Fanfic finalizada

Prólogo

Shadows are falling and I’ve been here all day
(As sombras estão caindo e eu estive aqui o dia todo)
It’s too hot to sleep and time is running away
(Está muito quente para dormir e o tempo está indo embora)
Feels like my soul has turned into steel
(Parece que minha alma se transformou em ferro)
I’ve still got the scars that the sun didn’t heal
(Ainda tenho as cicatrizes que o sol não curou)
There’s not even room enough to be anywhere
(Não há espaço para estar em lugar algum)
It’s not dark yet but it’s getting there
(Não está escuro ainda mas está chegando lá)


O céu está escuro como breu acima deles. A chuva cai com violência, tilintando contra a lataria do carro como lâminas voadoras. É uma trilha sonora assustadora., observa, o frio na espinha se alastrando, o arrepio crescente pelo corpo.
Ela desliga o ar condicionado, esperando que isso seja suficiente para fazê-la se sentir mais confortável.
— Avise sua mãe que vamos chegar em uns quarenta minutos. — Dave diz, os olhos fixos na estrada. obedece, pegando o celular dentro da bolsa e selecionando o número da mãe na discagem rápida.
? Onde vocês estão? — a mãe de atende, a voz ansiosa de sempre soando pelo fone.
— Já estamos chegando. — do outro lado da linha, pode ouvir as risadas dos sobrinhos enquanto correm pela casa. Por um breve momento, ela sorri. Tem uma novidade maravilhosa para contar quando chegarem. — Dave disse que em quarenta minutos estaremos aí.
— Bom. Muito bom. Vamos esperar vocês para jantar, então.
— Nos vemos daqui a pouco, mãe. — ela se despede, guardando o celular novamente.
A chuva parece estar ficando mais intensa, implacável. Os carros se amontoam nas pistas de retorno, exatamente como nos filmes, tentando fugir do apocalipse que espera logo à frente.
Dave percebe o olhar preocupado no rosto da esposa, e dá um sorriso de acalento a ela, esticando o braço e acariciando a minúscula proeminência em seu abdômen.
sorri de volta, segurando a mão dele por alguns segundos.
É quando a luz ofuscante do farol de uma carreta aparece logo diante deles, vacilante, ziguezagueando diante de seus olhos.
Ela não tem tempo para sentir nada além de medo antes de constatar o choque contra seu corpo.

Com um grito, acorda, suada e arfando. Ela se estica para o lado, para onde Dave está deitado, mas se desequilibra e dá de cara no chão.
Precisa respirar fundo algumas vezes antes de lembrar onde está. O quarto minúsculo do apartamento que divide com .
Aquela não é sua cama queen em seu quarto aconchegante. Dave não está lá. Não estará nunca mais.
Já estava livre daquele pesadelo há alguns meses, mas, por algum motivo, ele está voltando a aparecer. Pela terceira noite consecutiva, ela acorda em prantos, encharcada de suor e prestes a rolar para o chão.
Na minúscula cama ao lado, já está sentada, acordada por causa do barulho.
— Quer um chá? — é tudo que ela pergunta. Já sabe sobre os pesadelos, já que estão morando juntas desde o acidente, e ficar fazendo perguntas não vai ajudar.
não diz nada, mas se levanta, dá um tapinha no ombro dela e vai para a cozinha preparar o chá.

***


Ela está um trapo., é a primeira constatação de pela manhã, ao olhar o próprio rosto no espelho. As olheiras já são companheiras de longa data, mas estão mais arroxeadas e profundas do que o normal. Ela lava o rosto antes de começar a aplicar o corretivo e a base.
Em outros tempos, faria uma maquiagem completa, mas não é mais o caso. Corretivo, base, rímel e um lip balm são o novo luxo em seu rosto.
Na cozinha, já está colocando as omeletes nos respectivos pratos.
Desde que alugaram o apartamento para dividirem, sempre cuidava das refeições para as duas. Muitas vezes se esquecia de comer, já que seu apetite parecia ter ido para o espaço.
— Nem tente me dizer que está atrasada, porque não vai colar. Senta aí e come. — autoritariamente, aponta para a cadeira vaga.
se arrasta até lá, pegando um garfo e espetando a omelete feita com tanto carinho por .
— Vou chegar em casa mais tarde hoje. Tenho que revisar alguns manuscritos que deixei para a última hora. — ela bufa, olhando para com a expressão de desânimo instalada em seu rosto. — Acha que consegue cuidar do jantar? Ou eu trago alguma coisa da rua?
dá de ombros.
— Eu sempre dou conta de pedir uma pizza. — responde, forçando um sorrisinho.
— Ótimo! Preciso mesmo fazer tudo com eficiência, por causa daquele tal prêmio que a editora vai dar para o “funcionário do mês”. — faz aspas exageradas com os dedos, levantando-se e pegando a bolsa pendurada na cadeira.
— Você vai ganhar, tenho certeza. — diz, esforçando-se ao máximo para encorajar a amiga.
pisca para ela em resposta, e joga um beijo no ar antes de sair, batendo a porta com força demais, como sempre.
Depois que ela sai, pega o prato e vira a omelete direto na lata de lixo.

***


encontra a mãe no restaurante à uma e meia. A vê caminhando pela calçada em sua direção, elegante em seu terninho bege e saltos altos.
— Oi, meu bem. — ela diz, abraçando a filha com carinho antes de tirar os óculos escuros. — Como você está?
não responde, dirigindo-se direto a uma das mesas livres e pegando o cardápio para prolongar o máximo possível o silêncio entre as duas.
— Vou pedir ceviche de tilápia. E você? — a mãe pergunta, com uma animação exagerada na voz.
— Provençal. — responde, fechando o cardápio ao se dar conta de que ele não vai ser suficiente para conter a conversa.
— Você precisa se alimentar direito, . — sua mãe diz, se esticando para tocar o rosto da filha por cima da mesa. — Como está a anemia? Duvido que tenha baixado.
dá de ombros, amassando um pedaço de pão crocante no prato.
. — o tom de voz da mulher mais velha muda, indicando preocupação e impaciência. — Não é assim que as coisas vão se resolver. Você está se matando, filha. Você sabe disso, não sabe? Você acha que o Dave iria querer isso?
sente o rosto arder. Odeia quando fazem isso. Quando usam Dave para envergonhá-la por seu comportamento, fazê-la se sentir culpada.
— O Dave morreu, mãe. — sua voz sai grosseira, exasperada. — O Dave morreu, o bebê morreu... todo mundo morreu. Nenhum dos dois pode querer ou não querer coisa nenhuma, porque estão mortos. Quão difícil é para vocês entenderem isso? — ela se levanta, os olhos ardendo com as lágrimas que ainda insiste em prender. — Meu marido morreu, meu filho morreu antes de nascer... não é uma equação complicada, é bem simples. — ela murmura antes de sair correndo do restaurante, a visão nublada pelas lágrimas que correm soltas com ela.

***


É difícil voltar para o trabalho depois do almoço, com os olhos inchados e a maquiagem borrada, com o peito cheio de angústia e a cabeça doendo de tristeza. Mas ela precisa.
Se dar ao luxo de perder o emprego significa se sujeitar a ser sustentada pela mãe novamente e se sujeitar a ouvir todo tipo de comentários e conselhos sobre os quais ela não quer saber. Então ela precisa voltar para o escritório e se esmerar em atender ligações, agendar e cancelar reuniões e passar informações óbvias para clientes desatentos.
Simplesmente porque precisa do dinheiro para manter um pouco de dignidade íntegra.
O dia no escritório é entediante como todos os outros, e trabalha em seu cubículo minúsculo, com a foto de seu casamento instalada logo à sua frente na mesa.
É estúpido que ela mantenha a foto ali, porque faz com que todos, ao se aproximarem de sua mesa, olhem para ela com piedade, como se ela fosse uma coitadinha. Mas ela simplesmente não se importa. Algo dentro de si parece ter adormecido depois do acidente, impedindo-a de sequer ligar para a opinião alheia. Se não fosse por , talvez ela nem sequer mantivesse qualquer contato interpessoal que durasse mais que cinco minutos.
está pensando em quando recebe uma mensagem de texto da amiga.
Ainda tenho dois manuscritos pela frente :(
Te vejo à noite

responde com um joinha, voltando ao seu trabalho monótono como se sua vida dependesse disso.

***


chega exatamente cinco minutos depois da pizza, balançando um envelope azul cintilante nas mãos.
— Sabe o que é isso? — ela pergunta, exultante. — O prêmio de melhor funcionária do mês! — a própria responde, ansiosa. — Você não vai adivinhar o que é!
— Cem dólares? — palpita.
faz uma careta.
— Não, não. Um par de ingressos para a final dos Raptors contra os Bulls.
— Que seriam...?
— Basquete, ! Basquete! Ganhei ingressos para a NBA, e você vai comigo!
assente, continuando com os olhos no episódio de Law & Order que passa na TV.
! Você está me ouvindo? Vamos à final da NBA!
Repentinamente, começa a rir.
— Desde quando você gosta de basquete, ? — pergunta, ainda rindo.
coloca as mãos na cintura de um jeito teatral.
— Desde que ganhei ingressos. De graça. Para nós duas. — ela responde, jogando o envelope sobre a mesinha de centro. — Quem sabe a gente não acaba achando o máximo depois de assistir?
faz uma careta.
— Duvido muito. Tirando o fato de ter que enfiar uma bola na cesta, até hoje não consegui entender o jogo. E olha que eu assistia meu irmão jogar quase todo fim de semana.
rola os olhos à menção do irmão de .
— Aquele otário do seu irmão. Fracassou no basquete porque foi um lixo com esse avião que aqui vos fala. — ela diz, apontando para o próprio corpo com admiração.
ri, jogando uma das almofadas do sofá na amiga.
— Vocês namoraram há dez anos, . Foi em outra vida.
não diz nada. Sabe que comentários como aquele demoram alguns segundos para atingir a própria em cheio. Na mesma época em que namorara o irmão da amiga, conhecera Dave. Os quatro andavam sempre juntos, fazendo programas de casais e se divertindo no tempo livre.
Para e Dave as coisas tinham fluído. Os dois pareciam cada vez mais apaixonados e inseparáveis, enquanto o irmão de terminara com para curtir a vida de atleta astro na universidade.
— Bom... — diz, já de costas para a amiga, abrindo a geladeira e pegando uma garrafa de suco. — Vamos comer nossa pizza que é melhor.

