Capítulo Único
estava com sua pele vermelha e coberta por uma ardência que era quase prazerosa naquele momento. Sequer conseguia contar quantos tapas tinha distribuído pelo corpo, sob o pretexto de que as auto-agressões serviam como aquecimento. Balela. Era tudo reflexo de seu nervosismo desmedido.
Aguardar em pé atrás de sua baliza era uma tortura interminável. O tempo de espera era sempre a pior parte de todas as competições. Ter tempo significava ter uma abertura indesejada para que seu nervosismo crescesse como um ramo de erva daninha no meio de um cuidadoso jardim. Queria arrancar aquele mal pela raiz e era ainda mais frustrante saber que não conseguiria. Algumas coisas na vida simplesmente tinham que ser sentidas antes de poderem passar.
Cada um de seus neurônios parecia se mobilizar agilmente para completar sinapses e estímulos motores pré-concebidos. Já imaginava e sentia todo o percurso tão bem conhecido. Sentia a água sobre sua pele, a hidrodinâmica agindo sobre o tecido revestido de seu maiô azul turquesa e o cheiro quase nauseante de cloro a que tinha se acostumado.
Quando sua bateria foi anunciada, apertou os óculos no rosto e usou as pontas dos dedos para reorganizar os pequenos e novos fios de cabelo que insistiam em escapar de sua touca de silicone. O coração acelerado no peito fazia com que, a cada batida, sua audição se desligasse das pessoas gritando incentivos à sua volta. O único som que sua orelha seria capaz de receber e identificar era o do apito que aguardava para saltar.
Um apito longo. Ela subiu à baliza, enxergando apenas a raia à sua frente. Um grito de “Às suas marcas”. A garota inclinou o corpo para a frente, agarrando seu apoio com a ponta dos dedos. Seu corpo pendia levemente para trás, buscando pelo máximo impulso que poderia aproveitar no salto de forma a angariar alguns metros extras de vantagem em relação às outras competidoras. Um apito curto. A resposta imediata de um corpo completamente treinado e condicionado a receber aquele estímulo preciso: saltar.
A jovem fez a saída perfeita, sabendo que suas ondulações eram sua melhor vantagem contra as demais competidoras. Sua aptidão para o nado borboleta era inegável e inexplicavelmente inata. O movimento que suas pernas faziam era ágil e preciso, perfeitamente encaixado e sincronizado. Ninguém sabia dizer exatamente de onde aquele talento tinha vindo, mas todos sabiam perfeitamente do desejo inenarrável de todas as outras nadadoras em compartilhar das mesmas qualidades no esporte.
mal percebia o cansaço, mal pensava no que seus braços faziam enquanto sua cabeça se levantava para buscar por ar. Aquilo lhe era tão natural quanto o sangue que corria pelas suas veias. Tão vital quanto os seus impulsos nervosos. Quase mais prazeroso do que uma longa e contínua noite de sono. Sua mãe sempre sorria ternamente e orgulhosa quando ela dizia que via na água um lar. Como não entendia o porquê daquela ação, só assumia que era mais uma daquelas reações inexplicáveis de mãe às quais você simplesmente assentia e ignorava até que deixasse de ser esquisito.
Quando as pontas dos seus dedos finalmente resvalaram no azulejo quadriculado da piscina, se colocou de pé e permitiu que o cansaço por esforço muscular fosse sentido por cada um de seus membros. Não havia dor melhor do que aquela.
Enrolou o próprio corpo em uma grande e colorida toalha felpuda, escondendo o maiô e retirando o excesso de água que recobria sua pele. Esperar o resultado sempre era um momento repleto de nervosismo e batidinhas de unhas contra os dentes, que as roíam quase automaticamente. Ela fazia mais o tipo que batia o pé sem parar no chão, tentando se livrar de toda aquela energia que ainda se concentrava em seu corpo. E foi exatamente o que ela fez até ver o representante da organização se aproximando para colar na parede a lista com os tempos das nadadoras de cada bateria e a consequente classificação dos 50 metros borboleta.
Lá estava: : 26.15s . O menor tempo. O primeiro lugar. Mesmo em meio a todas as outras participantes, ela não conseguiu conter completamente o sorriso vitorioso que se formava em sua face.
Quando anunciaram seu nome e o das outras duas garotas que tinham conquistado posições no pódio, o grito de comemoração dos pais e alunos da Braxler High preencheu o ambiente. Era a primeira medalha de ouro que o colégio conquistava naqueles jogos estudantis e, com certeza, era uma de grande valor. Uma vitória importante o suficiente para chamar a atenção de um rapaz alto que exibia seus fios castanhos claros na arquibancada. Um rapaz que podia nunca ter reparado em sua existência até então, mas ela sabia perfeitamente quem ele era.
. O principal jogador do time de basquete do colégio. O cara que parecia ter saído diretamente de uma propaganda de produtos capilares caríssimos. O garoto com quem todos queriam conversar porque aquele sorriso enorme parecia incrivelmente convidativo e interessado em cada palavra do que você dizia, independentemente do quão tosca ou sem sentido a mesma fosse. , o mais próximo da definição de perfeição que um verbete ou um poema forneceria.
— Aquela não é a garota que faz biologia avançada com a gente? - perguntou para o colega de time que se sentava ao seu lado na arquibancada.
— A que é fissurada por biologia marinha? - Drake perguntou, recebendo um aceno de confirmação do amigo. — Acho que é ela, sim.
— Ela é incrível! - exclamou. — Por que nunca soubemos disso?
— Talvez porque essa é a primeira vez que o nosso jogo caiu em horário diferente da natação. Deve ser algum sinal de Afrodite para que possamos ver as garotas de maiô.
revirou os olhos automaticamente, completamente frustrado com o que tinha ouvido. Sua frustração dobrava quando ele se lembrava de que qualquer outro membro do time teria concordado e encontrado graça naquela afirmação machista e estúpida.
— Você é um idiota. E é por isso que você só olha e nunca consegue nada. Ninguém tem paciência para gente babaca.
Dito isso, largou para trás um Drake com uma feição completamente chocada e ofendida. Pediu licença repetidamente, enquanto desviava das pessoas que ainda comemoravam ou reclamavam na arquibancada. Se ficasse mais um segundo sequer ali, teria de desistir do próprio jogo por não conseguir dividir a quadra com o outro. Não estava nem um pouco disposto a perder seu recorde de pontos por causa de um cara que tinha esquecido um pedaço do cérebro alguns séculos atrás.
Seguiu pelas escadas que separavam a área da piscina do resto do ginásio poliesportivo. Bufava baixinho, compartilhando com si mesmo aquela irritação. A cabeça seguia abaixada enquanto ele caminhava pelos corredores que já conhecia tão bem. Precisava pegar sua bombinha no armário do vestiário masculino. Não sentia seus pulmões em um de seus melhores dias. Tentou controlar a sua respiração, inspirando o mais fundo possível e expirando com a menor velocidade que conseguia. Se tinha uma coisa que detestava fisicamente, essa coisa era, sem dúvida alguma, aquela maldita falta de ar que insistia em retornar para incomodá-lo.
Estava tão perfeitamente focado em dar passo atrás de passo, mantendo sua respiração o melhor controlada possível, que não percebeu a aproximação repentina da outra pessoa que não prestava mais atenção do que ele no trajeto.
— Ai! - Ela reclamou baixinho, afagando o próprio ombro no ponto em que a pancada havia se dado. — Perdão. Eu não quis te machucar.
rapidamente reconheceu a primeira medalhista da Braxler High nos jogos estudantis. Não foi capaz de esconder a leve risada ao ouvir aquele pedido de desculpas.
— Não machucou. Acho que quem tem que pedir perdão por isso sou eu - analisou e se levantou, estendendo a mão para que a garota encontrasse apoio para fazer o mesmo. — Eu estava concentrado com outra coisa. Não te vi. Foi falha minha.
esboçou um sorriso quase irônico.
— Você não me viu, mas eu ainda não te vejo. Minhas lentes de contato caíram no vestiário e sumiram pelos trilhos do ralo. Eu estava tentando encontrar o meu armário de uso comum para pegar meus óculos reservas.
franziu a testa.
— Eu não sabia que você usava óculos.
— Porque são emergenciais. As lentes não tinham me feito passar vergonha até agora.
— Você sabe definir quem eu sou pelo menos? - Perguntou curioso, mas com medo de estar sendo, de alguma forma, indelicado.
— Sei, . - Ela sorriu, percebendo a falta de jeito que ele esboçava. — Eu reconheço a sua voz. Às vezes, até tenho pesadelos com seus gritos ecoando pelo teto alto da quadra de basquete.
— Engraçadinha. - Ele acabou rindo. — Vou pegar uma coisa no vestiário. É bem rápido. Pode me esperar aqui? Não vou me sentir confortável em deixar você perambulando por aí sem enxergar. Logo eu volto e te ajudo a chegar ao seu armário. Pode ser?
— Não posso me dar ao luxo de negar uma proposta dessas. Vou esperar.
Aquele quase vulto sumiu rapidamente de seu defasado campo de vista, fazendo com que ela fizesse uma careta. Quão ridículo era ter a imagem dele perfeitamente definida em sua mente mesmo enquanto ela mal conseguia identificar visualmente onde acabava seu olho e onde começava o nariz? Definitivamente, era ao menos um pouco vergonhoso. Mesmo que não fizesse o tipo popular arrogante e tivesse se mostrado um cara muito bacana e prestativo, aquilo ainda era ridículo. Por que só ela passava aquele tipo de vergonha?
Logo, ele estava de volta como prometido. Carregava alguma coisa colorida na palma da mão que ela não sabia bem definir o que era.
— É para a asma - explicou assim que percebeu a confusão passageira que tinha se apossado de suas feições.
simplesmente concordou e começou a seguir o rapaz, mantendo os olhos apertados na tentativa - claramente falha - de enxergar aquilo que o mundo ainda permitia. A cada passada que ecoava pelos pisos do corredor vazio, o silêncio parecia sufocá-los um pouco mais. Era exatamente àquela vergonha que o subconsciente de se referia. Chegara ao ponto de ouvir com clareza um zunido que mais parecia um apito tentando perfurar seu tímpano com a frequência aguda possível.
— Acho que eu devo te dar os parabéns pela vitória. Foi uma prova e tanto. Não sabia que a Braxler High tinha uma nadadora tão incrível.
A garota abaixou levemente a linha do queixo, perdendo o olhar míope pelos borrões amarelados que as placas de porcelanato do chão causavam em seus olhos. Nunca fora a pessoa mais preparada do mundo para lidar com elogios. Muito menos aqueles pelos quais ela não esperaria nem em um milhão de anos. Mais ou menos como o que acabara de acontecer.
