Capítulo Único
“Que um mundo de vilezas e desigualdades seja uma realidade aceitável e presente, e que um mundo justo e fraterno seja uma realidade distante e utópica é o maior atestado da incompetência, do egoísmo, da fraqueza e da mísera evolução humana” - Augusto Branco
Eu, modéstia parte, era ótimo na parte médica da questão. Com nove anos de formado na faculdade de medicina, tinha um consultório próprio, onde atendia, sob altos valores, mulheres, homens e crianças desesperados por uma cirurgia plástica. Seios, nariz, barriga, lipoaspiração e outras não tão comuns, que ficavam perfeitas.
Também trabalhava no hospital particular Ermênio Gardez, localizado na zona sul do Rio de Janeiro, grande organizador desse evento. No hospital, eu tinha as salas para as cirurgias de meus pacientes particulares e, uma vez por semana, eu fazia cirúrgicas plásticas por conta de acidentes, cirurgias malfeitas, crimes, pagas pelo plano de saúde ou terceiros.
E havia a parte administrativa, como chefe do setor de cirurgia plástica do referido hospital. Já nessa parte... bem, eu a suportava. E, em algumas ocasiões, como agora, nem isso.
Estávamos todos de diferentes setores do hospital presentes com seus melhores ternos e vestidos. Mas os personagens principais, ah, esses eram de fora, com um tipo fixo. Empresários, que detinham milhões nos bancos e alguns milhares em seus pulsos e pescoços. Diferentes ramos, nacionalidades e línguas nativas, mas todos dispostos a escutarem a proposta do hospital e, de quebra, aproveitarem a deliciosa comida e bebida grátis.
Uma moça de cabelos loiros subiu ao palco e aproximou-se do microfone. Vestia um longo vestido preto, que marcava suas curvas sublimemente e parecia desajeitada em seu salto alto.
Ela pigarreou para chamar atenção, mas tal não era necessário. Todos, homens e mulheres, tão diferentes entre si, já olhavam para ela. Não porque estivesse algo errado com ela, ou porque ela era bela demais. Não. Ela, apesar de visivelmente desconfortável, demonstrava uma posse e segurança absurda. E, apesar de linda e gostosa, não era nada de outro mundo.
Não, era outra coisa. Sua postura, sua presença. Seu jeito de andar e de ficar parada. Seu rosto complacente e concentrado, mas ao mesmo tempo tão carismático.
- Boa noite. Sou . Como todos já devem saber, estou aqui hoje para fazer um pedido a vocês. Todavia, é além disso. Estou aqui para mostrar como podemos tornar o melhor de nós mesmos.
A mulher pausou por alguns instantes. Com sua fala cadenciada e firme, as entonações corretas, bastou aquelas três frases para o silêncio absoluto preencher o local. Todos olhavam para ela.
- Vamos começar com uma pequena brincadeira. - ela continuou - Quero que vocês pensem a última vez que tiveram dificuldade em marcar um médico. - interrompeu-se por três segundos - Em agendar um exame. Em fazer uma cirurgia. - passou seu olhar a todos da sala, como se desvendasse cada um - A última vez que vocês se sentiram mal e não fizeram nada, porque não tinham a quem recorrer.
tirou microfone do suporte e começou a andar de um lado para o outro, vagarosamente. Qualquer problema que ela tivesse com o salto parecia mais que solucionado. Seus passos seguros e sua cabeça erguida não deixavam espaço para qualquer outra coisa.
Ela esperou. Esperou que as pessoas ali pensassem. E, não sei se fez efeito em todos, mas certamente eu fui afetado. De repente, me lembrei que consigo marcar médicos de emergência facilmente, que meus contatos permitem que a minha saúde esteja sempre protegida. E, antes mesmo deu fazer medicina, eu sempre tive acesso aos melhores tratamentos, medicamentos e especialistas.
Na realidade, nunca me faltou nada. Nem saúde, nem educação, nem comida, nem lazer. Eu podia ir ao cinema e então a balada e as aulas e a praia e não precisava me preocupar com o almoço do dia seguinte. Ou com pagar as contas ao fim do mês.
- Faço trabalho voluntário. - recomeçou, forçando-me a encará-la - Ajudo em centros de reabilitação, em orfanatos, em abrigos para moradores de rua e idosos, em hospitais públicos, em instituições de caridade. Convivo diariamente com pessoas que não tem nada. Conheço muitos deles. Suas histórias, suas batalhas. Muitos poderiam falar que suas posses se resumem a sua roupa de corpo e um cobertor. Mas, muitos não entendem que eles têm mais do que isso. Que ter vai muito além de questões financeiras. - ela exibiu um pequeno sorriso de lado - Eles têm sorriso. Eles têm força de vontade. Eles têm uma felicidade por gestos tão simples. - suspirou - Perdemos essas qualidades quando temos tudo. Perdemos a beleza da vida. Não quero que eles também a percam, e por tão pouco.
Eu jurei ter ouvido suspiros e respirações forçadas. Podia ver alguns olhares brilhando de onde estava. E não devia estar em situação muito melhor. Ele retira o que disse, era de outro mundo. Não pela beleza, mas por algo que transmite. Em seu discurso tão eloquente, sem cola alguma na mão, ela pareceu ser tão sincera. Como se cada palavra dita fosse à verdade de seus sentimentos.
- O hospital Ermênio Gardez, representado pela diretora geral Dra. Erika Sanches, me convidou para explicar que podemos proteger a beleza da vida. Podemos ajudar essas pessoas, tão ricas de espírito, mas necessitadas de tratamento médico. - agora, adquirira um tom mais prático e direto - Dia 07 de abril, dia mundial da saúde, o hospital abrirá as portas para eles. Para qualquer um que precisar. E tudo que pedimos é a ajuda de vocês, para que possamos ajudar um maior número de pessoas possíveis. Os médicos e enfermeiros trabalharão de graça, os materiais médicos, infelizmente, tem altos custos. A solidariedade, acreditamos, é a maior arma contra a desigualdade e a dor. Nos ajudem a tornar esse sonho realidade. - deu um novo sorriso e meneou a cabeça, finalizando seu discurso - Agradeço a presença de todos.
As pessoas necessitaram de alguns instantes para assimilar o poder da fala daquela mulher e o silêncio inundou o local. Mas, logo, uma forte salva de aplausos o abasteceu, juntamente com muitos sorrisos.
É, ao que parece, o hospital conseguirá patrocínio.
Duas horas mais tarde, me dei ao luxo de finalizar a noite e entrei em um taxi. A música lenta tocava e, lá fora, a chuva de madrugada caia.
Eu reparei. Pela primeira vez, eu realmente reparei.
Veja bem, em uma cidade como o Rio de Janeiro, a desigualdade está estampada nas ruas. Alguns com muito, muitos com tão pouco. Há moradores de rua, mulheres, jovens, velhos, crianças nos cantos das calçadas. E, claro, eu já passei por uma dessas calçadas. Mas nunca prestei atenção. Não de verdade. Eu só acelerava o passo, querendo me distanciar o mais rápido possível.
