Ex
Cry about it, I don't wanna cry about it
But I still can't help it sometimes
Fight about it, I don't wanna fight about it
I'm already screamin' inside (screamin' inside)
But I still can't help it sometimes
Fight about it, I don't wanna fight about it
I'm already screamin' inside (screamin' inside)
tirou a franja da frente do rosto. Ela estava exausta, física e mentalmente, e seu namorado, Kaito, não estava ajudando nem um pouco. O jeito que ele a tratava tinha só piorado desde que ela foi morar com ele alguns meses antes. Ele sempre tinha sido meio possessivo, e ciumento, e tido alguns comportamentos estranhos, mas ele costumava ser gentil e amoroso. A situação piorou muito no momento que o aluguel dela expirou e ele a chamou para morar no seu apartamento.
A mulher de 23 anos se encaminhou para a porta, equilibrando as sacolas de compras nos braços, e acabou não vendo o vilão que invadia o estabelecimento até estar quase trombando com ele.
— Todo mundo pro chão, isso é um assalto! — gritou — Você também, moça! — derrubou suas coisas, o volume a assustando. Tremendo, ela obedeceu, cobrindo as orelhas com as mãos. — Você aí no fundo! Eu mandei ir pro chão!
— Eu ouvi — respondeu uma voz profunda e calma, quase entediada.
— Então faz o que eu mandei! Ou todo mundo aqui vai se machucar!
— Acho que não.
ouviu os passos se aproximando e ergueu os olhos apenas o suficiente para ver as botas do homem. Ele se abaixou para recolher os itens que caíram das sacolas dela.
— Ei, o que você acha que ta fazendo?!
— Você ta bem? — perguntou, e ela ergueu o olhar assustado para encontrar um rosto que ela só tinha visto na imprensa. Mechas vermelhas e brancas escapavam do gorro, olhos desiguais estudando sua expressão, e a cicatriz cobrindo seu olho e bochecha esquerdos não deixando dúvida sobre quem ele era. Ela confirmou, trêmula e ainda assustada.
— Eu disse- — Swoosh.
— E eu disse que ouvi. — só conseguia ver o começo do gelo saindo do joelho direito de Shoto em direção ao assaltante, mas o silêncio que se seguiu indicou que o gelo o cobria por completo. O herói ofereceu a mão para ajudá-la a levantar, depois lhe entregou a sacola. — Tem certeza que você ta bem? — Ela assentiu outra vez. — Precisa de ajuda pra carregar?
— N-não. — Kaito ficaria bravo se ela aceitasse. — N-não, obrigada. E-eu me viro.
— Tudo bem. — Ele encontrou o atendente do caixa, um senhor de idade que tinha acabado de levantar. — Vou levar ele pra polícia e pedir pra eles virem buscar a filmagem das câmeras de segurança.
— Obrigado, Shoto.
Ele assentiu e andou até o iceberg em volta do assaltante, derretendo parte dele e começando a empurrar o homem congelado para fora.
— Boa noite — foi a última coisa que ele disse antes de sair. Shoto não estava trabalhando, apenas tinha parado no mercadinho a caminho de casa para comprar um ramen instantâneo, mas não pode ignorar o crime sendo cometido. Mesmo cinco anos depois da guerra contra Shigaraki e All For One, a sociedade ainda estava se recuperando e as taxas de criminalidade eram relativamente altas em certas regiões. Deku era rápido, mas não era onipresente, e havia bem menos heróis do que antes.
Ele não pensou muito mais sobre a linda mulher que derrubou suas compras ou seus lindos olhos .
Uma semana depois
se apressou para entrar no prédio. O lugar não era dos melhores — pra ser honesta, estava meio caindo aos pedaços —, mas foi o que ela conseguiu encontrar dentro do orçamento tão de última hora, já que ela só precisava sair do apartamento de Kaito. Ela finalmente terminara o relacionamento e, como era de se esperar, ele não aceitou muito bem. Ela só não achou que o encontraria esperando por ela na sua porta.
— O que você tá fazendo aqui?
— Vim te ver, óbvio.
— Eu não quero te ver. Ter me mudado não deixou claro o suficiente? A gente acabou, Kaito! — Fechou as mãos em punhos, tentando esconder a tremedeira. A última coisa que ela precisava era que ele notasse o quanto sua presença a assustava. também fez questão de falar alto, torcendo para que os vizinhos escutassem e viessem ao seu resgate.
Kaito só riu dela, revirando os olhos.
— Ah, nós não acabamos, amor. Não até eu decidir. Eu já pedi desculpas, então vamos parar com essa palhaçada e ir pra casa, ok? — Ele deu um passo na direção dela e a mulher recuou.
— E-eu não vou pra lugar nenhum com você.
O sorriso dele não se abalou, mas se tornou cruel, o mesmo brilho monstruoso em seus olhos que tinha aparecido no dia em que ela chegou ao limite, um brilho que ela começava a perceber que tinha estado lá com muito mais frequência do que ela se permitia admitir.
— Você não vai desperdiçar os meus últimos quatro anos. O que foi? Algum idiota te convenceu qua te queria? — Soltou uma risada maldosa. — Não deveria acreditar numa coisa dessas. Você é gorda e não tem Individualidade. Seu emprego é uma bosta. Ninguém mais vai te querer.
— Se eu sou tão ruim, me deixa ir embora — implorou, engolindo as lágrimas.
— É burra também? Você é minha. Vai voltar pra casa comigo, onde estão todas as suas coisas, onde você deveria estar, e vai parar com essa palhaçada.
— Não.
— Eu não tava pedindo.
Em um arroubo de coragem que ela não sabia por quanto tempo conseguiria manter, respondeu:
— Eu também não.
— Você vai vir comigo, querendo ou não, amor. — Kaito lançou seu corpo para frente, agarrando o pulso dela, que fechou os olhos e se encolheu. — Ninguém mais pode ter você.
— E-eu não to com ninguém.
— Que bom-
— Mas… mas não vou pra lugar nenhum com você. Nós… — ela engoliu as lágrimas. — Nós acabamos, Kaito. Me solta, por favor.
— Mentirosa. — Cuspiu, apertando mais. Ela gemeu. — Tudo bem. Se não vai ser minha, também não vai ser de mais ninguém. — Seu toque começou a queimar. se debateu, mas não conseguia se soltar, mesmo quando pareceu que Kaito estava esmagando seus ossos. — Isso vai te ensinar a não falar comigo desse jeito. — Ela gritou de dor quando a sensação se espalhou por todo o seu corpo. — Te transformo de volta quando aprender o seu lugar de uma vez por todas.
