Última atualização: 07/01/2022

I

O dinheiro queimava na mesa de jogatina, assim como nos cigarros acesos e no suor do sexo insignificante acontecendo em diferentes pontos do cômodo.
olhou novamente para o telefone. Os números piscavam na tela, chamando-o para o desafio de discá-los. Seria uma escolha péssima, com certeza, a pior que ele poderia fazer. Seria mais fácil se fosse capaz de pisar em Orlando sem pensar naquilo. Mas, mesmo enquanto gastava sua energia e seu bom humor em cima do palco, sua cabeça continuava em outro lugar.
Ele nunca estava realmente no momento presente. Nunca era ele mesmo, era sempre o cara do passado. O cara que encarava os números que o faziam se lembrar de como tudo virou uma merda.
A festa ao redor, apesar de paga por ele, poderia acontecer muito bem sem sua presença.
Uma sombra estacou acima de seu rosto quando uma pessoa se aproximou. Ela era claramente uma das diversas garotas contratadas da melhor agência de acompanhantes da cidade e tinha o corpo desenhado parcialmente com tinta neon, destacando-se na luz negra. mal levantou o rosto para encará-la.
— Boa noite, senhor .
— Boa noite — ecoou . Os números não saíam de sua panorâmica. A ansiedade em discá-los também não.
A garota suspirou e se aproximou. Seus joelhos tocaram os dele, que pareceu desviar os olhos da tela pela primeira vez ao notar o toque.
— Não acha que está muito cedo para ter recaídas? — perguntou a garota em tom sensualmente débil. Ela não era muito boa nessa parte, na verdade. Era pouco convincente, como se não quisesse realmente estar ali.
Ele passou a língua nos lábios e riu de puro sarcasmo. Ela levantou uma sobrancelha.
— Gracinha, minhas palavras não começaram a trabalhar ainda, por isso só vou usar aquelas que eu sei que funcionam com você. — Ele sorriu placidamente e puxou uma nota de 100 dólares do bolso de trás, estendendo-a para a garota. — Cai. Fora.
Qualquer resquício de sorriso desapareceu de seu rosto. Ali estava a prova genuína de que ela estava no lugar errado. Era fácil fingir que era sedutora e disposta a sentar no colo de um estranho enquanto não via o dinheiro de fato. Quando aconteceu, só a fez sentir repulsa; pelo valor, por ela mesma. Ainda mais quando o patrocinador da festa a encarava daquele jeito.
Ainda assim, ela o olhou de um jeito vago, disfarçando o contragosto. Não havia muito o que fazer, ela estava cumprindo ordens. Já estava com multas suficientes na casa por ter furado com mais de dois clientes. Naquele dia, precisava pelo menos mostrar que tentara.
— Eu já fui paga por hoje, senhor . — Aeu sorriso não era nada convincente. Ela tinha que sorrir. Sabia que estava sendo firmemente observada. — Estou ao seu dispor. O que deseja?
Ele riu mais uma vez, desta vez impaciente.
— Acho que você não entendeu — ele suspirou, depositando o dinheiro na mesa à frente. — Vou deixá-lo aí até que você raciocine. E não pense que isso é um convite para se sentar.
A garota repuxou os lábios, fixando o olhar naquele rosto cheio de autoridade, mas também de mágoa. Ela pensou em responder-lhe que não pretendia sentar-se ao seu lado, e sim — como intimada — em cima dele, mas não parecia ser um homem que cederia para a insistência alheia. A maior parte do sofá ao seu lado estava coberto por estranhas polainas bordadas e meias-calças quadriculadas disputando lugar, tornando perceptível também a despreocupação dele em se sentar em cantos aparentemente utilizados.
Era claramente um homem que não se importava com a sujeira. Talvez porque já fazia parte dela há um bom tempo.