***


O palco do jogo entre os Chicago Bulls e os Toronto Raptors já está abarrotado quando e chegam.
Crianças correm pelas arquibancadas, tropeçando nas outras pessoas e derrubando sacos de pipoca e hot dogs no chão, criando crostas de comida amassada no chão.
Os auto-falantes reproduzem uma playlist de músicas pop cujos cantores estão quase todos ali, sendo alvos de flashes violentos para todos os lados.
Ao redor da quadra, astros do basquete norteamericano posam para fotos e respondem perguntas rápidas de jornalistas desesperados.
e encontram seus assentos, bem ao lado de um casal com um menininho sentado em seu carrinho, jogando para cima e para baixo uma bola de basquete de pelúcia.
A pontada no coração de é como uma centena de perfurações sincronizadas de pequenas lâminas afiadas. A dor da perda vem em ondas, mas aquela é forte demais para aguentar.
O bebê tem dois anos. A idade que seu filho teria se tivesse conseguido a chance de vir ao mundo. Olhar para ele e seus pais é uma lembrança aguda de tudo que perdeu.
O garotinho sorri para ela, esticando os bracinhos gorduchos com a bola de pelúcia presa entre as mãos.
— Quer brincar? — ele pergunta, o sorriso infantil exultante em seu rostinho rechonchudo.
A mãe do menino sorri, constrangida, como se pedisse desculpas.
— Ela não quer brincar, Jerry. — diz, esticando as mãos e pegando a bola para jogar com ele. Jerry faz um biquinho contrariado, mas aceita brincar com a mãe.
Como se percebesse o incômodo, troca de lugar com , deixando-a ao lado da cadeira livre. Ela oferece seu saco de pipoca para , um gesto silencioso para saber se ela está bem.
pega um punhado de pipocas amanteigadas e sorri para ela.
— Deve começar em uns cinco minutos. — ela diz, mexendo na bolsa para pegar os saquinhos de chocolate que trouxe consigo. joga dois chocolates Hershey’s no colo da amiga, ainda tirando guloseimas da bolsa.
não consegue conter uma risada.

***


Cinco minutos depois que o jogo começa, um homem chega para o assento livre ao lado de . Ela suspira, decepcionada por não ter mais o espaço vazio por perto.
O rapaz é espaçoso, e está carregando consigo mais petiscos do que . O cheiro de gordura exala das sacolas com intensidade. bate o olho rapidamente, contando dois hambúrgueres e um hot dog.
Enquanto ele posiciona os lanches, esbarrando nela dezenas de vezes no processo, corre os olhos pelo lugar.
Do outro lado da quadra, uma modelo que ela viu em uma campanha de lingerie posa para selfies com o namorado, um ator famoso cujo nome não se lembra.
Assim como ela, a maioria das pessoas ali parece estar dando o mínimo para o verdadeiro foco: o jogo acontecendo no meio da quadra.
Doze minutos depois, a voz ubíqua dos autofalantes anuncia a presença de uma atriz de Game of Thrones, ao que o público vibra com afinco, aplaudindo e berrando. Seu rosto aparece em todos os telões, enquanto ela acena para as câmeras e para os fãs.
— Agora é hora da... — a voz nos autofalantes exclama, com expectativa. — Câmera do beijo! — ao que ele grita, o público vai à loucura enquanto as imagens no telão viajam pelas arquibancadas, até pararem em... .

***


Horas parecem se passar desde o instante em que ela percebe a própria imagem refletida nos telões até o momento em que sente o empurrão de em direção ao rapaz dos petiscos.
Quando se dá conta, está com o rosto colado no dele. Os olhos brilhantes do rapaz a encaram com dúvida e curiosidade, enquanto o público grita “beija, beija, beija!” desesperadamente.
Ela também não tem tempo para pensar em qualquer reação antes de sentir outro empurrão de , dessa vez deixando-a tão perto do rapaz que ela precisa fechar os olhos, à espera do impacto. Inacreditavelmente, não há choque de queixos, narizes e testas, mas o encontro espontâneo dos seus lábios com os dele.
não sabe porque não se afasta imediatamente, nem mesmo com o som exacerbado do público gritando e aplaudindo. Ao invés disso, ela continua lá, enquanto ele aprofunda o beijo, segurando-a pelo queixo.
Ela também não sabe em que momento exatamente o beijo termina, mas seu rosto está queimando e os lábios formigando quando ela se levanta e corre.

***


! ! Volta aqui! — os gritos de vão se tornando sem fôlego enquanto ela corre atrás de . Parece que está todo mundo assistindo à cena novelesca, acompanhando e comentando, mas, na verdade, ninguém sequer reparou no desenrolar do espetáculo que fora o beijo no telão.
Enquanto corre, desnorteada, sem saber exatamente onde fica a saída, empurra o mascote dos Bulls, um gigantesco touro vermelho, derrubando-o direto no chão, ao que alguns torcedores reagem com vaias e xingamentos com os quais ela não consegue se importar, porque não está nem ouvindo.
Quando finalmente encontra uma porta, ela a empurra com força, correndo para fora como se sua vida dependesse disso.
Do lado de fora, ela finalmente para, apoiando as mãos nos joelhos, ofegante. As lágrimas escorrem pelo rosto, sem permissão, quentes contra a pele que arde de nervosismo e cansaço.
! Pelo amor de Deus! — com um baque da porta, aparece atrás dela, com o rapaz do beijo em seu encalço.
— Ah, não. — suspira. — Não, não, não... vão embora! Vão embora, por favor.
se aproxima dela, tocando-a no ombro. empurra a mão dela para longe.
— Por que você fez isso? — berra. — Por que você fez isso, ?
arregala os olhos, apavorada.
— Eu não fiz nada! , eu não fiz nada! — mas a amiga continua olhando para ela, enfurecida. — O que eu fiz, ? — só então ela parece se dar conta. O empurrão. — Ah, ... me desculpe. Eu sinto muito, eu não devia... eu sinto muito.
— Será que alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? — o rapaz dos lanches pergunta, assustado. — Vocês são um casal?
As duas olham para ele como se fosse uma pergunta ridícula e respondem em uníssono:
— Não!
Ele ergue as mãos, como se pedisse para se acalmarem.
enxuga as lágrimas do rosto com as mangas do suéter.
— O que você está fazendo aqui? — ela pergunta, olhando para ele com olhos de águia.
— Eu... — ele parece muito atrapalhado, esfregando as mãos copiosamente na camiseta dos Bulls que está vestindo. — Eu sou o . — estende a mão para cumprimentá-la. consegue ver de longe que as mãos dele ainda estão cheias de gordura, mas aceita o cumprimento por educação.
. — ela diz, retirando a mão.
— Olha... — começa. — Sinto muito se te ofendi lá dentro. Não era a minha intenção, mas achei que estava tudo bem, porque você me beijou de volta e... — ao notar a cara feia de , ele interrompe a fala. — Eu só queria saber se você quer sair para jantar comigo. Não hoje, porque já está tarde. Amanhã.
e arregalam os olhos.
— O-o quê? — ela pergunta, incrédula.
— Eu sei... é ridículo... eu sou... ridículo. — ele suspira e dá de ombros, pronto para voltar para o jogo.
— É claro que ela quer! — exclama.
olha para ela de cara feia.
— Tudo bem. — diz, fazendo para um gesto para isentá-la de culpa. — Foi estúpido da minha parte presumir que talvez...
— Tudo bem. — interrompe. Ela mesma sabe que não faz sentido algum o que está fazendo, a maneira como está agindo. — Eu aceito, sim.
— O quê? — e questionam, ao mesmo tempo, os dois olhando para , incrédulos.
— Não vou aceitar duas vezes. — diz, encarando-o com uma expressão fria, mantendo-a como se estivesse segura do que está fazendo, mas com seu interior em pânico, sentindo-se exageradamente vulnerável.



Um

Well, my sense of humanity, has gone down the drain
(Meu senso de humanidade desceu pelo ralo)
Behind every beautiful thing, there’s been some kind of pain
(Por trás de toda coisa linda há algum tipo de dor)
She wrote me a letter, and she wrote it so kind
(Ela me escreveu uma carta, e ela escreveu com tanta gentileza)
She put down in writing what was in her mind
(Ela colocou por escrito o que estava em sua mente)
I just don’t see why I should even care
(Eu simplesmente não vejo porque deveria me importar)
It’s not dark yet, but it’s getting there
(Não está escuro ainda, mas está chegando lá)

desliga o chuveiro, ainda ouvindo as exclamações incrédulas de Owen, seu melhor amigo e colega de apartamento.
— Você simplesmente beijou a maior gata, e desconhecida, e conseguiu que ela aceitasse sair para jantar com você depois desse mico público? — ele ainda está protestando, provavelmente parado em frente à porta do banheiro. — Você sabe quão maluco e impossível isso é?
Com a toalha enrolada na cintura e os cabelos pingando no chão, sai do banheiro. Owen escorrega para o chão com o impacto da porta onde estava escorado se abrindo.
— Sua fé em mim é sempre um grande incentivo. — faz uma careta, passando para seu quarto no final do corredor e batendo a porta.
O quarto está uma bagunça. É comum que esta seja a situação geral de seu quarto, mas as coisas estão piores. Por dois motivos:a faxineira não apareceu e ele estava exatamente como uma garota no ensino médio, atirando todas as roupas para fora do armário, em desespero para encontrar uma combinação decente.
Que tipo de roupa se usa em um encontro?, ele pensa. A última vez que esteve em um encontro já faz muito tempo. Pensar nisso ainda é doloroso, então ele volta a atirar peças de roupa para todos os lados, continuando sua busca frenética pela combinação perfeita.
Depois de quase meia hora, e quando já está prestes a se atrasar, ele encontra uma camisa social que fora branca um dia e calças jeans compradas por sua mãe, ainda com etiqueta.
Examinando a própria aparência no espelho, respira fundo, jogando por cima da camisa amarelada uma jaqueta marrom e saindo a passos largos, quase correndo, para que não tenha sequer a chance de desistir.
De repente, enquanto desce as escadas com Owen em seu encalço, ele finalmente considera a hipótese de que tenha desistido.