Ela sabia o que estava acontecendo, claro. A Individualidade de Kaito era transformar as pessoas em animais, o nível de conforto durante a transformação dependendo das emoções dele. E ela podia sentir quão bravo ele estava, o quanto ele queria machucá-la. As lágrimas escorriam livremente pelas suas bochechas, logo ficando presas em pelo. Seu corpo encolheu e seus pés não tocavam mais o chão, o aperto inabalável de Kaito em seu pulso a mantendo suspensa no ar até a transformação estar completa. Ela imaginou que ele a levaria embora, se não fosse o prédio estremecendo ao redor deles, o choque o fazendo soltar por tempo o bastante para ela escapar.
aterrissou nas quatro patas, dor emanando da que ele segurou, e fugiu pelo corredor. O equilíbrio nesse corpo era mais fácil do que o esperado, mas parecia mais instinto de sobrevivência do que ela realmente sabendo se mover nele. A mulher não olhou para trás para ver se Kaito a estava seguindo, ou se conseguiu sair antes que o prédio começasse a cair. Ela só precisava escapar dele — de novo.
Shoto ouviu as rachaduras antes de ver qualquer coisa. Estava fazendo patrulha, cobrindo um bairro que não fazia parte do seu percurso normal, mas estavam com poucos heróis profissionais na região e ele podia ajudar. Era um distrito bem pobre, que ainda estava se reconstruindo dos danos causados pela guerra, cheio de prédios instáveis e altos níveis de criminalidade.
Ele avistou o prédio fazendo o barulho no fim do quarteirão, a estrutura parecendo frágil e prestes a colapsar.
— Merda, — murmurou, soltando fogo da mão esquerda para se lançar naquela direção. — Tenho um prédio desmoronando na minha localização, preciso de assistência e uma equipe médica — gritou no rádio, analizando o melhor jeito de ganhar tempo para uma evacuação. Shoto estava longe de ser o herói mais adequado para a situação, mas os últimos anos tinham ensinado ele a improvisar. Cobriu as paredes externas do prédio com gelo grosso o bastante para fornecer um pouco de estrutura extra, deixando aberturas estratégicas em algumas janelas, de onde ele criou escorregadores para a rua, assim como a porta da frente. Algumas pessoas já estavam saindo, por perceberem o perigo ou para entender porque havia gelo por todo lado. — Por favor, se afastem o máximo que puderem. E avisem os vizinhos, o prédio está desabando e preciso que o quarteirão seja evacuado.
Três ou quatro das pessoas se espalharam pela rua para fazer o que ele pediu, enquanto os outros só fugiram. Satisfeito, ele usou uma das janelas para se lançar para dentro do andar mais alto e começar a tirar as pessoas.
Não havia muitos, e a maioria já estava saindo por conta própria, ainda bem. Ele carregou um senhor de idade com dificuldade para andar, o entregando ao filho, que chorava, e a um vizinho que ajudou a levá-lo até onde era seguro. Alguns moradores tinham notado os escorregadores antes que ele dissesse qualquer coisa, alguns demorando um ou dois minutos a mais para avisar os outros que havia um caminho mais rápido e ajudá-los a sair.
— Pra onde caralhos ela foi? — Shoto ouviu um homem murmurar enquanto passava. Ele parecia bem mais bravo que assustado ou preocupado, mas o herói se aproximou mesmo assim.
— Tem alguém-
— Não se mete nos meus assuntos, herói — interrompeu e Shoto apenas piscou, surpreso com a reação. Bom, ele podia descobrir sozinho se ainda havia alguém. O homem saiu pisando duro, xingando baixinho. — Aquela puta e sua maldita sorte.
Que cara esquisito. O herói balançou a cabeça e seguiu em frente, verificando cada apartamento enquanto desviava dos escombros que começaram a cair. Mais rápido, Shoto. Ninguém… ninguém…
Um som desesperado, como um bebê chorando, preencheu o ar.
Ele estava quase no primeiro andar, os caminhos já parcialmente bloqueados conforme o peso do concreto destruía seu gelo. O homem parou, tentando localizar a origem do som, e ouviu outra vez, muito mais fraco. Seus olhos focaram em uma parede caída, que não estava completamente destruída ou plana no chão, e o espaço embaixo de alguns dos blocos. Uma minúscula rachadura o permitiu ver movimento ali. Ele se ajoelhou ao lado, erguendo o concreto com seu gelo só o suficiente para puxar o gato para fora, o encarando surpreso. Ele tinha pensado que era uma criança, não um animal, mas, bem. Talvez fosse o bichinho de estimação de alguém. De qualquer forma, era uma vida, e agora ele não ia abandoná-la.
Os olhos encontraram seu rosto com medo, então se encheram com mais gratidão do que ele achava ser possível para um animal. Aqueles olhos pareciam vagamente familiares, embora ele não conseguisse lembrar de onde. Shoto ignorou isso, focando de volta no momento e no aspecto claramente ferido do gato, uma das patas caída em um ângulo estranho.
— Como é que eu vou te tirar daqui? — murmurou. O bicho soltou outro som fraco em resposta e o homem suspirou, deitando-o de volta no chão com cuidado. Esse era o último andar que ele precisava verificar, ele só tinha que ser rápido. Depois de passar pelos últimos três apartamentos sem encontrar ninguém, voltou ao gato, o pegando com a maior delicadeza possível e abraçando contra seu peito. — Vamos sair daqui.
O animal soltou um som de dor, mas não se moveu, não protestando nem quando Shoto correu, os sons do prédio desabando aumentando e anunciando que o tempo deles estava acabando. Ele chegou à rua poucos segundos antes de seu gelo rachar também, o prédio inteiro caindo de uma vez. A equipe médica já estava na rua, civis atrás deles em segurança só com alguns arranhões, e a maioria dos que ainda estavam sendo tratados estavam só em choque. Ao que parecia, os piores danos tinham sido sofridos pelo animal em seus braços, para o seu alívio.
Shoto não tinha certeza do que fazer. O gato, no fim das contas, nunca tinha sido visto por nenhum dos moradores do prédio. Mas o herói não podia simplesmente abandoná-lo. Tinha algo no jeito que o animal havia olhado para ele que só… não dava. Então, assim que ficou livre depois do incidente, ele informou a agência que precisaria fazer um desvio antes de voltar. Uma rápida busca online mostrou a clínica veterinária mais próxima da agência e ele seguiu direto para lá, carregando o animal agora inconsciente com o máximo de cuidado que conseguia, os pelos laranjas agora cobrindo parte de seu uniforme.
— Ela vai precisar manter o gesso até a pata estar firme de novo — disse a veterinária, coçando o topo da cabeça do bicho. Então suspirou. Shoto tinha explicado como a havia encontrado ao chegar. — Eu consertei os ossos, mas… disse que encontrou ela presa em um prédio desabando, certo?
— Sim.
— Não acho que os machucados dela sejam de hoje. A pata talvez… mas o resto me faz crer que não foi causada pelo concreto.
