Capítulo Único
Puxei todo o ar como se fosse me ajudar, muitas vezes ajudava, mas não sabia se ajudaria agora. Tenho ensaiado por esse momento parece que minha vida toda, no entanto, aqui e agora parece que nunca ensaiei na vida.
O teste de dança, não sabia por que ainda achava que eu tinha a chance de ganhar aquela bolsa de estudo. A forma como alguns professores, mestres, jurados me encaravam daquela mesa de júri me dizia claramente isso. O que eu tinha na cabeça pra vir até aqui fazê-los perder seu precioso tempo? Minha mãe responderia:
— Isso é o que sempre faz. Fazer os outros perderem seu tempo é seu maior talento.
E eu quase bufei por causa desse pensamento de merda, minha mãe fora a primeira pessoa que me ensinou como a vida pode te foder sem você sequer deixar. Uma advogada de sucesso, famosa e que gostava do status. O marido submisso que parecia mais um robô do que um pai ou até um marido. O filho mais novo perfeito, o inteligente que tirava boas notas e tinha a imagem de perfeição ambulante.
Claro que eu tinha dado errado, alguém sempre tem que ser a ovelha negra da família e esse cargo tinha sido dado a mim. Ah, e eu era mesmo um desastre. A que questionava de tudo, fazia o que EU queria, na hora que EU quisesse. O que era proibido eu fazia não ser mais, os limites impostos, eu ultrapassava.
Odiava limites. Odiava barreiras. Odiava prisões.
Liberdade, eu aprendi que, pra ter a liberdade, você tem que matar dragões. E eu os matava, um por um, dia por dia.
Please
Please, don't leave me be
Fecho meus olhos e levanto meus braços, deixando a melodia guiar meu corpo, cada nota erguer meus dedos, meus braços, e fazer minhas pernas se movimentarem. Giro meu corpo lentamente, passando meu braço esquerdo em meu ombro direito, deslizando meus dedos em meu pescoço nu. Escorrego vagarosamente para o chão, deixando meu corpo se roçar naquela madeira gelada em contraste com o fogo que existia em mim.
It's not true
Take me to the rooftop
Ergo meu tronco e abraço meus joelhos, uso os dedos dos pés para me girar novamente no chão e, quando dou a volta, deito meu tronco de novo, levantando meu quadril e o mexendo de um lado para o outro. Então o ergo mais ainda e apoio todo meu peso nos meus braços, erguendo meu corpo todo. Levanto minhas pernas para cima e fico de cabeça para baixo, deixando minhas pernas se movimentarem no ar, descendo lentamente a direita pela esquerda, até meu tornozelo direito chegar perto do meu joelho esquerdo. Então impulsiono minhas pernas para frente, deixando meus pés se fixarem no chão direito pra poder me levantar.
Told you not to worry
What do you want from me?
E eu me apaixonei. Sim, eu me apaixonei de verdade quando vi a maneira como ele queria me salvar. Gostava da maneira como ele queria que eu me sentisse amada, única e especial. Eu acreditei que ele largaria tudo por mim. Eu me entreguei de corpo e alma pra ele. Tão jovem, sem saber realmente como era ser amada, como era ser tão desejada daquele jeito. Minha vida sexual começou cedo demais por causa da rejeição que eu sentia em casa, eu buscava o afeto nos braços de outras pessoas. Mas, quando o sexo acabava, a solidão voltava a me abraçar. Então acabei sendo violentada com quinze anos por um professor que eu tinha praticamente tirado do sério.
E eu me culpei por isso, me culpei imensamente por isso. Acreditei que a culpa daquilo tinha sido minha. Minha família fez eu acreditar que a culpa era toda minha mesmo. E então engravidei daquele abuso, tive que tomar uma decisão pesada demais para uma garota de quinze anos. A deixei para adoção, mas decidi também que, a partir daquele momento, eu mesma montava minha vida.
Encontrei minha família numa boate, descobri o significado de amizade, de amor, de harmonia e proteção naquele lugar. Mesmo que o resto do mundo estivesse me julgando por isso. Perdi pessoas que diziam ser amigos só por puro preconceito que fui descobrir só depois. E, mesmo no meio disso tudo, consegui minha primeira liberdade. Sai de casa, comprei um apartamento e consegui adotar minha filha de volta com a ajuda da minha nova família. Não me importava o que fazíamos à noite, eu tirava a minha roupa desde muito jovem, agora eu tirava com um propósito.