Foi a primeira vez que olhei. Que vi casais, famílias, solitários, enrolados no cobertor, a procura de uma cobertura para a chuva. Seus corpos marcados, seus rostos cansados. Em tudo além do superficial. Do que eles já foram, do que são, do que virão a ser. Seu passado, seu futuro. Suas chances, suas oportunidades.
E os que têm um teto, mas nada mais? E os que têm um teto hoje, mas amanhã jamais?
- Pare um momento aqui, por favor.
- Senhor, ainda está distante do endereço que você me deu – o motorista estranhou.
- Sim. Se você me der um minuto – saltei do carro, mal deixando ele questionar.
Caminhei até a lanchonete 24 horas em frente, comprei três salgados, uma água e um suco engarrafado. Então, caminhei alguns passos até um cantinho, onde uma moça estava com seu filho de colo.
- Estão com fome? - perguntei, estendendo o que tinha acabado de comprar – Aqui, pra vocês.
- Obrigada, moço. Obrigada mesmo. - ela esboçou um sorrisão de felicidade – Ele não come desde manhã cedo.
- Aproveite, então, menino – eu comentei, mexendo no cabelo do garoto, que riu em resposta. Então, virei para a mãe novamente – Sabe aquele hospital grandão, a umas duas quadras daqui? Leve ele lá, dia 07 de abril. Podemos fazer um checape completo nele e em você.
E, quando eu havia conversado com minutos antes, não tinha entendido muito bem o que ela tinha me falado. Mas, enquanto me afastava e entrava no táxi novamente, observando a simplicidade, a felicidade e a humildade daquela família, eu finalmente compreendi.
- Como você é tão boa em discursos? - eu havia perguntado a ela, assim que fomos apresentados, logo após ela encantar todos os patrocinadores.
- Não sou. Sou péssima. - ela sorriu para mim. E, digamos que ela cativa não somente com as palavras. - Fico nervosa, gaguejo, esqueço o que devo dizer. Tive sérios problemas na faculdade.
- Não foi isso que acabei de ver! - retruquei - Não só foi forte e bonito, como convincente, também. O hospital agradece. - brinquei, embora, ao fundo, fosse a mais pura verdade – Como você conseguiu, então? - inquiri, curioso – Qual o truque?
- Não há truque ou fórmula. Foi bem simples, na verdade. - tocou meu braço e sorriu, antes de completar – Eu falei do coração.
*
Olhando para aquele mundo de gente, cuja fila desaparecia no horizonte, eu me lembrei dos tempos da minha residência médica. Em um famoso hospital da rede pública de atendimento, que recebia um dos maiores repasses do governo federal e era referência em todo o estado, nossos dias eram basicamente assim. Muitos pacientes, poucos médicos, enfermeiros e materiais.
Não me entendam mal, aqueles eram bons tempos do SUS. As coisas funcionavam. Não porque o governo ajudava, claro. Havia burocracias desnecessárias, ordens desconexas e realmente muita, muita gente. Mas, entre improvisos e experiência, ao fim, as coisas eram boas ali.
De algum jeito, hoje, 7 de abril, também era um bom dia. As pessoas estavam enfrentando uma espera de quase duas horas para uma triagem, mas, durante todo o tempo, exibem sorrisos.
A equipe também sorria. Todos estavam ali, principalmente os que não eram da emergência, reforçando a mão-de-obra. Eu, inclusive, voltando a fazer simples suturas e ultrassons. Em alguns casos, também ouvir reclamações.
- Não quero isso aí não, Doutor – um velho senhor, de cabeça branca e andar difícil, resmungou para mim. Ele cheirava como se precisasse de um banho. - Morrer é melhor. Tá chegando a minha hora.
Em um rápido exame, eu constatei que não passava de um drama. Ele tinha uma ferida na perna que, pela sujeira, havia infeccionado. Mas, as pessoas pararam de morrer de infecção há duzentos anos.
Bem, ao menos é isso que aprendemos na faculdade. Talvez não fosse exatamente verdade, não para milhares de pessoas, a margem da sociedade. Afinal, o que poderia acontecer com aquele senhor, se, mesmo a contragosto, não tivesse aparecido aqui?
- Como você fez isso, senhor? - perguntei, fazendo a limpeza do local. Para a infecção em si, bastava uma boa limpeza e um antibiótico. Mas me preocupava o machucado. Dependendo da razão, como uma tontura ou desiquilíbrio, aquela ferida poderia ser consequência de algo muito mais grave: esclerose múltipla, AVC ou tumor.
- Doutor, você não entende – o velho bufou, finalmente desistindo de resistir ao tratamento – Eu moro na rua. E é uma vida complicada. Eu me machuco todos os dias. E, quando não faço por descuido, outros me machucam.
Eu o encarei por alguns instantes, tentando absorver toda a profundidade de suas palavras. Falhei miseravelmente.
Talvez, eu realmente não entenda.
Então, restou-me terminar o curativo em silêncio.
*
Eu recebi outra sacudida horas depois. Uma mulher, bastante jovem, sentou no leito, reclamando de dores na barriga. Ao levantar a blusa, eu pude ver alguns hematomas em sua pele, arroxeando. Não pude deixar de perceber que havia outros, já amarelados, em seus braços e pescoço.
Ela estava assustada. Arredia. Quando eu estendi minha mão enluvada para tocar os ferimentos, ela quase pulou em resposta. Quando passei a pomada para dor, ela estremeceu.
Sempre escutei casos como esse. Estudei sobre os detalhes, como reconhecer. Sabia que existia. Mas nunca estive em frente a um. E, sinceramente, não sabia o que fazer.
No começo, ela disse que caíra da escada. Uma típica desculpa. Então, aos poucos, eu fui introduzindo perguntas, confortando-a, tentando-a fazê-la confiar em mim. Até que, entre pedidos para não contar para ninguém, ela me contou que fora o marido.
- Mas ele... ele estava bêbado e bravo comigo, porque eu... eu realmente fui desrespeitosa e ele... - ela suspirou profundamente, as lágrimas caindo de seu rosto sofrido – Foi à única vez e ele já se desculpou. E ele não vai fazer mais isso, já prometeu.
Eu sabia que não era a primeira vez e, provavelmente, não era a única.
- Por que você não o larga? Não o deixe fazer isso com você! - eu soltei, o julgamento em meu tom de voz.
Ela somente meneou a cabeça negativamente, o choro escorrendo, todo seu corpo tremendo. Eu sabia que eu com raiva não ajudava em nada. Todavia, eu simplesmente não entendia. Como uma mulher pode se sujeitar a isso?
- O juramento que eu fiz me obriga a chamar a polícia em casos assim. Eu preciso de seu endereço completo e do nome do seu marido, por favor.
- Não! Não! Não, por favor, não! - ela pulou da cama e me agarrou, desesperada, suplicando.
- Eu prometo que ele terá o que merece. Que responderá pelo que fez a você. - tentei confortá-la, mas de nada adiantou.
- Você não pode fazer isso, por favor. Eu tenho três filhos, um de 3, um de 4 e um de 7. Eu nunca estudei. Nunca trabalhei. É ele que sustenta minha casa, meus filhos. Eu não posso... - ela respirou profundamente, tentando lutar contra as lágrimas e argumentar – Por favor, eu dependo dele. Com ele é ruim, sim, mas minhas crianças estão no colégio e fazendo judô e podem ser alguém na vida... Sem ele, vai ser pior. Não vamos ter onde morar, não vamos ter dinheiro pra comer. Por favor...