— Acho que isso foi um pouco rude, sr. — disse ela, hesitante, ainda fazendo um esforço para imprimir um sorriso falso. Não era para ele. Servia para os brutamontes espalhados em cada ponto, observando-a e a todas as garotas, mas, pelo histórico de problemas recentes, principalmente ela. Arrastou os pés para a frente, aproximando-se ainda mais do homem, buscando a melhor posição para recostar as coxas e bloquear a visão dos seguranças e de Dominic, o chefe, para que ele não visse o rosto totalmente raivoso e entediado de . — Você é um artista mundialmente famoso, que gasta uma fortuna com after parties nesse nível, contrata a melhor agência de acompanhantes da cidade, que deveriam servir a você e seus convidados, e então as rejeita? Não pensa que isso possa prejudicá-las de alguma forma?
não desviou o olhar. Ela não parecia com raiva, mas também estava longe de ser doce e simpática, como dizia a descrição da empresa de Dominic. Ela não tinha nem o cheiro das outras a que estava acostumado. Parecia algo familiar, como laranjas, ou talco de bebê, ou talvez livros didáticos novos. Nada de álcool, cocaína e látex.
— Vou te prejudicar por não querer abaixar as calças pra você?
— É, estupidamente vai. — Sua cabeça virou para trás em um movimento rápido, voltando logo em seguida, travando o queixo em uma linha dura. Estava na cara que pretendia ter dito as palavras para si mesma e também que teve uma péssima noite de sono. Ou várias delas.
— É claro — ecoou novamente. Seu olhar foi de encontro a uma mesa afastada, ocupada por um homem rodeado de outros mal-encarados, que usava seus olhos de águia para vasculharem todo o lugar e todas as garotas que pudesse flagrar. O chefe. O outro chefe, além dele mesmo.
Se ele sabia tanto da importância de seu cliente, havia mandado a melhor de seus produtos — ou, então, a que precisasse provar alguma coisa.
— Hum… Acho que isso não é bem verdade — disse ele, depois do minuto arrastado de silêncio — Você sabe que tenho vários convidados, não sabe? É só olhar em volta, não vai te faltar nenhum serviço.
— Recebemos designações específicas e a minha é o senhor. Não é como se eu pudesse atrapalhar o trabalho das outras.
— E aí você precisa me atrapalhar?
Ela bufou, controlando a língua e se abstendo de usar suas próprias palavras, no fim das contas. Aquele era seu trabalho. Não o trabalho dos sonhos, mas precisava ser, por enquanto. Sua cabeça girou em perfil para o homem sentado novamente e ela sentiu seus olhos biônicos pairando sobre ela e seu fracasso.
Hoje não era um bom dia para fracassar. Havia algo de decisivo na função de hoje e, se não saísse como Dominic esperava, ela poderia considerar-se na rua.
— Tudo bem, se me deixar dançar por apenas 3 minutos, talvez...
— Me desculpe, no momento estou cagando pra gentilezas, então não me importo nem um pouco sobre seu espetáculo. Eu coloco mais 5 notas iguais a essa se você puder sair da minha frente agora.
As palavras a atingiram como um soco. Uma ofensa ao seu ofício teria sido pior. Mãos escorregadias e assédio barato sobre seu corpo seriam mais aceitáveis. A garota não teve tempo de ponderar sobre como era satisfatório não precisar ser submetida à luxúria de homens ricos. Agora, o que a invadia era o mais puro medo do que a esperava no estabelecimento do outro lado da cidade.
era mais bonito do que a maioria da classe A com quem já esteve, mas ele estava interessado em outra coisa. Em outra pessoa.
Ela permaneceu parada, olhando as notas de 100 dólares com repúdio, até começar a se retirar, pensando com esperança de que nada a impediria de atrair outra pessoa e seguir com o serviço. De preferência, um que já estivesse em um relacionamento e afogado apenas no adultério, e não em um coração partido.
Um pequeno estalar de língua surgiu de mais perto do que esperou. Um dos homens altos gesticulou com o pescoço para que ela se aproximasse e sua garganta ficou seca. Seja lá o que fosse, Dominic não estava por perto. Ela não o via mais naquela mesa. Com um suspiro, ela começou a caminhar na direção indicada.
Não houve tempo de fazer perguntas.
