esquecendo de um detalhezinho importante. Se eu quero exibir algo, que seja a minha própria felicidade; não um hábito consumista que nunca me serviu de nada.
O rapaz assentiu. Tinha lágrimas nos olhos.
— E daí você veio para cá.
Ela concordou.
— Assinei o contrato tem dois dias. Passei esse tempo decorando o ambiente. É mais fácil sem tantos cômodos extras e prateleiras sobrando. - Ela deu um sorriso de canto. — Quero recomeçar. Achei que podia ser aqui. Serve bem.
Ele não conseguiu impedir um sorriso discreto.
— Estou feliz por você. Que bom que conseguiu tirar um peso das costas.
— A bagagem ficou para trás. Acho que ela cabe bem naquele lugar grande demais.
Ele riu, reconhecendo nas palavras dela suas próprias reclamações constantes nos últimos meses.
— Nada disso foi por você - ela repetiu. — Mas, de uma forma totalmente casual e nem um pouco proposital, existe espaço para você aqui. E eu entendo se você não quiser voltar a ficar comigo, mas eu continuo podendo me orgulhar de ser uma boa anfitriã. Você pode discordar.
— Não posso. - Ele deu de ombros. — Você é uma boa anfitriã mesmo.
— Ótimo, ou eu teria que te tirar daqui a pontapés. Detesto mentiras.
— Eu sei disso.
E sabia mesmo. via nos olhos dele como ele conseguia entendê-la tão facilmente.
— Quando minha irmã me pediu para ir até a Cornelia Street, eu achei que era alguma pegadinha intercontinental - ele admitiu. — Não esperava por isso.
— Eu sei. E sei que é pedir muito, mas eu realmente queria que você viesse pra cá e que pudéssemos tentar de novo. Sem exageros, sem grandiosidades, sem traumas passados nos emperrando.
fez menção de responder, mas ela ainda não tinha acabado de falar.
— E eu sei como você sente falta da sua família e que, assim que finalizar sua pesquisa, as coisas vão ficar mais tranquilas. Eu recebi uma proposta para ser o rosto de uma linha britânica de cosméticos mais naturais para a pele. E aceitei, então eu tenho que ir para a Inglaterra algumas vezes durante o ano. Você pode ir comigo quando estiver relativamente de boa. Podemos visitar sua família. Sei que é importante para você. Então é meio que importante para mim também.
— Eu percebi. Você e minha irmã tramando coisas pelas minhas costas.
— Tem isso também. - Ela riu, ainda nervosa. — Ela me mandou os desenhos novos. Já mandei para umas pessoas de confiança.
arregalou os olhos, surpreso.
— Quer dizer que você se junta com ela para agir pelas minhas costas, mas também está agindo pelas costas dela.
— Nas duas situações estou fazendo tudo com as melhores intenções do universo. Ela é muito talentosa, de verdade. Ela merece que as pessoas certas reconheçam isso.
— Vou guardar seu segredo.
— Que bom. Não quero ter que gastar meu réu primário contratando um matador de aluguel para se livrar de você.
— Acho que são medidas um pouco extremas.
Ela riu, assentindo.
— Por mais que eu ame conversar contigo e sua voz consiga me deixar mais calma do que qualquer um dos vários chás que eu tentei tomar nos últimos dias, acho que precisamos parar de desviar do assunto central.
— Eu estou orgulhoso de você. De verdade.
— Obrigada. - Seu sorriso foi sincero. — Eu também estou. Orgulhosa e leve.
Ele não sabia mais o que dizer. Nunca foi a melhor pessoa do universo com palavras. Em vez disso, deu alguns passos em sua direção, envolvendo-a em seus braços.
finalmente chorou, colocando para fora todo o peso dos últimos tempos, enquanto retribuía o gesto. Não interessava se era um apartamento convencional em Cornelia Street, uma cobertura exagerada perto do Central Park ou um hotel inglês; havia encontrado seu lar entre dois braços e um batimento cardíaco que ela conseguia reconhecer mesmo que fosse diferente do seu. E aquilo era tudo de que ela precisava.
— Eu senti muito a sua falta, sabia? É difícil dormir sem você agora - ele assumiu, sentindo-a fungar de leve.
— Então você vai vir?
Ele riu, apertando-a um pouquinho mais.
— Ah, com certeza. A cama do hotel é péssima.
— Interesseiro. - Ela o bateu de brincadeira.
Não tinha palavras no universo para explicar como se sentia. Mas queria prolongar aquele instante por todo o tempo que pudesse.
— Vamos dar uma chance a nós - ele disse, beijando o topo de sua cabeça.
— Uma chance a nós - ela repetiu. — Aliás, acho que tem uma coisinha que eu esqueci de te dizer.
— O quê? Por favor, diz que não é agora que um apresentador maluco entra com uma câmera.
— Para de ser ridículo - reclamou. — Eu amo você.
— Não estava esperando por essa.
— Pensei que seria bacana dizer de volta, sabe? Ainda mais porque é verdade mesmo.
— Como assim dizer de volta?
Ela se afastou minimamente.
— Você disse que me amava antes de me abandonar, como em um filme dramático.
— Se eu tivesse te abandonado, nós não estaríamos aqui agora. Além de que eu realmente não me lembro de ter falado isso. Acho que você disse primeiro.
— Nada disso. Você lembra, sim! Não mente.
— Minhas recordações são folhas em branco - ele disse, no maior tom de poesia e sarcasmo.
— Você é um escroto.
— E você me ama.
— Você também me ama, ok?
— Vamos dizer que sim. - Ele deu de ombros antes de colar seus lábios aos dela, impedindo que ela reclamasse mais uma vez, mesmo que soubesse que ele não havia se esquecido de absolutamente nada. Não existia a mínima possibilidade de fazê-lo. Havia decorado cada pedacinho dela e, naquele momento, só precisava refrescar sua memória da forma mais explícita possível.

