Prefácio
Era uma vez, uma moça brasileira comum. Nascida no interior de Goiás – Centro-Oeste do país, para quem não é fã da geografia – e criada na capital, Goiânia. De origem pobre e modesta, ela é como a maioria das garotas do país.
Em um contexto bem realista, levando em consideração suas condições financeiras não tão precárias se comparada a outras situações existentes naquela mesma nação, ela estudou em escolas municipais e militares durante sua vida toda. E algumas pessoas, um tanto quanto ignorantes, sugeririam que graças às cotas é que conseguiu ingressar na faculdade federal mais anelada da região, a UFG - Universidade Federal de Goiás.
Você deve questionar-se o que teria de interessante na vida de uma moça que não vive nenhuma situação anormal, ou que não fuja da normalidade da comunidade em que reside ao menos um pouco, para dessa forma fazê-la notória em meio a tantas outras. E nós, narradores, sugerimos desde já, explicitamente, que o quê transforma uma história em clássico, ou digna de livros didáticos, não depende unicamente do contexto em que se insere o enredo, mas da capacidade das personagens de tirar uma lição de acontecimentos cotidianos e de alterar verdades dadas como absolutas. Na capacidade que qualquer ser tem, mas que se faz raríssima… Ou simplesmente ignorada.
cursava Sociologia, e o período em questão era o terceiro. Não era uma veterana convicta do campus da UFG, mas ainda assim não era tão caloura quanto aqueles que chegavam ao início daquele ano. Além disso, já estava mais do que inserida ali - tinha seu próprio grupo de amigos para farrear, conhecidos como “a galera do Buritis”, uma débil associação ao bairro em que a maioria deles residiam.
E tudo começara em fevereiro de 2018, naquela festa de boas-vindas aos então calouros da Universidade…
Capítulo I
A semana de festas de boas-vindas aos calouros já estava pela metade e ele não tinha comparecido em um dia sequer, mas podia se virar. Se valendo de uma boa desenvoltura social, não demoraria muito para se enturmar. Certificou-se de se vestir muito bem e parecer o mais agradável possível, até porque, a primeira impressão é a que fica, dizia ele para si mesmo. Não que se importasse muito com o que as pessoas pensassem dele, mas achava interessante causar uma boa impressão naqueles aos quais ele teria que conviver por um bom período de tempo.
Chegando ao local onde a festa aconteceria naquela noite, notou o som alto e as luzes refletindo às portas do salão, antes lhe informado. Subindo as escadas que levavam à entrada, pensava apreensivo em como seriam as pessoas da faculdade, talvez por ser a primeira vez que participaria desse meio – uma faculdade federal e de uma cidade pouco conhecida. Logo, chegando perto da porta, foi barrado por alguém:
– Boa noite! – cumprimentou as mulheres altas e trajadas com roupas de festa. – Convites, por favor.
– Ah, claro. – levou a mão ao bolso e tirar dali o celular para mostrar o convite, entregue a ele por mensagem pelo até então desconhecido padrinho¹. – Aqui.
– Pode entrar – disse uma delas, abrindo a porta – e aproveite a festa! - e fecharam do lado de dentro antes que ele pudesse dizer obrigado.
Logo ao virar-se, deparou-se com um salão gigantesco, repleto de pessoas de mesma idade ou pouco mais velhos que ele – a festa, certamente, se tratava de um público jovem em sua maioria, sem professores velhos ou coordenadores carrancudos, pelo menos, ele não havia notado ninguém que se encaixasse neste padrão. Balcões com garçons e bebidas de um lado, DJ e muita música do outro, bolas coloridas espalhadas pelo salão e pessoas dançando e se divertindo das mais diversas formas. Típica farra de boates paulistas. Ainda bem, pensou ele, seria mais fácil sentir-se acolhido se seu gênio combinasse com o daquelas pessoas. Pensando nisso, abriu um sorriso sereno, mesmo que não fosse o que aquele clima pedia.
Em meio a bagunça, procurava quem lhe enviara o convite pelas características que ele lhe dissera e a foto que vira pelo perfil do WhatsApp. Era difícil, em meio aquela multidão e barulho, encontrar alguém. Porém, logo se deparou com um homem lhe chamando atenção perto de uma bancada adornada por papéis coloridos, a sua esquerda. Era ele, tinha certeza. Andando entre as pessoas que não deixavam muita passagem disponível, ele chegou até o homem que logo que o viu estendeu a mão para cumprimentá-lo.
– ? – indagou . O rapaz assentiu vagamente com um aceno de cabeça.
– E você é o . – sorriu para o outro, se desencostando da parede para poder ouvi-lo em meio à algazarra. – Beleza?
– Beleza. – respondeu , finalmente, retribuindo o cumprimento que se estendeu para um abraço caloroso, como se já se conhecessem há tempos. O recém-chegado se afastou do padrinho universitário, sem jeito. Observou então a comemoração ao redor – As festas já estão acontecendo há quanto tempo?
– Desde o início da semana – disse , sorridente – Você já perdeu muita coisa. Toma – lhe entregou uma bebida que se apoiava à bancada colorida anteriormente. – Acho que você vai querer conhecer o pessoal. Vem! Vou te apresentar umas pessoas, no caminho eu te conto tudo.
– Ah, sim, claro – não teve tempo nem de sorver um gole decente de sua bebida, antes de ser puxado pelo braço.
– Vamos pelas escadas, eles devem estar no segundo andar – murmurou , apontando na direção.
– Segundo andar? – pareceu hesitar. Não queria afastar-se demais da aglomeração com alguém que sequer conhecia bem.
– Claro. Você acha que um andar suportaria todas as pessoas bêbadas da faculdade? – riu. – Tem pessoas até no gramado lá fora. Normalmente, a faculdade toda vem nessas festas. Ou pelos menos a maioria dela.
– E os professores? Eles e os funcionários também costumam vir?
– Alguns. Alguns deles até ajudam na organização. Eles dizem que é importante dar as boas-vindas aos estudantes. Assim eles se sentem mais em casa, facilitando o aprendizado e a integração social – disse ele, imitando os professores e arrancando risadas de ambos. – Onde você mora, fofura? - perguntou ao guiá-lo escada acima.
– Na cidade mesmo. – deu de ombros.
– Em que bairro, gênio? – o mais velho riu. – Você não parece daqui, aliás. Tem, sei lá, um sotaque diferente.
– Sou de Brasília. Quero dizer, era de Brasília. Agora estou morando... Por aqui.
– Não sabe o bairro?
– Me mudei há pouco. – disse quando chegaram ao final do lance de escadas. – Não me familiarizei com os nomes ainda. – riu um pouco, torcendo o nariz em uma careta.
– Há quanto tempo está na cidade? – parecia procurar por algo ou alguém no horizonte escuro do segundo andar ao perguntar, provavelmente os amigos que havia mencionado.
Assim como no primeiro andar, a festa acontecia com a mesma música alta, fumaça, luzes e bolas grandes de plástico coloridas espalhadas pelo chão e teto. A diferença estava na quantidade de comida. Por ali havia mais mesas com petiscos dispostos à venda. O bar improvisado daquele andar era mais extenso e bem mais atraente a seus olhos.
– Umas duas semanas. – respondeu, ainda observando ao seu redor.
– Onde estão os outros? – ouviu indagar ao seu lado e virou-se para ele, confuso com a pergunta.