***


— Você sabe que não faz sentido algum ter aceitado o convite se você não está sequer disposta a trocar de roupa para ir, não é? — questiona, as mãos na cintura, escorada no batente da porta. — ?
Deitada na cama, com os pés pendurados para fora, resmunga alguma coisa.
— O que foi, ? — se aproxima, sentando ao lado da amiga na cama de solteiro. — O que foi?
— Foi um erro. — responde, bufando uma vez antes de se virar para encarar . — Foi um erro, . Eu não devia ter aceitado, entende? Eu não estou pronta.
— Dois anos, . Já se passaram dois anos! — exclama, apenas para receber a bronca que os olhos de dão. — Ah, , me desculpe. Estou quieta há dois anos, mas agora já deu. Eu sei que você está sofrendo... não espero outra coisa, não espero que você jogue fora uma vida inteira com o Dave... porra! Não espero que você esqueça do seu bebê também. Eles existiram, . Foram parte da sua vida, entende? Mas o que a gente pode fazer se a vida é assim? Se não dá para voltar atrás, só seguir em frente? — suspira, repentinamente parecendo exausta. — , eu sinto muito. De verdade, por tudo que aconteceu. Sinto muito pelo Dave, pelo bebê, sinto muito pela dor com a qual você tem que lidar. E talvez eu esteja exagerando, sim, mas, se você desistir desse encontro agora, você vai estar desistindo de você. E eu não acredito que seja o que você quer de verdade. Não acredito que você queira desistir, . Porque não é quem você é, não é o que você faz.
Quando finalmente termina de falar, está com o rosto enterrado entre as mãos, soluçando baixinho.
— Você não precisa ir, . — diz, tocando a amiga gentilmente nas costas. — Não precisa mesmo. Mas uma hora isso vai ter que acontecer. Alguma coisa vai ter que acontecer.
suspira, engolindo o choro e enxugando as lágrimas com os antebraços.
já está começando a sentir-se culpada pela explosão de sinceridade quando a puxa para um abraço forte.
— Obrigada, . — é tudo que ela diz, antes de arrancar o conjunto de moletom que está vestindo e substituí-lo por um vestido floral que ganhara de aniversário e nunca sequer tirara a etiqueta.
— É lindo. — diz, um sorriso enorme no rosto, exalando orgulho de sua melhor amiga. Ela nunca diria, mas não consegue parar de pensar que finalmente está honrando a memória do marido e do filho que perdera. Pela primeira vez, ela está dando um passo em direção à incerteza, esperando encontrar a felicidade outra vez durante a caminhada. E não tem como querer algo diferente para alguém que você ama.

***


nunca teve o trabalho de planejar um encontro. Está pensando nisso enquanto espera por em um banquinho acolchoado numa área reservada no restaurante.
Ele também não planejou esse encontro. Está começando a entrar em pânico e a considerar sinceramente a possibilidade de ir embora — afinal, quais as chances? — quando a vê se aproximando do restaurante.
para na porta, conversando com o recepcionista, que aponta para a área de espera, onde está. assente, caminhando para dentro do restaurante.
respira fundo e se levanta, encaminhando-se para encontrá-la no corredor.
Quando ela o vê, instantaneamente seu rosto fica corado, mas não percebe, imerso em uma meditação mental para controlar o próprio rubor.
— Oi. — ele finalmente diz, esticando o braço para cumprimentá-la, ao mesmo tempo em que ela se aproxima para um abraço, que acaba virando um golpe do cotovelo dele contra seu estômago. — S-sinto muito. — ele gagueja, se afastando.
levanta as mãos, dizendo para que ele não se preocupe. É surpreendente que estejam tão constrangidos e fora de sintonia quando, ainda na noite anterior, haviam compartilhado um beijo em público.
— Você está bonita. — ele diz, mantendo a cabeça baixa de vergonha. murmura um “obrigada” sem graça enquanto uma garçonete guia os dois até sua mesa.
É um restaurante tradicional, mas todo o ambiente é insosso, pálido, desanimado. se arrepende imediatamente da escolha, mas fora a primeira opção decente que lhe aparecera em mente. Seus pais sempre jantavam ali quando tinham alguma ocasião especial. De qualquer forma, ele parece mais deslocado que , que analisa o local discretamente.
— Então... — ele tenta pensar em algum assunto, mas nada lhe surge em mente. O desespero começa a subir por suas veias, deixando-o taquicárdico e com sudorese. — O que você faz da vida? — pergunta, revezando o olhar entre ele e o cardápio que segura em frente ao corpo.
— Eu estudo. — ele responde. arqueia uma sobrancelha e ele espera que seja em sinal de curiosidade. — Pós-graduação. Sociologia. — ele pronuncia tudo em retalhos, inseguro. Quando finalmente arrisca uma olhada no rosto de , ela parece ligeiramente interessada. — E você? — ele pergunta.
dá de ombros.
— Trabalho. Recursos Humanos. — responde, encarando-o de volta.
— Mais ou menos a mesma linha. — ele força um sorriso.
O assunto está prestes a encalhar outra vez quando nota o broche de libélula em uma das alças do vestido florido de . Já viu aquele símbolo tantas vezes que é quase íntimo.
— É da marca da minha mãe. — ele diz. parece confusa. — O vestido. É da marca da minha mãe.
Ela ostenta uma expressão de surpresa por alguns segundos antes de assentir.
— Eu costumava comprar muitos vestidos dessa marca. — ela diz. — Antigamente. — completa. — Esse aqui foi minha mãe que me deu.
— Coleção de primavera. Eu me lembro da estampa. — nota que parece ter lembrado de alguma coisa engraçada, ou ter ficado extremamente nostálgico, pelo sorrisinho em seu rosto.
— Então... você é um sociólogo que entende de moda? — e então o gelo está começando a quebrar. sorri abertamente, e ri, corando um pouco antes de virar o rosto, ainda rindo, e chamar o garçom.

***


É estranho que eles se sintam mais confortáveis com o silêncio dançando entre os dois, mas essa é a verdade. Depois de uma refeição saborosa, encerrada com deliciosas mille feuilles de baunilha, e andam pelas calçadas ladrilhadas a passos lentos, prolongando a caminhada até um destino incerto.
Eles param em frente à uma pequena sorveteria, espremida entre as fachadas de duas lojas de roupas, onde um garotinho se diverte com as bolas de sorvete amontoadas em uma casquinha.
Mesmo satisfeitos, eles pedem uma casquinha igual à do garoto e dividem, sentados em uma das minúsculas mesinhas de ferro sobre a calçada.
observa devorando a bola de pistache, enquanto ele saboreia a de chocolate. Os dois não falam nada há uns bons minutos, mas tudo está bem, tranquilo, como se fizessem isso sempre.
Seus olhares se encontram às vezes, e o rosto de fica vermelho, assim como sabe que o seu também fica. Parecem adolescentes, mas a leveza que tomou conta do ar não é típica da idade. São adultos, aproveitando o melhor dos dois mundos.
Depois que terminam de comer, estica os braços, segurando as beiradas da mesa como se fosse decolar, e seu rosto fica nublado, neutro, outra vez.
. — ela diz. — Eu sei que é errado pra cacete... fazer isso num primeiro encontro. Mas eu vou fazer, porque é o que eu preciso fazer. Você entende?
Ele assente, sem nem saber sobre o que ela está falando.
— Eu sou casada. — ela diz. Ele endireita a postura na microcadeira de ferro. — Quer dizer. Eu era casada... e é estranho falar assim, porque eu nunca me separei. — quando os olhos dela se enchem de lágrimas, já sabe tudo que aconteceu. Ele morreu. O marido de morreu.
Ela suspira. O nariz já está vermelho e entupido.
. — ele ousa chamá-la pelo apelido. E ousa ainda mais quando estica a mão por sobre a mesa e segura a mão dela. Ele espera uma reação, mas, como ela não retira a mão sob a dele, ele respira fundo antes de continuar, e então se levanta, puxando-a para ficar de pé também. — Eu não vou querer competir. Nós nos conhecemos em um jogo, mas não somos um jogo. Não somos times, não somos adversários. Todo o resto é um jogo, é verdade. Mas podemos jogar juntos. Se você quiser.
Ela não sabe se é a voz dele ou o que ele diz, os olhos dele ou a maneira como olham para ela enquanto fala, mas, quando se dá conta, está caminhando a curta distância entre os dois, entrelaçando seus braços ao redor do pescoço dele e se inclinando ligeiramente, apenas o suficiente para que seus lábios se encontrem.
Talvez seja o clima ameno, talvez seja o vinho. Talvez seja o gosto de chocolate nos lábios dele, ou o aroma de baunilha em suas mãos. Talvez seja a forma como ele segura seu rosto enquanto a beija, o polegar gentilmente pousado sobre seu queixo. Mas talvez, só talvez, não seja nada que ela possa explicar. E aí sim, aí ela está completamente perdida. Porque nunca ficou sem respostas em toda sua vida.