E eu entendi.
Entendi que havia tanto em jogo. Que não era preguiça ou submissão simplesmente que a mantinham naquela situação de violência doméstica. Que era muito mais profundo. Filhos, futuro, sobrevivência.
E quem era eu, um homem rico que sempre teve tudo na vida, para lhe impor o que eu achava que era melhor para a vida dela?
*
Eu estava em minha pausa, tomando um café forte para me manter acordado. Até que a vi.
A enfermeira já designava um outro médico qualquer, quando eu interferi e disse que cuidava daquilo. Então, sorriu para mim. Ao seu lado, segurando fortemente sua mão, estava um pequeno menino abatido.
- Então, rapaz, o que te traz aqui?
Já sentado na maca, ele exibiu um sorriso atrevido, mas manteve-se calado.
- Ele está com febre, tossindo muito, dificuldade de respirar. - respondeu por ele - Me falaram que ele já está assim há cinco dias.
- Quem falou, os pais? - comecei o exame - Respire pra mim. De novo.
- Não tenho papai. - exclamou o menino.
- Bem, ele não tem nenhum dos pais e fugiu do orfanato. Está vivendo na rua há alguns dias. Alguns moradores de rua ficaram preocupados com ele e me chamaram.
Eu continuei os exames quieto, embora minha garganta coçasse para questionar. O garoto não tinha mais de 7 anos. Franzino, tinha somente o sorriso. Como que uma criança vivia na rua, sem nada, nem ninguém? Como deixavam – orfanato, parentes, governo – aquilo acontecer?
Hoje, felizmente, ele só tinha uma pneumonia. Grave, sem o devido tratamento. No entanto, poderia ser muito pior. Doenças, violências, privações.
Depois de mandá-lo para a nebulização, eu chamei a fim de uma conversa particular sobre o órfão.
- Ele teve muita sorte. De ter você, de conseguir um atendimento. Mas ele precisa de cuidados, . Ele não pode morar na rua!
- Você acha que eu não sei disso? - ela retrucou, irônica, a raiva transbordando em seu tom. - Eu luto contra isso todo dia. E, se você quer saber, eu vou levá-lo para casa para cuidar dele, mas uma hora ele vai ter que voltar ao sistema. Ou as ruas. - Suspirou – Ele não é o único, .
Eu a encarei. Primeiro, porque escutar meu nome de seus lábios, mesmo tomar conhecimento de que ela se lembrava dele, trouxe-me uma sensação maravilhosa no peito. Segundo, porque o que ela me dizia, por mais óbvio que fosse, me atingiu como nunca.
- Afinal, por que ele não está no orfanato? - ora, não há como salvar todas as crianças do mundo. Orfanatos, dúzias deles, talvez sim.
- Você nunca foi a um, certo? – ela exclamou, bufando.
*
Na semana seguinte, eu estava ligando para antes mesmo que eu percebesse o que estava fazendo. Durante aqueles dias, a experiência com o mutirão e o discurso dela ecoavam em minha mente.
Eu queria conhecer suas vivências, entender o outro lado. E, quando ela me convenceu a ir de ônibus para o seu local de ajuda de hoje, eu entendi que o outro lado não era tão fácil como o meu. Nem tão luxuoso ou confortável.
Apertado entre as pessoas, eu podia ver o discurso de materializado. Os olhos brilhantes, o sorriso nos rostos cansados.
Muitos minutos depois, ela me explicou, enquanto saltávamos, que hoje ela daria jantar na Igreja para os moradores de rua. Eu não era nada religioso e tampouco parecia, mas enquanto caminhávamos até o refeitório, ela cumprimentou todos de lá.
O prato de hoje era uma sopa e ela assumiu uma das grandes panelas. Não sem antes cobrir seu cabelo e sua mão e sorrir para mim.
A cada prato que ela servia, ela conversava um pouco com a pessoa do outro lado. Eu não saberia dizer exatamente o que, diante da distância, mas cada um deles saia com um sorriso no rosto. Mais tarde, quando comentei isso com ela, disse que era pela comida quente que tinham acabado de receber. Mas eu sabia que não era somente isso.
Não pude aguentar meia hora. Eu via pouco a pouco pessoas tão simples dando pequenos passos para ganhar tão pouco. E, quando chegavam à mesa, ainda eram capazes de dividir. Um espaço no banco, um pedaço de pão.
Sinceramente, me fazia me sentir meio tolo. Por ter tudo e reclamar. E não ver. E gastar e jogar fora e esquecer.
Eu levantei e pedi um kit e uma concha. Também iria servir.
*
Eu mudei.
Não foi de repente. Tampouco posso apontar um momento exato que tudo pareceu se iluminar. Não. O processo, como geralmente costuma ser, foi longo. Pouco a pouco, entre conversas e ajudas, eu fui aprendendo.
Mas, ao mesmo tempo, foi rápido. De repente, lá estava eu, totalmente envolvido naquele mundo. Não conseguindo mais não pensar nele.
Depois do décimo quinto, eu perdi as contas de quantas vezes me dediquei a ajudar os outros. E, realmente, no que adianta contar?
Fui a orfanatos, casas de repouso, hospitais, ruas. Conheci pessoas tão diferentes, que sofreram tanto. Que não tem nada, mas ao mesmo tempo tem tudo: o sorriso, a esperança. Conheci gente descrente, infeliz com a vida. Gente que me xingou, que ameaçou me bater, também. Mas, eu talvez fosse exatamente igual se a vida tivesse batido tanto em mim assim.
Cada um, cada minuto, valeu a pena.
E ter ao meu lado, digamos, fez tudo ainda melhor. O processo de auto-descobrimento, de tornar-me uma pessoa melhor, me fez me aproximar dela. Ela me guiou por esse caminho. E, entre explicações e risadas, conheci um pouco dela.
De sua família rica e corrupta, que perdeu tudo quando ela era uma adolescente. Das dificuldades que passaram ao tentar bancar a imagem. No sofrimento por coisas bobas: uma viagem pra Disney que não poderia fazer, uma mochila caríssima que não podia comprar. E como, aos poucos, ela mudou. Entendeu. Olhou para além de seu nariz e suas roupas de marca.
E, bem, conviver com e não se apaixonar, lhes digo, é impossível.
Mas, até duas semanas atrás, nada passava de olhares apaixonados da minha parte e sorrisos brilhantes dela. Fomos ao nosso bar (que, por sinal, apelidamos assim porque, de alguma maneira, sempre parávamos ali) e bebemos algumas cervejas. Talvez muitas.
Eu estava tão feliz por contar-lhe que o hospital em que trabalhava iria fazer outro dia de multirão, mais cedo do que o imaginado. E, inclusive, que já estava com uma campanha para arrecadar o máximo de alimentos, itens de higiene e brinquedos entre os pacientes, para futura doação.
E, quem diria, quem coordenava tudo aquilo, era eu. Logo eu, que mal podia enxergar dois passos além de mim, meses atrás. Eu que, agora, doava grande parte de meu lucro no consultório particular para instituições de caridade.