— O que quer dizer?
— Essa gata parece ter sido espancada, não esmagada por uma parede. Ela tem hematomas na barriga e nas costas se escondendo embaixo do pelo, parecer já ter alguns dias. Acredito que a tenha salvado de mais do que pensava. — O herói franziu o cenho, seu coração pulando uma batida. — Ela vai precisar de muita atenção durante a recuperação, mas é majoritariamente pelo que deve ter passado. Posso falar com uma amiga que cuida de animais resgatados, mas ela já tá na capacidade máxima, não posso prometer que vai ter espaço pra mais uma.
— Não será necessário. — Decidiu. — Eu fico com ela.
— Tem certeza? É uma grande responsabilidade. Animais resgatados podem demorar muito pra se adaptar, tendem a ser ariscos, agressivos ou só desconfiados de humanos em geral. Pode não ser um processo simples.
Não é muito diferente de mim, anos atrás, ele pensou. E talvez essa semelhança fosse a razão de Shoto estar tão investido.
— Só me diz o que ela vai precisar. Nunca tive um animal de estimação antes.
A médica conteve um sorriso antes de fazer uma lista com o que ele precisaria comprar e instruções do que fazer. Ela nunca tinha lidado diretamente com nenhum dos heróis dessa nova geração, mas era legal ver em primeira mão o quanto eles genuinamente se importavam, mesmo sem nenhum ganho publicitário. Não era à toa que o jovem à sua frente era um dos sucessores do All Might. Ele foi até a loja ao lado da clínica, comprando tudo da lista, então voltou para buscar o gato adormecido, só parando na agência para pegar sua mala e seu carro antes de ir para casa.
não sabia onde estava quando acordou. Era uma casa na qual ela nunca tinha estado, e tudo pareceu estranhamente grande por um momento antes de seu cérebro pegar no tranco e recordar o que tinha acontecido. Certo. O Kaito me transformou num gato. O prédio caiu. Shoto me salvou e me levou pra um veterinário. Ela lembrava de ser carregada para fora do prédio, depois de acordar na clínica por alguns instantes. Foi aí que descobriu qual animal tinha se tornado antes de a médica a colocar para dormir.
A mulher esticou cada uma das patas, testando o novo corpo agora que não estava cheia de adrenalina. Era uma sensação muito esquisita. Seu braço direito — o que Kaito tinha segurado — estava em uma tala, e doía um pouco apoiar nele, mas era menos pior do que o esperado. Na visão periférica, identificou movimento e virou a cabeça rapidamente, descobrindo um rabo laranja. Seu rabo. Certo. se perguntou mais uma vez onde estaria, se tinha sido levada para algum lugar pela veterinária ou se tinha sido acolhida por alguma alma bondosa.
— Ah, você acordou — disse uma voz suave acima dela.
A mulher ergueu a cabeça para encontrar Shoto — sim, o mesmo herói que a tinha resgatado — com um sorriso gentil. Ele não estava perto, mas ela se afastou um pouco; porque ele já era alto em comparação com a sua forma humana, agora que tinha quase 20 centímetros de altura, ele parecia um gigante, e suas últimas experiências com homens a faziam ter cautela. Ele esticou uma mão na direção dela com a palma para cima, se agachando para chegar mais perto, mas ainda mantendo uma boa distância entre eles.
— Eu não vou te machucar, pequena. Você tá segura agora, prometo.
Você é um homem e promessas são só palavras vazias. Como eu posso confiar em você? Ela queria responder, mas o único som que saiu de sua garganta foi algo entre um chiado e um miado, os pelos das suas costas e rabo eriçados.
— Tá tudo bem se não acreditar em mim. Mas vou cuidar de você do mesmo jeito. — Seu tom não tinha mudado, ele não parecia bravo com a reação. O herói recolheu a mão, apontando para um canto da sala. Os olhos dela seguiram o movimento e encontraram potes de água e comida. — A veterinária falou pra comprar pra você, se estiver com fome ou sede. Não sei se tava acostumada a sair sozinha, mas vou deixar as janelas fechadas, tá? Pelo menos até se recuperar um pouco.
Bom, não é muito diferente da minha vida antes. Dessa vez, ela só o encarou. O homem coçou a cabeça, sustentando seu olhar.
— Nunca tive um bicho de estimação antes, não sei se to fazendo direito. Meus amigos disseram pra falar com você, mas eu nem sei se você entende o que eu to falando.
— Miau — sim, eu te entendo. É você que não me entende.
— Você parece que entende, mas eu já sou ruim em ler gente — confessou. lembrava mesmo do herói ser famoso por entender deixas sociais errado. Ele deu de ombros. — Enfim, bem-vinda à sua nova casa, acho. Eu moro aqui sozinho, então vamos ser só nós dois. Midoriya, Sero, Uraraka, Iida, Bakugo, e Kirishima visitam com certa frequência. — Ela reconheceu os nomes como outros heróis que tinham estudado com Shoto e lutado na guerra. — Minha mãe e minha irmã também.
Certo. A infame família Todoroki. Seu pai e seu irmão te fizeram passar uns bons perrengues, né?
— Eu devia avisar pra eles não virem te conhecer em grupos grandes, isso pode te assustar.
Não as mulheres, pensou, sentando. Elas não me assustariam.
Ela o assistiu suspirar e ficar em pé outra vez, desistindo dela cheirar sua mão. Então ele seguiu, esquentando seu jantar,e muitos minutos se passaram em silêncio. não conseguia parar de observá-lo, algo dentro dela precisando se certificar que ele não ia atacar no segundo que ela desviasse o olhar, mesmo que suas duas interações com ele até agora tivessem sido ele a salvando.
Shoto parecia mais preocupado do que bravo quando seu olhar a encontrou, mas ele não tentou se aproximar outra vez. Ela estava faminta — não conseguia nem saber quantas horas tinham passado desde sua última refeição —, e o que quer que ele estava comendo tinha um cheiro maravilhoso, então ela havia cheirado o ar mais de uma vez, mas não ousou se aproximar. não tinha nem pisado fora do cobertor onde tinha acordado.
— Pode explorar a casa — murmurou em algum momento. — Eu só disse que não vou te deixar ir pra rua porque a veterinária falou pra ficar de olho em você até sua pata estar boa. — Shoto direcionou os olhos para ela, inclinando a cabeça de lado ao notar a reação. Ele olhou para a comida, depois para ela. — Você… quer um pouco? — tentou responder, mas só conseguiu miar. Porém, pareceu o bastante para ele. — Não tenho certeza se você pode comer comida de gente, mas a veterinária disse que não era bom você ficar de estômago vazio…
Ele se levantou, mexendo em uma sacola plástica na bancada e tirando outro pote, onde colocou alguns pedaços de carne do seu prato. Então, parou para pensar por um momento, olhando para ela.