Dominic surgiu de alguma sombra de luz negra, fumando seu charuto habitual e alisando o terno branco com delicadeza. Andava devagar, calmo, mas o ar automaticamente pesava com aqueles olhos, como se todas as coisas vivas sentissem a maldade que emanava deles.
— O que pensa que está fazendo, ? — A voz era adocicada e tranquila. Doentia, na visão da garota. Algo nefasto, que adiantava coisas ruins. — Por que não está rebolando em cima do nosso anfitrião nesse exato momento?
Ela engoliu em seco. Dominic não precisava de respostas; ele via tudo. As perguntas que saíam de sua boca eram sempre retóricas.
Mesmo assim, ele esperava reações. limpou a garganta, escondendo as mãos trêmulas com o corpo antes de responder:
— Acho que ele não está muito afim…
O discurso acabou quando sentiu os fios do couro cabeludo serem tomados por aquele punho forte e firme. Havia algo insano naquela expressão repentinamente séria do empresário. A raiva que ele não parecia querer esperar para destilá-la atrás de uma daquelas portas privativas. Ele se aproveitava das sombras, o lugar de onde viera, o lugar em que as máscaras caíam.
— Você se lembra do que conversamos mais cedo? — O hálito quente de whiskey e cigarro perpassou pelas bochechas da garota, que prendeu a respiração em nervosismo — Disse que essa é sua última chance. A última. Acha que eu me importo se você se acha mais inteligente do que as outras, se faz a porra de uma faculdade ou tem a porra de amor próprio o suficiente pra detestar mostrar os peitos pra estranhos? Acha mesmo que eu me importo com isso?!
— Eu já disse que ele não está afim! — ela tentou dizer com os dentes cerrados. A fúria de Dominic fazia seus dedos se apertarem com ainda mais força em sua nuca. Os olhos de lacrimejavam de dor.
— Não está afim ou você não o deixou afim? Só existe uma resposta, desgraçada, o que significa que você não se esforçou de novo…
— Com licença. — Uma terceira voz invadiu o espaço. Dominic ergueu o queixo, sem soltar imediatamente da garota, que mordia os lábios para controlar a respiração ofegante.
— Sr. . — sentiu os cabelos serem soltos devagar e ergueu o tronco novamente, enxugando as lágrimas com as costas das mãos, envergonhada pela cena que ele com certeza tinha visto. — Posso ajudá-lo, senhor? Precisa de mais alguma coisa? De uma companhia melhor? — Dominic destilou o veneno ao referir-se à garota encolhida ao seu lado, sem forças para levantar a cabeça e encarar o cliente.
Colocando uma das mãos nos bolsos, encarou o homem através da fumaça que escapava do cigarro preso entre os dentes. Aquele era o tipo de pessoa que não o deixava negligenciar 100% a realidade de merda do mundo no qual vivia. Seu maior mantra diário, desde que Emily foi embora, era o de que tudo no globo estava ruindo e não existia mais nada a que lutar. Cansado de acreditar na bondade e nas pessoas em geral, era esse o pensamento primordial. Mas, como tudo na vida, era mais fácil falar do que fazer.
— Na verdade, sua garota foi bem legal — ele bufou a fumaça propositalmente no rosto do empresário, não que este se importasse. — Mas se continuar tocando nela desse jeito, posso perder a vontade da exclusividade. Não foi por isso que a mandou pra mim?
Dominic engoliu em seco, abrindo um sorriso amarelo. exibia uma aura autoritária, extravagante, deixando Dominic pequeno, muito menor do que já havia visto. E ela só esperava que isso não o deixasse furioso a ponto de descontar nas garotas.
— Claro, senhor…
— Tire as mãos dela. Agora — ele disse, mais devagar e mais firme. As mãos de Dominic caíram lentamente pelas costas da garota, seu maxilar trincado demonstrando o contragosto.
tomou coragem para levantar o queixo e olhar para . Ele já olhava para ela. Era totalmente diferente do olhar de alguns minutos atrás; agora parecia uma revolta silenciosa, tanto pela situação quanto por ter se importado com ela.