Não era como se ela não soubesse de suas habilidades. Seus tempos recordes - cada vez mais surpreendentemente baixos - e a coleção de medalhas e troféus que decorava as prateleiras de seu quarto eram bem esclarecedores quanto à sua qualidade no esporte ao qual se dedicara com tanto afinco. A questão era como lidar com os momentos em que as outras pessoas decidiam tomar conhecimento daquilo e externalizar com palavras de incentivo e felicitações. Simplesmente agradecer parecia pouco e até forçado. Não responder nada soava como uma completa arrogância de sua parte. No fim das contas, a realidade era que, assim como várias coisas na vida, aquela seria uma grande merda independentemente da atitude que escolhesse tomar. Por que interações sociais tinham que ser tão complicadas? Por que os seres humanos não poderiam ser mais previsíveis e simples? Como corais, talvez…
— Obrigada - respondeu simplesmente, enquanto alternava leves mordidas nas paredes internas de suas bochechas. Sua mucosa já estava ferida desde o aquecimento e ela sabia bem que só estava piorando a situação para a sua cicatrização futura. Suas plaquetas deveriam odiá-la com todas as forças do universo. — Acho que a ausência de uma bola faz com que alguns esportes sejam meio abandonados. Sem ofensas.
riu, meneando a cabeça em negação. Levou alguns segundos para se lembrar de que precisava reagir de forma sonora.
— Não ofende nem um pouco. Você, na verdade, tem razão. Mais um motivo incrível para você ter ganhado a primeira medalha e poder esfregá-la na cara de todo mundo que se esqueceu de valorizar qualquer coisa que não tivesse uns caras suados correndo atrás de uma bola. E, sim, eu sei que eu sou um desses caras.
— Só o melhor deles - murmurou, sentindo as bochechas corarem logo em seguida. Qual era o seu problema com aquela boca gigantesca?
sorriu com o pseudo-elogio, mas fingiu não percebê-lo para não envergonhar ainda mais a garota.
— Qual o número do seu armário mesmo? - Perguntou.
— Cinquenta e três.
— Então, é esse… - Ele a guiou pelo pulso, até que, por fim, repousasse a mão dela sobre a porta vermelha que tinha os números cinco e três pintados e reforçados em uma tinta azul brilhante. — Aqui.
Agilmente, ela colocou o seu código e destrancou o armário, buscando a caixa dos óculos. Com o objeto posicionado sobre seu nariz, piscou algumas vezes até que os olhos conseguissem se acostumar com a nova resolução da imagem vista. E que imagem… Encontrou o jogador sorrindo de canto para ela, quase como se achasse a cena fofa ou cômica. Talvez até mesmo um pouco das duas coisas. Os olhos dele pareciam especialmente brilhantes assim tão de perto.
— Melhor agora?
— Infinitamente - ela respondeu, sorrindo levemente. — Obrigada mesmo pela ajuda. Fico te devendo essa.
— Acho que sei como você pode me retribuir. - tinha uma feição quase desafiadora, completamente direcionada a ela.
— Eu não vou fazer seu trabalho de zoologia. Da última vez que me pediram isso, as coisas não acabaram lá muito bem.
— Droga, agora você me deixou curioso. Mas não é isso.
— Não sei cozinhar.
riu alto, negando.
— Também não. Só acho que talvez seria legal te ver assistindo ao nosso jogo. Já que eu torci por você, talvez você pudesse torcer por mim.
— Bom, isso eu acho que posso fazer. Só não prometo ficar gritando. Acho que meu fôlego acabou na piscina.
— Atenção, alunos! Todos os integrantes dos times de basquete da Braxler High e da Westminster High devem comparecer imediatamente ao ginásio poliesportivo para dar início ao aquecimento. - Os alto-falantes gritavam como se tivessem sido precisamente programados para aquele momento.
— Boa sorte, . Não que você realmente precise. - deu de ombros, enquanto apertava mais o rabo de cavalo e empurrava os óculos com a ponta de seu dedo indicador esquerdo.
— Obrigado, . Significa muito vindo de uma campeã - ele respondeu, sorrindo mais abertamente ao perceber como os olhos dela pareciam menores e mais delicados por trás das novas lentes.
Separaram-se pelos corredores, andando por seus respectivos caminhos em busca de seus devidos lugares naquele momento. encontrou seus pais em um dos degraus da arquibancada, pintada com a enorme face de um felino vermelho e branco - o tão querido mascote dos Braxler Tigers.
Sua mãe abriu o mais largo sorriso do universo ao avistar a filha, permitindo que seus braços se preparassem para acolhê-la em um abraço de urso. Não havia como medir ou descrever o orgulho que sentia por ver a pequena e incrível mulher que sua garotinha vinha se tornando. tinha se mostrado detentora de todas as incríveis qualidades que ela sempre esperou que tivesse: força, persistência, empatia, bondade e a maior determinação do mundo todo. Até maior do que a dela própria na época em que fez - literalmente - quase tudo para se aproximar do rapaz que viria a ser o seu marido.
— Você foi incrível - o pai comentou, deixando o beijo no topo da cabeça de sua filha. — Não que seja uma grande novidade.
A garota revirou os olhos, mas acabou sorrindo. Poderia pular na piscina e boiar feito uma bolsa plástica indevidamente despejada no oceano e, mesmo assim, eles ainda diriam que ela era sempre maravilhosa.
— Meu anjo, é impressão minha ou aquele rapaz muito alto está olhando diretamente para cá? - A mãe perguntou, ao perceber o olhar quase furtivo do rapaz que se posicionava no centro da quadra para saltar em busca da primeira posse de bola para seu time.
franziu a própria testa e pressionou seus olhos em busca do tal rapaz. Quando seu campo de visão conseguiu perceber a imagem de , ela arregalou os olhos quase instantaneamente. O rapaz, por sua vez, apenas acenou, exibindo aqueles dentes incrivelmente alinhados e brilhantes em um belo sorriso.
A garota se sentou, contorcendo o rosto na careta que costumava fazer quando percebia que a vermelhidão que adorava tomar conta de suas bochechas estava prestes a se fazer presente e perceptível para quem quisesse ver. A risadinha da mãe ao seu lado não estava ajudando muito.
— Nós, , sempre chamamos a atenção dos rapazes de alguma forma. É quase inevitável. - A mais velha deu de ombros.
— Menos, mãe. Nós sequer tínhamos nos falado até agora pouco. E nem foi grande coisa também.
— E quem disse que precisa? Você superestima a necessidade das palavras.
— Amor, para de encher a cabeça dela de minhocas - reclamou o pai. — Podemos simplesmente assistir ao jogo?
A contragosto, a mulher assentiu e se manteve em silêncio. Ofereceu para a mais nova um pacote de batatas chips, imaginando que ela pudesse estar com fome e tornou a prestar atenção naqueles adolescentes correndo atrás daquela bola que quicava com uma facilidade que a deixava tonta. Mesmo depois de tantos anos, ainda não conseguia ver a graça que aquele povo via em arremessar aquela esfera suja e pesada naquela cesta. Soava idiota.
Com uma pancada inesperada e muito mais forte do que o necessário, teve seu arremesso interceptado dentro do garrafão. Rapidamente, sob os protestos dos outros alunos da Braxler High, o árbitro apitou o posicionamento para os dois arremessos livres. Todos os membros das torcidas emudeceram, divididos entre juntar as mãos em preces para que aqueles dois pontos fossem convertidos e desejar o completo oposto.
conquistou o primeiro arremesso com uma precisão impressionante, arrancando comemorações do banco de reservas e das arquibancadas. O segundo lançamento foi tão simples e eficiente quanto o primeiro. Ele fazia aquilo parecer tão fácil que soava até vergonhoso para o restante dos meros mortais.
Quando o placar já se demonstrava estável e relativamente seguro, o técnico optou por fazer uma substituição que poupasse o físico de para o próximo jogo e desse a chance de participação para algum novato sedento por alguns minutos em quadra. Do banco, acenou para a arquibancada, agradecendo a presença de ali.
A garota sorriu de volta, sentindo-se completamente deslocada e ruborizada. Com certeza teria que dizer que tinha problemas sérios de rosácea em vez de dar o braço a torcer e admitir que não sabia o porquê daquilo tudo. Não sabia sequer o porquê daquilo estar acontecendo exatamente com ela e precisamente naquele momento. Ela sempre esteve ali e ele também, então por que esse interesse repentino?
sacudiu a cabeça, tentando se livrar daquelas ideias que sabia que não a levariam a lugar algum. Não tinha sentido perder seu tempo com isso. Mesmo assim, seu subconsciente parecia urrar para que ela voltasse para o cantinho silencioso em que costumava ficar. Aquela atenção lhe era tão estranha que parecia quase errada e até mesmo perigosa. De repente, tudo o que queria fazer era gritar embaixo d’água até que aqueles pensamentos decidissem se afogar.
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Aquela manhã de quinta-feira corria exatamente como qualquer outra. tinha sobrevivido custosamente à aula de cálculo e analisado os ponteiros do relógio sem parar, aguardando até que os mesmos finalmente mostrassem que já eram dez horas. Queria acreditar que poderia acelerar o tempo com a força de seu pensamento positivo. Talvez, se desejasse com muita força que todos aqueles teoremas monstruosos sumissem, seu desejo se tornasse realidade mais rápido. Não levou mais de dois minutos para descobrir que estava totalmente errada. Observar o fino ponteiro dos segundos saltitando só fazia com que o tempo parecesse estar andando ainda mais devagar só para zombar de seu desespero. Exatamente como acontecia em toda manhã de quinta-feira. Irritantemente comum. Cansativamente rotineiro. Ao menos até aquele momento.
A aula de biologia avançada finalmente chegou e o coração da garota se dividiu entre a felicidade de retomar os estudos sobre a vida e abandonar um pouco aqueles números sem sentido e a leve tristeza de mudar de assunto, sendo obrigada a afastar sua atenção da biologia marinha por algum tempo.
— Daqui para frente, nosso campo de estudo será a botânica - anunciou a Sra. Cooper. — As próximas aulas abordarão toda a questão de anatomia e fisiologia vegetal, além de especificidades de outros reinos. Como esse reino pode se tornar um tanto maçante e entediante, decidi tornar as nossas aulas mais interativas e práticas. A botânica é, em grande parte, facilmente explicável e percebida quando você simplesmente vai a campo e observa as coisas à sua volta. Algumas características simplesmente fazem sentido quando você decide sentar e pensar sobre. Alguém tem alguma objeção? Fale agora ou cale-se para sempre.
Um garoto ergueu a mão, recebendo um aceno positivo da professora, indicando que ele poderia falar.
— Isso de estudo interativo inclui o ambiente externo? Por que eu não estou nem um pouco a fim de ficar embaixo do sol forte a essa hora da manhã.
— Para a sua sorte, o tempo está ameno e nossas árvores são grandes e frondosas o suficiente para lhe propiciar sombras sob as quais o senhor pode se proteger da luz. - Vários alunos riram baixo pela resposta. — Mais alguma coisa?