— Vou deixar aqui, ta? — disse, andando devagar até uma das paredes. Os outros potes estavam atrás dela e ele teria que passar para alcançá-los, então este foi deixado na parede da cozinha mais longe de onde estava sentado, num canto onde ela não precisaria chegar perto dele para comer. Satisfeito com a posição, Shoto voltou ao seu lugar, e ainda esperou vários segundos, o observando com cautela, antes de finalmente se render à fome e mancar até lá.
Ela se sentou de forma que ainda conseguisse manter os olhos nele enquanto comia, mesmo que ele não parecesse ter intenção de levantar antes de terminar sua refeição. Então, lentamente, hesitando, ela cheirou a comida — o que a fez salivar. esperou mais alguns minutos antes de tentar pegar um pedaço — ela realmente não sabia comer assim, mas ia descobrir — e congelou quando se ouviu ronronar. Shoto ofereceu um sorriso ao vê-la comendo.
— Vou dizer pra Fuyumi que gostou da comida dela. Tem mais na geladeira quando acabar.
Ela ainda esperou mais para continuar a comer, mas, uma vez que começou, se entregou, acabando rápido. Não que estivesse mais confortável com a presença do homem, ela ainda observava cada um dos seus movimentos, mas tinha que admitir que a comida era boa. Quando o pote estava vazio, andou de volta para o cobertor e ele se levantou para servir mais carne. Eles terminaram de comer em silêncio e Shoto foi para o quarto dormir. se enrolou no cobertor, olhos na porta, e caiu num sono agitado.
Gato
I'm just needin' a little space, I'm just needin' a little time
Don't mind me, I'm just feelin' kinda broken
So I'll be here with my emotions
Don't mind me, I'm just feelin' kinda broken
So I'll be here with my emotions
Shoto suspirou, abrindo a porta. Estava cansado, trabalhando turnos duplos nos últimos dias e tentando fazer o gato não temê-lo tanto quando chegava em casa. Ela só comia comida humana, não a ração que ele deixava, nunca baixava a guarda quando ele estava em casa a não ser que ele estivesse dormindo e houvesse uma porta fechada entre eles, e ainda não deixava ele chegar perto sem chiar e parecer apavorada.
Ele ainda não tinha dado um nome para ela. Tinha pensado nisso, mas algo não parecia certo em dar nome a uma criatura que ainda tinha tanto medo dele, então acabava só se referindo a ela como gata ou pequena. Tinha começado a falar com ela de forma carinhosa numa tentativa de parecer menos intimidador, e pelo menos isso não piorava as coisas.
Agora, além disso tudo, o herói tinha recebido o retorno sobre o prédio onde a tinha encontrado, o que consistia de papelada para preencher. Pelo menos isso era algo que ele podia fazer do conforto do seu sofá, motivo pelo qual tinha voltado para casa mais cedo. Colocou a pasta e a sacola com sua comida na mesa, abrindo o arquivo para dar uma olhada antes de tomar banho. Ele certamente não estava esperando um arquivo de desaparecimento na primeira página.
— Desaparecida? Quem é você? — murmurou para si mesmo, correndo os olhos pelo papel. — Você não tava lá. — Ele encontrou a foto de uma mulher que não devia ser muito mais velha que ele, com cabelos longos e uma franja que quase escondia um par de grandes olhos . Olhos que pareciam estranhamente familiares, mesmo que ele não conseguisse lembrar de onde.
Ela estava registrada como a moradora do apartamento 34, e as anotações da polícia diziam que não morava lá há muito tempo, e que a lojista do outro lado da rua a tinha visto entrando no prédio antes do desabamento, mas ninguém a viu sair. Ele franziu o cenho, repassando as memórias daquele dia enquanto tomava banho, mas o herói não tinha lembranças dela lá. Talvez ela tivesse saído por conta própria e algo aconteceu depois disso?
O som vindo da sala o assustou, um lamúrio dolorido. Ele correu para lá, esquecendo de pôr uma blusa, para encontrar a gata sentada na mesa encarando a foto da mulher. Shoto não tinha ideia de como explicar, mas ela parecia tão triste.
— Isso foi… você? — Ele não esperava mesmo uma resposta, mas ela ergueu o olhar para ele. Dessa vez, ela não se escondeu ou fugiu quando ele se aproximou, deixando-o chegar perto o bastante para ler o arquivo — e ela definitivamente estava encarando o papel. Lhe ocorreu que talvez ela fosse da moradora desaparecida, mas não havia nenhum animal de estimação registrado a ela, e alguém a teria visto entrando com o gato. Sem mais teorias, ele se ouviu perguntar: — O que foi?
Ela miou novamente, passando a pata pela foto. Shoto não era nenhum especialista, mas mesmo ele sabia que esse comportamento era estranho.
— — murmurou o nome da mulher, a gata bloqueando o sobrenome. Ela soltou outro som de dor, indicando o arquivo de novo. — Esse é o nome dela. — O animal repetiu a atitude e um pensamento maluco lhe atingiu. Testando a teoria, ele chamou hesitante: — ?
— Miaaaaaau. — Se virou para encontrar seu olhar.
— Esse é o seu nome? — Outro miado, e ele sabia que era loucura, mas podia jurar que ele estava assentindo. O herói olhou do gato para a imagem, os mesmos olhos o encarando de volta nos dois. Ele com certeza via a semelhança. — Isso que eu chamo de coincidência. Ok, então. — Ele não queria estragar o progresso que parecia ter feito com o animal, e o nome parecia tê-la agradado, então apontou para o arquivo. Ela parecia entender o que ele dizia, então certamente não ia fazer mal. — Posso pegar o resto? Eu preciso ler. — E realmente, a gata deu licença. Tentando se convencer de que era normal, Shoto falou novamente antes de sentar em silêncio para ler e preencher a papelada: — Obrigado.
soltou um som fraco, deitando na mesa com os olhos ainda na foto da sua chará.
A situação toda parecia muito esquisita. Não havia parentes próximos listados para ela, apenas uma anotação que a polícia estava procurando, não havia endereços anteriores. A única informação sobre ela era um emprego em um restaurante barato — onde ela não tinha aparecido desde o incidente —, e informações pessoais como nome completo, idade, e que ela não tinha Individualidade.
— Alguém tem que ter visto você — murmurou para os papéis.
não saiu para se esconder outra vez até depois do jantar, o que o herói considerou um grande passo.
Três semanas depois
— … se engane, velho, só to indo por causa da Mãe e da Fuyumi. Já te disse.
— Shoto… — a voz retumbante do homem podia ser ouvida antes mesmo que a porta se abrisse. se lançou para debaixo do sofá, querendo ficar fora do que quer que fosse aquilo.