Don't ask questions
Wait a minute
Odiava responder perguntas. Só eu sabia das minhas próprias merdas e eu mesma aprendi a resolvê-las sozinha. Mas eu respondi todas as perguntas dele, todas que ele tinha feito, todas que ele precisava saber. E ele as amou, ele amou poder tentar concertar a estragada. E ele tentou, céus, ele tentou arduamente. Ele me amou a cada segundo, cuidou de mim como ninguém jamais fez. Mas o problema dele era tentar arrumar o que não dava pra ser arrumado. O que nasceu estragado não se arruma, se estraga mais. Ele não podia simplesmente amar o errado? Parar de tentar deixar o errado certo. Ele não conseguiu e foi embora.
Ele simplesmente foi embora. Levando uma parte do meu coração com ele. Levando uma parte da minha vida com ele.
Don't you know I'm no good for you?
Baby, I don't feel so good
Sentia meu quadril sendo balançado de um lado para o outro naqueles movimentos de subir e descer, consegui sentir meu cabelo escorregar daquele coque mal preso e cair em meus ombros. Abracei meu próprio corpo e girei pelo palco, conseguindo dar não uma e sim duas cambalhotas no ar e cair no chão em pé para poder rodopiar no palco mais uma vez, sentindo que eu podia voar naquele momento. Era libertador poder jogar os dragões mortos naqueles passos. Porque era exatamente o que eu estava fazendo.
E, sempre que me abraçava daquela forma, eu sentia os bracinhos curtos e delicados da minha menininha, minha preciosidade. E ela era mesmo, desde jovem sendo julgada pela mãe que tinha e não demonstrava ficar abalada nem por um segundo. Ela me olhava como se eu fosse a sua princesa da Disney, sua super-heroína. E por ela eu era, por ela eu era tudo que ela precisava ter. Aprendi a amar de verdade com ela, aquilo era amor de verdade.
And all the good girls go to hell
Aprendi a amar mais uma pessoa além da minha filha, meu melhor amigo que embarcou numa doideira comigo. Aceitando se casar comigo apenas pra poder provar à justiça de que nós dois juntos poderíamos criar aquela garota pra ser o que o futuro precisava. Ele era o coreógrafo da boate, meu melhor amigo gay que me ensinou mais uma parte do amor e eu o amaria por toda minha vida. E obviamente que todas as boas garotas vão para o inferno. Não existiam boas garotas.
Giro meu corpo para frente, ficando frente a frente com os jurados, deslizando minhas mãos pela lateral do meu corpo inteiro, inclinando meu tronco para frente pra ajudar meus dedos a escorregarem pelas minhas pernas.
Bite my tongue, bide my time
What is it about them?
Mordo minha língua ao me ajoelhar ali na beirada do palco, girando minha cabeça e jogando meus cabelos para trás. Mas repetindo o movimento, até espalmar o chão e empurrar minhas pernas dobradas para trás, olhando para eles sem realmente olhar para eles. Meus olhos nublados por toda aquela chuva de lembranças me fizeram reviver minha vida toda praticamente. Até os piores momentos, os mais horríveis, o estupro, aquele monstro do passado voltando, os abandonos e tudo de ruim que já me aconteceu. Mas também me mostrando que as coisas boas que tinham me acontecido davam uma boa surra nas ruins.
E foi quando eu achei que minha vida estava completa, não tinha mais espaço para alguém entrar e conquistar minha confiança fodida, que a vida me mostrou que eu estava errada mais uma vez.
I’m the bad guy.
E eu era mesmo a vilã. Mas não pra ele. Nunca pra ele. Descobri que a forma como ele me olhava era a forma certa de ser olhada. Aquele olhar que você nem precisava falar nada, ele previa minhas palavras apenas em olhar pra mim. Nunca pensei que existisse mesmo essas pessoas que pudessem te ler melhor do que você mesma. Aquela pessoa que conhece seus demônios, um por um, e sabe exorcizá-los no momento certo, sem muito esforço. E a forma como ele era aquela estrada estreita, cheia de perigos, aquele caminho que todos te dizem pra não fazer porque pode ser que você nunca mais volte, ele era tudo isso, essa forma que parecia ser a resposta sem uma resposta mesmo pra mim. E eu não me importava de não voltar mais daquela estrada e até dirigiria por ela vendada se fosse preciso. Ele era uma queda livre. A queda era fatal, mas a trajetória não.