Todos negaram prontamente, balançando a cabeça.
— Ótimo! - A Sra. Cooper bateu palminhas. — Agora, a parte mais importante e possivelmente a que mais vai gerar reclamações: as duplas. Claramente, sou eu quem vai escolher.
Enquanto vários alunos realmente começaram a se manifestar - em sua maioria contra - a decisão, simplesmente deu de ombros. Não compartilhava aquela aula com nenhum de seus amigos mais próximos e também não era uma daquelas pessoas que tinha algum tipo de ódio especial destinado a alguém. Qualquer um que fosse escolhido para ser sua dupla, seria uma notícia indiferente. Menos se fosse…
— Senhorita e Senhor !
… Bom, ele.
sorriu para a garota e pegou seus cadernos e estojo, levando-os até a bancada em que a garota se sentava.
— E aí? Como é que você está? - Ele perguntou, simpático.
— Bem. - Mentira. — E você?
— Mais tranquilo agora, confesso. Estava com medo de cair com alguém que não estivesse disposto a trabalhar de verdade.
— Não sabia que você era assim tão interessado em biologia - admitiu.
— Assim como eu nunca soube que você era uma atleta incrível fora dessa bolha de estudos. - deu de ombros. — Acho que nós dois nos subestimamos e tentamos nos resumir a uma coisa só. Talvez seja uma tentativa de facilitar as relações.
A garota confirmou, refletindo um pouco sobre aquilo. Não deixava de ser verdade, afinal. Rotular os outros era uma tentativa de amenizar as coisas para si próprio, diminuindo a complexidade e a dimensão que uma alma humana tinha. Era um tanto triste também. Resumir sonhos, desejos, medos, frustrações e angústias a um só termo, como em uma definição por ultimato. Por que alguém tinha de ser só inteligente ou só esportista? Só engraçado ou apenas artístico?
Quando seus pensamentos já estavam indo longe demais e perdendo a noção do ponto de limite, a Sra. Cooper estalou os dedos, retirando todos de seus devaneios ou conversas paralelas.
— Peguem canetas e folhas para anotações e vamos para o pátio. Vocês deverão escolher algum canto do colégio que tenha uma árvore ou flor que lhes chame a atenção por algum motivo. Quero que façam um trabalho descritivo sobre todos os órgãos que conseguirem analisar e características como formas, padrões e outras coisas. Vocês podem se surpreender com como a natureza pode ter um poder incrível de conformação artística.
e seguiram em completo silêncio um ao lado do outro. Não tinham sequer se perguntado para onde exatamente estavam indo.
— Você tem algum lugar em mente? - Ela perguntou, tamborilando a caneta entre os dedos e ouvindo os leves estalos que o plástico produzia ao se chocar com a superfície rígida de suas unhas.
— Pensei que poderíamos analisar aquelas palmeiras que plantaram ao longo do caminho entre o ginásio e a piscina, sabe? Acho que faz sentido para nós dois individualmente e como em dupla.
Ela sorriu, concordando. Era uma ideia razoável e muito melhor do que qualquer outra que ela pudesse vir a ter. Observar árvores realmente não era uma coisa que despertava suas aptidões criativas.
Sentaram-se aos pés de uma das palmeiras e ergueram o olhar, visualizando a parte inferior das folhas organizadas à distância. Naquele momento, teve de lidar com a ideia de que, se algo caísse lá de cima, provavelmente a altura seria o suficiente para matá-los. Mesmo que fossem apenas dejetos de pássaros.
— Por onde começamos? - perguntou. — Palmeira-de-saia-da-Califórnia. Nativa.
— Serve de habitat para besouros gigantes, morcegos amarelos e passarinhos que vêm fazer ninhos nas inflorescências primaveris.
— Já começa esfregando todo o seu conhecimento infinito na minha cara? Que falta de humildade, .
riu, meneando a cabeça. Nunca fora a sua intenção realmente soar petulante ou pedante.
— Desculpa.
— Estou só brincando. O que mais nós sabemos?
— Que as folhas e as fibras eram muito usadas pelos povos nativos para artesanato, principalmente cestas e sandálias. E as sementes e frutos muitas vezes foram usados como último recurso contra a fome.
apenas acenava com a cabeça, concordando com todas as curiosidades que a garota ditava. Estava muito empenhado e concentrado nos movimentos que seus dedos faziam com o lápis preto, deslizando pela folha livre do caderno. franziu a testa, perguntando a si mesma se ele realmente tinha ouvido alguma coisa do que ela tinha dito.
— Você prestou atenção em alguma coisa que eu disse?
— Sim - respondeu simplesmente, ainda correndo o grafite bem apontado pelo papel branco.
A garota observou aquela cena com uma atenção desconfiada. O foco que o rapaz tinha no que estava fazendo era estranhamente impressionante e bonito de se ver. Cada movimentação de cada músculo de sua face compunha singelos e quase imperceptíveis repuxões e franzimentos em seus olhos e boca. Era quase poético. Artístico.
— Terminei - anunciou alegremente, retirando a garota de seus devaneios. — Não ficou exatamente do jeito que eu queria, mas acho que dá para o gasto considerando que foi feito sem muito cuidado.
Dito isso, virou o caderno para ela, permitindo que ela visse o desenho que tinha feito. Os rabiscos que, de longe, pareciam difusos e pouco coerentes, tinham dado forma a uma representação consideravelmente fiel e bem feita da palmeira. Aquilo, sim, era definitivamente artístico.
— Ficou realmente espetacular - ela admitiu, ainda um tanto impressionada.
— Acha mesmo? Não está meio bagunçado? Os traços um pouco grosseiros, talvez?
— Não mesmo. Eu sequer sei desenhar um boneco de palitinhos sem que ele pareça um Frankenstein de retas encaixadas. Isso realmente é incrível.
— Obrigado, então - respondeu sincero. — Fazia um tempo que eu não desenhava assim. Acho que não tinha percebido que sentia falta disso.
— Deu para perceber - ela comentou. — Você estava bem concentrado no seu mundinho. É bonito de ver. Devia desenhar mais, então.
— É. Acho que sim.
O silêncio estava prestes a se tornar constrangedor, quando o rapaz decidiu verbalizar algo ainda pior.
— Quer dizer que foi bonito de ver, então?
se arrependeu instantaneamente das palavras proferidas. Por que ela não podia simplesmente pensar antes de falar besteiras como aquela? Agora, ia ficar vermelha e passar ainda mais vergonha pelo simples fato de estar com vergonha.
— Não foi isso que eu quis dizer - tentou se explicar. — Não disse que você é bonito, mas que a sua disposição para isso foi bonita de ver.
— Então sou feio?
Ela queria muito ser as raízes daquela palmeira, bem escondidas e firmes no solo. Nunca sentira tanta inveja de uma angiosperma enorme.
— Não foi isso que eu quis dizer também.
riu alto.
— Eu sei. Eu só queria te sacanear. Você precisava ver a sua cara. Fica tranquila, . Eu entendi o que você quis dizer. E agradeço pelos comentários positivos. Eu deveria mesmo desenhar mais. É bom para me desestressar.
— Não tem graça, - ela reclamou, ainda um tanto envergonhada, apesar de mais relaxada. No fundo, sabia que também teria rido da própria reação exagerada.
— Bom, você tem que admitir que tem um pouco, sim. Acho que fizemos o que estava ao nosso alcance sem meios mágicos de busca conhecido como google.
— É, acho que sim.
olhou para o relógio preto no próprio pulso, calculando rapidamente o tempo que ainda tinham antes da próxima troca de aulas. Antes mesmo de analisar o visor digital, torceu interna e inconscientemente para que ainda tivesse um período razoável. Sorriu de leve, comemorando silenciosamente a “notícia” que tinha para dar.
— Temos por volta de trinta minutos antes da próxima aula. Acho que podemos simplesmente aproveitar esse tempo livre para conversar. Estamos fazendo trabalho juntos e eu não sei absolutamente nada sobre você, além da sua paixão por biologia e sua absurda habilidade na natação.
— Não é como se eu tivesse algo de interessante a contar, . Não tenho uma vida agitada como a sua.
— Agitada? Qual é? Você acabou de descobrir sobre meu interesse em desenhar. Não me parece realmente algo super badalado.
— Se você está esperando por algum talento artístico secreto, eu sinto muito em decepcionar, mas não tenho nenhum. Meus pais dançam um pouco às vezes e minha mãe tem uma voz linda, mas eu nasci com dois pés esquerdos e uma afinação do tipo apitos caninos fora de tom.
— Não deve ser assim tão ruim - comentou, rindo com a comparação.
— Ah, não. Pode ter certeza de que é bem péssimo. Meu chuveiro ficou de mal comigo por uma semana da última vez que eu me arrisquei em sequer cantarolar uma música que estava na minha cabeça.
— Eu sou um exímio cantor. Só não te mostro agora porque eu estou com um pouco de dor de garganta.
ergueu a sobrancelha, dando uma risada completamente irônica.
— Sei. Se for fazer com que você se sinta melhor, eu finjo que acredito, ok?
— Agradeço - ele respondeu, sorrindo. — Mas me fala mais de você. O que você faz no seu tempo livre?
— Leio, nado… Nas férias, sempre vou pedir emprego temporário no aquário da cidade. Depois, nado, leio… Acho que é cíclico.
— Você realmente ama isso, não é?
— Amo - concordou, com o sorriso mais sincero do universo. — Amo mesmo. Não sei explicar como e nem o porquê. Só acontece, sabe? É como se estar por perto da água fizesse eu me sentir em casa. Existe essa sensação inexplicável de pertencimento.
— Isso é incrível, . De verdade. Acho que, se sereias existissem, você seria uma delas.
— Minha mãe sempre me chamou de pequena sereia. Não sei se fui eu quem escolheu a água ou ela me escolheu, mas nós nos tornamos inseparáveis antes mesmo de tomar consciência disso.
O rapaz concordava com tudo, encantado com a autenticidade e a verdade incontestável que aquelas palavras representavam. Sabia bem que tudo aquilo que ela dizia não era da boca para fora. Ela sentia cada uma das letras que proferia, amava real e intensamente aquilo tudo como se fosse parte dela. E era. Definitivamente, sua melhor parte.
— E você, ? O que te levou a começar a desenhar? E o que te fez parar?
— Quando eu era mais novo, eu tinha uma imaginação ridiculamente fértil e muita energia mesmo. Isso fazia com que, basicamente, eu passasse a maior parte do meu dia na rua, correndo feito um doido até minha mãe decidir que o sol já tinha baixado o suficiente e eu precisava entrar.