— Acertamos as nossas diferenças, mas isso não muda o que você fez. Quantas vezes vou ter que dizer? Ainda é tudo sua culpa. — Shoto soava claramente bravo, o que era uma mudança que a mulher não esperava. Mesmo assim, sua voz não estava mais alta do que o normal.
A dupla entrou no apartamento, mas ela só conseguia ver os pés deles. Os do Shoto, fáceis de reconhecer, e botas enormes com cheiro de queimado. Endeavor, percebeu. O infame herói flamejante seguiu o filho pela sala com passos pesados que a fizeram se encolher. Ela já não era muito fã, e conhecê-lo pessoalmente a fez decidir que com certeza não gostava dele.
— Filho, você ta sendo irracional.
Shoto o ignorou, só indo direto para a cozinha e enchendo o pote dela de comida — frango, a julgar pelo cheiro. Ele não a chamou nem fez o próprio prato como fazia normalmente, e podia ver o quanto a situação o incomodava. Ela ainda estava aprendendo a confiar nele e se abrir, mas uma parte dela tinha entendido que ele não a desejava mal e a tinha protegido até o momento, mesmo que não ganhasse nada com isso. Ela o devia sua vida.
A mulher se deslocou em busca de um ângulo melhor para ficar de olho neles, ainda fora de vista.
— Shoto, estou falando com você. — Endeavor exigiu, voz adotando um tom que fez um arrepio descer pela espinha dela, mesmo que não fosse o alvo. — Shoto!
— Já disse que eu vou, o que mais você quer? — Sibilou, fuzilando o pai. — E abaixa a voz, você ta assustando a .
Isso fez o mais velho parar. Depois de alguns segundos, ele perguntou num tom vazio:
— Quem caralhos é ?
— A gata que eu resgatei.
Outro momento de silêncio se passou antes que ele continuasse a falar, ignorando completamente o pedido. Ela tentou ignorar, se lembrando que ela não era o alvo de sua raiva, mas mesmo assim era assustador ouvir os dois continuarem a discutir.
Parou de repente, ar gelado varrendo a sala.
— Já não falei pra parar de gritar? — Ela arriscou uma espiada, bem a tempo de ver um iceberg de Endeavor derretendo. Olhos díspares a encontraram. — Desculpa, .
Num tom bem mais contido, Endeavor falou outra vez:
— Por que o seu gato tem nome de gente? E por que você inventou de adotar um gato?
— Ela gosta do nome e responde. O que ela não gosta é de sons altos. — Ela tinha certeza que o herói flamejante estava revirando os olhos da reclamação, mas Shoto continuou mesmo assim. — E ela precisava que alguém tomasse conta dela, foi ferida.
— E decidiu que ia ser você?
Ele deu de ombros.
— Não vejo porque não.
— Então tem tempo pra cuidar de um bicho aleatório, mas não pra visitar sua família?
— Eu visito minha família. Vejo a Mãe, Fuyumi e Natsuo o tempo todo. Além disso, a nunca causou mal a ninguém, nunca foi responsável pela loucura de ninguém, e nunca causou nenhum problema na minha vida. — Cruzou os braços, encarando o mais alto, seu tom ácido. — Eu não visito você, e você sabe muito bem por que não. Não pode apagar o passado, pai, não importa o quanto tente provar que mudou. Ainda foi você que nos destruiu.
Endeavor não teve resposta para aquilo, seu fogo morrendo com seu silêncio. Shoto usou a oportunidade para terminar de organizar as coisas dela, enchendo o pote de água e pegando um cobertor a mais. Ele se ajoelhou ao lado do sofá para encontrar os olhos dela.
— Vou voltar tarde, mas ainda hoje, tá? — Ela só o encarou, mas ele aceitou como resposta suficiente. — Preciso trocar de blusa. Tenta não assustar ela mais do que já fez.
— Eu realmente sinto muito pelo que aconteceu, filho. E estou fazendo o meu melhor. Não queria brigar no seu aniversário. — O homem disse baixinho, suspirando e se sentando no sofá. só cobriu seu rosto com as patas, tremendo e torcendo para que ele fosse embora logo, assustada demais para se afastar.
Quando Shoto chegou em casa, estava exausto. Lidar com seu pai sempre tinha esse efeito. Ele também estava preocupado com o jeito que tinha reagido ao homem. Claro, no início ela também era cautelosa com ela, e odiava qualquer voz mais alta, especialmente vozes masculinas, mas nunca tinha se escondido embaixo do sofá e coberto a cabeça daquela forma. Também não tinha desaparecido daquela forma quando Fuyumi veio visitar, e parecia muito mais confortável perto dela do que ficava perto de Shoto. Ela tinha sido ferida por um homem, ele tinha certeza.
Sem querer incomodar mais a gata naquele dia, ele não acendeu a luz depois de entrar. A essa hora, ela já devia estar dormindo, embora ele não conseguisse adivinhar onde. Ela sempre se escondia para dormir, ele assumiu que ela devia se sentir mais segura assim. Ele tentou fazer o mínimo de barulho possível, se trocando e deitando.
O sonho era estranho. A princípio, ele viu correndo, seu pelo laranja contrastando com o cenário cinzento. Shoto a seguiu, e pouco depois se viu encarando uma cela. Porém, não era o gato atrás das grades, e sim a mulher desaparecida, encolhida num canto e soluçando. Ela estava coberta de hematomas e seu braço direito estava numa tala. Ele colocou as mãos nas grades, querendo libertá-la, mas, quando ela ergueu a cabeça e tentou falar, só o que saíram foram miados em pânico.
Ele acordou assustado. O som não estava no sonho, e ele pulou da cama para tentar encontrar . Os gritos dela estavam vindo da sala e ele a achou no sofá, se debatendo e enroscada na coberta que ele deixou para ela.
— ! — chamou, tentando acordá-la, mas não adiantou muito.
Ele se aproximou, estendendo a mão para ela. No geral, o homem evitava tocá-la, já que ela não parecia confortável e ele não queria piorar o estado dela, mas isso era diferente. Ela podia se machucar se ele não a acordasse. No segundo que ela a tocou, ela chiou e o arranhou, se afastando. Ele recolheu a mão instintivamente, o machucado ardendo, mas tentou de novo.
— , ei, acorda. — Shoto a sacudiu, ganhando mais arranhões no processo, e continuou a chamá-la até os olhos finalmente focarem no seu rosto. Ela estava ofegante e claramente apavorada, mas arrependimento e tristeza aos poucos ganhando espaço no seu olhar. — Tá tudo bem. Você tava tendo um pesadelo, bebê, mas tá segura agora. — O apelido escorregou sem pensar, sua voz baixa e calma, mas ela só o encarou tremendo. — Sou só eu. — Esticou a mão esquerda devagar, segurando-a acima dela e emanando calor. fechou os olhos, choramingando e se encolhendo. — Tá tudo bem. Você tá bem, bebê. Foi só um pesadelo, já acabou.