Bebemos até que a bebida atingiu nosso (in) consciente. Então, nos beijamos. Agarramos-nos no canto escuro do bar, como dois adolescentes com hormônios a flor da pele. E, como num clichê, no dia seguinte, fingimos que nada aconteceu.
Exceto que minha mente cismava em repassar aquelas cenas, meu corpo pulsava para sentir os toques dela novamente e meu coração doía com a distância.
Então, eu decidi que não lutaria contra meus sentimentos. Que não ficaria com medo de estragar nossa amizade. Que não deixaria a insegurança me bater. Afinal, isso não é uma comédia romântica e eu já passei dos meus trinta anos.
Podem me chamar de cafona, se quiser, mas há alguns dias vinha planejando uma surpresa para ela. Com ajuda de muita gente. É aquilo, quando você está ali quando eles precisam, o contrário também acontece. Mesmo nas coisas mais comuns (e complicadas) da vida.
Quando o dia, hoje, finalmente chegara, no entanto, eu não podia me aguentar de ansiedade e nervosismo. Na porta do orfanato, em sua calça jeans e sorriso simples, pude ver que ela pensava que era um dia como qualquer outro. Parte da nossa rotina: nos encontramos, ajudamos quem precisa e, com sorte, bebemos umas cervejas depois. Sem beijos na parede e definitivamente sem pedidos de namoro.
Bem, spoiler.
Eu tentei sorrir e agir normalmente, mas suava, e tampouco o calor absurdo doRio Hell de Janeiro era culpado. Minha barriga remexia-se e minha cabeça cismava em pensar em mil situações diferentes, as piores possíveis.
Entramos no orfanato e cumprimentamos todos lá dentro. Sara, uma menininha de dois anos e cachinhos correu até mim, com um sorriso atrevido no rosto, e agarrou minhas pernas. Eu a puxei para meu colo e lhe dei um beijo molhado na bochecha.
- Parece que nosso galã está deixando corações apaixonados – comentou, enquanto Sara limpava com nojo sua bochecha marcada.
Eu sorri para ela, compartilhando de sua brincadeira.
Todos ali me chamavam de galã, tirando sarro de mim. Tudo porque, em meu primeiro dia, quando eu era nada mais do que um novato, eu apareci com uma calça cáqui e uma blusa social, além de um cabelo bem escovado. Qualquer um que já cuidou e brincou com mais de três crianças ao mesmo tempo sabe que é, definitivamente, a roupa errada.
A postura não durou nem cinco minutos, mas o apelido, ah, esse parecia que seria para sempre.
- Eu que estou me apaixonando por essa menininha linda aqui. – respondi, fazendo cosquinhas na barriga de Sara e ouvindo-a esguichar-se em risos.
Apesar do tom de brincadeira, não era mentira. Não me entenda mal, todas as crianças são bem diferentes entre si e cada uma delas consegue te encantar. As sorridentes, com uma brincadeira qualquer; os mais carentes, quando você mostra o quanto se importa; os emburrados, quando você os conquista. Todas elas são especiais e, apesar de tudo que já sofreram, preservam uma pureza e uma alegria que só uma criança pode ter.
Mas Sara... Sara é meu xodó. Grudou em mim logo no primeiro dia. Sorria e balançava seus cachos. Me chamou para tomar refresco com suas bonecas. Me mostrou os desenhos que fez de sua antiga casa. Mais do que isso, todavia. Deixou-me conhecê-la e amá-la, mais do que qualquer um.
Márcia, responsável pelo orfanato, piscou para mim, tirando-me do meu devaneio. Deixei Sara no chão e assenti, confirmando que era o momento e ela foi chamar as crianças.
Eu respirei fundo e, de repente, o medo aflorou e minha garganta parecia ter fechado. Mas, bem, eu precisava continuar.
- . – a chamei, pegando sua mão delicadamente.
Ela encarou-me, os olhos de falcão tentando capturar o que eu estava escondendo. Ainda, vislumbrou o ambiente e, tenho certeza, notou a movimentação estranha.
- . – optou-se por manter suas questões para si.
- Alguns dias atrás, com algum álcool nas veias, nos beijamos. – eu comecei, limpando a garganta e tentando ganhar alguns segundos (e alguma coragem) com isso – Não falamos mais sobre isso, mas não paro de pensar em beijá-la novamente. Tocá-la. Fazê-la sorrir uma vez mais.
“Antes mesmo disso acontecer, eu já pensava em você. Queria você como mais do que amiga. Desde o primeiro momento que te vi, no palco, desajeitada com seus saltos, mas tão convicta em suas palavras... desde lá, eu venho me apaixonando por você.
O que você fez por mim... como abriu meus olhos para o mundo real, como me mostrou verdades da vida, as desigualdades, as desilusões e os sofrimentos... Você mudou minha história, meu eu. E, hoje, eu quero mudar a história de tanta gente, como você faz sempre. Sobretudo, eu quero mudar a sua, quero fazê-la feliz”.
Como se tivéssemos ensaiado mil vezes e não somente uma, no exato momento que terminei minha declaração, as crianças começaram a cantar “Fico Assim Sem Você”.
Avião sem asa, fogueira sem brasa
Sou eu assim sem você
Futebol sem bola. Piu-Piu sem Frajola
Sou eu assim sem você
, que até então me encarava sem palavras, olhou para aqueles pequenos seres, de poucos meses de vida até 14 anos, cantando com toda a vontade do mundo. Alguns confundindo a letra, outros sem conhecer o ritmo, mas todos muito empolgados e felizes por ajudar.
Vi seus olhos brilharem pela emoção e, quando um sorriso bobo abriu em seu rosto, meu coração quase parou.
Ela me abraçou pela cintura e pousou sua cabeça em meu ombro. A abracei também, meu corpo todo se esquentando só por senti-la perto de mim.
Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio tá de mal comigo, por que?...por que?...
- Obrigada por isso, . – ela sorriu para mim, assim que a música acabou. Então, fez o que eu ansiava há semanas: beijou-me.
Foi um beijo casto, na frente das crianças e dos funcionários, mas foi o melhor da minha vida. Porque ele guardava tanto significado. Ele dizia seu sim de meu pedido de namoro silencioso. Ele retribuía em ação tudo o que eu dissera em palavras. Ele abria o coração dela para mim, assim como eu havia entregado o meu coração a ela.
As I turn up the collar on
My favorite winter coat
This wind is blowing my mind
I see the kids in the streets
With not enough to eat
Who am I to be blind
Pretending not to see their needs?
Eu, modéstia parte, era ótimo na parte médica da questão. Com nove anos de formado na faculdade de medicina, tinha um consultório próprio, onde atendia, sob altos valores, mulheres, homens e crianças desesperados por uma cirurgia plástica. Seios, nariz, barriga, lipoaspiração e outras não tão comuns, que ficavam perfeitas.
Também trabalhava no hospital particular Ermênio Gardez, localizado na zona sul do Rio de Janeiro, grande organizador desse evento. No hospital, eu tinha as salas para as cirurgias de meus pacientes particulares e, uma vez por semana, eu fazia cirúrgicas plásticas por conta de acidentes, cirurgias malfeitas, crimes, pagas pelo plano de saúde ou terceiros.