“Dentro de casa, eu simplesmente não conseguia ficar parado. Foi o tempo que eu acabei tirando para trabalhar esse lado criativo. Eu criava personagens, sabe? Heróis, monstros, amigos coadjuvantes… Nunca tive paciência para realmente sentar e escrever a história deles, mas todos tinham um propósito, um poder ou uma característica completamente distinta dos outros. Eu tinha cadernos e mais cadernos completamente abarrotados de desenhos. Era o jeito de gastar um pouco da energia que sobrava. Não é à toa que eu sempre dormi feito um anjo.”
concordava com cada palavra, identificando a si mesma na maioria daquelas situações. Tinha começado a nadar também sob o pretexto de pais exaustos que precisavam que a filha gastasse um pouco de energia para que eles próprios pudessem ter algum resquício de energia em seus corpos. No final das contas, às vezes era o próprio pai que tinha que ordenar que ela saísse da água agora. Ela nem percebia o tempo passar. Fora assim que conquistara muitas de suas insolações.
— Isso é bem legal - comentou simplesmente, por falta de algo melhor para dizer. E porque realmente achava tudo aquilo muito legal.
— Eu sei. É mesmo uma pena eu ter largado - murmurou, enquanto mantinha os próprios olhos fixos no desenho que pairava sobre o seu colo.
— Por que não volta? Vai te fazer bem.
Foi então que um estalo lhe ocorreu. capturou rápido a ideia que viajou por sua mente, evitando que ela fugisse. Completou:
— Por que não participa das extracurriculares de artes plásticas? Tenho certeza de que vai ser divertido e tranquilizante para você. Sem contar que um atleta, interessado em biologia avançada e desenhista com certeza vai ser o menino do currículo de ouro para qualquer universidade possível e imaginável.
pareceu pensar sobre aquela ideia durante alguns segundos, até que um sorriso quase sacana se formou em seus lábios levemente rachados pela exposição ao calor.
— Eu vou. Mas você deveria ir comigo.
A garota estreitou os olhos e riu de forma sarcástica, como se acabasse de ouvir a maior blasfêmia de toda a sua vida. De fato, em sua cabeça, nada fazia menos sentido do que aquela proposta inesperada.
— Eu vou fingir que eu não ouvi isso. Qual parte de “meus bonecos palitos são deformados” você não entendeu?
— Mas quem foi que disse que você precisa desenhar? Você pode ser só modelo ou fonte de inspiração para alguém. - deu de ombros de forma quase inocente. — Sabe como é. Todo artista precisa de uma.
— Estou fora. Completamente fora.
— Por quê? Vai ser divertido.
— Para quem?
— Por favor! Eu não queria ir sozinho. Se você odiar muito, pode virar as costas na hora que quiser.
— Eu só não entendo, . - O rapaz a encarou, franzindo o cenho. — Por que eu?
sorriu docemente, percebendo que não tinha uma resposta para aquilo.
— Eu também não sei, . Só é o que está acontecendo e eu sinceramente não sei te explicar o porquê.
sentiu seu coração tropeçar, quase como se tivesse se esquecido de um dos obstáculos que tinha de pular naquela corrida de imprevisto fim chamada ritmo cardíaco. Não sabia o significado que aquelas palavras tinham para o rapaz e preferia não desperdiçar seu tempo e resquícios de sanidade mental remoendo continuamente algo que não a levaria a lugar algum. Por outro lado, se tinha algo que ela preferia não pensar sobre, mas não conseguia ignorar, esse algo era o que ela mesma sentia acerca daquelas palavras que a pegaram de surpresa.
+++++
O professor de artes tinha acabado de deixar a sala, pedindo para que o último a sair apagasse as luzes. Os alunos iam, aos poucos, guardando seus próprios materiais e organizando as telas e painéis com os trabalhos produzidos naquele dia. Estendiam suas obras pelos cantos livres, permitindo que as tintas secassem em pontos estratégicos da sala, sem grandes riscos de queda dos cavaletes. Aqueles que tinham dado preferência ao uso de lápis posicionavam as folhas enormes sobre as mesas desocupadas, evitando a sobreposição que poderia levar a um borrão que destruísse todo o trabalho de horas. Conforme completavam seu ritual e se despediam de suas obras, os participantes daquela aula iam abandonando a sala em meio a uma rápida despedida dirigida aos que ali ainda permaneciam.
era o único que ainda se encontrava no recinto, decidido a terminar alguns detalhes que não tinham lhe convencido totalmente. Pouco satisfeito com o resultado, estava completamente focado em só sair dali quando realmente não visse mais como melhorar seu desenho.
Juntou alguns lápis pretos e se sentou na bancada principal, aproveitando que tinha o espaço todo para si. Espalhou alguns tons de cinza e bege para trabalhar com efeitos de luz e sombra sem pintar o desenho propriamente. Sua cabeça funcionava a mil por hora, apenas imaginando todas as possibilidades do que poderia fazer ali.
Foi quando um leve toque na porta fez com que ele desviasse sua atenção para o ponto de origem do som.
Lá estava ela, por quem ele esperançosamente aguardara por longos minutos. Tinha os cabelos molhados e levemente bagunçados. Parecia um tanto esbaforida e vestia o conjunto vermelho representante dos times esportivos do colégio.
— Eu sei que me atrasei. Em minha defesa, o treino da equipe de natação foi adiantado por causa da reunião de pais de hoje à noite.
— Tudo bem. Eu pensei que você nem viria. De certa forma, já é mais do que eu esperava.
adentrou a sala, dando passos lentos e espaçados, quase como se esperasse que ele a expulsasse dali. Estava basicamente lhe dando a chance - pouco - explícita de fazê-lo. Mas ele não o fez.
— O que você está fazendo?
— Retocando, consertando, destacando... De forma geral, eu estou tentando muitas coisas sem saber se alguma delas realmente vai melhorar isso.
A garota se aproximou da bancada, sentando-se um pouco afastada no longo banco de madeira, mas perto o suficiente para visualizar perfeitamente a obra dele.
— Nossa. - Ela mal encontrava palavras que expressassem realmente o que ela gostaria de dizer.
retraiu todos os músculos, quase como se tivesse sido bruscamente eletrocutado. Retirou suas mãos dos materiais de desenho com uma agilidade absurda, interrompendo qualquer movimento que pudesse ser feito sobre a obra.
— Está tão ruim assim?
— Não! Pelo contrário. Meu Deus, ! Isso é simplesmente maravilhoso! - exclamou, apreciando cada segundo de completa admiração que dispunha à observação dos traços firmes e precisos que o rapaz tinha conseguido passar para aquele pedaço de papel. — Essa é a sereia mais linda que eu já vi em toda a minha vida.
O rapaz expirou todo o ar que tinha acumulado em seus pulmões de uma só vez, livrando-se de um peso que ele sequer sabia que estava carregando. Finalmente, permitiu-se sorrir.
— Você me inspirou - falou. — E não adianta me perguntar o porquê, . Você é arte e tudo o que eu posso fazer é admirar e me aproveitar disso para a minha própria arte.
A garota sentiu suas bochechas ruborizando uma vez mais. Aquelas, inexplicavelmente, eram as palavras mais bonitas e significativas que ela tinha ouvido em toda a sua vida. Tão impactantes que, estranhamente, tinham arrancado pequenas lágrimas que se acumulavam próximas às suas pálpebras.
Quando respirou de forma mais profunda, acabou percebendo aquele extravasamento de emoções e se preocupando, passando a se movimentar de forma um tanto nervosa.
— Ei, o que foi? Desculpa, eu não queria…
— Obrigada. De verdade.
O rapaz levou seus dedos vagarosamente ao rosto da garota, esperando que ela negasse o toque. Seus movimentos pediam uma permissão que lhe fora dada pelo silêncio consciente dela, que já lhe sorria leve e ternamente.
limpou as lágrimas que ali se alojavam, acariciando a pele delicada de sua bochecha com as pontas dos dedos. Cada mísero toque parecia distribuir faíscas que percorriam suas peles a uma velocidade quase tão extrema quanto a da luz. A proximidade que os rostos tinham tomado não parecia estar ali antes. Ou estava? Não sabiam ao certo como, mas já podiam sentir a pressão que a respiração do outro causava em sua própria pele.
Quase tão sutilmente quanto toda aquela coreografia tinha se iniciado, ela também chegou ao seu ápice. Um roçar de lábios, tão suave quanto um borboletear de asas. Um beijo que se aprofundou com toda a delicadeza que rodeava aquele momento especial.
tinha conseguido o que, sem nenhum indício de chegada, tinha se tornado sua maior vontade dos últimos tempos: beijar a garota.
+++++
ainda não estava se sentindo completamente confortável com aquela saia levemente rodada. Todos já estavam cansados de repetir continuamente o quão linda ela estava. O pai dissera várias vezes como o modelo era digno de uma princesa e a mãe reafirmava como aqueles tons de azul eram perfeitos para sua pequena sereia. De fato, ela estava maravilhosa, mas já tinha aprendo a não levar muito em conta as opiniões de pais babões que a achavam linda até babada e com o cabelo repleto de nós pela manhã. Eles não eram exatamente confiáveis nesse assunto.
Mesmo assim, ela decidiu acreditar. Pelo menos naquela noite. Queria se sentir linda. Mais do que isso, queria permitir a si mesma a oportunidade de se admirar um pouco. A influência recente na sua vista tinha lhe garantido o maior bem que ela poderia ter adquirido em toda a vida: o auto-reconhecimento.
Uma buzina ecoou do lado de fora da casa, chamando a atenção de toda a família.
desceu as escadas correndo, sendo bombardeada por dezenas de flashes vindos das câmeras que os pais apontavam diretamente para ela. Revirou os olhos, sabendo que nada do que falasse faria com que eles parassem com aquilo.
— Eu preciso ir - disse simplesmente. — Volto até a meia-noite. O baile não vai acabar muito mais tarde do que isso de qualquer forma.
— Eu vou começar a chorar - sua mãe comentou, abanando os próprios olhos. — Ande, ande. Não deixe o te esperando.
A garota abriu a porta, saindo correndo até o carro do namorado. Seus pais observaram enquanto o automóvel partia pela rua, perdidos entre os próprios sorrisos e a sentença inevitável de como a filha tinha crescido.
— Nossa princesa está maravilhosa - ele comentou, ainda soando como o grande pai babão que, de fato, era.
A mulher riu.
— Imagina só quando ela souber que realmente é uma princesa, Alteza.
Foi a vez de Eric revirar os olhos e bufar por ser lembrado daquele assunto que tanto o atormentava. No entanto, sabia que não era o único com um segredo escondido.
— Imagine só quando ela souber que tem motivos para ser constantemente chamada de sereia, Ariel.
A ruiva respirou fundo, meneando a cabeça antes de fazer menção de fechar a porta.
— Cada coisa no seu tempo. De preferência, no tempo certo.