O padrinho não se dirigia a ele, afinal. Caminhava com passadas longas na direção de uma moça morena de cabelos volumosos que apenas deu de ombros para a pergunta dele.
– Esse é , meu afilhado. – riu com a frase, apontando para o rapaz atrás de si. – Chega mais, margarida. – puxou , abraçando-o pelos ombros. – Então, o que achou?
franziu o cenho, sem entender a pergunta.
– Belo casal. – a moça riu anasalado.
– O quê? – arregalou os olhos, pensando não ter ouvido direito.
encarou-o como se o analisasse.
– Hum... Não faz muito meu tipo. – abanou o ar com a mão se afastando do calouro e arrancando uma risada baixa da mulher. – A cobra da Mônica ficou com meu celular e preciso das minhas músicas. Essa galera só coloca música velha, tenho certeza que são os de História, querendo nos levar pra era das cavernas.
revirou os olhos para a péssima analogia, mas riu.
– Já volto. – bateu no ombro do outro.
não soube se deveria segui-lo ou esperar por ali, porém acabou levando muito tempo para decidir e quando se deu conta já havia sumido por entre as pessoas.
A moça suspirou inquieta. Batucava os dedos no próprio braço e batia o pé no chão, repetidas vezes, como se fizesse música. Sua aparente ansiedade angustiou-o. Mesmo que estivesse sem graça com a situação em que fora deixado ali pela única pessoa que conhecia ao menos um pouco, sentiu-se tentado a tirá-la daquela bolha de aflição que, definitivamente, não combinava com um evento universitário.
– Acho que não sei seu nome. – aproximou-se dela para que pudesse ouvi-la melhor em meio a música.
– Eu tenho certeza que você não sabe. – ela tentou sorrir, mas isso não amenizava sua aparência incomodada.
– E não vai me contar? – ele ergueu uma sobrancelha.
– . - acabou com o joguinho mais rápido do que ele imaginava.
– O meu…
– Eu já sei. – ela o interrompeu.
– Você nem sabe o que eu ia dizer. – ele revirou os olhos, mas tinha um sorriso encantador nos lábios. – Eu ia dizer que o meu desejo no momento é ir para um lugar mais tranquilo. Me acompanha? – Não sabia o porquê de ter sugerido aquilo. Claro que a resposta dela precisaria de uma válvula de escape convincente para que não se passasse por idiota, mas não era o tipo de cara que abandonava uma festança como aquela sem ao menos terminar seu primeiro copo de bebida. Gostaria de acreditar em seu altruísmo, assim depois que ela estivesse bem, ele poderia voltar e curtir de verdade.
encarou-o por alguns segundos, pela primeira vez, reparando no rapaz. Alto, esguio, cabelo comprido, olhos claros. Quase franziu o cenho, no entanto conteve-se no último segundo. Ele, definitivamente, não fazia seu tipo e de longe seria alguém que ela tentaria algum flerte, mesmo que fosse de uma beleza encantadora. De qualquer forma, apenas assentiu com a cabeça, assistindo o rapaz alargar o sorriso e passar a se afastar da multidão aglomerada no centro do salão cada vez mais. O seguiu sem pestanejar, qualquer lugar que ele pudesse levá-la não podia ser pior do que um salão repleto de pessoas se movimentando, cheio de barulho e frases da Universidade a lembrando que em breve estaria de volta à rotina universitária. Após descer as escadas de volta para o primeiro andar e de ter esbarrado em algumas pessoas, notou no quanto o calouro parecia perdido. É claro. Como ele saberia de um bom lugar se, aparentemente, nunca esteve ali?
– Vamos só sair daqui. – ela disse alto em meio a música para que ele voltasse a prestar atenção nela.
concordou com a cabeça, e agora era ela quem os guiava. Logo estavam no exterior do prédio de Letras, caminhando sem pressa pelo lado contrário das pessoas que acabavam de chegar.
O vento deliciosamente fresco acalmou a agitação que incomodava . Respirou fundo algumas vezes, sentindo-se tranquilizar aos poucos. Odiava aquele tipo de festa e o fato de ter sido levada à força apenas complementava seu mau-humor.
Percebeu, com a visão periférica, que o calouro a encarava sem pudor algum. Provavelmente, achava que ela estaria com algum problema por estar inspirando o ar como se estivesse com dispnéia².
– O ar aqui, nessa época do ano, não costuma ser fresco assim. Temos que aproveitar. – tentou descontrair, mesmo que suas bochechas insistissem em queimar.
riu anasalado, se perdendo nos traços suaves da moça por mais alguns segundos antes de responder.
– Me disseram que aqui o clima é mais seco quando me mudei. – balançou a cabeça como se concordasse com ela.
– Oh, você não é daqui. – ela parou de andar repentinamente para encará-lo. – De onde é então?
– Brasília.
– Ah. – murmurou como se estivesse decepcionada, fazendo-o franzir o cenho. – É perto daqui. Pensei que fosse um lugar mais… Longe.
– Bem, apesar de ser relativamente perto, há muitas diferenças entre Goiânia e Brasília…
– Aqui é pior, você quer dizer.
– Você gosta de tirar palavras da boca das pessoas, mas não era o que eu ia dizer. – revirou os olhos, um sorriso de canto não permitindo que parecesse rude.
– Geralmente, as pessoas que vêm morar aqui não falam muito bem da cidade. Imaginei que você seria mais um desses parasitas chatos. – sorriu para ele sem mostrar os dentes, a ironia em sua voz demonstrando o quanto repudiava aquilo.
– Estou em processo de adaptação. – levantou as mãos como se estivesse se rendendo. – Nada a reclamar ainda, mas posso não fazer parte de suas estatísticas de probabilidade. – piscou divertido.
– Veremos. – arqueou uma sobrancelha como se o desafiasse, afastando-se logo em seguida para sentar-se nos bancos do ponto de ônibus.
não hesitou em segui-la. Curiosamente, algo nas poucas palavras trocadas o havia interessado, fazendo-o esquecer-se da parte em que ele se despedia e voltava para a festa assim que soubesse que ela estava melhor.
– Você já vai embora? – questionou após minutos incômodos em que ele se atormentara para quebrar o silêncio, já sentado no banco do ponto a uma distância confortável da garota.
– Acho que sim. – deu de ombros. – Odeio essas festas da universidade. Soa para mim como uma abertura aterrorizante do filme de terror que será mais um semestre de curso. – gesticulou.
– É tão ruim assim? – perguntou parcialmente assustado, suas sobrancelhas franzidas e os olhos pouco sobressaltados.
– Não. – soltou um riso anasalado ao responder. – Eu amo o curso, sinto que nasci para isso. Apenas não lido bem com começos, entende? E com festas cheias de gente, álcool e drogas como surpresa de uva.
Ele apenas assentiu, permitindo que o silêncio voltasse a se instalar entre eles. Na verdade, não podia entendê-la. Como alguém que cursa algo que gosta tem medo de voltar a estudar? Ou melhor, como alguém poderia não gostar das festas da faculdade? Ansiou, durante todo seu pacato ensino médio, as festanças que os universitários prometiam. Ouvia falar, inclusive, que havia pessoas que só entravam na faculdade por conta delas. Escutar aquilo da segunda pessoa que conhecia na universidade era imensuravelmente decepcionante, chegava até mesmo ser assustador.