E havia a parte administrativa, como chefe do setor de cirurgia plástica do referido hospital. Já nessa parte... bem, eu a suportava. E, em algumas ocasiões, como agora, nem isso.
Estávamos todos de diferentes setores do hospital presentes com seus melhores ternos e vestidos. Mas os personagens principais, ah, esses eram de fora, com um tipo fixo. Empresários, que detinham milhões nos bancos e alguns milhares em seus pulsos e pescoços. Diferentes ramos, nacionalidades e línguas nativas, mas todos dispostos a escutarem a proposta do hospital e, de quebra, aproveitarem a deliciosa comida e bebida grátis.
Uma moça de cabelos loiros subiu ao palco e aproximou-se do microfone. Vestia um longo vestido preto, que marcava suas curvas sublimemente e parecia desajeitada em seu salto alto.
Ela pigarreou para chamar atenção, mas tal não era necessário. Todos, homens e mulheres, tão diferentes entre si, já olhavam para ela. Não porque estivesse algo errado com ela, ou porque ela era bela demais. Não. Ela, apesar de visivelmente desconfortável, demonstrava uma posse e segurança absurda. E, apesar de linda e gostosa, não era nada de outro mundo.
Não, era outra coisa. Sua postura, sua presença. Seu jeito de andar e de ficar parada. Seu rosto complacente e concentrado, mas ao mesmo tempo tão carismático.
- Boa noite. Sou . Como todos já devem saber, estou aqui hoje para fazer um pedido a vocês. Todavia, é além disso. Estou aqui para mostrar como podemos tornar o melhor de nós mesmos.
A mulher pausou por alguns instantes. Com sua fala cadenciada e firme, as entonações corretas, bastou aquelas três frases para o silêncio absoluto preencher o local. Todos olhavam para ela.
- Vamos começar com uma pequena brincadeira. - ela continuou - Quero que vocês pensem a última vez que tiveram dificuldade em marcar um médico. - interrompeu-se por três segundos - Em agendar um exame. Em fazer uma cirurgia. - passou seu olhar a todos da sala, como se desvendasse cada um - A última vez que vocês se sentiram mal e não fizeram nada, porque não tinham a quem recorrer.
tirou microfone do suporte e começou a andar de um lado para o outro, vagarosamente. Qualquer problema que ela tivesse com o salto parecia mais que solucionado. Seus passos seguros e sua cabeça erguida não deixavam espaço para qualquer outra coisa.
Ela esperou. Esperou que as pessoas ali pensassem. E, não sei se fez efeito em todos, mas certamente eu fui afetado. De repente, me lembrei que consigo marcar médicos de emergência facilmente, que meus contatos permitem que a minha saúde esteja sempre protegida. E, antes mesmo deu fazer medicina, eu sempre tive acesso aos melhores tratamentos, medicamentos e especialistas.
Na realidade, nunca me faltou nada. Nem saúde, nem educação, nem comida, nem lazer. Eu podia ir ao cinema e então a balada e as aulas e a praia e não precisava me preocupar com o almoço do dia seguinte. Ou com pagar as contas ao fim do mês.
- Faço trabalho voluntário. - recomeçou, forçando-me a encará-la - Ajudo em centros de reabilitação, em orfanatos, em abrigos para moradores de rua e idosos, em hospitais públicos, em instituições de caridade. Convivo diariamente com pessoas que não tem nada. Conheço muitos deles. Suas histórias, suas batalhas. Muitos poderiam falar que suas posses se resumem a sua roupa de corpo e um cobertor. Mas, muitos não entendem que eles têm mais do que isso. Que ter vai muito além de questões financeiras. - ela exibiu um pequeno sorriso de lado - Eles têm sorriso. Eles têm força de vontade. Eles têm uma felicidade por gestos tão simples. - suspirou - Perdemos essas qualidades quando temos tudo. Perdemos a beleza da vida. Não quero que eles também a percam, e por tão pouco.
Eu jurei ter ouvido suspiros e respirações forçadas. Podia ver alguns olhares brilhando de onde estava. E não devia estar em situação muito melhor. Ele retira o que disse, era de outro mundo. Não pela beleza, mas por algo que transmite. Em seu discurso tão eloquente, sem cola alguma na mão, ela pareceu ser tão sincera. Como se cada palavra dita fosse à verdade de seus sentimentos.
- O hospital Ermênio Gardez, representado pela diretora geral Dra. Erika Sanches, me convidou para explicar que podemos proteger a beleza da vida. Podemos ajudar essas pessoas, tão ricas de espírito, mas necessitadas de tratamento médico. - agora, adquirira um tom mais prático e direto - Dia 07 de abril, dia mundial da saúde, o hospital abrirá as portas para eles. Para qualquer um que precisar. E tudo que pedimos é a ajuda de vocês, para que possamos ajudar um maior número de pessoas possíveis. Os médicos e enfermeiros trabalharão de graça, os materiais médicos, infelizmente, tem altos custos. A solidariedade, acreditamos, é a maior arma contra a desigualdade e a dor. Nos ajudem a tornar esse sonho realidade. - deu um novo sorriso e meneou a cabeça, finalizando seu discurso - Agradeço a presença de todos.
As pessoas necessitaram de alguns instantes para assimilar o poder da fala daquela mulher e o silêncio inundou o local. Mas, logo, uma forte salva de aplausos o abasteceu, juntamente com muitos sorrisos.
É, ao que parece, o hospital conseguirá patrocínio.
Duas horas mais tarde, me dei ao luxo de finalizar a noite e entrei em um taxi. A música lenta tocava e, lá fora, a chuva de madrugada caia.
Eu reparei. Pela primeira vez, eu realmente reparei.
Veja bem, em uma cidade como o Rio de Janeiro, a desigualdade está estampada nas ruas. Alguns com muito, muitos com tão pouco. Há moradores de rua, mulheres, jovens, velhos, crianças nos cantos das calçadas. E, claro, eu já passei por uma dessas calçadas. Mas nunca prestei atenção. Não de verdade. Eu só acelerava o passo, querendo me distanciar o mais rápido possível.
Foi a primeira vez que olhei. Que vi casais, famílias, solitários, enrolados no cobertor, a procura de uma cobertura para a chuva. Seus corpos marcados, seus rostos cansados. Em tudo além do superficial. Do que eles já foram, do que são, do que virão a ser. Seu passado, seu futuro. Suas chances, suas oportunidades.
E os que têm um teto, mas nada mais? E os que têm um teto hoje, mas amanhã jamais?
- Pare um momento aqui, por favor.
- Senhor, ainda está distante do endereço que você me deu – o motorista estranhou.
- Sim. Se você me der um minuto – saltei do carro, mal deixando ele questionar.
Caminhei até a lanchonete 24 horas em frente, comprei três salgados, uma água e um suco engarrafado. Então, caminhei alguns passos até um cantinho, onde uma moça estava com seu filho de colo.
- Estão com fome? - perguntei, estendendo o que tinha acabado de comprar – Aqui, pra vocês.
- Obrigada, moço. Obrigada mesmo. - ela esboçou um sorrisão de felicidade – Ele não come desde manhã cedo.