— Vá até a última sala e me espera lá. — agora se voltou para Dominic, mesmo que claramente estivesse falando com . Ela ainda esperou alguns minutos, confusa com o pedido repentino. — Vou precisar falar duas vezes?
Empertigando-se no salto, ela ajeitou a postura e balançou a cabeça.
— Não, senhor. — E então, seguiu corredor adentro.
encarou as costas da garota se afastando por alguns segundos, antes de se aproximar do homem de branco à frente e sussurrar bem perto de seu ombro.
— Se eu convidar cada uma dessas garotas à minha sala e perguntá-las se a cena que acabei de ver se repete com frequência, qual a resposta que elas me dariam? — Os músculos de Dominic se retesaram. Suas linhas faciais não conseguiam reproduzir sorriso algum.
, você não entendeu…
— Se minha companhia estiver incomodada com essa e com outras situações parecidas, vou deixá-la livre pra tomar providências. — Ele apertou um dos ombros de Dominic, sorrindo placidamente. — E, é claro, eu e meus amigos jamais pisaremos aqui de novo.
Com um tapinha leve e um sorriso debochado, se embrenhou nas luzes negras e vermelhas e seguiu até a última sala, deixando um Dominic terrivelmente raivoso para trás.


II

a encontrou parada ao lado da barra de metal cravada no chão.
O medo ainda percorria cada centímetro de pele. Imaginar o que Dominic podia ter feito ali e o que poderia fazer quando a noite acabasse, ainda era motivo de preocupação. Quando bateu na porta, virou-se num susto. Ele andou direto para o sofá de couro que se estendia ao longo de toda a parede e se sentou tranquilamente, ocupando as mãos com o cigarro e o celular novamente.
— Não precisa ficar assustada. — Ele a olhou de relance, antes de voltar a atenção ao telefone. — Duvido que aquele boçal tente ser um boçal de novo depois do que eu disse.
— Foi alguma ameaça ao dinheiro dele? — A pergunta saiu em voz alta. sabia da proibição sobre o uso do tom informal com clientes, mas tinha jogado isso fora há muito tempo.
O celular não estava acrescentando coisa alguma à sua paz, então ergueu a cabeça para a garota.
— É assim que se lida com esse tipo de gente, não é? —Deu de ombros. deu um pequeno sorriso de canto; o mais sincero que dava há semanas.
— Obrigada — falou, depois de um tempo de silêncio, quando ele voltou a atenção ao aparelho — Como eu posso…
— Não se incomode com isso — a interrompeu, balançando as mãos no ar em negação. — Não te chamei aqui porque repensei sua oferta. Só não suporto esses caras covardes que pensam ter o mundo aos seus pés. Dinheiro é uma merda que torna as pessoas uma merda. É assim que é. — Ele apoiou as costas no sofá, suspirando com uma leve indignação — Qual é o seu nome?
.
— ‘Tá, ok. Qual é o seu verdadeiro nome?
Ela passou a língua nos lábios, ficando em silêncio. a olhava com paciência e um interesse fraco. Ainda assim, fez com que se sentisse mais observada como pessoa do que com qualquer outra na vida.
— Meu nome é — sussurrou.
— Tudo bem… — ele repetiu o nome como algo agradável. não sorria, mas perdia a expressão dura e carrancuda do lado de fora a cada segundo que passava. — Olha, pode fazer o que quiser, ‘tá bom? Peça comida, bebida, coloque uma música e dance se quiser, ou só escuta o que estiver com vontade. Você quem sabe.
— ou — ficou parada por um tempo, mesmo depois da liberação de para que fizesse o que quisesse. Surpreendentemente, existiam muitas coisas agradáveis naquela sala. Como anfitrião, sua estadia era no mínimo exacerbada. Um grande aquário tomava uma das paredes. As luzes vermelhas se revezavam em roxas e azuis de tons leves, fazendo as cores em seu corpo gritarem como um carnaval. Os lençóis de seda estavam impecáveis. A banheira estava ligada e pronta. O cardápio era excelente.