Optou por afastar a sensação ruim que aquele pensamento lhe causava. Esperou tanto para estar ali, ter suas expectativas frustradas antes mesmo de começar não era algo que aceitaria facilmente. Então, tentou resgatar o interesse que o fizera insistir em sua permanência ao lado da moça recém-conhecida com um assunto que não tivesse qualquer ligação com a faculdade.
– Já ouviu falar de Entrelaçamento Quântico? – se voltou para ela a tempo de ver seu semblante alterar de pensativo para uma careta depreciativa.
– Não entendo nada de Física ou Química...
– Não envolve números, se este é o problema. – ele riu. – É uma teoria interessante até. Mas se não quiser ouvir... – ia dando de ombros quando fora interrompido.
– Não! Por favor, me conte. Quero saber o que significa interessante para você. – sorriu, esforçando-se para não soar mais antipática do que já havia sido. – Caso seja tedioso, você paga meu táxi.
– Um bom desafio. – ele concordou aos risos. – Bom, de acordo com o entrelaçamento quântico quando se separa uma partícula entrelaçada e afasta ambas as partes, mesmo em extremos opostos do universo, se você alterar ou afetar uma das duas, a outra mudará e ficará alterada também. Einstein chamou de “ação fantasmagórica à distância”. – ele concluiu animado.
– Não sei se entendi muito bem, . – ela riu, coçando a cabeça como se estivesse se esforçando para pensar.
– Me dê sua mão. – ele pegou a mão dela e entrelaçou a dele. – Está vendo? Elas estão ligadas, muito ligadas. Se forçarmos elas se separarem – afastou a mão, estendendo o braço para o lado oposto, representando a maior distância possível. – e então alguém machucar sua mão, a minha mão irá ser machucada por igual. Deu para entender?
– Acho que sim. Mas por que isso é interessante mesmo? – arqueou uma sobrancelha para ele, um sorriso travesso retornava ao desafio.
– Você tem que olhar de forma mais romântica para as coisas. – tocou a ponta do nariz dela com o indicador, desmanchando assim a expressão ladina da moça e a deixando sem graça. – Você acredita em almas gêmeas?
– Eu nunca pensei sobre o assunto, na verdade. – respondeu em um tom de voz menor que antes.
– Pense nisso como uma teoria para almas gêmeas. Mesmo que separadas por uma grande distância, tipo Brasil e Tailândia ou Terra e Marte, se um deles se machucar ou ficar um pouco feliz, que seja, a mesma coisa ocorrerá com o outro. – sorriu de canto para ela.
– Você pensou nessa relação, sozinho? – franziu o cenho surpresa.
– Surpresa?
– É bem romântico. – ela assentiu com a cabeça. – Você não parece ser um cara romântico, sem querer ofender. – riu, sendo acompanhada por ele.
– Também não pareço um cara que assistiria a um filme chamado “Amantes Eternos” – deu de ombros. – Aliás, foi lá que encontrei essa teoria.
– Eu sabia! – ela deu um tapinha no braço do rapaz que ainda ria.
– Mas é interessante, não?
– É. Visto desse ponto de vista, parece se tratar de um bom filme.
– Qual é? Mereço algum crédito! Duvido que algum homem já tenha te abordado de forma tão romântica, científica e tocante. – arqueou as sobrancelhas, desafiando-a.
– Ah, agora eu entendi. – ela revirou os olhos, o sorriso bobo não abandonava seus lábios. – Apenas me responda quantas garotas esse papo já descolou?
– Realmente, você não é muito boa nessas coisas de alma gêmea. – gozou dela. – Nas teorias mais populares só existe uma alma gêmea para cada pessoa. – ele sorria de canto marotamente, olhando fundo nos olhos dela.
– Quer mesmo que eu acredite que está dizendo essa história só para mim? – mais uma arqueada de sobrancelha.
– Geralmente eu não espero tanto tempo para roubar um beijo. – alargou o sorriso, dando de ombros. – Então, sim. Mas se der certo hoje, talvez eu não precise mais disso.
– Você é bom. – ela ria sem graça. – Mas se eu não for sua alma gêmea, não poderá dizer a mesma coisa para ela quando chegar a hora.
– Sim, então eu espero ter uma boa intuição.
não deixava que seus olhos se desviassem da garota que, em contrapartida, tinha o olhar baixo e as bochechas avermelhadas, denunciando sua vergonha. Não sabia a partir de que momento passara a se sentir atraído pela morena, apenas que naquele instante estava tentado a não estragar tudo.
Tocou o queixo dela com a intenção de fazê-la olhá-lo nos olhos, todavia quando conseguiu o que queria surpreendeu-se – não abriu espaço de tempo para que ele presenciasse ainda mais seu embaraço, colou sua boca a dele antes que o mesmo pensasse em fazê-lo.
nunca fora o tipo de garota que se encontrava insegura em situações como aquela, no entanto fora pega de surpresa. Em um primeiro momento, cogitou a improbabilidade de ocorrer algo entre eles assim que o julgou pelo estereótipo. Já em um segundo momento, estava impressionada com a forma que fora abordada com uma “cantada” nada convencional. Não tinha qualquer sensação completamente definida, só sabia que naquele momento queria beijá-lo e que não pareceria a garotinha ingênua que estava soando até então.
Ainda surpreso pela ação repentina da moça, sentiu a mão dela tocar seu rosto, na intenção de guiar o beijo. Ele permitiu-se levar de bom grado, enquanto a mão dela descia a sua nuca,as dele subiam por sua cintura a trazendo mais para perto. Não demorou muito, tomara a iniciativa de aprofundar o beijo, apertando suas unhas na nuca do rapaz. Logo, não ficara para trás, fermentou ainda mais o toque de suas línguas, transformando aquilo que incialmente parecia se tratar de um beijo tímido em um contato ousado, um tanto fogoso e excitante.
Quando já faltava o ar, foi quem se afastou, mesmo que não o suficiente para quebrar o contato de lábios. Ainda de olhos fechados, ambos tinham a respiração acelerada e enquanto se recompunham perdiam-se no turbilhão que enchia seus pensamentos.
Fora um simples beijo, afinal. De pessoas que não se conheciam e muito menos nutriam algum sentimento uma pela outra. Era o que os optaram por acreditar.
– Amantes Eternos é sobre vampiros. – , como sempre, ótimo em dissolver pensamentos desfavoráveis.
– O nome faz sentido, afinal. – riu um pouco, afastando-se de vez do rapaz.
– Não é como Crepúsculo que não tem nada a ver com o título. – ele deu de ombros. – E muito menos com vampiros. – riu.
– Um comentário ousado a se fazer para alguém que conhece tão pouco. – comentou naturalmente, encarando a entrada do prédio do qual saíram.
– Você é fã? – questionou um pouco sem graça.
– Está ficando frio aqui. – ela desviou do assunto, voltando a olhá-lo quando a resposta tardou mais que o esperado.
– Acho que sei para onde podemos ir. – disse ao se levantar e estender a mão cavalheiramente à moça.
mais uma vez se surpreendeu, todavia aquela não fora a última vez naquela noite. O lugar que ele a levara não era nenhum cantinho especial na universidade, obviamente. Tratava-se apenas do carro dele, onde puderam ligar o aquecedor e o rádio e dali seguir em uma conversa gostosa sobre música e que viria a se estender para vários outros assuntos e até outros beijos.
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– , é o primeiro dia de aula. – sussurrou, revirando os olhos para a amiga.