***


Pelo jeito como o batom nude de está levemente borrado nas laterais, sequer precisa pensar em perguntar qualquer coisa quando ela finalmente bate a porta do apartamento e permanece alguns segundos parada ali, parecendo pensativa.
também não diz coisa alguma, mas espera a amiga se mover, ainda que lentamente, sentando-se no sofá, no lugar vago ao seu lado.
— Eu não sei. — finalmente diz. — Eu não sei de mais nada. — ela espera mais alguns segundos antes de virar o rosto para encarar , a expressão confusa, algo que nunca vira assentada ali.
— O beijo foi bom? — finalmente arrisca. Ela espera que se feche novamente, como uma planta carnívora. No entanto, isso não acontece. Por mais estranho que seja, começa a rir, segurando o broche de libélula na alça do vestido.

***



Ela não tem muita certeza sobre quem deve ligar primeiro. Ele ou ela?
O fato de ter sido ela a responsável pelo beijo a isenta da responsabilidade de ser a primeira a ligar? É o que ela espera.
respira fundo, relendo o e-mail que redigiu, em busca de erros que possam ter passados despercebidos por sua falta de atenção.
Enquanto ela relê a mensagem, a imagem em sua mesa aparece de soslaio em sua visão. O branco do véu e da cauda do vestido, o verde do gramado no cenário.
simplesmente não quer olhar. Por algum motivo — o qual ela já desconfia saber —, sente-se suja, traidora, pecaminosa. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. As palavras ficam martelando em sua mente, insistentes, agressivas.
O pacto dizia isso, mas ela simplesmente não consegue entender. Até que a morte nos separe. Por quê?
Ela balança a cabeça, desesperada por um pouco de concentração e rola os olhos pelo e-mail que envia logo em seguida.
O relógio de ponteiros na parede mostra que ainda falta uma hora para seu horário de almoço. Ela não está com fome, mas o escritório parece a estar sufocando, comprimindo de fora para dentro e vice-versa.
Ela seria médica. É nisso que ela não consegue parar de pensar. Se tivesse seguido os passos e os conselhos do pai, seria médica. Estaria, neste mesmo momento, compenetrada em algum procedimento cirúrgico, cercada pelo azul dos aventais e luvas estéreis e pelo vermelho do sangue. Talvez fosse uma rotina mais agradável, menos entediante.
Ela está perdida em pensamentos, olhando através da janela, quando seu celular vibra na gaveta.
abre a gaveta, olhando para os lados em busca de seu patrão e, como não o vê, tira o celular lá de dentro.
Ele não ligou. Óbvio. Século vinte e um, as pessoas não telefonam mais. Elas mandam mensagens.
O nome de pisca aos olhos dela, acima de uma mensagem com um anexo.
Ela abre a mensagem e imediatamente começa a rir. Esconde o rosto perto da mesa, tentando abafar o ruído do riso.
“Lembrei de você”, diz a mensagem, acompanhada da foto de uma casquinha com inúmeras bolas de sorvete. Chocolate, creme, pistache.
Ela sorri, refletindo sobre o que deve responder.
“Que bom que lembrou”, ela responde.
Em alguns segundos o celular vibra outra vez. “Eu poderia guardar para você, mas não acho que seria uma boa ideia. Talvez eu compre um para você no almoço :)”
sente o coração palpitar.
“Em uma hora”, responde.

***


Ela o enxerga de longe, sentado em uma das cadeirinhas de ferro. Ele parece divertido e inofensivo em sua camiseta com a estampa de um pitbull de óculos escuros.
atravessa a rua até ele, que finalmente a percebe chegando. Como um velho desconhecido, acena ansiosamente.
Por alguns milésimos de segundo, o tempo parece congelar. O que ela deve fazer? Como deve cumprimentá-lo?
Ela estica a mão, mas ele já tem um abraço articulado, o que resulta no choque do cotovelo dele no rosto dela, e da mão dela no ombro dele.
Os dois começam a rir antes de sentarem-se frente a frente nas cadeirinhas de ferro na calçada.
— Pronta para a melhor competição de almoço de todos os tempos? — pergunta, um sorriso travesso no rosto.
— Competição? — ela pergunta, uma sobrancelha arqueada de curiosidade e um sorriso em formação em seus lábios.
— Você sabe do que estou falando. — ele diz, ainda sorrindo. — Estou falando de como eu vou vencer você de lavada.
começa a rir.
— Você pode tentar. — diz.
Os dois param no balcão e pegam suas bandejas de self-service, servindo-se dos mais variados sabores de sorvete.
Assim que chegam de volta à mesa, começam a comer furiosamente, intensamente empenhados na competição quase infantil. Os funcionários da sorveteria e os pedestres que passam por ali os encaram com curiosidade, mas nenhum dos dois nota, já que estão muito concentrados nos sorvetes à sua frente, que, hora ou outra, respingam a esmo, acertando a mesa, a calçada e as roupas de ambos.
Quando está começando sua penúltima bola de sorvete, o celular toca.
Respeitando a competição honrada, também para, esperando.
tira o celular da bolsa. “Mãe”, aparece no visor.
Antes de atender ela já sabe o que a espera.
Onde você está? — a voz de inquisição é impaciente, quase revoltada.
— Desculpe, mãe, eu não...
— Achei que tínhamos combinado há uma meia hora atrás, . Como sempre.
bate em sua própria testa, repreendendo a si mesma.
— Está no trabalho? — sua mãe pergunta, irritadiça.
— Eu estou... — ela para por um tempinho para analisar com o rosto sujo de sorvete de chocolate do outro lado da mesa. — Ocupada. Posso te ligar mais tarde? Você pode passar em casa e jantar comigo e a Bey.
— Não posso, . Sua irmã e os meninos vêm para o jantar. Por que você não vem junto?
Porque é desconfortável. Porque a presença das crianças me incomoda. Porque o jeito como vocês todos me olham me incomoda., pensa.
— Eu não posso... — ela murmura. — Muita coisa do trabalho.
consegue ouvir a mãe bufando do outro lado da linha.
— Você não precisa desse emprego. Você não precisa nem desse cubículo onde está morando. E você sabe disso, não sabe? — ela pergunta. não responde, então ela se sente livre para continuar. — Você sabe que, quando quiser, tem uma vaga ótima esperando por você na empresa do seu pai. Como sempre esteve.
Uma vaga ótima para eu não fazer absolutamente nada e ainda ter uma sala. Meu conceito de independência, realmente., ela tem vontade de dizer. Como se eu não soubesse que a tal vaga se resume a receber dinheiro do papai como se eu ainda tivesse dez anos.
suspira. O sorvete em seu prato já está derretendo.
— Mãe, eu preciso mesmo desligar. Falo com você depois. — antes que algum protesto possa soar do outro lado da linha, ela desliga.
está olhando para ela, tentando disfarçar, mas ainda encarando.
— Você precisa ir? — ele pergunta, parecendo genuinamente preocupado e compreensivo.
— Não. Não mesmo. — ela diz. — Tenho uma competição para ganhar, lembra? — ela diz, enfiando a colher cheia de sorvete de baunilha furiosamente na boca, provocando uma gargalhada de .

***


Depois de perceber que está atrasada para voltar ao trabalho, se despede de às pressas e corre mais que o Usain Bolt para voltar para o escritório.
É irônico que tenha um horário tão exigente para cumprir, mesmo em dias desocupados como aquele.
Está começando a chover, e odeia a ideia de voltar para casa na chuva.
Ela passa a olhar pela janela a cada minuto que passa, esperando que a chuva desista e vá embora.
Quando o tempo fica cruel assim, sua mente também fica cruel com ela. As memórias doem como feridas abertas, machucam e apertam como as sapatilhas do balé quando era criança.
Exausta e derrotada, fecha os olhos, apoiando os cotovelos sobre a mesa e escondendo o rosto entre as mãos.
Ela tem quinze anos de novo. O cabelo recém-cortado, repicado em desníveis como da moda, balança de um lado para o outro enquanto ela empurra o carrinho do supermercado, correndo de Dave e rindo. Ocasionalmente ela puxa para cima a blusinha tomara-que-caia rosa que está vestindo. Linda e desconfortável.
Ela olha por sobre o ombro à procura de Dave, mas parece ter conseguido despistá-lo nos corredores.
Quando olha de volta para a frente, uma senhora num vestido amarelo florido está parada ali, quase colada em seu carrinho.
— Desculpe. — diz.
A mulher sorri para ela, os olhos fixos em como uma ave de rapina. força um sorrisinho antes de se apressar em sair dali e reencontrar Dave. Alguma coisa nos olhos daquela mulher lhe dava calafrios.
e Dave seguem para o caixa, guardam as compras nas sacolas ecológicas da mãe de e deixam o mercado com todos os ingredientes para prepararem pizza caseira.
Está chovendo e está saltitando na frente de Dave, cantarolando alguma música que ouviu na rádio mais cedo. Ela pisoteia poças que se formam nos sulcos no asfalto do estacionamento, espalhando mais água em todas as direções, quando ouve o barulho dos pneus derrapando.
Ela não tem tempo para muita coisa além de fechar os olhos com a luz alta do farol do carro que vem em sua direção.
aguarda o impacto, mas não o sente.
Quando abre os olhos, está caída no chão, com Dave ajoelhado ao seu lado, puxando-a para si. Várias pessoas estão paradas ali, observando. Algumas correm em sua direção para oferecer ajuda.
A senhora do vestido amarelo florido aparece, carregando as compras em uma caixinha de papelão. Ela olha para com os mesmos olhos misteriosos de alguns minutos antes.
Ela se aproxima de Dave e , segura pelo cotovelo e olha no fundo de seus olhos, os próprios dilatados, quase em transe.
— Tudo que você tem, tudo que você é. Vão levar para longe, mesmo se você não quiser. Tudo que você é, tudo que você tem, as rodas falharão, sem olhar a quem. Tudo que você tem, tudo que você é, transportados para o além, para longe e até. — ela pronuncia tudo como uma profecia, os olhos vidrados em , que está aos prantos, horrorizada. — A carruagem. — ela aponta para os carros no estacionamento, um por um.
— Quem é você? — Dave pergunta, tirando a mão da mulher do aperto no cotovelo de . — Sai daqui, sua maluca. Sai daqui! — ele a empurra, fazendo com que ela vacile em seus pés antes de dar as costas e ir embora.
está em choque, imóvel, sem piscar, a respiração brusca e pesada.
Todos olham para a mulher que se afasta, chocados. Dave olha para ela com raiva. Tem vontade de ir atrás dela e xingá-la por tamanha insensibilidade. Ao invés disso, ele se vira para , arranhada e encharcada, vulnerável como um bebê.
— Você está bem? — ele pergunta, puxando-a para um abraço. Pode sentí-la assentir em seu peito. — Não dê importância para essa maluca. É uma dessas doidas da rua. — ele diz, acariciando os cabelos da namorada enquanto recolhe as compras e guia até a área coberta. Ele usa algumas moedas para usar o orelhão e pedir para a mãe ir buscá-los. permanece imóvel no banco, tremendo de frio sem nem perceber, o pavor embrenhado em seus ossos.