- Aproveite, então, menino – eu comentei, mexendo no cabelo do garoto, que riu em resposta. Então, virei para a mãe novamente – Sabe aquele hospital grandão, a umas duas quadras daqui? Leve ele lá, dia 07 de abril. Podemos fazer um checape completo nele e em você.
E, quando eu havia conversado com minutos antes, não tinha entendido muito bem o que ela tinha me falado. Mas, enquanto me afastava e entrava no táxi novamente, observando a simplicidade, a felicidade e a humildade daquela família, eu finalmente compreendi.
- Como você é tão boa em discursos? - eu havia perguntado a ela, assim que fomos apresentados, logo após ela encantar todos os patrocinadores.
- Não sou. Sou péssima. - ela sorriu para mim. E, digamos que ela cativa não somente com as palavras. - Fico nervosa, gaguejo, esqueço o que devo dizer. Tive sérios problemas na faculdade.
- Não foi isso que acabei de ver! - retruquei - Não só foi forte e bonito, como convincente, também. O hospital agradece. - brinquei, embora, ao fundo, fosse a mais pura verdade – Como você conseguiu, então? - inquiri, curioso – Qual o truque?
- Não há truque ou fórmula. Foi bem simples, na verdade. - tocou meu braço e sorriu, antes de completar – Eu falei do coração.
*
Olhando para aquele mundo de gente, cuja fila desaparecia no horizonte, eu me lembrei dos tempos da minha residência médica. Em um famoso hospital da rede pública de atendimento, que recebia um dos maiores repasses do governo federal e era referência em todo o estado, nossos dias eram basicamente assim. Muitos pacientes, poucos médicos, enfermeiros e materiais.
Não me entendam mal, aqueles eram bons tempos do SUS. As coisas funcionavam. Não porque o governo ajudava, claro. Havia burocracias desnecessárias, ordens desconexas e realmente muita, muita gente. Mas, entre improvisos e experiência, ao fim, as coisas eram boas ali.
De algum jeito, hoje, 7 de abril, também era um bom dia. As pessoas estavam enfrentando uma espera de quase duas horas para uma triagem, mas, durante todo o tempo, exibem sorrisos.
A equipe também sorria. Todos estavam ali, principalmente os que não eram da emergência, reforçando a mão-de-obra. Eu, inclusive, voltando a fazer simples suturas e ultrassons. Em alguns casos, também ouvir reclamações.
- Não quero isso aí não, Doutor – um velho senhor, de cabeça branca e andar difícil, resmungou para mim. Ele cheirava como se precisasse de um banho. - Morrer é melhor. Tá chegando a minha hora.
Em um rápido exame, eu constatei que não passava de um drama. Ele tinha uma ferida na perna que, pela sujeira, havia infeccionado. Mas, as pessoas pararam de morrer de infecção há duzentos anos.
Bem, ao menos é isso que aprendemos na faculdade. Talvez não fosse exatamente verdade, não para milhares de pessoas, a margem da sociedade. Afinal, o que poderia acontecer com aquele senhor, se, mesmo a contragosto, não tivesse aparecido aqui?
- Como você fez isso, senhor? - perguntei, fazendo a limpeza do local. Para a infecção em si, bastava uma boa limpeza e um antibiótico. Mas me preocupava o machucado. Dependendo da razão, como uma tontura ou desiquilíbrio, aquela ferida poderia ser consequência de algo muito mais grave: esclerose múltipla, AVC ou tumor.
- Doutor, você não entende – o velho bufou, finalmente desistindo de resistir ao tratamento – Eu moro na rua. E é uma vida complicada. Eu me machuco todos os dias. E, quando não faço por descuido, outros me machucam.
Eu o encarei por alguns instantes, tentando absorver toda a profundidade de suas palavras. Falhei miseravelmente.
Talvez, eu realmente não entenda.
Então, restou-me terminar o curativo em silêncio.
*
Eu recebi outra sacudida horas depois. Uma mulher, bastante jovem, sentou no leito, reclamando de dores na barriga. Ao levantar a blusa, eu pude ver alguns hematomas em sua pele, arroxeando. Não pude deixar de perceber que havia outros, já amarelados, em seus braços e pescoço.
Ela estava assustada. Arredia. Quando eu estendi minha mão enluvada para tocar os ferimentos, ela quase pulou em resposta. Quando passei a pomada para dor, ela estremeceu.
Sempre escutei casos como esse. Estudei sobre os detalhes, como reconhecer. Sabia que existia. Mas nunca estive em frente a um. E, sinceramente, não sabia o que fazer.
No começo, ela disse que caíra da escada. Uma típica desculpa. Então, aos poucos, eu fui introduzindo perguntas, confortando-a, tentando-a fazê-la confiar em mim. Até que, entre pedidos para não contar para ninguém, ela me contou que fora o marido.
- Mas ele... ele estava bêbado e bravo comigo, porque eu... eu realmente fui desrespeitosa e ele... - ela suspirou profundamente, as lágrimas caindo de seu rosto sofrido – Foi à única vez e ele já se desculpou. E ele não vai fazer mais isso, já prometeu.
Eu sabia que não era a primeira vez e, provavelmente, não era a única.
- Por que você não o larga? Não o deixe fazer isso com você! - eu soltei, o julgamento em meu tom de voz.
Ela somente meneou a cabeça negativamente, o choro escorrendo, todo seu corpo tremendo. Eu sabia que eu com raiva não ajudava em nada. Todavia, eu simplesmente não entendia. Como uma mulher pode se sujeitar a isso?
- O juramento que eu fiz me obriga a chamar a polícia em casos assim. Eu preciso de seu endereço completo e do nome do seu marido, por favor.
- Não! Não! Não, por favor, não! - ela pulou da cama e me agarrou, desesperada, suplicando.
- Eu prometo que ele terá o que merece. Que responderá pelo que fez a você. - tentei confortá-la, mas de nada adiantou.
- Você não pode fazer isso, por favor. Eu tenho três filhos, um de 3, um de 4 e um de 7. Eu nunca estudei. Nunca trabalhei. É ele que sustenta minha casa, meus filhos. Eu não posso... - ela respirou profundamente, tentando lutar contra as lágrimas e argumentar – Por favor, eu dependo dele. Com ele é ruim, sim, mas minhas crianças estão no colégio e fazendo judô e podem ser alguém na vida... Sem ele, vai ser pior. Não vamos ter onde morar, não vamos ter dinheiro pra comer. Por favor...
E eu entendi.
Entendi que havia tanto em jogo. Que não era preguiça ou submissão simplesmente que a mantinham naquela situação de violência doméstica. Que era muito mais profundo. Filhos, futuro, sobrevivência.
E quem era eu, um homem rico que sempre teve tudo na vida, para lhe impor o que eu achava que era melhor para a vida dela?
*
Eu estava em minha pausa, tomando um café forte para me manter acordado. Até que a vi.
A enfermeira já designava um outro médico qualquer, quando eu interferi e disse que cuidava daquilo. Então, sorriu para mim. Ao seu lado, segurando fortemente sua mão, estava um pequeno menino abatido.
- Então, rapaz, o que te traz aqui?
Já sentado na maca, ele exibiu um sorriso atrevido, mas manteve-se calado.