Aguardar em pé atrás de sua baliza era uma tortura interminável. O tempo de espera era sempre a pior parte de todas as competições. Ter tempo significava ter uma abertura indesejada para que seu nervosismo crescesse como um ramo de erva daninha no meio de um cuidadoso jardim. Queria arrancar aquele mal pela raiz e era ainda mais frustrante saber que não conseguiria. Algumas coisas na vida simplesmente tinham que ser sentidas antes de poderem passar.
Cada um de seus neurônios parecia se mobilizar agilmente para completar sinapses e estímulos motores pré-concebidos. Já imaginava e sentia todo o percurso tão bem conhecido. Sentia a água sobre sua pele, a hidrodinâmica agindo sobre o tecido revestido de seu maiô azul turquesa e o cheiro quase nauseante de cloro a que tinha se acostumado.
Quando sua bateria foi anunciada, apertou os óculos no rosto e usou as pontas dos dedos para reorganizar os pequenos e novos fios de cabelo que insistiam em escapar de sua touca de silicone. O coração acelerado no peito fazia com que, a cada batida, sua audição se desligasse das pessoas gritando incentivos à sua volta. O único som que sua orelha seria capaz de receber e identificar era o do apito que aguardava para saltar.
Um apito longo. Ela subiu à baliza, enxergando apenas a raia à sua frente. Um grito de “Às suas marcas”. A garota inclinou o corpo para a frente, agarrando seu apoio com a ponta dos dedos. Seu corpo pendia levemente para trás, buscando pelo máximo impulso que poderia aproveitar no salto de forma a angariar alguns metros extras de vantagem em relação às outras competidoras. Um apito curto. A resposta imediata de um corpo completamente treinado e condicionado a receber aquele estímulo preciso: saltar.
A jovem fez a saída perfeita, sabendo que suas ondulações eram sua melhor vantagem contra as demais competidoras. Sua aptidão para o nado borboleta era inegável e inexplicavelmente inata. O movimento que suas pernas faziam era ágil e preciso, perfeitamente encaixado e sincronizado. Ninguém sabia dizer exatamente de onde aquele talento tinha vindo, mas todos sabiam perfeitamente do desejo inenarrável de todas as outras nadadoras em compartilhar das mesmas qualidades no esporte.
mal percebia o cansaço, mal pensava no que seus braços faziam enquanto sua cabeça se levantava para buscar por ar. Aquilo lhe era tão natural quanto o sangue que corria pelas suas veias. Tão vital quanto os seus impulsos nervosos. Quase mais prazeroso do que uma longa e contínua noite de sono. Sua mãe sempre sorria ternamente e orgulhosa quando ela dizia que via na água um lar. Como não entendia o porquê daquela ação, só assumia que era mais uma daquelas reações inexplicáveis de mãe às quais você simplesmente assentia e ignorava até que deixasse de ser esquisito.
Quando as pontas dos seus dedos finalmente resvalaram no azulejo quadriculado da piscina, se colocou de pé e permitiu que o cansaço por esforço muscular fosse sentido por cada um de seus membros. Não havia dor melhor do que aquela.
Enrolou o próprio corpo em uma grande e colorida toalha felpuda, escondendo o maiô e retirando o excesso de água que recobria sua pele. Esperar o resultado sempre era um momento repleto de nervosismo e batidinhas de unhas contra os dentes, que as roíam quase automaticamente. Ela fazia mais o tipo que batia o pé sem parar no chão, tentando se livrar de toda aquela energia que ainda se concentrava em seu corpo. E foi exatamente o que ela fez até ver o representante da organização se aproximando para colar na parede a lista com os tempos das nadadoras de cada bateria e a consequente classificação dos 50 metros borboleta.
Lá estava: : 26.15s . O menor tempo. O primeiro lugar. Mesmo em meio a todas as outras participantes, ela não conseguiu conter completamente o sorriso vitorioso que se formava em sua face.
Quando anunciaram seu nome e o das outras duas garotas que tinham conquistado posições no pódio, o grito de comemoração dos pais e alunos da Braxler High preencheu o ambiente. Era a primeira medalha de ouro que o colégio conquistava naqueles jogos estudantis e, com certeza, era uma de grande valor. Uma vitória importante o suficiente para chamar a atenção de um rapaz alto que exibia seus fios castanhos claros na arquibancada. Um rapaz que podia nunca ter reparado em sua existência até então, mas ela sabia perfeitamente quem ele era.
. O principal jogador do time de basquete do colégio. O cara que parecia ter saído diretamente de uma propaganda de produtos capilares caríssimos. O garoto com quem todos queriam conversar porque aquele sorriso enorme parecia incrivelmente convidativo e interessado em cada palavra do que você dizia, independentemente do quão tosca ou sem sentido a mesma fosse. , o mais próximo da definição de perfeição que um verbete ou um poema forneceria.
— Aquela não é a garota que faz biologia avançada com a gente? - perguntou para o colega de time que se sentava ao seu lado na arquibancada.
— A que é fissurada por biologia marinha? - Drake perguntou, recebendo um aceno de confirmação do amigo. — Acho que é ela, sim.
— Ela é incrível! - exclamou. — Por que nunca soubemos disso?
— Talvez porque essa é a primeira vez que o nosso jogo caiu em horário diferente da natação. Deve ser algum sinal de Afrodite para que possamos ver as garotas de maiô.
revirou os olhos automaticamente, completamente frustrado com o que tinha ouvido. Sua frustração dobrava quando ele se lembrava de que qualquer outro membro do time teria concordado e encontrado graça naquela afirmação machista e estúpida.
— Você é um idiota. E é por isso que você só olha e nunca consegue nada. Ninguém tem paciência para gente babaca.
Dito isso, largou para trás um Drake com uma feição completamente chocada e ofendida. Pediu licença repetidamente, enquanto desviava das pessoas que ainda comemoravam ou reclamavam na arquibancada. Se ficasse mais um segundo sequer ali, teria de desistir do próprio jogo por não conseguir dividir a quadra com o outro. Não estava nem um pouco disposto a perder seu recorde de pontos por causa de um cara que tinha esquecido um pedaço do cérebro alguns séculos atrás.
Seguiu pelas escadas que separavam a área da piscina do resto do ginásio poliesportivo. Bufava baixinho, compartilhando com si mesmo aquela irritação. A cabeça seguia abaixada enquanto ele caminhava pelos corredores que já conhecia tão bem. Precisava pegar sua bombinha no armário do vestiário masculino. Não sentia seus pulmões em um de seus melhores dias. Tentou controlar a sua respiração, inspirando o mais fundo possível e expirando com a menor velocidade que conseguia. Se tinha uma coisa que detestava fisicamente, essa coisa era, sem dúvida alguma, aquela maldita falta de ar que insistia em retornar para incomodá-lo.
Estava tão perfeitamente focado em dar passo atrás de passo, mantendo sua respiração o melhor controlada possível, que não percebeu a aproximação repentina da outra pessoa que não prestava mais atenção do que ele no trajeto.
— Ai! - Ela reclamou baixinho, afagando o próprio ombro no ponto em que a pancada havia se dado. — Perdão. Eu não quis te machucar.
rapidamente reconheceu a primeira medalhista da Braxler High nos jogos estudantis. Não foi capaz de esconder a leve risada ao ouvir aquele pedido de desculpas.
— Não machucou. Acho que quem tem que pedir perdão por isso sou eu - analisou e se levantou, estendendo a mão para que a garota encontrasse apoio para fazer o mesmo. — Eu estava concentrado com outra coisa. Não te vi. Foi falha minha.
esboçou um sorriso quase irônico.
— Você não me viu, mas eu ainda não te vejo. Minhas lentes de contato caíram no vestiário e sumiram pelos trilhos do ralo. Eu estava tentando encontrar o meu armário de uso comum para pegar meus óculos reservas.
franziu a testa.
— Eu não sabia que você usava óculos.
— Porque são emergenciais. As lentes não tinham me feito passar vergonha até agora.
— Você sabe definir quem eu sou pelo menos? - Perguntou curioso, mas com medo de estar sendo, de alguma forma, indelicado.
— Sei, . - Ela sorriu, percebendo a falta de jeito que ele esboçava. — Eu reconheço a sua voz. Às vezes, até tenho pesadelos com seus gritos ecoando pelo teto alto da quadra de basquete.
— Engraçadinha. - Ele acabou rindo. — Vou pegar uma coisa no vestiário. É bem rápido. Pode me esperar aqui? Não vou me sentir confortável em deixar você perambulando por aí sem enxergar. Logo eu volto e te ajudo a chegar ao seu armário. Pode ser?
— Não posso me dar ao luxo de negar uma proposta dessas. Vou esperar.
Aquele quase vulto sumiu rapidamente de seu defasado campo de vista, fazendo com que ela fizesse uma careta. Quão ridículo era ter a imagem dele perfeitamente definida em sua mente mesmo enquanto ela mal conseguia identificar visualmente onde acabava seu olho e onde começava o nariz? Definitivamente, era ao menos um pouco vergonhoso. Mesmo que não fizesse o tipo popular arrogante e tivesse se mostrado um cara muito bacana e prestativo, aquilo ainda era ridículo. Por que só ela passava aquele tipo de vergonha?
Logo, ele estava de volta como prometido. Carregava alguma coisa colorida na palma da mão que ela não sabia bem definir o que era.
— É para a asma - explicou assim que percebeu a confusão passageira que tinha se apossado de suas feições.
simplesmente concordou e começou a seguir o rapaz, mantendo os olhos apertados na tentativa - claramente falha - de enxergar aquilo que o mundo ainda permitia. A cada passada que ecoava pelos pisos do corredor vazio, o silêncio parecia sufocá-los um pouco mais. Era exatamente àquela vergonha que o subconsciente de se referia. Chegara ao ponto de ouvir com clareza um zunido que mais parecia um apito tentando perfurar seu tímpano com a frequência aguda possível.
— Acho que eu devo te dar os parabéns pela vitória. Foi uma prova e tanto. Não sabia que a Braxler High tinha uma nadadora tão incrível.
A garota abaixou levemente a linha do queixo, perdendo o olhar míope pelos borrões amarelados que as placas de porcelanato do chão causavam em seus olhos. Nunca fora a pessoa mais preparada do mundo para lidar com elogios. Muito menos aqueles pelos quais ela não esperaria nem em um milhão de anos. Mais ou menos como o que acabara de acontecer.