***


Depois do acidente que levara Dave e o bebê, simplesmente não entrara em um carro. Com exceção da ambulância que a transportara para o hospital, sobre a qual ela não se lembra, e do outro veículo hospitalar que a levara em casa depois que recebera alta, ela não conseguira sequer conceber a ideia de entrar em um carro outra vez, durante muito tempo.
A mulher no supermercado tinha avisado, tantos anos atrás. À época, causara um impacto assustador em , mas o pavor passara em alguns dias. Parecia bobagem.
No entanto, enquanto estava internada, no primeiro momento de consciência do qual consegue se lembrar desde o acidente, ela só conseguia reviver a cena do supermercado. Em um looping infinito.
A sensação da prisão mental fora difícil demais para aguentar. Insuportável. Ela começara a gritar, em desespero, até que os enfermeiros aplicassem nela algum sedativo que a fizera dormir por mais várias horas.
Quando acordara, estava perdida na linha temporal da própria vida. Tinha quinze anos de novo? Ou ainda? O acidente já tinha acontecido? Ela já tinha perdido Dave e o bebê? O que era real e o que era fantasia? O que era memória e o que era efeito colateral da medicação?
Ela estava confusa demais. Se retraíra, absorta, sentindo-se desconectada, desviada. Não dissera uma palavra por três dias, até pedir água a um enfermeiro.
Os psicólogos do hospital foram vê-la, falar sobre o acidente, sobre Dave e o bebê que ela perdera.
Curiosamente, não chorara. As palavras da mulher do supermercado faziam sentido, e isso era tudo. Ela tinha decidido não ouvir, não acreditar. E tinha recebido as consequências.
simplesmente não conseguira dizer nada aos psicólogos. Não nos primeiros dias. Depois, quando uma das terapeutas, Mary, voltou sozinha e contou a história de como perdera seu marido e seu filho de cinco anos em um acidente de carro, finalmente chorou. E contou sobre a mulher do supermercado.
vira quando os olhos de Mary encheram de lágrimas, mas a terapeuta disfarçou, balançando a cabeça em sinal de compreensão.
— Somos maiores que isso, . — ela dissera. — Independente de religião, independente de qualquer tipo de credo... nós somos maiores que isso. Certo? Você pode deixar de ter fé em tudo, menos em si mesma.
Aquelas palavras não poderiam ser mais apropriadas, pensara no momento. E pensa o mesmo enquanto seleciona o contato de na agenda.

***


Ele não sabe porque ainda está olhando para a foto. Ainda dói quando ele se obriga a lembrar. Dói por causa das incógnitas, das lacunas. Por quê?
Ela escrevera uma carta. Deixara em cima da mesa, no quarto de hotel, dentro de um envelope de papel texturizado. Como se tudo tivesse sido planejado com antecedência.

Sinto muito pelo meu não-amor. Devíamos ter aprendido isso na faculdade também, . Porque aprendemos que o amor existe, e aprendemos que o amor não existe. Mas não aprendemos nada sobre o não-amor.
Você talvez não entenda agora, mas vai entender em algum momento. No momento certo.
Meu não-amor nos trouxe até aqui erroneamente, e agora ele precisa me levar a diante. A todos nós. A diante. Sempre.


O primeiro instinto dele fora rasgar a carta, destruí-la, reduzí-la a micropedacinhos de celulose processada.
Ele estudava Sociologia. Estava acostumado a textos enigmáticos, mensagens subentendidas e entrelinhas elementares. Pelo menos era o que ele achava até encontrar a carta.
Parecia algum tipo de piada, mas, quando ele ligara para ela, desesperado para ouvir que sim, era tudo uma brincadeira e não, ela não estava terminando com ele como ele achava que estava, ela não atendera. Ela nunca mais atendera.
Então ele achara que algo grave tinha acontecido. Sequestro, homícidio, todo tipo de tragédia criminosa. Ligara para os pais dela, apenas para descobrir que estava certo de início. Ela estava mesmo terminando com ele. Através de uma carta. Ela estava viva, estava bem. Aproveitando a vida em algum lugar. Descobrir a verdade o fizera desejar que estivesse errado de primeira e que tivesse acertado depois. Sequestro, homicídio.
Alguém que parte um coração daquela maneira merecia morrer, ele pensava.
Fizera as malas, buscando, inutilmente, qualquer resquício dela ali, qualquer coisa que indicasse que ela podia voltar. Procurara apenas por saber que não iria encontrar.
Enquanto fechava a porta do quarto atrás de si, o vazio que sentia só aumentava.
Ainda tinha a foto tirada na rua dentro do bolso do casaco, percebera ao entrar no elevador. Na imagem gravada em preto e branco, ela não sorria, mas ele sim. Os olhos dela estavam cobertos pelos Ray Ban de sempre. Se estivessem à mostra, ele teria visto? Quando olhasse a foto pela primeira vez, perceberia de cara o que ela estava planejando?
Ele tinha certeza de que sim, ele perceberia. Os olhos não mentem. Pelo menos não os dos outros. São os nossos que enganam a si mesmos., ele pensara.
Agora, enquanto segura a foto diante de si, quase três anos depois da carta, ele finalmente obedece seu impulso inicial. Revira a gaveta, pegando o envelope, abrindo-o e tirando a carta de lá. Meu não-amor nos trouxe aqui erroneamente. Ele balança a cabeça, indignado com a própria tolice, enquanto finalmente rasga aquelas memórias sólidas, substanciais, atirando-as na privada. Assim que pressiona a descarga, seu celular toca.

***


Para mudar um pouco o cenário, ele sugerira que se encontradsem no parque de diversões itinerante que está na Mayford’s.
Eles combinaram às seis, mas já são quase sete e ainda não chegou.
olha o relógio mais uma vez, e corre os olhos por toda a extensão do parque que consegue enxergar. Crianças pequenas segurando as mãos dos pais se amontoam em filas para comprar salgadinhos e doces, casais tiram selfies na roda-gigante, namorados disputam contra latinhas para levarem bichinhos de pelúcia para as namoradas... rituais típicos do animal humano.
está prestes a desistir — ele sempre está pronto para desistir — quando vê se aproximando. Ela dá um sorrisinho sutil quando o vê, caminhando até ele em um macacão preto que a faz parecer algum tipo de personagem de filme. Inatingível, inalcançável.
Seus cabelos, presos em um rabo de cavalo, balançam com o vento. Com a trilha sonora perfeita, a cena poderia ganhar o Oscar, o festival de Veneza... ganhar o mundo. Se ela ao menos soubesse...
— Oi. — ela diz, aproximando-se o suficiente para lhe dar um beijo na bochecha. sorri para ela.
— Cachorro quente? — ele pergunta. ri, assentindo. Eles entram na fila com as crianças e os pais. O cheiro de fritura e doces é inebriante. Faz tempo desde a última vez em que estivera em um lugar como aquele. Os saquinhos de pipoca caramelada derrubados se acumulam no chão, e os pombos se aproveitam disso para fazerem refeições requintadas, enquanto uma senhorinha com uma pá e uma vassoura parece ridicularizada diante de tanto lixo.
Esse tipo de evento é sempre controverso. Famílias, casais e amigos se divertem em brinquedos de procedência preocupante e saboreiam guloseimas de origem duvidosa até se cansarem o suficiente para chegar em casa e capotar.
É quase a vez de e quando ele tem certeza que está tendo uma alucinação, uma miragem.
A poucos metros deles, em uma das filas para a roda-gigante, está a pessoa que menos esperava encontrar naquele dia.