Ainda assim, tudo que desejava era tirar aquela tinta do corpo e voltar a vestir suas roupas. E isso não seria possível no momento.
— O que foi? — perguntou quando viu a garota vasculhar o lugar por pelo menos quatro vezes seguidas, totalmente perdida. — O que você gosta de fazer?
Ela cruzou os braços, olhando-o ainda em dúvida.
— Quer mesmo saber?
— Quero.
— Gosto de estudar.
franziu o cenho e um sorriso fraco escapou de seus lábios. Frequentemente, estava trabalhando em seu eterno trabalho de conclusão de curso, uma tese sobre algum assunto da Metalinguística no fim do curso de Literatura. Era um processo que exigia músicas relaxantes, lanches frequentes e concentração. Ela teria de correr depois para manter a forma perfeita exigida por Dominic e sair à noite sem hora exata para voltar. Por sorte, ela sabia esconder olheiras como ninguém.
— Uau — soltou um suspiro. Os vincos em sua sobrancelha praticamente não existiam mais. — O que você estuda?
— Literatura Americana-Francesa. Algo bem chato pra maioria da população.
Ele assentiu, tragando com força e apertando o resto da bituca no cinzeiro.
— Interessante. — O homem cruzou os braços, agora olhando diretamente para a garota. — Então gosta de poesia?
confirmou com a cabeça, tristemente. Ou talvez pensativamente.
— Uma das várias coisas que gosto.
Era difícil dizer a diferença da expressão de ; se era um lamento ou apenas uma constatação. Mas não se sentia tentado a perguntar alguma coisa porque sabia reconhecer pessoas tão esquivas quanto ele.
— Então peço desculpas pelo espaço não ser propício pra isso — murmurou ele, acendendo seu próximo cigarro. repuxou os lábios, como se os travasse para qualquer sorriso que pudesse surgir. Às vezes, ela se tornava alguém muito difícil de ler. não conseguia teorizar sobre como ela deveria levar a vida fora daquela luz - se existia um marido ou amante, se estavam mortos ou no exterior, se sentia saudades de alguém, ou se percebia como seu cabelo ficava bonito partido ao meio, era difícil saber os detalhes.
balançou a cabeça, horrorizado por um momento com as questões mentais que a garotinha tinha causado. Ele estava curioso? Interessado por uma dançarina que nem usava seu nome verdadeiro e parecia minimamente mais notável do que a maioria das pessoas que conheceu?
O celular voltou às suas mãos, junto com as fotos de Emily e seu número no topo das chamadas. Aquilo deveria cessar o contato do ambiente. observou atentamente os dedos do homem passando lentamente sobre a tela, o cigarro queimando entre os dedos, o jeito como seus dentes agarravam o lábio inferior com ansiedade. Ela claramente não deveria perguntar a respeito. havia herdado de alguém de sua família uma aversão em ver pessoas chorarem, de modo que nunca gostava de conduzir uma conversa que pudesse resultar em lágrimas.
Em vez disso, a garota se aproximou devagar do sofá largo, tirando os saltos apertados e brilhantes, e sentando-se delicadamente, apreensiva, como se pudesse mandá-la se levantar a qualquer momento e colocá-la no seu devido lugar.
virou a palma da mão para cima, seguindo as linhas tortas com o dedo indicador, perdendo-se nas leituras de uma vida que estava longe demais de ser sonhada.
— Como foi o seu show? — A pergunta veio de repente. No silêncio, pareceu passear pelas paredes. olhava o passado com a atenção reduzida, voltando-se levemente para a garota agora sentada ao seu lado.
— Foi ótimo — ele assentiu, apoiando os cotovelos nos joelhos. — A mesma coisa de sempre, para ser franco. Recebi pedidos de casamento em várias caligrafias diferentes e uma receita de torta de banana com creme.
— Entre vinte mil pessoas, se escondem personalidades e tanto. — Mais um sorriso sincero e amplamente curioso.
— É, descobrimos coisas importantes em lugares assim.