Não era como se ela não soubesse de suas habilidades. Seus tempos recordes - cada vez mais surpreendentemente baixos - e a coleção de medalhas e troféus que decorava as prateleiras de seu quarto eram bem esclarecedores quanto à sua qualidade no esporte ao qual se dedicara com tanto afinco. A questão era como lidar com os momentos em que as outras pessoas decidiam tomar conhecimento daquilo e externalizar com palavras de incentivo e felicitações. Simplesmente agradecer parecia pouco e até forçado. Não responder nada soava como uma completa arrogância de sua parte. No fim das contas, a realidade era que, assim como várias coisas na vida, aquela seria uma grande merda independentemente da atitude que escolhesse tomar. Por que interações sociais tinham que ser tão complicadas? Por que os seres humanos não poderiam ser mais previsíveis e simples? Como corais, talvez…
— Obrigada - respondeu simplesmente, enquanto alternava leves mordidas nas paredes internas de suas bochechas. Sua mucosa já estava ferida desde o aquecimento e ela sabia bem que só estava piorando a situação para a sua cicatrização futura. Suas plaquetas deveriam odiá-la com todas as forças do universo. — Acho que a ausência de uma bola faz com que alguns esportes sejam meio abandonados. Sem ofensas.
riu, meneando a cabeça em negação. Levou alguns segundos para se lembrar de que precisava reagir de forma sonora.
— Não ofende nem um pouco. Você, na verdade, tem razão. Mais um motivo incrível para você ter ganhado a primeira medalha e poder esfregá-la na cara de todo mundo que se esqueceu de valorizar qualquer coisa que não tivesse uns caras suados correndo atrás de uma bola. E, sim, eu sei que eu sou um desses caras.
— Só o melhor deles - murmurou, sentindo as bochechas corarem logo em seguida. Qual era o seu problema com aquela boca gigantesca?
sorriu com o pseudo-elogio, mas fingiu não percebê-lo para não envergonhar ainda mais a garota.
— Qual o número do seu armário mesmo? - Perguntou.
— Cinquenta e três.
— Então, é esse… - Ele a guiou pelo pulso, até que, por fim, repousasse a mão dela sobre a porta vermelha que tinha os números cinco e três pintados e reforçados em uma tinta azul brilhante. — Aqui.
Agilmente, ela colocou o seu código e destrancou o armário, buscando a caixa dos óculos. Com o objeto posicionado sobre seu nariz, piscou algumas vezes até que os olhos conseguissem se acostumar com a nova resolução da imagem vista. E que imagem… Encontrou o jogador sorrindo de canto para ela, quase como se achasse a cena fofa ou cômica. Talvez até mesmo um pouco das duas coisas. Os olhos dele pareciam especialmente brilhantes assim tão de perto.
— Melhor agora?
— Infinitamente - ela respondeu, sorrindo levemente. — Obrigada mesmo pela ajuda. Fico te devendo essa.
— Acho que sei como você pode me retribuir. - tinha uma feição quase desafiadora, completamente direcionada a ela.
— Eu não vou fazer seu trabalho de zoologia. Da última vez que me pediram isso, as coisas não acabaram lá muito bem.
— Droga, agora você me deixou curioso. Mas não é isso.
— Não sei cozinhar.
riu alto, negando.
— Também não. Só acho que talvez seria legal te ver assistindo ao nosso jogo. Já que eu torci por você, talvez você pudesse torcer por mim.
— Bom, isso eu acho que posso fazer. Só não prometo ficar gritando. Acho que meu fôlego acabou na piscina.
— Atenção, alunos! Todos os integrantes dos times de basquete da Braxler High e da Westminster High devem comparecer imediatamente ao ginásio poliesportivo para dar início ao aquecimento. - Os alto-falantes gritavam como se tivessem sido precisamente programados para aquele momento.
— Boa sorte, . Não que você realmente precise. - deu de ombros, enquanto apertava mais o rabo de cavalo e empurrava os óculos com a ponta de seu dedo indicador esquerdo.
— Obrigado, . Significa muito vindo de uma campeã - ele respondeu, sorrindo mais abertamente ao perceber como os olhos dela pareciam menores e mais delicados por trás das novas lentes.
Separaram-se pelos corredores, andando por seus respectivos caminhos em busca de seus devidos lugares naquele momento. encontrou seus pais em um dos degraus da arquibancada, pintada com a enorme face de um felino vermelho e branco - o tão querido mascote dos Braxler Tigers.
Sua mãe abriu o mais largo sorriso do universo ao avistar a filha, permitindo que seus braços se preparassem para acolhê-la em um abraço de urso. Não havia como medir ou descrever o orgulho que sentia por ver a pequena e incrível mulher que sua garotinha vinha se tornando. tinha se mostrado detentora de todas as incríveis qualidades que ela sempre esperou que tivesse: força, persistência, empatia, bondade e a maior determinação do mundo todo. Até maior do que a dela própria na época em que fez - literalmente - quase tudo para se aproximar do rapaz que viria a ser o seu marido.
— Você foi incrível - o pai comentou, deixando o beijo no topo da cabeça de sua filha. — Não que seja uma grande novidade.
A garota revirou os olhos, mas acabou sorrindo. Poderia pular na piscina e boiar feito uma bolsa plástica indevidamente despejada no oceano e, mesmo assim, eles ainda diriam que ela era sempre maravilhosa.
— Meu anjo, é impressão minha ou aquele rapaz muito alto está olhando diretamente para cá? - A mãe perguntou, ao perceber o olhar quase furtivo do rapaz que se posicionava no centro da quadra para saltar em busca da primeira posse de bola para seu time.
franziu a própria testa e pressionou seus olhos em busca do tal rapaz. Quando seu campo de visão conseguiu perceber a imagem de , ela arregalou os olhos quase instantaneamente. O rapaz, por sua vez, apenas acenou, exibindo aqueles dentes incrivelmente alinhados e brilhantes em um belo sorriso.
A garota se sentou, contorcendo o rosto na careta que costumava fazer quando percebia que a vermelhidão que adorava tomar conta de suas bochechas estava prestes a se fazer presente e perceptível para quem quisesse ver. A risadinha da mãe ao seu lado não estava ajudando muito.
— Nós, , sempre chamamos a atenção dos rapazes de alguma forma. É quase inevitável. - A mais velha deu de ombros.
— Menos, mãe. Nós sequer tínhamos nos falado até agora pouco. E nem foi grande coisa também.
— E quem disse que precisa? Você superestima a necessidade das palavras.
— Amor, para de encher a cabeça dela de minhocas - reclamou o pai. — Podemos simplesmente assistir ao jogo?
A contragosto, a mulher assentiu e se manteve em silêncio. Ofereceu para a mais nova um pacote de batatas chips, imaginando que ela pudesse estar com fome e tornou a prestar atenção naqueles adolescentes correndo atrás daquela bola que quicava com uma facilidade que a deixava tonta. Mesmo depois de tantos anos, ainda não conseguia ver a graça que aquele povo via em arremessar aquela esfera suja e pesada naquela cesta. Soava idiota.
Com uma pancada inesperada e muito mais forte do que o necessário, teve seu arremesso interceptado dentro do garrafão. Rapidamente, sob os protestos dos outros alunos da Braxler High, o árbitro apitou o posicionamento para os dois arremessos livres. Todos os membros das torcidas emudeceram, divididos entre juntar as mãos em preces para que aqueles dois pontos fossem convertidos e desejar o completo oposto.
conquistou o primeiro arremesso com uma precisão impressionante, arrancando comemorações do banco de reservas e das arquibancadas. O segundo lançamento foi tão simples e eficiente quanto o primeiro. Ele fazia aquilo parecer tão fácil que soava até vergonhoso para o restante dos meros mortais.
Quando o placar já se demonstrava estável e relativamente seguro, o técnico optou por fazer uma substituição que poupasse o físico de para o próximo jogo e desse a chance de participação para algum novato sedento por alguns minutos em quadra. Do banco, acenou para a arquibancada, agradecendo a presença de ali.
A garota sorriu de volta, sentindo-se completamente deslocada e ruborizada. Com certeza teria que dizer que tinha problemas sérios de rosácea em vez de dar o braço a torcer e admitir que não sabia o porquê daquilo tudo. Não sabia sequer o porquê daquilo estar acontecendo exatamente com ela e precisamente naquele momento. Ela sempre esteve ali e ele também, então por que esse interesse repentino?
sacudiu a cabeça, tentando se livrar daquelas ideias que sabia que não a levariam a lugar algum. Não tinha sentido perder seu tempo com isso. Mesmo assim, seu subconsciente parecia urrar para que ela voltasse para o cantinho silencioso em que costumava ficar. Aquela atenção lhe era tão estranha que parecia quase errada e até mesmo perigosa. De repente, tudo o que queria fazer era gritar embaixo d’água até que aqueles pensamentos decidissem se afogar.
Aquela manhã de quinta-feira corria exatamente como qualquer outra. tinha sobrevivido custosamente à aula de cálculo e analisado os ponteiros do relógio sem parar, aguardando até que os mesmos finalmente mostrassem que já eram dez horas. Queria acreditar que poderia acelerar o tempo com a força de seu pensamento positivo. Talvez, se desejasse com muita força que todos aqueles teoremas monstruosos sumissem, seu desejo se tornasse realidade mais rápido. Não levou mais de dois minutos para descobrir que estava totalmente errada. Observar o fino ponteiro dos segundos saltitando só fazia com que o tempo parecesse estar andando ainda mais devagar só para zombar de seu desespero. Exatamente como acontecia em toda manhã de quinta-feira. Irritantemente comum. Cansativamente rotineiro. Ao menos até aquele momento.
A aula de biologia avançada finalmente chegou e o coração da garota se dividiu entre a felicidade de retomar os estudos sobre a vida e abandonar um pouco aqueles números sem sentido e a leve tristeza de mudar de assunto, sendo obrigada a afastar sua atenção da biologia marinha por algum tempo.
— Daqui para frente, nosso campo de estudo será a botânica - anunciou a Sra. Cooper. — As próximas aulas abordarão toda a questão de anatomia e fisiologia vegetal, além de especificidades de outros reinos. Como esse reino pode se tornar um tanto maçante e entediante, decidi tornar as nossas aulas mais interativas e práticas. A botânica é, em grande parte, facilmente explicável e percebida quando você simplesmente vai a campo e observa as coisas à sua volta. Algumas características simplesmente fazem sentido quando você decide sentar e pensar sobre. Alguém tem alguma objeção? Fale agora ou cale-se para sempre.
Um garoto ergueu a mão, recebendo um aceno positivo da professora, indicando que ele poderia falar.
— Isso de estudo interativo inclui o ambiente externo? Por que eu não estou nem um pouco a fim de ficar embaixo do sol forte a essa hora da manhã.
— Para a sua sorte, o tempo está ameno e nossas árvores são grandes e frondosas o suficiente para lhe propiciar sombras sob as quais o senhor pode se proteger da luz. - Vários alunos riram baixo pela resposta. — Mais alguma coisa?
Todos negaram prontamente, balançando a cabeça.
— Ótimo! - A Sra. Cooper bateu palminhas. — Agora, a parte mais importante e possivelmente a que mais vai gerar reclamações: as duplas. Claramente, sou eu quem vai escolher.