- Ele está com febre, tossindo muito, dificuldade de respirar. - respondeu por ele - Me falaram que ele já está assim há cinco dias.
- Quem falou, os pais? - comecei o exame - Respire pra mim. De novo.
- Não tenho papai. - exclamou o menino.
- Bem, ele não tem nenhum dos pais e fugiu do orfanato. Está vivendo na rua há alguns dias. Alguns moradores de rua ficaram preocupados com ele e me chamaram.
Eu continuei os exames quieto, embora minha garganta coçasse para questionar. O garoto não tinha mais de 7 anos. Franzino, tinha somente o sorriso. Como que uma criança vivia na rua, sem nada, nem ninguém? Como deixavam – orfanato, parentes, governo – aquilo acontecer?
Hoje, felizmente, ele só tinha uma pneumonia. Grave, sem o devido tratamento. No entanto, poderia ser muito pior. Doenças, violências, privações.
Depois de mandá-lo para a nebulização, eu chamei a fim de uma conversa particular sobre o órfão.
- Ele teve muita sorte. De ter você, de conseguir um atendimento. Mas ele precisa de cuidados, . Ele não pode morar na rua!
- Você acha que eu não sei disso? - ela retrucou, irônica, a raiva transbordando em seu tom. - Eu luto contra isso todo dia. E, se você quer saber, eu vou levá-lo para casa para cuidar dele, mas uma hora ele vai ter que voltar ao sistema. Ou as ruas. - Suspirou – Ele não é o único, .
Eu a encarei. Primeiro, porque escutar meu nome de seus lábios, mesmo tomar conhecimento de que ela se lembrava dele, trouxe-me uma sensação maravilhosa no peito. Segundo, porque o que ela me dizia, por mais óbvio que fosse, me atingiu como nunca.
- Afinal, por que ele não está no orfanato? - ora, não há como salvar todas as crianças do mundo. Orfanatos, dúzias deles, talvez sim.
- Você nunca foi a um, certo? – ela exclamou, bufando.
*
Na semana seguinte, eu estava ligando para antes mesmo que eu percebesse o que estava fazendo. Durante aqueles dias, a experiência com o mutirão e o discurso dela ecoavam em minha mente.
Eu queria conhecer suas vivências, entender o outro lado. E, quando ela me convenceu a ir de ônibus para o seu local de ajuda de hoje, eu entendi que o outro lado não era tão fácil como o meu. Nem tão luxuoso ou confortável.
Apertado entre as pessoas, eu podia ver o discurso de materializado. Os olhos brilhantes, o sorriso nos rostos cansados.
Muitos minutos depois, ela me explicou, enquanto saltávamos, que hoje ela daria jantar na Igreja para os moradores de rua. Eu não era nada religioso e tampouco parecia, mas enquanto caminhávamos até o refeitório, ela cumprimentou todos de lá.
O prato de hoje era uma sopa e ela assumiu uma das grandes panelas. Não sem antes cobrir seu cabelo e sua mão e sorrir para mim.
A cada prato que ela servia, ela conversava um pouco com a pessoa do outro lado. Eu não saberia dizer exatamente o que, diante da distância, mas cada um deles saia com um sorriso no rosto. Mais tarde, quando comentei isso com ela, disse que era pela comida quente que tinham acabado de receber. Mas eu sabia que não era somente isso.
Não pude aguentar meia hora. Eu via pouco a pouco pessoas tão simples dando pequenos passos para ganhar tão pouco. E, quando chegavam à mesa, ainda eram capazes de dividir. Um espaço no banco, um pedaço de pão.
Sinceramente, me fazia me sentir meio tolo. Por ter tudo e reclamar. E não ver. E gastar e jogar fora e esquecer.
Eu levantei e pedi um kit e uma concha. Também iria servir.
*
I'm starting with the man in the mirror
I'm asking him to change his ways
And no message could have been any clearer:
If you wanna make the world a better place
Take a look at yourself and then make a change
Eu mudei.
Não foi de repente. Tampouco posso apontar um momento exato que tudo pareceu se iluminar. Não. O processo, como geralmente costuma ser, foi longo. Pouco a pouco, entre conversas e ajudas, eu fui aprendendo.
Mas, ao mesmo tempo, foi rápido. De repente, lá estava eu, totalmente envolvido naquele mundo. Não conseguindo mais não pensar nele.
Depois do décimo quinto, eu perdi as contas de quantas vezes me dediquei a ajudar os outros. E, realmente, no que adianta contar?
Fui a orfanatos, casas de repouso, hospitais, ruas. Conheci pessoas tão diferentes, que sofreram tanto. Que não tem nada, mas ao mesmo tempo tem tudo: o sorriso, a esperança. Conheci gente descrente, infeliz com a vida. Gente que me xingou, que ameaçou me bater, também. Mas, eu talvez fosse exatamente igual se a vida tivesse batido tanto em mim assim.
Cada um, cada minuto, valeu a pena.
E ter ao meu lado, digamos, fez tudo ainda melhor. O processo de auto-descobrimento, de tornar-me uma pessoa melhor, me fez me aproximar dela. Ela me guiou por esse caminho. E, entre explicações e risadas, conheci um pouco dela.
De sua família rica e corrupta, que perdeu tudo quando ela era uma adolescente. Das dificuldades que passaram ao tentar bancar a imagem. No sofrimento por coisas bobas: uma viagem pra Disney que não poderia fazer, uma mochila caríssima que não podia comprar. E como, aos poucos, ela mudou. Entendeu. Olhou para além de seu nariz e suas roupas de marca.
E, bem, conviver com e não se apaixonar, lhes digo, é impossível.
Mas, até duas semanas atrás, nada passava de olhares apaixonados da minha parte e sorrisos brilhantes dela. Fomos ao nosso bar (que, por sinal, apelidamos assim porque, de alguma maneira, sempre parávamos ali) e bebemos algumas cervejas. Talvez muitas.
Eu estava tão feliz por contar-lhe que o hospital em que trabalhava iria fazer outro dia de multirão, mais cedo do que o imaginado. E, inclusive, que já estava com uma campanha para arrecadar o máximo de alimentos, itens de higiene e brinquedos entre os pacientes, para futura doação.
E, quem diria, quem coordenava tudo aquilo, era eu. Logo eu, que mal podia enxergar dois passos além de mim, meses atrás. Eu que, agora, doava grande parte de meu lucro no consultório particular para instituições de caridade.
Bebemos até que a bebida atingiu nosso (in) consciente. Então, nos beijamos. Agarramos-nos no canto escuro do bar, como dois adolescentes com hormônios a flor da pele. E, como num clichê, no dia seguinte, fingimos que nada aconteceu.
Exceto que minha mente cismava em repassar aquelas cenas, meu corpo pulsava para sentir os toques dela novamente e meu coração doía com a distância.
Então, eu decidi que não lutaria contra meus sentimentos. Que não ficaria com medo de estragar nossa amizade. Que não deixaria a insegurança me bater. Afinal, isso não é uma comédia romântica e eu já passei dos meus trinta anos.