— Gosto da sua música. — Ela acariciou as linhas novamente. Falar aquilo exigiu que desviasse o olhar. Ela não podia abrir espaço para más interpretações. — Parecem sempre estar contando uma história. Bem amargas, por sinal.
Agora seus olhos cruzavam com o telefone. inspirou a fumaça, deixando que o aparelho caísse para o lado, suspirando pela lembrança das palavras de Emily antes que saísse pela porta: você está coberto de amargura demais para enxergar a liberdade da vida. Era isso, repetidas vezes. Um de seus ditos favoritos.
— Fui chamado de amargo antes mesmo de escrever essas letras — ele respondeu junto a uma risada de escárnio. Era fácil rir da situação hoje, sem ter suas frases simplistas sublinhadas e acusadas a todo segundo. — Quero dizer, o que realmente significa essa merda? Eu sou amargo. Hoje. Mas antes eu não passava de um sonhador, sem nenhuma receita para o sucesso, acreditando no sonho americano e compondo sobre a beleza do clichê. Mas isso não vendia. Quando toda a merda aconteceu, desabafei tudo em versos horrendos e aqui estou eu.
— Você era um sonhador? — ergueu uma sobrancelha. — Em que sonhava?
— Sonhos idiotas. Distantes. — Sua voz era distante e vaga. Os olhos derivavam pelo piscar das luzes.
— Que sonho pode ser distante para você hoje? — ela continuou, recostando-se devagar. — O poderoso .
— Muitas coisas se tornam distantes quando se tem dinheiro — argumentou ele, expulsando mais fumaça dos pulmões. — Verdade. Privacidade. Realidade. Empatia. Amor… Clichês. É um septeto de coisas.
Amor é realmente muito clichê — ela zombou levemente, virando a cabeça para o homem —, mas o que você esperava do clichê? Tomar um sorvete de baunilha com alguma namorada do ensino médio?
— Isso. — A resposta foi tranquila e melancólica. Mesmo sorrindo, sentiu toda a tristeza do ato. — E casar. Comprar uma casa que nunca terminaríamos de pagar. Filhos correndo pelo quintal, um monte deles. Churrasco aos domingos. Tarefas domésticas chulas. Esse tipo de idiotice que não existe.
A frase pegou de surpresa. Os momentos encarando em foco total se esvaíram com o resmungo.
— Como não existe? — Sua voz saiu em um sussurro, uma quebra de imagem perfeita.
— Não falei errado. Realmente não existe. — A mesma expressão fechada voltou à ativa. O maxilar preso, carregando anos de mágoa e mensagens subliminares de não querer conversa estavam ali de novo. — Essas coisas são mais difíceis do que parece. Acrescentando a palavra feliz na frente, se torna impossível. O sonho americano é uma farsa. Cansei de acreditar, então simplesmente caguei pra essa merda toda.
— Mas… Como? — repetiu . A agitação que sentia por dentro era meticulosamente contida para que não afetasse seu tom de voz, mas certos tons mais altos escapavam pelas beiradas. — Isso tem algo a ver com… — Seus olhos fixaram no celular no meio do caminho. Ele o encarou por um tempo longo demais.
— Talvez — respondeu. — Ela me deixou porque se sentia presa. Seu sonho era abrir as asas e voar pelo mundo, enquanto o meu era ficar e criar raízes. Era realmente um sonho. Veja como a vida é sacana. — Ele estalou a língua, cansado. Era um assunto batido, doloroso, que já havia extinguido sua sanidade e cordas vocais. Ele gritava aquele relato implícito ao microfone. Contava uma história triste por trás de palavras raivosas.
sentiu um dos clichês citados como distantes: empatia. Uma identificação muito forte que ela não se permitia sentir com outra pessoa. E, talvez, aquilo que estava massacrando seu peito fosse a pena do homem abatido ao seu lado.
— Não acho que seja tão impossível assim — falou, erguendo o queixo para olhá-lo. — Sonhos tradicionais ainda são sonhos. Se você pegou um caminho alternativo na vida e, ainda assim, não desistiu desse primeiro pensamento, então é a prova de que ele é verdadeiro.