Dois

Well, I’ve been to London, and I’ve been to gay Paris
(Então, eu estive em Londres e na alegre Paris)
I’ve followed the river, and I got to the sea
(Eu segui o rio, e eu cheguei ao mar)
I’ve been down to the bottom of a world full of lies
(Eu fui até o fundo de mundo cheio de mentiras)
I ain’t lookin’ for nothing in anyone’s eyes
(Não procuro por nada nos olhos de ninguém)
Sometimes my burden is more than I can bear
(Às vezes meu fardo é maior do que posso carregar)
It’s not dark yet, but it’s getting there
(Não está escuro ainda, mas está chegando lá)


percebe que há algo de errado com assim que percebe que seus olhos estão arregalados, focados em um ponto fixo em lugar nenhum, o rosto branco como papel, os lábios entreabertos.
Então ela finalmente segue o olhar dele, até se deparar com uma mulher mais alta que ela, de cabelos curtos pintados de preto e lábios vermelhos brilhantes.
A clareza sobre a situação vem em uma onda. pensa em dar as costas e ir embora, mas a demonstração de ciúme precoce — e desnecessária — não seria nem válida. Que direito ela tem?
também tem um passado. E, pela maneira como está olhando para ele, um trauma.
. — ela murmura, tocando o braço dele. Fora do transe, com o feitiço quebrado, ele olha para ela. — Está tudo bem. — diz, segurando a mão dele. — Você quer sair daqui?
olha novamente para a garota pin-up e balança a cabeça. Não. Ele não quer. É um bom sinal? Ela simplesmente não sabe dizer.
— Não precisa. — ele diz. — Estou livre.
Ele olha para ela e sorri, puxando-a para um abraço, o que a pega de surpresa.
Ainda rindo, rodopia alguns centímetros acima do chão, provocando algumas gargalhadas. A atitude chama a atenção das pessoas em volta, inclusive da garota para quem ele estivera olhando.
Não o surpreende que Vicky não se aproxime e nem demonstre nenhum sinal além de uma ligeira expressão de choque.
No entanto, não consegue entender. Que tipo de garota simplesmente ignoraria a existência de ? Anulando-o completamente, ainda mais depois de relacionar-se com ele?
tem vontade de cruzar a curta distância entre os dois e a ex de , mas se detém, contentando-se com um olhar ameaçador.
Quando ela se dá conta, já pediu e pagou os dois hot dogs, e a está guiando pela mão até um dos bancos de madeira muito pouco seguros e completamente imundos.
— Aquela garota. — ele diz, apontando discretamente com o próprio queixo. — É a Vicky, minha ex.
assente.
— Certo.
— Nós nos conhecemos no primeiro ano de faculdade. Ela era... o tipo de garota que todos os caras querem, só de olhar. Todos os caras da sala a queriam.
— Isso inclui você. — arrisca.
balança a cabeça.
— Para ser sincero, eu não estava nem aí. Eu era muito a fim da professora de Filosofia, então sequer prestava atenção na Vicky. — os dois riem. — As coisas aconteceram como nessas histórias adolescentes... fomos obrigados a fazer um trabalho juntos, uma pesquisa de campo na matéria de Estatísticas. Isso fazia com que passássemos mais tempo juntos do que separados. Até que, um dia, ela se despediu de mim com um beijo. Simples assim. Eu nunca tinha percebido um clima, nada... mesmo depois do beijo, eu analisava todas as cenas, tentando entender de onde aquilo tinha vindo. E simplesmente não achava nada. — olha para ela, tentando analisar sua expressão, checando se ela está acompanhando a história.
— Veio da...
— Cabeça dela. — eles dizem, em uníssono. assente.
Há um longo período de silêncio enquanto eles observam as pessoas indo e vindo no parque. A quantidade infinita de balões flutuando no ar e bolas rolando é atordoante.
— Eu acho que ela decidiu que estávamos namorando. Porque eu também não percebi que isso ia acontecer, eu só... no dia seguinte ela me beijou na faculdade, na frente de todo mundo... e, quando perguntaram se estávamos namorando, ela simplesmente disse que sim. — suspira, mexendo nervosamente nos cabelos. — Eu não sei qual era o meu problema, porque eu não disse uma palavra... não abri a boca. E tudo foi evoluindo e acho que eu... comecei a me apaixonar por ela. Eu não sei. Ela estava tão embrenhada na minha vida, dormindo na minha casa, dirigindo meu carro sem pedir... até adotar um gato. Ela levou um gato para a minha casa sem avisar, e eu também não disse nada. Depois, para ela, o gato perdeu a graça, então ela simplesmente não cuidava mais dele, o que foi horrível da parte dela, mas ótimo para mim, porque ele era a melhor companhia que eu poderia ter.
— Era?
— Ele morreu... de câncer. Um ano atrás. — responde, cabisbaixo.
segura sua mão.
— Sinto muito. — murmura.
— Obrigado. — ele dá um sorriso gentil. — Olha, ... o motivo para eu estar contando tudo isso é que eu realmente acredito que começamos tudo em pratos limpos, e quero continuar assim. Não vou te dizer que a Vicky é a ex maluca e que ela desgraçou minha vida, porque eu estaria anulando todos os momentos bons que eu vivi com ela. Todas as coisas que aprendi e o tanto que amadureci... todas essas coisas ficariam para trás se eu pintasse uma imagem dela como uma vilã, que é exatamente o que parece. — ele dá uma olhada em outra vez, que assente. — Eu fui idiota, e cego... a ficha só caiu para mim quando ela me abandonou, sozinho em um hotel em Londres, no meio do nosso tour pela Europa.
arregala os olhos, chocada.
— Ela saiu enquanto eu dormia. Levou todas as próprias coisas... deixou para trás uma carta falando sobre “não-amor”, nunca mais atendeu uma ligação minha. Ela continuou a viagem sozinha, e eu também. Estive nos bairros festivos de Paris, bebi todo o álcool que cruzou meu caminho, dormi com um mendigo numa praça, acordei todo cagado de pombo... — ele balança a cabeça, se obrigando a entrar em foco de novo. — O que estou dizendo é que a Vicky é quem ela é, e ela sempre foi assim. Se eu a deixei me perturbar e abalar, é porque eu não a vi como ela era. E eu não quero que isso aconteça de novo. Eu quero ver você como você é. Eu quero amar você por amor, não por condicionamento. — ele suspira outra vez, parecendo cansado depois de tanto falar. — E eu não quero assustar você, nem apressar nada. Eu não quero competir com seu passado, muito menos superá-lo. Eu quero fazer tudo certo no presente, para termos a chance de ter um futuro.
sorri timidamente, depois assente. Olhando para as luzes coloridas da roda gigante se espalhando em várias direções.
— Eu estava esperando um bebê. — ela diz, olhando para em busca de alguma reação de pavor. — Estava casada havia dois anos. Tinha um apartamento novo, todo meu, com um quarto extra. Era a desculpa que precisávamos para ter um filho. — ela sorri discretamente. — Dave foi meu primeiro namorado. Passamos a vida inteira juntos, então não parecia apressado que nos casássemos tão jovens. Não parecia apressado ter um bebê. Planejamos e, logo de cara, conseguimos. — as lágrimas começam a se formar em seus olhos. precisa se controlar para não esticar o braço e enxugá-las. — Eu não sabia o quanto queria ser mãe, não de verdade, até descobrir que tinha perdido o bebê no mesmo acidente que me fez perder meu marido. Éramos tão jovens, tão bem sucedidos, nossos planos se realizavam... éramos felizes e isso parecia indestrutível. — ela enxuga as próprias lágrimas. — Mas sempre vai ter um caminhoneiro dirigindo cansado... há dias sem dormir, sob efeito de drogas para render mais. Sempre vai ter alguma coisa virando a esquina, ou na pista ao lado... pronta para te tirar tudo que você mais ama. — ela começa a chorar copiosamente, e desiste de se conter, puxando-a para um abraço apertado.
— Você pode ser feliz de novo. Você sabe disso, não sabe? — ele pergunta. — Comigo ou sem mim... você é capaz de ser feliz de novo. Você merece ser feliz de novo.
Com os olhos marejados de lágrimas e o nariz vermelho do choro, levanta a cabeça, olhando-o nos olhos.
— Desta vez é melhor você me beijar, .
Ele sorri.
— Também acho.

***


Quem abre a porta é Owen. nunca o viu pessoalmente, mas sabe tanto sobre ele que é como se conhecessem há muito tempo.
— Oi, ! — ele diz, recuando um passo para que ela entre. — O está no banho. Nos atrasamos por causa da aula.
já esteve ali, duas semanas antes, quando dera uma carona para em sua bicicleta depois que o carro dele quebrara do lado de fora de um McDonald’s vinte e quatro horas no qual estavam às três da manhã. No entanto, algo parece diferente no lugar.
Ela simplesmente reconhece tudo ali como parte da vida de . Seus livros nas prateleiras da sala, a televisão sempre ligada nos canais esportivos, os quadros com os diplomas de e de seu melhor amigo Owen...
Se lhe dissessem, apenas três meses atrás, que estaria tão intimamente conectada, profundamente ligada, a um rapaz com trejeitos pré-adolescentes, que parecia, de longe, um desses filhos de mamãe que se recusam a crescer, eternamente imaturos, ela não acreditaria. Simples assim. Nada que dissessem seria o suficiente para que ela acreditasse que estaria, por falta de uma definição melhor, se apaixonando pelo tal rapaz com trejeitos pré-adolescentes. Mas não é só isso. Ele é inteligente, engraçado e aventureiro. Sem que ela mesma soubesse, ele é exatamente o que ela precisava.
aparece no corredor, descendo as escadas a cada dois degraus. Ele sacode o cabelo molhado, respingando água para todos os lados, inclusive no rosto de .
Como que percebendo a deixa, Owen sobe as escadas correndo, dá um soquinho no ombro de e bate a porta do quarto.
— Então... vamos repassar o plano. — diz, encarando com ansiedade.
Ele ri, jogando-se ao lado dela no sofá.