Vários minutos se passaram até ela parar de tremer e conseguir abrir os olhos. Sentou-se devagar e seu olhar encontrou os arranhões na mão dele. Ela soltou um miado fraco, quase um pedido de desculpas.
— Eu não me importo, sei que não foi de propósito. — Tentando provar isso, Shoto colocou a mão ao alcance dela, a palma para cima. A gata hesitou por um segundo antes de se aproximar e cheirar a pele dele, mas não se afastou de volta. — Viu? Tá tudo bem, são só uns arranhões. — Ele colocou a mão ainda mais perto, para fazer carinho nela, e pela primeira vez ela o deixou fazê-lo, esfregando a cabeça contra a mão dele. — Tá tudo bem, bebê, eu juro.
Ele ficou lá com ela, mantendo a temperatura quente e aconchegante, e acabou caindo no sono no sofá. Na manhã seguinte, quando acordou, ela ainda estava deitada ao seu lado.
O inverno acabou e foi seguido por uma primavera estranhamente fria.
De forma lenta, mas consistente, aprendeu a confirmar no seu salvador. Ele a tinha acordado de muitos pesadelos depois daquele primeiro, e sempre ficava até ela se acalmar o suficiente para voltar a dormir. Nesses momentos, ele a chamava de bebê, mas surpreendentemente não a incomodava. Ela só ficava feliz de não ser “amor”, na verdade. Eles tinham caído em uma rotina mais confortável, com ela se escondendo menos. A contragosto, a mulher tinha aceitado Shoto como uma espécie de amigo, mesmo que ele não soubesse que ela era humana e a coisa toda fosse bem unilateral.
Ele cuidava dela e ainda estava trabalhando duro no seu caso — tinha até ido pessoalmente atrás de Kaito quando a polícia conseguiu localizá-lo como seu endereço anterior. Claro que o filho da puta tinha mentido e dito que não sabia dela desde que tinha desaparecido do seu apartamento, que estava muito preocupado, mas ela já tinha sido dada como desaparecida quando ele foi à polícia. Pelo menos Shoto não tinha caído nessa, mencionando para ela que tinha certeza de ter visto Kaito no prédio durante a evacuação, mas, sem provas, ele não tinha como convencer a polícia a investigar. O que eles poderiam encontrar afinal? Ela já estava bem embaixo do nariz dele.
O herói falava com ela o tempo todo. Ela não sabia bem por que, mas a fazia se sentir menos mal que ele não a tratasse como se não entendesse. A fazia se sentir pelo menos um pouco humana.
também tinha conhecido os amigos e o resto da família de Shoto. Quase todo fim de semana aparecia alguém para visitá-lo, e ele a apresentou para todos, mas sempre respeitando se ela se sentia confortável de ficar por perto. Isso foi algo que o ajudou muito a conquistar a confiança da mulher: ele nunca a pressionava para nada. Sempre a deixava escolher onde ficar, de quem se aproximar, sempre garantia que ela tivesse uma rota de fuga ou um esconderijo, e nunca a tocava sem permissão, com a única exceção sendo acordá-la dos pesadelos. E ele nunca ficava bravo por causa dos arranhões, mesmo que ganhasse vários. Ela se sentia péssima.
Se movimentar era mais fácil agora que a tala não era mais necessária, e o homem deixava uma das janelas abertas quando saía para trabalhar caso ela quisesse sair para um passeio, mas ela nunca ia. Não era um gato de verdade e não queria arriscar encontrar Kaito, então ficaria segura dentro de casa, muito obrigada.
Era noite e estava dormindo no pé da cama de Shoto. O quarto era a parte mais quente do apartamento e estava frio. Ele também estava dormindo, embora a temperatura não o incomodasse — provavelmente graças à sua Individualidade —, e só estava com um cobertor sobre o peito nu.
Ela acordou com sede, mas, antes que pudesse se levantar para tomar água, o movimento na cama chamou sua atenção. Pulou na escrivaninha para enxergar o que estava acontecendo e se surpreendeu ao encontrar o homem se debatendo, uma fina camada de gelo cobrindo partes da sua pele. O que tá havendo?
Sua expressão era consternada, lábios se movendo sem produzir nenhum som. Chamas se acenderam na sua mão esquerda por um instante, apenas o suficiente para iluminar o quarto antes de se apagarem. Ele estava tendo um pesadelo? Certamente era o que parecia.
Ela considerou o que fazer por alguns segundos, com medo do fogo, mas este não voltou a aparecer. Respirando fundo, pulou na cama, andando com cuidado até ele. Ela só queria devolver o favor.
Seu tamanho não a permitiria acordá-lo, isso era óbvio. E não tinha como chamá-lo, mas ela podia fazer barulho, então começou a miar o mais alto que conseguia. Ao mesmo tempo, tentou dar batidas leves com a pata no rosto dele repetidas vezes. Levou algumas tentativas, mas funcionou, um arquejo e olhos arregalados mostrando que Shoto tinha despertado por fim. Querendo reconfortá-lo também, subiu devagar no peito dele e começou a ronronar. Ele respirou fundo e lhe ofereceu um pequeno sorriso.
— Obrigado, bebê. Desculpa ter te acordado. — Trouxe uma mão até a cabeça dela, os dedos tremendo e o coração acelerado embaixo dela. — Fazia tempo que eu não tinha um desses, mas acho que eles nunca vão realmente embora, né?
Ela miou em resposta, preocupada. Sobre o que ele estava sonhando que era tão ruim?
— Ta tudo bem. A guerra acabou, meu cérebro só esquece às vezes. — Sua respiração aos poucos voltou ao normal e o gelo desapareceu. — Não somos tão diferentes, eu e você. Um passado cheio de merda e pesadelos sobre, certo?
Era difícil de imaginar algo que assustasse o herói, mas aquele foi um dos momentos que a lembrou que ele era só uma criança quando a guerra aconteceu. Quantos anos ele tinha agora? 20? 21? Não devia ter mais que isso. Tinha lutado na guerra mais devastadora do século com apenas 15 anos. Tinha enfrentado o próprio irmão no caminho. Sem mencionar tudo o que ele devia ter passado longe dos olhos do público. Ao perceber tudo isso, a mulher se surpreendeu que ele não tivesse mais pesadelos ou problemas. Ficou deitada em cima dele, sem saber o que fazer.
— Você deve querer voltar a dormir, né? Não se preocupe comigo, vou ficar bem. — Ela não se moveu, já que ele parecia longe de “bem”. Ele lhe lançou um olhar curioso. — Quer ficar aqui?
— Miau.
Isso o surpreendeu.
— Ta bom então. Obrigado de novo, bebê.