– Eu sei, mas estava cansada demais para elaborar um conjunto de roupas que você aprovaria. Primeira semana de aula sempre me cansa antes mesmo de começar. – murmurou enquanto vasculhava uma prateleira de livros. – Aliás, há muito deixei de me importar com que roupa vou à faculdade. Foi a primeira que achei.
– Por que diabos essa blusa estava em primeiro no seu guarda-roupa?
– Porque eu gosto de usá-la para ficar em casa. – deu de ombros. – O que há de errado com ela?
– Olha o tamanho disso! Parece uma blusa da seção infantil, se não fosse pela frase escrita...
– Você tem algum problema com a legalização do aborto também? – apontou para a blusa feita para apoiar tal causa.
– Para de gritar. Isso é uma biblioteca. – a amiga repreendeu.
– Ora, então procure livros ao invés de me amolar.
Logo, as duas estavam sentadas frente às mesas dispostas para leitura. estava ali para complementar uma matéria de revisão que pouco recordava enquanto procurava e analisava os livros que teria de usar naquele semestre de curso.
– ! – um rapaz, que lembrava-se de ver em muitas de suas aulas no ano passado, abordou-a. – Meu amigo me pediu para entregar esse livro aqui. – o cara que ela ainda não sabia como chamar lhe estendeu um livro que aparentava ter umas 300 páginas.
Arqueou uma sobrancelha para ele, porém pegou o objeto que lhe era entregue. O título era algo relacionado à biologia, o que a deixou confusa de imediato, já que aquilo não tinha nada a ver com o que ela cursava.
– O que eu devo fazer com isso? – ela voltou a encarar o colega.
– Ah, ele disse que você precisava ler. – deu de ombros, no entanto não conseguia disfarçar a vontade de gargalhar. – Disse que pessoas que têm coragem de sair com roupas assim – apontou para a blusa dela – nunca leram um livro de biologia na vida. – Ele ria escandalosamente e antes que pudesse ser confrontado voltou a dizer. – Não fui eu quem disse! Foi o meu amigo ali! - ele apontara, mas foi incapaz de desviar os olhos daquele que ela julgava ser o maior mané que já tivera o desprazer de conhecer até então.
Sem ainda dizer nada, levantou-se com o livro na mão e o jogou com toda força que podia reunir de volta ao homem.
– ! – tentou repreender a amiga, mas já era tarde para impedi-la de algo.
– Vocês – apontou para os homens, que se julgavam muito engraçados – são irritantemente patéticos. E querem saber por quê?
apenas abaixou a cabeça, escondendo o rosto entre os braços, pois já sabia no que aquilo daria. Seria uma manhã bem longa.
¹: o programa “padrinho universitário” acontece em algumas universidades no Brasil e tem como função ajudar os calouros da faculdade, apresentar os professores, oferecer dicas sobre os serviços prestados pela universidade, entre outros.
²: dispneia é a dificuldade de respirar caracterizada por respiração rápida e curta.
Capítulo II
Estavam seis dos sete integrantes do grupo de amigos reunidos no refeitório da universidade aquele dia. trocava anotações com enquanto os demais comiam e jogavam conversa fora.
– está vindo aí. – foi Mônica quem cutucou as amigas. – Acompanhadíssimo!
ergueu o olhar para o amigo que faltava para completar o esquadrão. Era bastante notável sua presença, mesmo em meio aquele escarcéu que era o refeitório da universidade em horário de almoço. Ele ria alto e gesticulava fervorosamente enquanto contava algo para o seu acompanhante. tentou não parecer surpresa ao perceber com quem se animava, contudo, não pôde conter o comentário.
– Esse cara não é gay. – murmurou, arrependendo-se logo em seguida.
– E como você sabe? – Nathan ergueu uma sobrancelha para ela.
– Eu o conheci na festa de boas-vindas. – deu de ombros, esforçando-se para voltar sua atenção às anotações sem parecer suspeita.
– Hello, babies. – cumprimentou, sentando-se ao lado de Nathan e angariando a atenção dos presentes à mesa para si. – Galera, esse aqui é o . – apontou para o acompanhante que se sentava também.
– Oi, . – alguns disseram em uníssono.
apenas levantou o olhar por alguns segundos para não soar rude ou parecer incomodada pela presença de alguém que, supostamente, não conhecia. Percebeu assim que ele a encarava e alargava o sorriso presunçosamente diante do aparente desconforto dela.
– Oi – cumprimentou o rapaz com o sorriso enigmático, sem sequer desviar sua atenção da moça.
– Tomara que seja bom com nomes, – a amiga de brincou. – Me chamo . Essas são Mônica, e Síntia. – ela apontava para cada uma enquanto falava. – e os caras são Nathan e Lucas.
– Beleza? – Lucas estendeu a mão para fazer um toque com o calouro que retribuiu com um risinho anasalado.
– Ainda bem que você chegou ! – Mônica exclamou do nada, suscitando uma careta em Nathan que repudiava o jeito exasperado, em circunstâncias desnecessárias, da loura. – Temos que discutir nosso seminário!
– Aí, gata – resmungou torcendo o nariz, insatisfeito. – Vamos logo com isso, então. – ele puxou o caderno da mão de Mônica e sacou o celular do bolso. A essa altura, o grupo já se subdividia em discussões de diferentes temáticas, assim como ocorria antes da chegada de e . – Já pesquisei tudo que me pediu, mas acho que precisamos acrescentar algo naquilo. Ficou muito... Preto e branco. Faltam mais informações, mesmo que sejam inúteis. – ele gesticulava.
riu do comentário, sendo acompanhada por Lucas que se dividia entre aquela conversa e um papo estranho com Síntia.
– Olha, eu pensei a mesma coisa quando refiz algumas anotações. Que tal acrescentarmos a teoria de Malthus? É clichê e muito conhecida, mas acho que pode ajudar. – Mônica sugeriu.
– Malthus era um ignorante. – se pronunciou, revirando os olhos.
– Como? – indagou risonho.
– Ele era um idiota…
– Só por que o que ele previu não aconteceu? – Nathan interviu com a boca cheia de comida. – Quem contaria com uma revolução industrial e suas consequências?
– Não é por isso que ele era um idiota. – se ajeitou no banco, preparada para todo um argumento. – Em sua teoria, Malthus sugeriu que a população crescia geometricamente enquanto a produção de alimentos cresceria aritmeticamente, ou seja, muita gente pra pouca comida. O que significa fome e miséria para o mundo todo...
– Ela seria uma bela professora de quarta série. – Lucas zombou, causando risos em alguns.
– Te dou aulas particulares se precisar de reforço Luquinhas. – ela piscou para ele.
– Tá precisando, Luquinhas. – Síntia roía uma unha ao acrescentar debochadamente.
– O que eu quero dizer é: a solução de Malthus para esse problema era deixar a população à própria sorte e, dessa forma, passar por fomes e epidemias que a natureza causaria como uma maneira natural de diminuir a população. Seriam negados à mesma: hospitais, remédios e qualquer forma de ajuda. Uma total ignorância ignorada pela maioria dos livros didáticos. Se isso realmente acontecesse, quem seria morto? Os pobres, aqueles que, infelizmente, são subjugados as artimanhas de um governo e de uma classe superior. Seriam eles os feridos por doenças e os que enfrentariam as guerras, enquanto os demais se escondem em suas mansões e esperam o mundo se estabilizar para que eles possam comer sem preocupação.
– Nunca tinha pensado nisso. – riu.