Levantei do chão como todas as vezes que me levantei com cada rasteira da minha própria vida, me levantei com a sensualidade que eu sempre usava. Caminhei pelo palco, usando meus braços para expressar aquele momento final da música, onde pude dar uma estrela no chão e parar de costas para eles, permitindo meus dedos passar em meu cabelo, o puxando todo para um lado do ombro. Então viro minha cabeça e a abaixo até meu queixo encostar em meu ombros, fechando meus olhos quando a música acaba.
— , certo? — volto para a frente, assentindo com a cabeça para a pergunta daquela mulher que me olhava, depois fazia umas anotações.
— Você tem talento. — um outro homem ali daquela mesa disse. Sorri fechado para ele e murmurei um “obrigada”.
Eles começaram a cochichar entre eles, pareciam bravos, pareciam controversos e confusos. Abaixei a cabeça e senti minhas mãos trêmulas, as segurei firmemente como se aquilo fosse ajudar, mas não ajudou. Minha respiração começou a falhar, meu coração começou a bater forte daquela forma que machucava. Parecia faltar ar no meu pulmão, por mais que eu sentisse meu peito ir e vir depressa, com força e desespero, buscando por ar.
— Aqui não é lugar para uma stripper. — ouvi nitidamente aquilo e soltei o ar que eu mal tinha, fechei meus olhos e forcei minhas pálpebras, puxando o ar pelo nariz e soltando pela boca como um exercício para me acalmar. Pra me segurar e não mandar eles enfiarem o preconceito e o julgamento deles no cu, porque essa foi a vontade também. Mas eu não era mais aquela adolescente explosiva.
Aliás, adeus ao passado, era grata por ele e sempre seria. Mas adeus.
— Chegamos a conclusão, não fora uma decisão fácil. Não estamos todos de acordo com ela. — a mesma mulher de antes começou a falar, tive que abrir meus olhos pra olhá-la, já sabendo qual resposta seria. — Infelizmente sua aquisição para entrar na nossa escola foi negada. E, como eu disse, não fora um voto que todos concordaram, mas sou obrigada a seguir essa lei.
Balancei a cabeça em aceitação, não me importando mesmo com aquele resultado. Eu tinha conseguido o que eu realmente queria ali.
— Na verdade, eu consegui minha aceitação, sim, nesse palco. De alguma forma que eu não consigo explicar. — sorri de lado, olhando para o palco. — E é o que sempre buscamos na nossa vida: Aceitação e liberdade. Eu tenho as duas coisas. E isso me faz completa.
Abri mais um pouquinho o sorriso para ela, fazendo uma reverência clássica de total agradecimento pela oportunidade e, quando levantei novamente, meu sorriso se abriu ainda mais com o que meus olhos viram. A estrada perigosa me esperava, o caminho sem voltas. E ele sorria para mim. Um sorriso que valia mais que a aceitação daqueles estranhos. Desci do palco e corri pelo corredor lateral, não me importando de ir pro camarim tirar o collant preto. Ouvi eles me chamarem em tom de “não é por aí que sai”, mas não liguei, não me importei. Eu só precisava abraçá-lo.
Muitas vezes um caminho sem volta é o que precisamos.
E quando o achamos devemos seguir.
Muitas vezes o freio não serve para nos proteger e sim para nos impedir de continuar.
Goodbye.
Fim.
Nota da autora: Olaaaa, lindezas! Espero que tenham curtido, eu sou maluca por essa personagem minha. Ela é minha neném de um RPG e eu queria agradecer as migas que me ajudaram a construir o que ela é, o que ela se tornou. Amo vocês, manas (Saby, Rapha)! Críticas construtivas sempre serão bem-vindas!
Nota da beta: Eu quero mais dessa personagem na minha mesa agora! Que viagem deliciosa pelos pensamentos e sentimentos dela eu tive ao ler essa história. Lindo como você conseguiu juntar o background da audição de dança com as reflexões da sobre a vida dela até então. Fiquei arrepiada. E esse final, então? Maravilhoso. Fiquei com vontade de guardar ela num potinho, espero que essa "estrada perigosa" faça isso por mim e cuide muito bem dela hahahaha <3
Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Nota da beta: Eu quero mais dessa personagem na minha mesa agora! Que viagem deliciosa pelos pensamentos e sentimentos dela eu tive ao ler essa história. Lindo como você conseguiu juntar o background da audição de dança com as reflexões da sobre a vida dela até então. Fiquei arrepiada. E esse final, então? Maravilhoso. Fiquei com vontade de guardar ela num potinho, espero que essa "estrada perigosa" faça isso por mim e cuide muito bem dela hahahaha <3