Eles dormiram naquela posição o resto da noite, e nenhum dos dois foi incomodado por pesadelos até de manhã. Todas as noites depois disso, eles concluíram que não faria mal se manter próximos.
Dois meses depois
Apesar de tudo, se encontrava preocupada com Shoto. Ela sabia que o herói conseguia se cuidar, mas ele tinha saído há três dias para trabalhar e não tinha voltado. Sua mãe veio alimentá-la e lhe fazer companhia por algumas horas a cada dia, e a senhora de cabelos brancos havia mencionado que ele estava preso lutando contra um grupo de vilões fora da cidade.
Estava sendo uma batalha longa demais, e tudo o que ela tinha conseguido ver na TV parecia péssimo. Por fim, ela decidiu desligar o aparelho e desistir, escolhendo torcer e esperar. Foi no final do quarto dia que ele finalmente passou pela porta, exausto, machucado e mancando.
A mulher pulou da jaqueta dele, que tinha roubado do armário e levado para o sofá para dormir perto da porta com o cheiro dele.
— Miau! — esfregou a cabeça contra sua perna boa, o peito se enchendo de alívio ao vê-lo vivo.
— Oi bebê. — Shoto deu um pequeno sorriso, mas não a pegou no colo nem se abaixou para fazer carinho. Em vez disso, foi direto para o quarto, onde se sentou na cama com um grunhido, tirando a jaqueta que vestia e a blusa.
Só isso foi esforço o suficiente para fazê-lo precisar recuperar o fôlego, o que não parecia nada bom. Havia cortes e hematomas cobrindo sua pele, incluindo um machucado bem feio que cobria quase toda a lateral esquerda do seu abdômen e desaparecia calça adentro, provavelmente o responsável por ele estar mancando. Estava tão escuro que quase fazia o dragão vermelho da tatuagem desaparecer. Ela engoliu um nó na garganta, sentou na cama ao seu lado e miou baixinho, colocando uma pata delicadamente sobre sua mão.
— Tá com fome? — Deus, como ela queria conseguir falar agora. Para poder confortá-lo, dizer quão preocupada tinha ficado, qualquer coisa. Quando ela não se mexeu, ele acariciou sua cabeça. — Eu sei que fiquei fora um bom tempo. Desculpa te deixar sozinha. Agora eu preciso de um banho e depois preciso dormir.
Você precisa é de cuidados médicos, ela quis protestar, mesmo que conseguisse ver curativos nos piores cortes. Como os médicos tinham deixado ele ir para casa nesse estado? O homem pegou o telefone e ligou para sua mãe, sua irmã, e a agência, depois respondeu mensagens dos amigos.
só ficou deitada ao seu lado, olhar não desviando dele por um segundo. Enfim, Shoto se levantou e foi direto para o banheiro, ligando o chuveiro. Ela virou as costas para ele — normalmente, até sairia do quarto para respeitar sua privacidade e deixá-lo se trocar em paz —, mas estava preocupada demais para deixá-lo sozinho. Era como se o peso dos últimos dias finalmente tivesse saído do seu peito, permitindo que ela respirasse sem dificuldade, e acabou adormecendo com a certeza de que ele estava em casa e a salvo.
Quando acordou, barulhos suaves por perto, Shoto já tinha saído do banho. piscou algumas vezes para espantar o sono e sua vista foi preenchida pela vista do herói de costas e nu. Ela fechou os olhos de volta imediatamente, mas a imagem da bunda dele se recusou a deixar sua mente. Não estava corando, já que parecia que gatos não tinham essa capacidade, mas seu coração estava acelerado e ela com certeza estava envergonhada e culpada. É lógico que ele não via problema nenhum em se vestir na frente de um gato, mas ela não era um, e tinha conseguido respeitar a privacidade dele até aquele momento. E claro, não tinha tido a intenção de ver nada, não tinha nem tido a intenção de adormecer, mas isso não mudava o que havia acontecido.
Seu coração batia descompassado. A mulher tinha notado uma semana antes que seus sentimentos por ele eram bem mais do que só gratidão e amizade, e isso por si só já lhe causava pânico o suficiente. Ela estava presa em forma de gato. Ele nem imaginava que ela era algo além disso. O que ela esperava? A vida não era um conto de fadas, onde ela conseguiria convencer o príncipe a lhe dar um “beijo de amor verdadeiro” e ela seria magicamente transformada em uma princesa para que vivessem felizes para sempre. E, enquanto dava para argumentar que Shoto era realmente um príncipe, ela estava longe de uma princesa em todos os aspectos, e felizes para sempre não existiam.
Mas ela podia viver com isso. Tinha aceitado há meses que o resto dos seus dias seriam passados como um gato, e mesmo que ele nunca visse a mulher, ela se daria por satisfeita só de ficar ao seu lado. Provavelmente estava danificada demais para lhe oferecer mais, de qualquer forma. já se surpreeendia que o herói tinha conseguido juntar os cacos do seu coração e fazê-lo bater por ele, mas, depois de tudo o que ela havia passado, certamente não esperava voltar a desejar alguém. De novo, não que isso mudasse as circunstâncias.
— ? — chamou baixinho e ela abriu um olho, só abrindo o outro quando se certificou que ele tinha colocado uma calça. — Achei que tava dormindo. Tem certeza que não ta com fome?
Ela só o fuzilou com os olhos, querendo mandá-lo ir descansar de uma vez e parar de se preocupar com ela. Ele surpirou, balançando a cabeça e deitando, e ela foi até seu travesseiro, tocando o rosto dele com uma pata. Olhos díspares a encararam de volta com curiosidade. Você precisa se cuidar. Queria poder fazer isso, mas não posso, então tem que ser você. Não faz isso de novo.
— Que foi, bebê? — Esticou a mão para coçar sua orelha e ela se aproximou para esfregar a cabeça contra sua bochecha. Isso lhe tirou um sorriso. — Desculpa ter preocupado você. Eu to bem, juro.
Você ta todo machucado e mancando. Ficou fora por quatro dias.
— Não vou sair de novo tão cedo. Vem cá. — Bateu no peito duas vezes, os braços abertos para dar passagem.
Ela sabia que não devia. Ele não sabia. Mas também não era como se fosse descobrir algum dia, ou como se ela fosse se transformar de volta. A mulher cuidadosamente se aconchegou contra ele, a cabeça sob seu queixo, e ele colocou o braço ao seu redor, respirando fundo.
— Não vou a lugar nenhum, bebê — foram suas últimas palavras antes de caírem no sono.
Dois meses depois
A porta se abriu, deixando entrar as vozes de Shoto e outro homem. Esse não conhecia, mas a conversa soava amigável, e a voz do estranho era suave, então não se preocupou, nem se movendo de seu lugar confortável no sofá.
— Todoroki-kun, isso é um gato? — perguntou curioso.