– Pois, é! Malthus sugeria que a solução estivesse em remediar a situação. Mas como já sabemos, não era bem por aí. A solução estava ligada a causa e não ao resultado! Eis que Thomas Robert Malthus era um ignorante. – sorriu ladina.
– Tão ignorante quanto quem é a favor do aborto. – todos se viraram, instantaneamente, para a voz que se pronunciara.
– O que disse? – tentou, no entanto, não pôde conter o pasmo com o comentário do calouro.
– Você não é a garota que estava discutindo na biblioteca com um cara sobre isso, semana passada? – ele questionou com uma sobrancelha erguida e o dedo indicador estirado na direção dela, apontando-a.
Ela arqueou uma sobrancelha também. Por que ele falava como se nunca a tivesse visto? E ainda por cima a zombava sem nenhuma delicadeza. Seria possível, ele não se recordar dela? Era quase doloroso pensar nessa possibilidade, ego nenhum se sentiria confortável.
– Entendi seus motivos para ser a favor do aborto, aliás. Na verdade, os argumentos a favor nunca mudam. Mas me parece que se há uma ignorância nas teorias de um grande pensador e matemático que vivia em circunstâncias totalmente diferentes da sua, pelo fato de haver envolvimento de mortes inocentes, então há também ignorância em sua teoria contemporânea que nos remete a mais mortes inocentes.
Surpreendentemente, todos à mesa se calaram. Alguns se voltaram para esperando uma resposta que sabiam que viria; outros apenas desviaram suas atenções para a comida ou qualquer outro ponto do refeitório que não fosse aquela conversa maçante.
– Acredito que se você "compreendeu" – fez aspas com as mãos – meus argumentos, eu não precisarei repeti-los. Mas é realmente interessante o que disse. É. Eu realmente sou a favor da legalização do aborto, pois prefiro que alguém não venha nascer ao vir se tornar alguém com sentimentos e dores para ser largado em qualquer esquina... Ou simplesmente ser submetido a uma guerra e uma morte cruel para que os senhores da alta sociedade não passem fome. - argumentou em tom satírico.
– Então você não se difere muito de Malthus – comentou após um riso em escárnio. – A teoria de Malthus tinha como finalidade buscar uma solução para o sofrimento e a fome da população, que apontava métodos que causariam temporariamente sofrimento e morte a mesma. Com a revolução industrial e métodos que potencializaram a agricultura, a evolução científica nessas áreas provou que não era com maneiras tão retrógradas e simplistas que o problema da desproporcionalidade da população em relação à comida seria combatido.
– Sim, e daí? – perguntou não compreendendo onde queria chegar.
– Daí, que da mesma maneira, não é com o aborto que vai se resolver o problema do abandono, do sofrimento e da fome de milhares de recém-nascidos com todo um futuro pela frente. Assim como Malthus não teve a capacidade de pensar em outra solução que não fosse a morte de milhares de pessoas, vocês não tem capacidade de perceber que cada caso é um caso e que não é de maneira tão simplista que se resolve um problema tão complexo como esse.
– Vocês? – se voltou para a discussão dos dois não entendendo a razão do plural.
– Como eu disse os argumentos não mudam e, infelizmente, não são apenas os dela. – disse apontando com desdém para – Normalmente, esses são típicos argumentos de um esquerdista.
cerrou os olhos fixamente em . O fato de ele a definir como uma apoiadora da esquerda política, apenas pelo seu posicionamento em relação ao aborto, a irritava profundamente. a princípio manteve a calma. Sabia que era muito mais do que as palavras de um mero calouro e não ia se deixar levar pelas suas insinuações.
– Primeiramente, quem está tirando conclusões de maneira “simplista” é você – disse , fazendo aspas com as mãos – de achar que uma pessoa é esquerdista pelo simples fato de ser a favor do aborto. Segundo que, achar que o aborto é uma solução de tamanha indiferença como a solução que Malthus achou para o aumento populacional é no mínimo ignorância. A teoria de Malthus se opunha a qualquer posicionamento altruísta que se pudesse ter, se importando apenas com números.
– E o aborto não? – interrompeu a fala de com um riso debochado. – Ele generaliza todas as possibilidades de vida apenas a um único fim, excluindo qualquer chance de um futuro promissor que essa criança viria a ter.
– Futuro promissor? Não me faça rir. – falou com o tom de voz um pouco mais elevado, deixando escapar pormenores de irritação – Não me interrompa, ainda mais com observações tão ridículas. Dizer que uma criança largada à própria sorte tem alguma chance de um futuro promissor mostra uma interpretação muito ingênua da realidade. No mundo de hoje nem mesmo aqueles nascidos em uma família consideravelmente boa têm certeza de um bom futuro, basta ver os índices de desemprego. Até uma pessoa como você perceberia isso se tentasse pensar um pouco.
Mônica e Síntia levaram a mão à boca para disfarçar o riso que a última frase de as fizera dar. O tom provocador com que havia dito as últimas palavras o havia incomodado. A tensão no clima aumentava e aos poucos o diálogo entre os dois ganhava mais atenção dos demais presentes no refeitório.
– Você tem certeza que sou eu que deveria pensar? Se hoje você tem um celular de alta tecnologia na mão, não foi graças a pensamentos escrotos que nem esse seu, mas a pessoas que deixaram esse vitimismo de lado, como a mãe do Steve Jobs, e disseram não ao aborto. E não somente ele, mas tantos outros que com certeza você saberia aos quais me refiro se procurasse se informar um pouco antes de sair por aí falando asneiras.
Agora todos que estavam naquela mesa os observavam. Uns sem reação ao perceberem que já não se tratava mais de uma discussão amistosa, mas sim, uma briga. Outros demonstrando tomar as dores de um ou outro com suas reações e seus semblantes de desgosto às falas de cada um. E claro, havia aqueles, como Lucas, que apenas riam.
– Ah, e quanto aos índices, – continuou - eles só estão assim por causa de governos com visões e ideologias burras como as suas. Mas claro, o quê esperar de uma representação tão estúpida da esquerda como a brasileira?
– É sério isso? – riu alto, debochando do que tinha acabado de ouvir. – Steve Jobs? Você quer se basear em exceções como ele para tirar conclusões de um todo? Em uma democracia, que é a nossa forma de governo, caso você não saiba, as políticas são trabalhadas pensando na maioria e não é a maioria que muda o mundo de alguma forma e fica rica. A maioria vai ser abandonada e, sem saída, vai entrar para o mundo do crime. E é aí que pessoas idiotas e hipócritas como você vão apontar o dedo e falar que bandido bom é bandido morto.
– Políticas pensadas na maioria. Viu só? Vocês fazem todo aquele discurso de “luta em favor das minorias desfavorecidas” – falou arremedando a forma como eles supostamente falavam – para chegar a algum lugar e contradizerem a si mesmos assim. E não, sem saída, só aqueles sem caráter vão para o mundo do crime. Afinal, quantos e quantos depoimentos podem ser encontrados hoje de pessoas que nasceram na pobreza e que deram a volta por cima sem nunca se valer de desonestidade. Mas claro, sempre vão ter aqueles idiotas como você que vão apoiar criminosos.
, após a última frase dita por , não se conteve. Já havia ultrapassado o limite de sua paciência e agora falava e gesticulava demonstrando totalmente o contrário do início da discussão, onde os dois usavam de palavras sofisticadas e observações bem construídas para se mostrarem superiores um do outro com suas ideologias.