But we might just get away with it
(Mas talvez nós possamos nos safar disso)
Religion's in your lips
(A religião está em seus lábios)
Even if it's a false god
(Mesmo que seja um falso deus)
We'd still worship
(Nós ainda adoraríamos)
We might just get away with it
(Talvez nós possamos nos safar disso)
The altar is my hips
(Meus quadris são o altar)
Even if it's a false god
(Mesmo que seja um falso deus)
We'd still worship this love
(Nós ainda adoraríamos esse amor)




FIM



Nota da autora: Eu amo tanto essa música que escrever a fic simplesmente saiu do meu controle e quando eu vi ela já estava grande demais. Perdão se não era o que vocês imaginavam. No fim das contas, também não era o que eu imaginava, mas estou feliz com o resultado.
Por favor, deixem comentários aí, no grupo do face, no do whatsapp, no meu privado, MAS VAMOS CONVERSAR, EU SOU CARENTE.
Sem mais delongas, espero que tenham gostado e, se você chegou até aqui, eu agradeço profundamente por me dar uma chance. Espero te ver mais vezes.
Para mais informações sobre minhas histórias e atualizações, entrem no grupo do face e/ou do whatsapp






Outras Fanfics:
01. Middle of the Night
02. Blow Me (One Last Kiss)
02. Stitches
03. I Did Something Bad
03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
04. Warning
05. You In Me
06. Consequences
06. If I Could Fly
06. Love Maze
07. Bossa
07. If Walls Could Talk
08. American Boy
08. Answer: Love Myself
08. No Goodbyes
09. When You Look Me In The Eyes
10. Is it Me
10. Simple Song
10. Trust
11. Robot
11. Nós
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. False God
13. Kiss The Girl
13. Part of Me
13. See Me Now
14. Tonight
14. When You're Ready
15. Overboard
A Million Dreams
Daydream
MV: Miracle
Not Over
Señorita
Wallflower


comments powered by Disqus