— Ah, é, eu resgatei ela em dezembro. — Se aproximou para acariciar as costas dela, o ronronar suave preenchendo o ar antes dele andar de volta até a mesa.
— Ela parece feliz. Nunca achei que ia ter um bichinho de estimação.
— Também não, mas só aconteceu. Ela é boa companhia. Mas preciso dizer, você teria sido bem útil no começo.
— Teve dificuldade de entender ela? — O que ele queria dizer com isso?
— Surpreendentemente, não foi tão difícil quanto eu achei que seria, mas a tem uns comportamentos que teriam sido mais rápidos de entender com tradução. — Tradução? Espera. Aquele era… qual o nome dele? Anima, não era? O herói que falava com animais. As orelhas de se ergueram, se perguntando se ele conseguiria entendê-la.
— Hm? Que foi, ? — perguntou Shoto, a vendo pular na mesa e esticar a patas no ar para eles. Ele coçou atrás da orelha dela por um momento e ela ronronou, mas continuou a encarar seu antigo colega de sala.
— Talvez eu possa tentar descobrir? — ofereceu o outro herói e Shoto assentiu, dando um passo para o lado. Ela ficou nervosa. Quando ele a levou para casa, tinha aceitado a idéia de passar o resto dos seus dias como um gato. Ela vinha agindo com essa certeza há meses, o que significava muitos comportamentos que ela não queria ter que explicar ao herói quente e frio. E isso nem significava que eles conseguiriam trazê-la de volta, só que talvez, talvez, pela primeira vez em meses, alguém a entenderia. — Tudo bem…?
— . — Shoto completou por ele.
— Tudo bem, ?
Ela respirou fundo.
— Miau — na verdade, essa conversa não vai ser nem um pouco como você ta esperando. Seus olhos se arregalaram em surpresa, provavelmente não esperava uma resposta tão articulada.
— Hm… okay? Meu nome é Koda, tem algo em que eu possa te ajudar?
Ela suspirou, se preparando. Então você consegue me entender. Uau. Isso é… a primeira vez em um bom tempo. Ela estava miando para ele como fazia no começo, quando esquecia que não conseguia mais falar, mas sua expressão era gentil e atenta. Ela tentou não olhar para Shoto. Isso vai soar muito louco, mas eu não sou um gato.
— Não? — Koda franziu o cenho.
Eu sei que não faz sentido nenhum, mas eu juro, sou tão humana quanto você. Fui transformada em um gato e to presa nesse corpo há meses.
Sem tirar os olhos dela, ele direcionou a próxima pergunta a Shoto:
— Sabia que ela não é um gato?
— Como assim ela não é um gato?
Ele não tinha como saber. Fui transformada logo antes de ele me achar. Por favor diz pro Shoto que eu sinto muito, e que eu não tenho nem por onde começar a agradecer por todos os jeitos que ele salvou a minha vida.
— Ela ta dizendo que foi transformada antes de você encontrar ela. Pra te pedir desculpas, e que ela não tem como agradecer todos os jeitos que você salvou ela.
— Você é humana?! — Shoto arregalou os olhos e miou baixinho para ele, assentindo.
— Eu vou só… vou passar palavra por palavra, pode ser? — Tudo bem. — “Achei que ninguém ia conseguir me entender. Pensei que seria um gato pra sempre. Mas tentei te falar no começo. Desculpa mesmo, Shoto. Eu sou a mulher desaparecida do apartamento 34.” Isso faz sentido pra você? — Koda parou de traduzir por um momento e compreensão cruzou as feições divididas.
— Lembra que eu mencionei ter achado a num prédio que tava desmoronando? — Ele assentiu. — Uma das moradoras nunca foi achada. Eu sabia que ela não tava no prédio, olhei tudo, e não tinha nenhum corpo nos escombros, mas a funcionária da loja do outro lado da rua insistiu que viu ela entrando uns minutos antes de eu chegar. Poucas pessoas conheciam ela, tinha acabado de se mudar, mas aí ela nunca mais apareceu no trabalho. A polícia localizou o namorado dela, o endereço anterior era o apartamento dele, mas ele disse que também não sabia dela. — Se virou para a mulher. — É você nas fotos, bem embaixo do meu nariz esse tempo todo. Por isso ficou tão triste quando eu tava com o arquivo. Tava tentando me dizer… — Shoto parecia perturbado, correndo uma mão pelo cabelo. Koda olhou de um para o outro.
— “Exatamente. E você disse que viu Kaito no prédio antes de me achar, certo?” Quem é Kaito?
Shoto assentiu.
— O namorado. — chiou, arqueando as costas com os pelos arrepiados.
— Ela ta colocando muita ênfase em “ex”. Hm… “Terminei com ele e fugi do apartamento no meio da noite, só levei o que cabia na bolsa. Ele não gostou. Me achou no apartamento novo. Foi ele que me deixou assim, é a Individualidade dele.” Por que ele te transformaria num-? Ah.
— Koda, por quê? — A essa altura, ela sabia que ele tinha ligado os pontos, e tinha assumido o tom de voz que reservava para brigar com Endeavor. O outro homem pareceu incerto por um momento, hesitando para responder.
— Pra… pra punir ela. E levar ela de volta pra casa dele. Ele não consegue controlar qual animal sai, só o tamanho e… isso é horrível.
— O quê?
— Isso foi pra ela ficar fácil de carregar e impedir de escapar. Ela ta dizendo que a queda do prédio foi o que fez ela conseguir fugir.
— Ele quebrou seu pulso também, não foi? E os hematomas e… todo o resto.
— Miau.
— Foi.
Os próximos segundos foram preenchidos por um silêncio tenso conforme absorviam a realidade do que tinha acontecido. Quando Shoto falou novamente, se dirigiu direto a ela.
— Então você consegue me entender perfeitamente?
— Consegue. É por isso que ela miava tanto nos primeiros meses, esquecia que não conseguia falar.
A expressão de Shoto se tornou séria e determinada, mais do que ela já tinha visto. temeu que ele ficasse bravo por todo esse tempo, que ele gritasse, a expulsasse, ou pior.
— Não posso mudar o que aconteceu com você. Queria poder, queria mesmo. Mas vamos encontrar um jeito de te devolver sua vida. Prometi que estaria segura quando te trouxe pra cá e pretendo cumprir essa promessa.
Ela poderia ter chorado. Em vez disso, andou até ele e esfregou a cabeça carinhosamente contra seu braço.
— Ela é muito grata.
Sua expressão derreteu em um pequeno sorriso, acariciando sua cabeça e ganhando um ronronar. E, se Koda percebeu mais alguma coisa que ela era, gentilmente manteve para si.
Antes de ir embora, os homens prometeram a que pensariam em um jeito de ela poder se comunicar sem precisar que Koda traduzisse, pelo menos até conseguirem transformá-la de volta.