– Em nenhum momento eu me contradisse, seu miserável. – falava alto, se colocando em pé e batendo a mão na mesa, chamando a atenção de algumas pessoas das mesas próximas àquela. Aos poucos, as conversas iam se calando ao longo do refeitório, para descobrirem de onde vinha toda aquela gritaria. – a luta a favor das minorias é justamente uma forma de lutar contra sistemas opressores criados por pessoas com pensamentos como o seu, não me culpe se você não sabe interpretar um texto, seu analfabeto-funcional-ignorante-estúpido. Apoiar criminoso? Cada pessoa é diferente da outra, você não sabe o que cada uma delas passou para chegar a fazer o que fez. Se você não tem nenhum conhecimento de causa e ainda não tem uma gota de empatia, não pode sair por aí julgando a todos com uma visão tão ridícula da realidade.
Quase todos pararam o que estavam fazendo e olhavam atônitos para que, não percebendo a altura de sua voz, agora gritava em pé, apontando o dedo para , que também a encarava e já estava pronto para se levantar e passar a esbravejar. Todos percebiam que a discussão só pioraria, contudo, não ousavam se intrometer.
– Talvez, eu algum dia mude minha opinião em relação ao aborto, mas vai ser para abortar trastes como você. Tenho nojo de lembrar que um dia eu beijei um lixo humano como você.
imediatamente se arrependeu do que havia dito por puro impulso. Seus amigos arregalaram os olhos, boquiabertos com o que ela acabara de declarar em alto e bom som para todos naquele refeitório. O vermelho do sangue que se acumulava em seu rosto pela raiva, agora era justificado pelo constrangimento. Até Nathan que comia com tanto afinco, parou de comer para encará-la estupefato.
, que já se preparava para fazer um escândalo, irritado com os insultos de , havia ficado sem reação – os olhos sobressaltados expressando sua surpresa e também seu constrangimento por todos estarem olhando para os dois, esperando alguma conclusão da briga. Ele gostaria de acreditar que fora a adrenalina que o fizera pensar que o refeitório estava em completo silêncio, o que só deveria acontecer quando a universidade tinha as portas trancadas.
tratou rapidamente de virar de costas para a mesa em que se encontravam, sem coragem de levantar os olhos para todas aquelas pessoas que a encaravam.
– Ca..., vamos. Temos muito a fazer – murmurou, já a caminho da porta do refeitório em passos apressados, logo seguida por .
Aos poucos, as conversas ao longo do refeitório iam recomeçando e a atenção à mesa onde a gritaria começou ia se dispersando. Antes mesmo que isso ocorresse, deixara o refeitório pela porta do lado oposto por qual saíra, sendo acompanhado por alguns olhares curiosos.
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Os primeiros dias na faculdade não estavam sendo o que ele esperava... Ao menos não em relação às aulas. A realidade em contraste com a perspectiva tão idealizada durante o período escolar era quase decepcionante. Mesmo sendo da área de exatas, a única conta que pensava em fazer era de quantos dias poderia faltar àquelas aulas extensas e maçantes.
– Trabalhos, provas, matérias... Meu Deus, e eu que reclamava do ensino médio. – andava em direção ao pátio da faculdade relutando contra o sono, já esgotado.
– Mas já está assim? As aulas mal começaram – ria da situação do amigo. – Quando chegar o período de pré-entrega do TCC é que você vai ver…
– Muito motivador, você – suspirou, colocando as mãos no rosto. – Se eu desse bola para tudo o que você fala... Já teria desistido.
– Nossa, mas você faz um drama, hein? A verdade é que vocês de exatas são muito moles. Se tivessem uma aula de biológicas, como as que nós estamos acostumados a ter, não aguentariam nem o primeiro período. – falou com um tom de superioridade.
– Ah, claro. Como se biológicas fosse mais difícil – murmurou já menos sonolento, sentando-se em um dos bancos dispostos em frente a um dos prédios da cidade universitária, sendo seguido por – Vocês de biológicas se acham demais, só que não chegam aos pés dos de exatas. Se vissem metade das fórmulas que nós vemos em um dia, eram vocês que já teriam desistido.
– Uhum, antes que eu acabe com você nesta discussão como a fez aquele dia... Ah, você não me contou como vocês se atracaram sem ninguém ficar sabendo até hoje!
sabia que começar uma discussão com era pedir para ele falar mais do que de costume, o que já não era pouco, no entanto, pior do que isso era ter de contar sobre a noite incrível que teve com a garota com quem brigara na frente de um monte de universitários. Para a sorte dele, logo foram interrompidos por Mônica que vinha em direção a eles com um monte de folhas e livros nas mãos.
– Alguém pode me dar uma ajudinha aqui? – perguntou ela, jogando quase tudo em cima de , o impedindo de prosseguir com a discussão.
– Na verdade, foi você quem me ajudou. – ergueu as mãos, agradecendo aos céus e o respondeu com um chute na canela. - Ei!
– Por que vocês não vão para o refeitório? Todo mundo está lá. – Mônica sugeriu, organizando as folhas com o auxílio de .
– Exatamente por isso: porque está todo mundo lá. – pegou o celular no bolso – Aqui tem bem menos barulho e gente desagradável – acrescentou.
Mônica encarou com uma careta confusa. O amigo sibilou o nome de , seguido de um riso anasalado que voltou a chamar a atenção de para conversa.
– ! – murmurou em tom repreensivo.
– Ah, não acredito. Até hoje, você e a estão se evitando por causa daquela briguinha idiota? – indagou incrédula.
– É verdade, . Não seja tão infantil – se levantou – Vamos para lá, vai. Se você não quiser, é só não falar com ela.
– Melhor assim. Desse modo, vocês nos poupam dessas briguinhas políticas de vocês – Mônica revirou os olhos. – E por falar em briga política, você ouviu falar da manifestação que alguns estudantes estão planejando começar a organizar hoje, lá no refeitório? – questionou enquanto caminhavam, os três, em direção ao refeitório.
– É. Eu vi. Mas quando que pretendem fazer essa manifestação? Se for em época de aula, isso vai dar muito problema.
– Não sei, mas acho que vai ser em período letivo mesmo. – Mônica afirmou preocupada. – Conhecendo os militantes de esquerda dessa faculdade, eu acho que eles não vão fazer isso se não for para arrumar confusão.
– Militantes de esquerda? É sério isso? E contra o que eles pretendem militar? Qual o grande motivo, dessa vez? – interrogou , demonstrando uma atenção, até então, não dada à conversa.
– Desde que o diretor da faculdade vetou as manifestações em favor das minorias estudantis e também os cartazes que não seguissem a norma padrão da língua de serem postos no site oficial da faculdade, eles têm dito que está havendo opressão em relação à luta contra os resquícios de uma sociedade com pensamento retrógrado.
– Como assim, cartazes que não seguem à norma padrão da língua? – perguntou, olhando-a como se ela falasse grego.
– Você não viu que nos panfletos que eles estavam distribuindo as palavras estavam com “x” no lugar das terminações “o” ou “a” que davam valor de masculino ou feminino? Eles dizem que essa norma atual é muito machista, já que a maioria dos anúncios trata o destinatário com palavras de gênero masculino, com exceção daqueles que se direcionam exclusivamente às mulheres.
– Meu Deus, como eles são ridículos – murmurou inconformado com o que havia acabado de escutar.