Podem me chamar de cafona, se quiser, mas há alguns dias vinha planejando uma surpresa para ela. Com ajuda de muita gente. É aquilo, quando você está ali quando eles precisam, o contrário também acontece. Mesmo nas coisas mais comuns (e complicadas) da vida.
Quando o dia, hoje, finalmente chegara, no entanto, eu não podia me aguentar de ansiedade e nervosismo. Na porta do orfanato, em sua calça jeans e sorriso simples, pude ver que ela pensava que era um dia como qualquer outro. Parte da nossa rotina: nos encontramos, ajudamos quem precisa e, com sorte, bebemos umas cervejas depois. Sem beijos na parede e definitivamente sem pedidos de namoro.
Bem, spoiler.
Eu tentei sorrir e agir normalmente, mas suava, e tampouco o calor absurdo do
Entramos no orfanato e cumprimentamos todos lá dentro. Sara, uma menininha de dois anos e cachinhos correu até mim, com um sorriso atrevido no rosto, e agarrou minhas pernas. Eu a puxei para meu colo e lhe dei um beijo molhado na bochecha.
- Parece que nosso galã está deixando corações apaixonados – comentou, enquanto Sara limpava com nojo sua bochecha marcada.
Eu sorri para ela, compartilhando de sua brincadeira.
Todos ali me chamavam de galã, tirando sarro de mim. Tudo porque, em meu primeiro dia, quando eu era nada mais do que um novato, eu apareci com uma calça cáqui e uma blusa social, além de um cabelo bem escovado. Qualquer um que já cuidou e brincou com mais de três crianças ao mesmo tempo sabe que é, definitivamente, a roupa errada.
A postura não durou nem cinco minutos, mas o apelido, ah, esse parecia que seria para sempre.
- Eu que estou me apaixonando por essa menininha linda aqui. – respondi, fazendo cosquinhas na barriga de Sara e ouvindo-a esguichar-se em risos.
Apesar do tom de brincadeira, não era mentira. Não me entenda mal, todas as crianças são bem diferentes entre si e cada uma delas consegue te encantar. As sorridentes, com uma brincadeira qualquer; os mais carentes, quando você mostra o quanto se importa; os emburrados, quando você os conquista. Todas elas são especiais e, apesar de tudo que já sofreram, preservam uma pureza e uma alegria que só uma criança pode ter.
Mas Sara... Sara é meu xodó. Grudou em mim logo no primeiro dia. Sorria e balançava seus cachos. Me chamou para tomar refresco com suas bonecas. Me mostrou os desenhos que fez de sua antiga casa. Mais do que isso, todavia. Deixou-me conhecê-la e amá-la, mais do que qualquer um.
Márcia, responsável pelo orfanato, piscou para mim, tirando-me do meu devaneio. Deixei Sara no chão e assenti, confirmando que era o momento e ela foi chamar as crianças.
Eu respirei fundo e, de repente, o medo aflorou e minha garganta parecia ter fechado. Mas, bem, eu precisava continuar.
- . – a chamei, pegando sua mão delicadamente.
Ela encarou-me, os olhos de falcão tentando capturar o que eu estava escondendo. Ainda, vislumbrou o ambiente e, tenho certeza, notou a movimentação estranha.
- . – optou-se por manter suas questões para si.
- Alguns dias atrás, com algum álcool nas veias, nos beijamos. – eu comecei, limpando a garganta e tentando ganhar alguns segundos (e alguma coragem) com isso – Não falamos mais sobre isso, mas não paro de pensar em beijá-la novamente. Tocá-la. Fazê-la sorrir uma vez mais.
“Antes mesmo disso acontecer, eu já pensava em você. Queria você como mais do que amiga. Desde o primeiro momento que te vi, no palco, desajeitada com seus saltos, mas tão convicta em suas palavras... desde lá, eu venho me apaixonando por você.
O que você fez por mim... como abriu meus olhos para o mundo real, como me mostrou verdades da vida, as desigualdades, as desilusões e os sofrimentos... Você mudou minha história, meu eu. E, hoje, eu quero mudar a história de tanta gente, como você faz sempre. Sobretudo, eu quero mudar a sua, quero fazê-la feliz”.
Como se tivéssemos ensaiado mil vezes e não somente uma, no exato momento que terminei minha declaração, as crianças começaram a cantar “Fico Assim Sem Você”.
Sou eu assim sem você
Futebol sem bola. Piu-Piu sem Frajola
Sou eu assim sem você
Vi seus olhos brilharem pela emoção e, quando um sorriso bobo abriu em seu rosto, meu coração quase parou.
Ela me abraçou pela cintura e pousou sua cabeça em meu ombro. A abracei também, meu corpo todo se esquentando só por senti-la perto de mim.
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio tá de mal comigo, por que?...por que?...
Foi um beijo casto, na frente das crianças e dos funcionários, mas foi o melhor da minha vida. Porque ele guardava tanto significado. Ele dizia seu sim de meu pedido de namoro silencioso. Ele retribuía em ação tudo o que eu dissera em palavras. Ele abria o coração dela para mim, assim como eu havia entregado o meu coração a ela.
FIM!
Nota da autora: Man In the Mirror é uma música maravilhosa e com um significado muito profundo. Além disso, Rei do POP é Rei do POP, né! Espero que eu tenha consigo acertar, mesmo com alguns poréns e muita pressa HAHAHAAH
No fim, quero que a fic deixe uma semente de esperança. Que ela tenha o poder de levar à reflexão, ao menos por um segundo, sobre a pessoa do outro lado da rua, sem comida, sem casa, sem família. Pensem sobre a desigualdade brasileira e a naturalização de determinadas cenas. E, tentem, cada uma a seu jeito, mudar isso. O pouco também é importante!
Beijos, Bruh Fernandes.
Em andamento:
* Barefoot
Finalizadas:
* Sexual Diary (Restrita);
* Factory Girl (Restrita);
* Two Sides Of The Law (Restrita)
Shorts:
* 02. Untouchable;
* 06. Mean;
* 12. Sweet Dreams
* 13. Lost and Found;
* 13. Gone Tonight;
* Immortal (Especial Mitologia)
* O Bêbado e A Equilibrista (Challenge#15);
* One Night Two Years (Outros);
* Prazer, Primavera (Outros);
* Quebrando Os Meus Princípios (Restrita);
* Uma Linda Mulher (Outros);
Nota da beta: Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.
No fim, quero que a fic deixe uma semente de esperança. Que ela tenha o poder de levar à reflexão, ao menos por um segundo, sobre a pessoa do outro lado da rua, sem comida, sem casa, sem família. Pensem sobre a desigualdade brasileira e a naturalização de determinadas cenas. E, tentem, cada uma a seu jeito, mudar isso. O pouco também é importante!
Beijos, Bruh Fernandes.
* Barefoot
Finalizadas:
* Sexual Diary (Restrita);
* Factory Girl (Restrita);
* Two Sides Of The Law (Restrita)
Shorts:
* 02. Untouchable;
* 06. Mean;
* 12. Sweet Dreams
* 13. Lost and Found;
* 13. Gone Tonight;
* Immortal (Especial Mitologia)
* O Bêbado e A Equilibrista (Challenge#15);
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* Quebrando Os Meus Princípios (Restrita);
* Uma Linda Mulher (Outros);