***


Eles chegam à loja junto com todos os outros convidados, para não atrair a atenção da mãe de . O desfile já está para começar, e um pequeno grupo de imprensa fotografa e entrevista a estilista, que está exultante.
A mãe de se parece com ele., pensa. Os olhos dela têm o mesmo brilho apaixonado que os dele quando fala dos assuntos que gosta.
Nenhum dos dois está verdadeiramente preparado para o evento “conhecer a família um do outro”, então é em comum acordo que eles se esgueiram entre as outras pessoas, fazendo o possível para passarem despercebidos ou, no mínimo, para que ninguém perceba que estão juntos.
e sentam-se em seus lugares marcados (“ e mais um”, a mãe dele dissera, pensando apenas no caso de Owen resolver repetir a experiência anterior de dormir durante o desfile), esperando o espetáculo da nova coleção começar. O que não chega a demorar muito.
Em apenas alguns minutos, a pequena e elegante passarela montada no jardim nos fundos da boutique é ocupadas por modelos de todos os tipos. nunca esteve em um desfile antes, mas, na televisão, parecia ser sempre a mesma garota ou várias versões dela desfilando. Ela fica encantada com a diversidade — e com os vestidos —, e seus olhos brilham, o que faz sorrir enquanto a observa de soslaio.
Ele simplesmente não poderia fazer ideia de como sua vida teria mudado em três meses. Nada poderia tê-lo preparado para conhecer, num jogo de basquete, uma mulher linda e inteligente que despertaria nele o melhor de si. Mas ele não mudaria em nada o curso das coisas. Mesmo com todos os antecedentes — como Vicky aparecendo no parque como um fantasma —, as coisas estavam boas demais para ele arriscar sequer pensar em qualquer alternativa.
Fascinado pelo brilho nos olhos de enquanto assiste ao desfile, ele faz o possível para se concentrar no trabalho de sua mãe sendo exposto na passarela.

***


O desfile não dura mais que uma hora, mas parece ter comentários que se estenderão por muito mais tempo do que isso. Enquanto eles deixam a loja, se esgueirando entre os convidados do coquetel, só consegue pensar em como parece subitamente animada. Talvez seu interesse por moda vá muito além de gostar de vestidos bonitos, mas ela ainda não saiba disso., ele pensa. Os dois caminham pela calçada de mãos dadas, sorridentes e distraídos, como um casal de adolescentes.
? — a voz vem logo de trás deles quando passam em frente a uma cafeteria.
Puta que pariu., pensa. Não poderia ser pior.
Ela não consegue reagir. Seus músculos estão todos travados enquanto se vira, fazendo com que ela também o faça. Parada ali, na porta da cafeteria, com uma dezena de sacolas penduradas nos dois braços, está a mãe de .

Três

I was born here, and I’ll die here, against my will
(Eu nasci aqui, e aqui morrerei, contra minha vontade)
I know it looks like I’m moving, but I’m standing still
(Sei que parece que estou me mudando, mas continuarei aqui)
Every nerve in my body, is so naked and numb
(Todo nervo no meu corpo está exposto e entorpecido)
I can’t even remember what it was I came here to get away from
(Não consigo lembrar do que eu estava fugindo)
Don’t even hear a murmur of a prayer
(Não ouço sequer o murmúrio de uma oração)

Como se fosse dona da rua, ela abandona as sacolas em frente à porta da cafeteria, correndo para abraçar .
— Ah, ! Estou tão feliz! — ela exclama, balançando de um lado para o outro com a empolgação.
A esta altura, as mãos de e já estão separadas, enquanto ele encara a cena ao seu redor com curiosidade.
Quando a mãe de finalmente a solta, se vira para ele, sorridente.
— Oi! Eu sou a mãe da ! — ela diz, puxando-o para um abraço. consegue ver o rosto de rapidamente enquanto sua mãe o balança. Ela está pálida como papel sulfite, e sem expressão nenhuma, os olhos perdidos num vazio à sua frente.
— Você não imagina como estou feliz! — a mãe de continua exclamando, exultante. — Você é o...?
. — ele responde, esticando a mão para cumprimentá-la.
! — ela repete. — Que maravilha! Eu nem sabia que a estava namorando! — tenta protestar, mas ela está muito eufórica para ouvir. Enquanto isso, continua imóvel, tensa. se aproxima dela, mas ela se esquiva.
Quão ruim isso é?, ele se pergunta, com a mãe de tagarelando animadamente sobre um jantar em família no sábado.
— Eu esperei e desejei tanto esse momento, ! Já era hora, não é mesmo? Já era hora, querida! — ela puxa para outro abraço, aparentemente completamente alheia ao fato de que a filha está paralisada. começa a ficar apavorado. Por que está daquele jeito?
Depois do que parece uma eternidade, a mãe de vai embora, cem por cento certa de que ela e aparecerão para o jantar em família no sábado.

***


Depois de levar em casa, ainda no perturbador silêncio que se instalou depois do encontro com a mãe dela, tenta quebrar o gelo mandando por mensagem o link de um vídeo de cachorrinhos engraçados. No entanto, ela não responde.
Esperando que no dia seguinte as coisas estejam melhores, ele se despede e vai dormir.
Quando acorda, contudo, ainda não respondeu a mensagem. Uma sensação ruim começa a crescer em seu peito.
Essa não é . Não a que aprendeu a se sentir livre e segura com ele nos últimos meses. Não é a sua , a garota a quem ele está planejando pedir em namoro.
Sentindo-se agitado e ansioso, ele escova os dentes, veste a primeira camiseta que encontra (uma camiseta desbotada e apertada do time de basquete na faculdade) e sai de casa às pressas.
O porteiro do prédio de já o conhece, mesmo que ele nunca tenha subido, mas interfona para informar que está lá.
não pode ouvir o que ela diz do outro lado do fone, mas o olhar piedoso que o porteiro lança para ele já lhe dá calafrios. quer perguntar o que ela disse, quer perguntar o que está errado, precisa entender o que aconteceu.
O porteiro coloca o fone de volta no gancho e faz um sinal para esperar um pouco. O fato de que ele pareça tão desanimado só colabora com o desespero de .
Alguns minutos depois a porta se abre, revelando uma versão apática de . Vestida em um conjunto de moletom que não se parece muito com ela, os cabelos presos em um coque sobre a cabeça e os olhos avermelhados, ela é uma versão de si muito pior do que poderia imaginar.

***


Ela não consegue olhar para ele. está parado do lado de fora do prédio, separado dela pelas grades metálicas pintadas de preto. O porteiro finge não observar a cena, mas ela sabe que está atento a tudo.
Precisa ser breve. Por vários outros motivos, mas também porque não quer promover um espetáculo no edifício. Ainda está cedo, e as chances de algum vizinho presenciar são pequenas, mas ela não pode cogitar arriscar. Tudo isso já foi longe demais.
O porteiro destrava o portão, mas ela não o abre. também não. Mesmo que a expressão de desolação dele diga o contrário, ela percebe que ele já entendeu, mas não quer aceitar.
não sabe o que dizer. Tanta coisa passa por seu pensamento como um filme em alta velocidade. “Já era hora”, sua mãe dissera. Não. Não era. O que ela estava fazendo era errado, e isso era tudo. O fato de ter sua mãe jogando uma luz sobre ela tornara tudo mais claro.
Era um erro. E, por quanto mais tempo ela o prolongasse, pior seria. Seria imperdoável. Por si mesma, por Dave e pelo próprio .
— Eu não posso. — ela diz, cabisbaixa. Olhar nos olhos é doloroso demais. É um lembrete da grande besteira que se permitiu fazer.
— Pelo menos olhe para mim enquanto faz isso. — ele parece ler sua mente, no entanto. Quando ela ergue a cabeça para encará-lo, percebe que ele talvez seja um reflexo perfeito de como ela se sente. Os olhos dele estão marejados, mas ele se obriga a fechar a expressão e torná-la fria e dura como mármore. Ele já passou por isso. E ela está fazendo de novo.
— Eu não posso, . Sinto muito. — repete, sentindo os próprios olhos enchendo de lágrimas.
— E por quê? — ele pergunta, os olhos fixos no rosto dela. desvia o olhar.
Como pode explicar para ele tudo que aconteceu na cabeça dela desde a tarde anterior? Como pode narrar a dor da culpa lhe corroendo por dentro? Como pode descrever o sonho da noite anterior, mais vivo e real do que ela mesma?
Ela fecha os olhos e respira fundo.
Dave está lá. Sentado no banco do motorista, os olhos fixos na estrada, os músculos marcando alguns pontos da camisa azul que comprara para ele apenas uma semana antes. De repente não é mais Dave, mas dirigindo o carro. Ele parece uma montagem, vestido naquela camisa social que nunca o imaginaria usando.
Sentada no banco do carona, fecha os olhos, a ansiedade crescendo dentro dela junto ao pânico. Quando abre os olhos outra vez, Dave está lá de novo, mas agora ele a encara com os olhos cheios de lágrimas, ultrajado. Ela ouve o choro do bebê, seu bebê, no banco de trás. se vira para olhar o próprio filho, preso cuidadosamente à cadeirinha. Pelo menos ele está bem. Ela volta a olhar para a frente, apenas a tempo de ver que Dave é de novo, e que as luzes da carreta se aproximam novamente.
Parada em frente ao portão, a menos de um passo de distância de , ela quer desaparecer.
— Eu simplesmente não posso fazer isso, . — ela explica. — Achei que podia, mas não posso.
Ainda olhando-a fixamente, ele assente.
tem certeza de ver um lampejo do rosto de Dave no de , a tristeza compartilhada. Ela traíra a confiança de ambos.
Como uma piada cósmica, a porta do prédio se abre atrás de , e a vizinha do quarto andar sai com seu filho pequeno no colo, chorando aos berros. Seu marido, o pai do bebê, vem logo atrás dos dois, empurrando o carrinho azul e carregando um enorme brinquedo de montar.
Viajando com seu olhar entre a família deixando o edifício e , imóvel do outro lado, ela suspira e corre de volta para o prédio.