– Mas o que mais me preocupa não é isso. – Mônica pareceu apreensiva. – O que me preocupa mesmo é a . Com certeza, ela vai querer se envolver na causa.
– Nós temos que achá-la antes que ela comece a participar disso. Sem querer ser contra a causa deles, – pontuou – mas mesmo que alguns queiram defender a causa, tem aqueles que são bem mais radicais e, se eles começarem a causar problemas como você disse, vai sobrar para todo mundo.
– deve estar no refeitório. Vamos falar com ela.
Chegando ao refeitório, o movimento já estava bem maior que o esperado para um primeiro dia de organização. Vários estudantes vestindo camisetas com frases em favor do tema defendido e já seguindo a própria norma gramatical da língua portuguesa. Panfletos sendo distribuídos, grupos sendo divididos para distribuição de cartazes em todos os blocos, entre outros.
Ambos os três se assustaram com o tamanho da movimentação. O refeitório estava curiosamente dividido entre a organização e aqueles que só queriam comer, mesmo que os organizadores estivessem comendo também. estava lá com suas anotações matinais, Síntia conversava com Nathan que comia, como na maioria das vezes que era encontrado, e, surpreendentemente, estava junto aos três na mesa, não dedicando muita atenção ao alvoroço ali perto.
- Mônica, ali a – cutucou a amiga que a procurava no meio da aglomeração de pessoas à esquerda da porta de entrada. Logo, estavam caminhando em passos rápidos para a mesa onde os demais amigos se encontravam.
- ? – Mônica chamou-a ao aproximar-se – O que você está fazendo aqui? – a euforia chamou a atenção dos outros.
– Uai. Como assim, o que eu estou fazendo aqui? – ela riu – Eu estou no mesmo lugar de todos os intervalos. Onde mais eu estaria? – indagou com certa obviedade no tom. Não demorou muito e seu sorriso irônico se dissipou, dando lugar a carranca que comumente tomava o semblante da garota quando via .
– Na manifestação, talvez. Por que você não está no meio dela? – questionou desconfiado com a pergunta retórica de .
– Ah, isso? – apontou para o grupo de pessoas com camisas iguais. – Não vejo o porquê eu estaria ali.
A afirmação de os deixou mais tranquilos. se sentou em um suspiro, aliviado, logo seguido por Mônica, mas esta ainda não acreditava no que estava ouvindo.
– Ah, então vai me dizer que você em nenhum momento pensou em se envolver com isso? – Mônica fez a pergunta com os olhos semicerrados fixos em , num tom de desconfiança.
– Claro que não. – a outra respondeu tranquilamente.
– Não mesmo? – insistiu uma última vez.
– Não mesmo.
– Nossa! Ainda bem! Eu já ia te dar uma bronca... – Mônica murmurava aliviada, no entanto fora interrompida por .
– Porque eu sou uma dos líderes – anunciou , dando um sorriso orgulhoso ao dar a notícia.
– O QUÊ? – Mônica e bradaram subitamente, fazendo com que Nathan engasgasse com a comida, assustado.
– Não é o máximo, gente? – ria, não parecendo surpresa com a reação dos dois. – Precisavam ver a cara de vocês.
– Eu tentei – declarou, desviando o olhar de suas anotações para os dois que ainda pareciam um tanto perturbados. Murmurava cansada, já havia desistido de convencer a amiga do contrário. – Eu tentei convencê-la a não participar, mas ela já estava no meio disso antes mesmo das manifestações serem divulgadas.
– Esperavam menos? – indagou, pegando sua bolsa ao lado da cadeira em que estava e passando a alça pelo seu braço – Eu sou a chefe de divulgação. Aliás, vocês viram os panfletos? Maravilhosos, não é? Eu mesma que fiz. – completou se gabando.
– , não estou acreditando. – murmurou , colocando a mão na testa, incrédulo.
– Garota, você ficou louca! – Mônica elevou o tom de voz, quase se levantando. – Se os estudantes que estiverem envolvidos nisso já correm perigo de arrumar problemas com a direção, imagina os líderes!
– Problemas com aquele velho chato e retrógrado do diretor? Pois, que seja. – deu de ombros.
– Não me surpreende que a líder de um movimento tão estúpido e inconsequente seja ainda mais inconsequente – pensou em voz alta, mesmo que indiferente ao risco que corria. – Já era de se esperar as acusações ridículas à língua, não cansam de inventar opressões e desigualdades mesmo. – ele encarava o celular, como se falasse consigo mesmo.
– Então – fingiu não dar a mínima para o que dissera – Eu já vou indo. Tenho algumas coisas para resolver...
– , espera aí. Você não pode levar isso à diante, para o seu próprio bem, me escuta... – Mônica insistiu.
– E também – interrompeu a amiga com um beijo na bochecha de despedida – me cansa ficar perto de alguns energúmenos inúteis, mas enfim – terminou de se despedir de todos, fingindo não perceber a presença de – Até mais pessoal.
– ! – Mônica resmungou estupefata.
– Se cuida, amiga! – exclamou com já tendo virado as costas para a mesa, indo em direção à saída.
– Pois, é. Então, nos vemos amanhã, neste mesmo horário e neste mesmo canal para mais um episódio de... – Lucas forçava a voz enquanto se punha de pé. – Friends On The Refeitório, não morram até lá! Falou, galera. – despediu-se com um aceno e saiu correndo em direção às escadas.
– Tchau. – alguns disseram em uníssono.
– Gente, eu também já vou. Não posso me atrasar para a próxima aula. – levantou-se, ajeitando a mochila no ombro. – Você também não deveria , se não, logo, logo, reprova por falta – anunciou Mônica enquanto se retirava da mesa, cumprimentando a todos.
– Com quem você pensa que está falando, mocinha? – indagou enquanto se levantava para acompanhá-la – Mais fácil a passar para a extrema direita do que eu, gênio da biologia, reprovar – concluiu, já lado a lado com Mônica, arrancando algumas risadas dos ainda à mesa.
Síntia foi a próxima, cumprimentando os que ainda permaneciam sentados e saindo junto da maioria dos presentes no refeitório, devido ao término do intervalo para a maioria das turmas.
Restaram somente alguns alunos ali e apenas três na mesa em questão, quantidade grande se comparada às demais. O clima silencioso que se seguiu no ambiente logo foi interrompido por Nathan que estava incomodado com as possíveis consequências da revolta que estava armando.
– , você tem que tentar convencer a parar com isso...
– Eu já tentei falar com ela, Nathan. Mas quando ela põe algo na cabeça, você já sabe. Bem, eu espero que esse protesto não a prejudique. – levantou o olhar para encarar o amigo enquanto falava, no entanto seus olhos permaneceram ali mesmo após já ter terminado. Ele teve uma ideia, sua expressão alarmada o denunciava, e podia entender do que se tratava. – Podemos tentar.
– Tentar o quê? – alternou o olhar entre os dois, os encarando como se tivessem três cabeças.
– É que... – Nathan ainda fitava a amiga que assentiu para que ele prosseguisse. – Precisamos da sua ajuda com a .
– No que eu poderia ajudar? Nós nem nos falamos! – soltou uma risada debochada, todavia ficara sério ao reparar a preocupação estampada nos rostos dos amigos. – Ela não iria me escutar. – argumentou.