Enquanto vários alunos realmente começaram a se manifestar - em sua maioria contra - a decisão, simplesmente deu de ombros. Não compartilhava aquela aula com nenhum de seus amigos mais próximos e também não era uma daquelas pessoas que tinha algum tipo de ódio especial destinado a alguém. Qualquer um que fosse escolhido para ser sua dupla, seria uma notícia indiferente. Menos se fosse…
— Senhorita e Senhor !
… Bom, ele.
sorriu para a garota e pegou seus cadernos e estojo, levando-os até a bancada em que a garota se sentava.
— E aí? Como é que você está? - Ele perguntou, simpático.
— Bem. - Mentira. — E você?
— Mais tranquilo agora, confesso. Estava com medo de cair com alguém que não estivesse disposto a trabalhar de verdade.
— Não sabia que você era assim tão interessado em biologia - admitiu.
— Assim como eu nunca soube que você era uma atleta incrível fora dessa bolha de estudos. - deu de ombros. — Acho que nós dois nos subestimamos e tentamos nos resumir a uma coisa só. Talvez seja uma tentativa de facilitar as relações.
A garota confirmou, refletindo um pouco sobre aquilo. Não deixava de ser verdade, afinal. Rotular os outros era uma tentativa de amenizar as coisas para si próprio, diminuindo a complexidade e a dimensão que uma alma humana tinha. Era um tanto triste também. Resumir sonhos, desejos, medos, frustrações e angústias a um só termo, como em uma definição por ultimato. Por que alguém tinha de ser só inteligente ou só esportista? Só engraçado ou apenas artístico?
Quando seus pensamentos já estavam indo longe demais e perdendo a noção do ponto de limite, a Sra. Cooper estalou os dedos, retirando todos de seus devaneios ou conversas paralelas.
— Peguem canetas e folhas para anotações e vamos para o pátio. Vocês deverão escolher algum canto do colégio que tenha uma árvore ou flor que lhes chame a atenção por algum motivo. Quero que façam um trabalho descritivo sobre todos os órgãos que conseguirem analisar e características como formas, padrões e outras coisas. Vocês podem se surpreender com como a natureza pode ter um poder incrível de conformação artística.
e seguiram em completo silêncio um ao lado do outro. Não tinham sequer se perguntado para onde exatamente estavam indo.
— Você tem algum lugar em mente? - Ela perguntou, tamborilando a caneta entre os dedos e ouvindo os leves estalos que o plástico produzia ao se chocar com a superfície rígida de suas unhas.
— Pensei que poderíamos analisar aquelas palmeiras que plantaram ao longo do caminho entre o ginásio e a piscina, sabe? Acho que faz sentido para nós dois individualmente e como em dupla.
Ela sorriu, concordando. Era uma ideia razoável e muito melhor do que qualquer outra que ela pudesse vir a ter. Observar árvores realmente não era uma coisa que despertava suas aptidões criativas.
Sentaram-se aos pés de uma das palmeiras e ergueram o olhar, visualizando a parte inferior das folhas organizadas à distância. Naquele momento, teve de lidar com a ideia de que, se algo caísse lá de cima, provavelmente a altura seria o suficiente para matá-los. Mesmo que fossem apenas dejetos de pássaros.
— Por onde começamos? - perguntou. — Palmeira-de-saia-da-Califórnia. Nativa.
— Serve de habitat para besouros gigantes, morcegos amarelos e passarinhos que vêm fazer ninhos nas inflorescências primaveris.
— Já começa esfregando todo o seu conhecimento infinito na minha cara? Que falta de humildade, .
riu, meneando a cabeça. Nunca fora a sua intenção realmente soar petulante ou pedante.
— Desculpa.
— Estou só brincando. O que mais nós sabemos?
— Que as folhas e as fibras eram muito usadas pelos povos nativos para artesanato, principalmente cestas e sandálias. E as sementes e frutos muitas vezes foram usados como último recurso contra a fome.
apenas acenava com a cabeça, concordando com todas as curiosidades que a garota ditava. Estava muito empenhado e concentrado nos movimentos que seus dedos faziam com o lápis preto, deslizando pela folha livre do caderno. franziu a testa, perguntando a si mesma se ele realmente tinha ouvido alguma coisa do que ela tinha dito.
— Você prestou atenção em alguma coisa que eu disse?
— Sim - respondeu simplesmente, ainda correndo o grafite bem apontado pelo papel branco.
A garota observou aquela cena com uma atenção desconfiada. O foco que o rapaz tinha no que estava fazendo era estranhamente impressionante e bonito de se ver. Cada movimentação de cada músculo de sua face compunha singelos e quase imperceptíveis repuxões e franzimentos em seus olhos e boca. Era quase poético. Artístico.
— Terminei - anunciou alegremente, retirando a garota de seus devaneios. — Não ficou exatamente do jeito que eu queria, mas acho que dá para o gasto considerando que foi feito sem muito cuidado.
Dito isso, virou o caderno para ela, permitindo que ela visse o desenho que tinha feito. Os rabiscos que, de longe, pareciam difusos e pouco coerentes, tinham dado forma a uma representação consideravelmente fiel e bem feita da palmeira. Aquilo, sim, era definitivamente artístico.
— Ficou realmente espetacular - ela admitiu, ainda um tanto impressionada.
— Acha mesmo? Não está meio bagunçado? Os traços um pouco grosseiros, talvez?
— Não mesmo. Eu sequer sei desenhar um boneco de palitinhos sem que ele pareça um Frankenstein de retas encaixadas. Isso realmente é incrível.
— Obrigado, então - respondeu sincero. — Fazia um tempo que eu não desenhava assim. Acho que não tinha percebido que sentia falta disso.
— Deu para perceber - ela comentou. — Você estava bem concentrado no seu mundinho. É bonito de ver. Devia desenhar mais, então.
— É. Acho que sim.
O silêncio estava prestes a se tornar constrangedor, quando o rapaz decidiu verbalizar algo ainda pior.
— Quer dizer que foi bonito de ver, então?
se arrependeu instantaneamente das palavras proferidas. Por que ela não podia simplesmente pensar antes de falar besteiras como aquela? Agora, ia ficar vermelha e passar ainda mais vergonha pelo simples fato de estar com vergonha.
— Não foi isso que eu quis dizer - tentou se explicar. — Não disse que você é bonito, mas que a sua disposição para isso foi bonita de ver.
— Então sou feio?
Ela queria muito ser as raízes daquela palmeira, bem escondidas e firmes no solo. Nunca sentira tanta inveja de uma angiosperma enorme.
— Não foi isso que eu quis dizer também.
riu alto.
— Eu sei. Eu só queria te sacanear. Você precisava ver a sua cara. Fica tranquila, . Eu entendi o que você quis dizer. E agradeço pelos comentários positivos. Eu deveria mesmo desenhar mais. É bom para me desestressar.
— Não tem graça, - ela reclamou, ainda um tanto envergonhada, apesar de mais relaxada. No fundo, sabia que também teria rido da própria reação exagerada.
— Bom, você tem que admitir que tem um pouco, sim. Acho que fizemos o que estava ao nosso alcance sem meios mágicos de busca conhecido como google.
— É, acho que sim.
olhou para o relógio preto no próprio pulso, calculando rapidamente o tempo que ainda tinham antes da próxima troca de aulas. Antes mesmo de analisar o visor digital, torceu interna e inconscientemente para que ainda tivesse um período razoável. Sorriu de leve, comemorando silenciosamente a “notícia” que tinha para dar.
— Temos por volta de trinta minutos antes da próxima aula. Acho que podemos simplesmente aproveitar esse tempo livre para conversar. Estamos fazendo trabalho juntos e eu não sei absolutamente nada sobre você, além da sua paixão por biologia e sua absurda habilidade na natação.
— Não é como se eu tivesse algo de interessante a contar, . Não tenho uma vida agitada como a sua.
— Agitada? Qual é? Você acabou de descobrir sobre meu interesse em desenhar. Não me parece realmente algo super badalado.
— Se você está esperando por algum talento artístico secreto, eu sinto muito em decepcionar, mas não tenho nenhum. Meus pais dançam um pouco às vezes e minha mãe tem uma voz linda, mas eu nasci com dois pés esquerdos e uma afinação do tipo apitos caninos fora de tom.
— Não deve ser assim tão ruim - comentou, rindo com a comparação.
— Ah, não. Pode ter certeza de que é bem péssimo. Meu chuveiro ficou de mal comigo por uma semana da última vez que eu me arrisquei em sequer cantarolar uma música que estava na minha cabeça.
— Eu sou um exímio cantor. Só não te mostro agora porque eu estou com um pouco de dor de garganta.
ergueu a sobrancelha, dando uma risada completamente irônica.
— Sei. Se for fazer com que você se sinta melhor, eu finjo que acredito, ok?
— Agradeço - ele respondeu, sorrindo. — Mas me fala mais de você. O que você faz no seu tempo livre?
— Leio, nado… Nas férias, sempre vou pedir emprego temporário no aquário da cidade. Depois, nado, leio… Acho que é cíclico.
— Você realmente ama isso, não é?
— Amo - concordou, com o sorriso mais sincero do universo. — Amo mesmo. Não sei explicar como e nem o porquê. Só acontece, sabe? É como se estar por perto da água fizesse eu me sentir em casa. Existe essa sensação inexplicável de pertencimento.
— Isso é incrível, . De verdade. Acho que, se sereias existissem, você seria uma delas.
— Minha mãe sempre me chamou de pequena sereia. Não sei se fui eu quem escolheu a água ou ela me escolheu, mas nós nos tornamos inseparáveis antes mesmo de tomar consciência disso.
O rapaz concordava com tudo, encantado com a autenticidade e a verdade incontestável que aquelas palavras representavam. Sabia bem que tudo aquilo que ela dizia não era da boca para fora. Ela sentia cada uma das letras que proferia, amava real e intensamente aquilo tudo como se fosse parte dela. E era. Definitivamente, sua melhor parte.
— E você, ? O que te levou a começar a desenhar? E o que te fez parar?
— Quando eu era mais novo, eu tinha uma imaginação ridiculamente fértil e muita energia mesmo. Isso fazia com que, basicamente, eu passasse a maior parte do meu dia na rua, correndo feito um doido até minha mãe decidir que o sol já tinha baixado o suficiente e eu precisava entrar.
“Dentro de casa, eu simplesmente não conseguia ficar parado. Foi o tempo que eu acabei tirando para trabalhar esse lado criativo. Eu criava personagens, sabe? Heróis, monstros, amigos coadjuvantes… Nunca tive paciência para realmente sentar e escrever a história deles, mas todos tinham um propósito, um poder ou uma característica completamente distinta dos outros. Eu tinha cadernos e mais cadernos completamente abarrotados de desenhos. Era o jeito de gastar um pouco da energia que sobrava. Não é à toa que eu sempre dormi feito um anjo.”
concordava com cada palavra, identificando a si mesma na maioria daquelas situações. Tinha começado a nadar também sob o pretexto de pais exaustos que precisavam que a filha gastasse um pouco de energia para que eles próprios pudessem ter algum resquício de energia em seus corpos. No final das contas, às vezes era o próprio pai que tinha que ordenar que ela saísse da água agora. Ela nem percebia o tempo passar. Fora assim que conquistara muitas de suas insolações.