— Quem disse que eu…
— Você não estava tentando ligar pra ela? — levantou uma sobrancelha. não respondeu. — Se ainda não consegue controlar os impulsos de procurá-la, é porque o sonho não morreu. E tudo bem com isso. O importante é que consiga alcançá-lo no fim, como eu também estou tentando. Mesmo que eu exija a palavra feliz como parte do pacote.
Ele não respondeu. normalmente se irritava com assuntos como aquele, o que acarretava uma série de ruídos agudos que pioravam tudo, mas naquela noite ele não gritaria. Sua curiosidade falava mais alto.
— Então você quer a mesma coisa. — Não era uma pergunta. — Não é fácil encontrar gente assim. Só posso te desejar boa sorte.
Eu te desejo boa sorte, — disse ela, em voz aveludada, divertida. — As dificuldades da vida me pegaram primeiro e agora tenho um longo caminho a percorrer. Você tem apenas o tempo de uma ligação. A sua chance de parar de viver no automático. Prometo não contar a ninguém que você ainda sonha.
Ele a encarou com intensidade. Depois, uma gargalhada ecoou pela sala. Era a coisa mais boba que já ouviu. Boba e tremenda, mas não importava. Ele já tinha desistido. Agora ele tinha muito, mesmo que nunca sentisse que tinha o suficiente.
, acho que não entendeu…
O telefone tocou. cravou os olhos no nome piscando no visor e ficou branco. De cabeça para baixo, identificou algumas letras difusas na tela.
— Achei que fosse uma garota — disse em voz baixa, reconhecendo o nome “Jake” e relacionando-o com a expressão paralisada de . Não havia necessidade de um pedido de silêncio. era reservada, mesmo quando não se tratava de um segredo.
Quando a ligação foi perdida, ele se voltou para a garota.
— Era o primo. O primo dela. — A voz era um fiapo de vento. Era como se tentasse encaixar as peças do que tinha acabado de acontecer. — Ele mora aqui, em Orlando. Foi o último lugar que fiquei sabendo onde ela estava. Então eu… — O telefone voltou a tocar. parou o cigarro no meio do caminho, no ar. Seus olhos estáticos acompanhavam o acender e apagar da tela. — Devo atender?
agitou uma mão.
— Sim, e rápido — respondeu, permitindo que um sorriso maior se abrisse. — A não ser que não queira sonhar de novo.
ficou irrequieto enquanto olhava a tela piscar, sem expressão. Perto dos últimos segundos, mergulhou a bituca no cinzeiro, levantou-se e olhou para antes de caminhar para fora.
Ele sabia das chances de ser um alarme falso. Sabia que poderia desligar e tudo não teria passado de ilusão barata, uma chama de esperança intrometida que invadiu seu coração em um momento fraco. Mas estava tudo bem. Talvez fosse o que ele precisava para seguir em frente. De um lado ou de outro.
E não o esperaria do lado de dentro da sala para recebê-lo com “e aí?” e o relato da conversa. Levantando-se, ela juntou os sapatos e saiu pela porta ao contrário, disposta a ir embora e recomeçar a sonhar.


FIM



Nota da autora: Olá, meu bem! Se você chegou até aqui, te agradeço imensamente por ter cedido tempo e lido a história até o final. Não se esqueça de deixar um comentário com o feedback completo pra que eu possa saber ♥
Caso te interesse ler outros trabalhos meus, vou deixar aqui minha página de autora e meu instagram de autora, onde eu faço posts bem legais sobre o meu conteúdo e indico histórias de outras autoras incríveis também! No mais, muito obrigada mais uma vez e volte sempre ♥




Nota da beta: Agora vai ter que me dar uma continuação, ou a história que vem antes hahahahah eu fiquei completamente intrigada pela história do e da Emily, também o que levou a / a estar envolvida nesse meio. Considere saciar minha curiosidade, por favor hahahah
Parabéns pela história! <3



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