***


Desde o momento em que saíra de casa, mesmo sem qualquer explicação, ele já sabia o que aconteceria.
estava fugindo. Do mesmo jeito que Vicky, partindo às escondidas enquanto ele dormia.
Mas, dessa vez, ele não permitira. Não se permitira ser a vítima de novo. Não se permitira ficar às cegas enquanto outra pessoa decidia seu destino.
Tudo acontecera de um jeito ou de outro, mas, dessa vez, ele tinha enfrentado a despedida, mesmo que incompleta, escrita nas entrelinhas.
Eu simplesmente não posso fazer isso., ela dissera. Desde o começo e até agora, mesmo quando parecera que estava se divertindo, vivendo com leveza o romance ascendente dos dois, ela estava se forçando. Ela nunca quisera que as coisas se desenvolvessem, que o relacionamento evoluísse.
não é mais criança, mas a dor do coração partido o faz chorar enquanto dirige de volta para casa. Ele não vai aceitar ser a vítima de novo. Depois que descer do carro e enxugar suas lágrimas, não vai chorar de novo, não vai se fazer de idiota mais do que já é.
Ele permitira que fosse levado pela vida, pelas escolhas e vontades alheias. Vicky fora embora, ele não fizera nada. fora embora, ele não fizera nada. O que poderia fazer? Competir com o fantasma do romance perfeito, da família dos sonhos? Ele não seria capaz disso.
Quando estaciona em frente à sua casa, o carro de sua mãe está parado lá.
Ele suspira, já exausto pela conversa que ainda não teve.
Sempre contara tudo a ela. Nunca mentira, nunca omitira fatos, nunca desviara de perguntas. Mas, no momento, tudo que ele quer fazer é ligar o carro outra vez, e dirigir para longe. O mais longe que puder.
Notando sua chegada, sua mãe caminha animadamente até o carro, um sorriso alegre no rosto, que se desmonta quando vê os olhos marejados e vermelhos do filho.
Ele desce do carro e, antes que perceba, sua mãe o está puxando para um abraço.
— Quem é ela? — ela pergunta, baixinho. Ela vira. É claro que vira.
Era. — corrige. Como é possível que, em menos de vinte e quatro horas, tenha saído do status de andar de mãos dadas direto para o status de passado?
Afastando-se um pouco dele, a mãe de acaricia seu rosto com a típica sutileza maternal. sofre demais. Ser tão apaixonado pela vida tem suas consequências. A vida cobra por tanto amor.
Os dois se recolhem para o interior da casa e, como se ele fosse criança outra vez, recebe os cuidados da mãe durante o dia inteiro, até Owen chegar em casa e entender tudo com apenas um olhar.
Parece que todo mundo já devia saber o que aconteceria. também sabia, mas evitara aceitar. Mas não tem outra opção. está perdida, e não pode ser encontrada por qualquer outra pessoa além de si mesma.

***


fica parada do lado de fora do quarto, boquiaberta. À sua frente, está sentada no chão, dobrando cuidadosamente as peças de roupa e dividindo-as entre suas três malas vermelhas. Não tem muita coisa, mas as malas são relativamente pequenas.
— O que está acontecendo? — pergunta, os olhos fixos na cena que se desenrola em seu quarto. — ?
não responde. Ela sequer olha para enquanto continua dobrando e guardando suas roupas.
— Você terminou com o ? — ela pergunta. assente. — Você está indo embora? — assente outra vez, e isso é tudo.
não discute. Ela sequer cogita argumentar. Depois de dois anos, já perdeu a paciência. se recusa a esforçar-se por alguma melhora. O sofrimento é a penitência autoinfligida por ter sobrevivido ao acidente que levou embora as duas pessoas a quem dedicara sua própria vida.
Abnegação e lealdade sempre foram características fortes dela., pensa. Mas agora são veneno e a estão matando.
De repente compreende. Parte de — se não inteira — morrera com Dave e o bebê no acidente. Agora, não sabe como voltar a viver.
dá as costas e vai até a sala, onde se senta no sofá, apenas à espera. Em menos de quinze minutos, está passando pelo corredor com suas três malas cor de sangue.
— Me perdoa, . — ela diz, os olhos cheios de lágrimas, inchados por, provavelmente, ter chorado por muito mais tempo antes que chegasse.
se levanta e oferece tudo que ainda pode dar. Um abraço.
As lágrimas de deixam o ombro da camiseta cinza de molhada, um resquício que permanece lá por vários minutos depois que passa pela porta e vai embora.

***


As malas ficam com sua mãe enquanto ela pega a bicicleta azul e pedala até o escritório. As construções da cidade passam por ela como flashes multicoloridos em sua visão periférica.
As vozes e as cenas se misturam em sua cabeça, ecos vindo de todas as direções, comprimindo-a com violência.
Tudo que você tem, tudo que você é. Vão levar para longe, mesmo se você não quiser. Até que a morte nos separe. Ele morreu na hora, . Você acha que o Dave iria querer isso? Podemos jogar juntos, se você quiser. Eu esperei e desejei tanto esse momento, ! Até que a morte nos separe... morreu na hora... até que a morte nos separe.
É tarde demais para se ater à realidade quando ela ouve a buzina estridente.
Tudo que você tem, tudo que você é. Vão levar para longe, mesmo se você não quiser. Tudo que você é, tudo que você tem, as rodas falharão, sem olhar a quem. Tudo que você tem, tudo que você é, transportados para o além, para longe e até.
A voz se amplifica ao redor dela, soando de todas as direções. Tudo que você é, tudo que você tem, as rodas falharão, sem olhar a quem.
abre os olhos. A mulher do mercado está sentada logo à sua frente, em uma poltrona branca. Ela olha para com os olhos de ave e continua falando, repetindo sua sentença, impondo-a, forçando-a para dentro da mente de .
O barulho de eletricidade distrai da mulher sentada na poltrona. Ela procura o som, mas não sabe de onde vem. Quando está prestes a voltar a encarar a mulher na poltrona, vê, de soslaio, Dave correndo em sua direção. Ele chega até ela e mantém seus olhos fixos nela antes de abrir um sorriso e puxá-la para um abraço. Algo fica entre eles. abaixa a cabeça, para dar de cara com sua barriga protuberante, a promessa do bebê que ela não conheceu. Dave sorri, acariciando a barriga da esposa com gentileza e carinho.
fecha os olhos, aproveitando-se da sensação prazerosa de estar ali, com Dave, com seu filho, rodeada de segurança e amor. A mulher do mercado não importa mais. Nada mais importa.
. — a voz de Dave chama. Ela se recusa a abrir os olhos. — . — ele chama mais alto. Ela abre os olhos, incomodada. A proeminência em seu abdômen desapareceu, e Dave está a alguns passos de distância. — Por favor, . — os olhos dele escorrem lágrimas dolorosas.
Quero ficar com você, meu amor. Vou ficar com você., ela promete, sentindo os próprios olhos se enchendo de lágrimas. Dave está se afastando. Por favor, Dave, me leva com você., ela implora.
, você precisa voltar. Você precisa me deixar ir. — Dave diz, os olhos fitando-a com seriedade. — Por favor, . Você precisa voltar. — quando ele diz isso, a voz que passa entre seus lábios já não é mais a sua. É a voz de .

Epílogo

And it's not dark yet, but it's getting there
(E não está escuro ainda, mas está chegando lá)
Every nerve in my body is so naked and numb
(Todo nervo do meu corpo está exposto e entorpecido)
And it's not dark yet, but it's getting there
(E não está escuro ainda, mas está chegando lá)

Onze dias se passaram. já perdeu quase dez quilos, e as maçãs do rosto já estão marcadas na pele pálida. Ele está quase pior do que ela.
Há onze dias está deitada ali, imóvel, parecendo uma estátua de cera. Os traços delicados, a pele quase incolor.
Ela ainda não abriu os olhos, nem demonstrou qualquer sinal de que está lá.
Ele sabe que está viva apenas pelo movimento sutil de seu peito subindo e descendo com a respiração debilitada.
Ela tem quatro pontos do lado esquerdo da testa, e mais oito onde o ombro fora operado. Ele não pode ver, mas sabe que há alguns pontos em seu abdômen, onde o baço ferido tinha sido também operado. Além desses, dez pontos para fechar o ferimento que deixara sua tíbia exposta.
Outras contusões se espalham pelo corpo dela, que parece frágil e quebradiço.
segura a mão dela. Seu braço já está cansado de passar a maior parte dos dias esticado daquela maneira, seus dedos entrelaçados nos dedos gélidos dela.
— Eu estou aqui. — ele repete. Não sabe quantas vezes já disse isso nos últimos onze dias, mas continua dizendo. o mandara embora antes, e ele acatara sua vontade. Talvez, quando ela acordar, ela ordene definitivamente que ele a deixe em paz, e ele o fará novamente, mas, até isso acontecer, ele vai continuar lá. pode estar querendo desistir de si mesma, mas não está disposto a desistir.
É inacreditável, fantasioso, quase utópico, mas, em tão pouco tempo, ele a ama. Talvez tenha acontecido no momento em que seus lábios se encaixaram durante a câmera do beijo, ou quando eles se beijaram com gosto de sorvete. Talvez tenha acontecido da primeira vez que ela sorrira para ele, ou quando ela dissera que ele deveria beijá-la. Ele não sabe quando foi. Só sabe que aconteceu. Ele a ama, mesmo que isso pareça irresponsável e idiota. Mesmo que ele pareça irresponsável e idiota.
— Eu estou aqui. Não vou sair daqui até você voltar. — ele suspira, apertando a mão dela com força. — Por favor, . Você precisa voltar. — as lágrimas escorrem pelos olhos dele, descendo até o pescoço, até a camiseta azul.
De repente, o som dos aparelhos muda de frequência. dirige os olhos até o pequeno monitor quadrado acima da cama.
? — o coração dele bate mais forte. — ? — ele aperta sua mão com mais força. Como que por reação, os olhos dela se abrem, e correm direto para o rosto dele. Exultante, ele sorri.
Os lábios dela se esforçam no que vira um sorriso fraco. Seus olhos se enchem de lágrimas.
. — ela diz, sorrindo para ele.
— Você voltou.



Fim!



Nota da autora: Sem nota.



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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