— Isso é bem legal - comentou simplesmente, por falta de algo melhor para dizer. E porque realmente achava tudo aquilo muito legal.
— Eu sei. É mesmo uma pena eu ter largado - murmurou, enquanto mantinha os próprios olhos fixos no desenho que pairava sobre o seu colo.
— Por que não volta? Vai te fazer bem.
Foi então que um estalo lhe ocorreu. capturou rápido a ideia que viajou por sua mente, evitando que ela fugisse. Completou:
— Por que não participa das extracurriculares de artes plásticas? Tenho certeza de que vai ser divertido e tranquilizante para você. Sem contar que um atleta, interessado em biologia avançada e desenhista com certeza vai ser o menino do currículo de ouro para qualquer universidade possível e imaginável.
pareceu pensar sobre aquela ideia durante alguns segundos, até que um sorriso quase sacana se formou em seus lábios levemente rachados pela exposição ao calor.
— Eu vou. Mas você deveria ir comigo.
A garota estreitou os olhos e riu de forma sarcástica, como se acabasse de ouvir a maior blasfêmia de toda a sua vida. De fato, em sua cabeça, nada fazia menos sentido do que aquela proposta inesperada.
— Eu vou fingir que eu não ouvi isso. Qual parte de “meus bonecos palitos são deformados” você não entendeu?
— Mas quem foi que disse que você precisa desenhar? Você pode ser só modelo ou fonte de inspiração para alguém. - deu de ombros de forma quase inocente. — Sabe como é. Todo artista precisa de uma.
— Estou fora. Completamente fora.
— Por quê? Vai ser divertido.
— Para quem?
— Por favor! Eu não queria ir sozinho. Se você odiar muito, pode virar as costas na hora que quiser.
— Eu só não entendo, . - O rapaz a encarou, franzindo o cenho. — Por que eu?
sorriu docemente, percebendo que não tinha uma resposta para aquilo.
— Eu também não sei, . Só é o que está acontecendo e eu sinceramente não sei te explicar o porquê.
sentiu seu coração tropeçar, quase como se tivesse se esquecido de um dos obstáculos que tinha de pular naquela corrida de imprevisto fim chamada ritmo cardíaco. Não sabia o significado que aquelas palavras tinham para o rapaz e preferia não desperdiçar seu tempo e resquícios de sanidade mental remoendo continuamente algo que não a levaria a lugar algum. Por outro lado, se tinha algo que ela preferia não pensar sobre, mas não conseguia ignorar, esse algo era o que ela mesma sentia acerca daquelas palavras que a pegaram de surpresa.
O professor de artes tinha acabado de deixar a sala, pedindo para que o último a sair apagasse as luzes. Os alunos iam, aos poucos, guardando seus próprios materiais e organizando as telas e painéis com os trabalhos produzidos naquele dia. Estendiam suas obras pelos cantos livres, permitindo que as tintas secassem em pontos estratégicos da sala, sem grandes riscos de queda dos cavaletes. Aqueles que tinham dado preferência ao uso de lápis posicionavam as folhas enormes sobre as mesas desocupadas, evitando a sobreposição que poderia levar a um borrão que destruísse todo o trabalho de horas. Conforme completavam seu ritual e se despediam de suas obras, os participantes daquela aula iam abandonando a sala em meio a uma rápida despedida dirigida aos que ali ainda permaneciam.
era o único que ainda se encontrava no recinto, decidido a terminar alguns detalhes que não tinham lhe convencido totalmente. Pouco satisfeito com o resultado, estava completamente focado em só sair dali quando realmente não visse mais como melhorar seu desenho.
Juntou alguns lápis pretos e se sentou na bancada principal, aproveitando que tinha o espaço todo para si. Espalhou alguns tons de cinza e bege para trabalhar com efeitos de luz e sombra sem pintar o desenho propriamente. Sua cabeça funcionava a mil por hora, apenas imaginando todas as possibilidades do que poderia fazer ali.
Foi quando um leve toque na porta fez com que ele desviasse sua atenção para o ponto de origem do som.
Lá estava ela, por quem ele esperançosamente aguardara por longos minutos. Tinha os cabelos molhados e levemente bagunçados. Parecia um tanto esbaforida e vestia o conjunto vermelho representante dos times esportivos do colégio.
— Eu sei que me atrasei. Em minha defesa, o treino da equipe de natação foi adiantado por causa da reunião de pais de hoje à noite.
— Tudo bem. Eu pensei que você nem viria. De certa forma, já é mais do que eu esperava.
adentrou a sala, dando passos lentos e espaçados, quase como se esperasse que ele a expulsasse dali. Estava basicamente lhe dando a chance - pouco - explícita de fazê-lo. Mas ele não o fez.
— O que você está fazendo?
— Retocando, consertando, destacando... De forma geral, eu estou tentando muitas coisas sem saber se alguma delas realmente vai melhorar isso.
A garota se aproximou da bancada, sentando-se um pouco afastada no longo banco de madeira, mas perto o suficiente para visualizar perfeitamente a obra dele.
— Nossa. - Ela mal encontrava palavras que expressassem realmente o que ela gostaria de dizer.
retraiu todos os músculos, quase como se tivesse sido bruscamente eletrocutado. Retirou suas mãos dos materiais de desenho com uma agilidade absurda, interrompendo qualquer movimento que pudesse ser feito sobre a obra.
— Está tão ruim assim?
— Não! Pelo contrário. Meu Deus, ! Isso é simplesmente maravilhoso! - exclamou, apreciando cada segundo de completa admiração que dispunha à observação dos traços firmes e precisos que o rapaz tinha conseguido passar para aquele pedaço de papel. — Essa é a sereia mais linda que eu já vi em toda a minha vida.
O rapaz expirou todo o ar que tinha acumulado em seus pulmões de uma só vez, livrando-se de um peso que ele sequer sabia que estava carregando. Finalmente, permitiu-se sorrir.
— Você me inspirou - falou. — E não adianta me perguntar o porquê, . Você é arte e tudo o que eu posso fazer é admirar e me aproveitar disso para a minha própria arte.
A garota sentiu suas bochechas ruborizando uma vez mais. Aquelas, inexplicavelmente, eram as palavras mais bonitas e significativas que ela tinha ouvido em toda a sua vida. Tão impactantes que, estranhamente, tinham arrancado pequenas lágrimas que se acumulavam próximas às suas pálpebras.
Quando respirou de forma mais profunda, acabou percebendo aquele extravasamento de emoções e se preocupando, passando a se movimentar de forma um tanto nervosa.
— Ei, o que foi? Desculpa, eu não queria…
— Obrigada. De verdade.
O rapaz levou seus dedos vagarosamente ao rosto da garota, esperando que ela negasse o toque. Seus movimentos pediam uma permissão que lhe fora dada pelo silêncio consciente dela, que já lhe sorria leve e ternamente.
limpou as lágrimas que ali se alojavam, acariciando a pele delicada de sua bochecha com as pontas dos dedos. Cada mísero toque parecia distribuir faíscas que percorriam suas peles a uma velocidade quase tão extrema quanto a da luz. A proximidade que os rostos tinham tomado não parecia estar ali antes. Ou estava? Não sabiam ao certo como, mas já podiam sentir a pressão que a respiração do outro causava em sua própria pele.
Quase tão sutilmente quanto toda aquela coreografia tinha se iniciado, ela também chegou ao seu ápice. Um roçar de lábios, tão suave quanto um borboletear de asas. Um beijo que se aprofundou com toda a delicadeza que rodeava aquele momento especial.
tinha conseguido o que, sem nenhum indício de chegada, tinha se tornado sua maior vontade dos últimos tempos: beijar a garota.
ainda não estava se sentindo completamente confortável com aquela saia levemente rodada. Todos já estavam cansados de repetir continuamente o quão linda ela estava. O pai dissera várias vezes como o modelo era digno de uma princesa e a mãe reafirmava como aqueles tons de azul eram perfeitos para sua pequena sereia. De fato, ela estava maravilhosa, mas já tinha aprendo a não levar muito em conta as opiniões de pais babões que a achavam linda até babada e com o cabelo repleto de nós pela manhã. Eles não eram exatamente confiáveis nesse assunto.
Mesmo assim, ela decidiu acreditar. Pelo menos naquela noite. Queria se sentir linda. Mais do que isso, queria permitir a si mesma a oportunidade de se admirar um pouco. A influência recente na sua vista tinha lhe garantido o maior bem que ela poderia ter adquirido em toda a vida: o auto-reconhecimento.
Uma buzina ecoou do lado de fora da casa, chamando a atenção de toda a família.
desceu as escadas correndo, sendo bombardeada por dezenas de flashes vindos das câmeras que os pais apontavam diretamente para ela. Revirou os olhos, sabendo que nada do que falasse faria com que eles parassem com aquilo.
— Eu preciso ir - disse simplesmente. — Volto até a meia-noite. O baile não vai acabar muito mais tarde do que isso de qualquer forma.
— Eu vou começar a chorar - sua mãe comentou, abanando os próprios olhos. — Ande, ande. Não deixe o te esperando.
A garota abriu a porta, saindo correndo até o carro do namorado. Seus pais observaram enquanto o automóvel partia pela rua, perdidos entre os próprios sorrisos e a sentença inevitável de como a filha tinha crescido.
— Nossa princesa está maravilhosa - ele comentou, ainda soando como o grande pai babão que, de fato, era.
A mulher riu.
— Imagina só quando ela souber que realmente é uma princesa, Alteza.
Foi a vez de Eric revirar os olhos e bufar por ser lembrado daquele assunto que tanto o atormentava. No entanto, sabia que não era o único com um segredo escondido.
— Imagine só quando ela souber que tem motivos para ser constantemente chamada de sereia, Ariel.
A ruiva respirou fundo, meneando a cabeça antes de fazer menção de fechar a porta.
— Cada coisa no seu tempo. De preferência, no tempo certo.
FIM
Nota da autora: Mais um ficstape? Pois é. 'Tô colecionando, hahaha.
Para mais informações sobre minhas histórias, entrem no grupo
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03. Take A Chance On Me
03. Without You
04. Someone New
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05. You In Me
06. Consequences
06. If I Could Fly
06. Love Maze
08. No Goodbyes
10. Is it Me
10. Simple Song
11. Robot
11. Under Pressure
12. Be Alright
12. Wild Hearts Can't Be Broken
13. Part of Me
13. See Me Now
15. Overboard
A Million Dreams
4th of the July
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