– não escuta ninguém, . – quem disse. – Nós já estamos cansados de tentar fazê-la parar e sermos ignorados. Mas se temos certeza de uma coisa é que ela não vai com a sua cara e se você mostrar um mínimo de preocupação, mesmo que falsa, talvez ela perceba a burrada que está fazendo.
– Esse plano não tem lógica. – ponderou , relutante em aceitar.
– Claro que tem. – Nathan defendeu. – Ela vai parar e pensar por um minuto: “Nossa, até ele está preocupado comigo. Será que estou fazendo a coisa certa?” – afinou a voz a fim de representar a amiga.
– Isso! – aplaudiu.
– Desculpe, pode fazer isso de novo? – pediu rindo, zombando do colega.
– Com certeza. Logo depois de você falar com a . – Nathan e fizeram um toque com as mãos, comemorando a resposta esperta.
– Galera, é só um protesto. Não entendo para que tanta preocupação. – revirou os olhos. – Parece até que eles vão assaltar a Casa da Moeda!
– Acho que isso não vai acabar bem – Nathan levou a mão no bolso retirando um celular.
– Por que você acha isso? – perguntou, desconfiando que Nathan soubesse de algo.
– Outro protesto está sendo criado em contrapartida à militância da esquerda aqui da UFG. Eles pretendem fazer uma manifestação no mesmo dia do protesto que a se envolveu. Conhecendo um pouco os estudantes que estão metidos nisso, boa coisa não vai dar.
– Ai meu Deus, é pior do que eu imaginava – levou a mão à boca, roendo as unhas em sinal de nervosismo.
– Por isso, precisamos que o colabore. – Nathan cantarolou.
– Não vai dar certo. – soltou um suspiro.
– Me conta depois que tentar. – sorriu fechado, recolheu suas coisas e jogou um beijo no ao em despedida antes de partir.
– A pega o ônibus para ir para casa hoje, já que o e a Mônica vão ficar até mais tarde. Eu, e Síntia, ficaremos longe dela para que você possa falar. Só não se atrase, não vou perder o ônibus por sua causa.
– Nathan...
– Nos vemos na saída. – o rapaz de mechas verdes se levantou em um pulo, sem dar tempo de convencê-lo a exclui-lo de qualquer plano que envolvesse .
– Nathan! – chamou mais uma vez.
O amigo fingiu não ouvi-lo, todavia quando se ergueu do banco para segui-lo e voltar a insistir, o jovem de cabelos esverdeado passou a correr, fugindo dele.
Ele havia enraivecido devido à situação em que havia sido colocado pelos novos amigos, praguejou até chegar à sala onde ocorreria sua próxima aula. Todavia, para sua surpresa, se pegou imaginando o que diria para , por vezes incontáveis naquele período. Afinal, não tinha muita habilidade para negar nada a alguém.
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Não necessitava de ônibus para voltar ao Setor Marista, por isso era a segunda vez que sentava nos bancos do ponto desde que ingressara à UFG. Coincidentemente estava no mesmo banco, em frente ao prédio de Letras, do dia em que conheceu . Tal pensamento fez com que ele revirasse os olhos e amaldiçoasse, por mais algumas vezes, seus amigos.
batucava os dedos inquietamente na tela do celular enquanto aguardava. Logo, Nathan e Síntia passaram por ele acenando e indicando que sentariam mais à frente.
– Você vai imitar ela de novo! – apontou para Nathan, se referindo imitação que o amigo fizera de naquele dia.
– Imitar quem? – Síntia questionou, sendo puxada pelo outro para que andasse mais depressa.
– Sua parte, primeiro. – ele riu, abraçando Síntia pelos ombros. – Ela está vindo. – ele sibilou.
se virou para procurar a pessoa a quem ele se referia e acabou dando de cara com , o que o fez se levantar do banco subitamente.
– ! – ele exclamou, entrando na frente dela, impedindo que a mesma seguisse na direção dos amigos.
A moça apenas o encarou como se ele fosse algum tipo de aberração da natureza, antes de tentar se esquivar.
– Eu preciso falar com você. – ele insistiu ainda bloqueando a passagem dela.
Ela cruzou os braços e jogou o peso do corpo para apenas uma das pernas. – O que está esperando para começar, então? A autorização do Papa?
Ele fez uma careta diante da resposta dela. O que o Papa tinha a ver com aquilo, afinal?
– Só vim pedir para que não participe daquele protesto. – murmurou sério, a voz grossa e o olhar intenso nos olhos dela.
– Sério? – ela zombou.
– Estou com cara de palhaço, por acaso? Estou falando sério e para o seu bem...
– Meu bem? – soltou um riso em deboche. – Sabe quando eu fico bem? Quando tenho propósitos. E eu luto pelos meus propósitos.
revirou os olhos diante daquele pequeno discurso. Em sua mente, só podia imaginar o momento em que jogaria na cara de Nathan e que, afinal, ele estava certo. Aquele era um péssimo plano. Eles lhe pagariam um lanche só pelo esforço necessário para ouvir aquilo sem pedir para calar a boca.
– Sinceramente, pensei que você faria o mesmo. – o mirou com certa pena no olhar. – Pensei que fosse capaz de defender seus ideais com honra...
– Espera. – ele estendeu uma mão para que ela parasse de falar. – Eu defendo meus ideais, inclusive, os defendi contra seus argumentos chulos no refeitório. Metade da universidade está de prova. – riu debochado, revirando os olhos mais uma vez.
– Palavras. – murmurou ela, suspirando logo após. – Se palavras mudassem o mundo, talvez não estivéssemos tendo que combater a fome ou a miséria, não precisaria haver guerras ou revoluções. Acontece que palavras não mudam nada, – ela deu de ombros, um sorriso sagaz despontando em seus lábios.
– E o que quer que eu faça? Tente convencer as pessoas aos gritos e com comentários do tamanho do Antigo Testamento em redes sociais? – arqueou uma sobrancelha, cuspindo as palavras com todo sarcasmo que podia reunir.
– Não. De verdade? Eu quero que você faça o que já está fazendo: reclamando das reinvindicações alheias porque está familiarizado com o sistema atual. Aliás, é isso o que pessoas egoístas como você costumam fazer, não? Oprimir, somente isso.
– Está dizendo que eu estou te oprimindo? – indagou incrédulo. – Ah, por favor! Quer saber de uma coisa? Foda-se. Faça o que você quiser. – Desta vez fora ele que se esquivara, indo na direção oposta à que ela ia.
– Eu já estou fazendo isso, meu amor. – cantarolou satírica. – E espero, de verdade, que você tenha coragem para fazer a mesma coisa algum dia! – gritou para que ele ouvisse da distância em que estava.
– Ah, você pode ter certeza que eu tenho. – murmurou para si mesmo, a ira corando suas bochechas e selando a promessa que fizera para si mesmo.
Agora os dois lados de uma mesma moeda haviam se formado...
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Alguns dias depois, parecia animada ao final de um dia cansativo. Pensava consigo mesma quais seriam os resultados dos protestos que ocorreriam logo pela manhã na faculdade. Se algo desse errado... Bem, ela sabia que seria uma das primeiras que sofreria as consequências de qualquer falha na pacificidade planejada nos bastidores do acontecimento, já que era uma das líderes da militância. Porém, tratou logo de deixar qualquer preocupação à cabeceira da cama e ir dormir, afinal, o dia seria longo.
Manteve o celular e qualquer outro meio de comunicação desligado até o dia seguinte, ou teria o desprazer de ter de convencer aqueles que sabiam do seu envolvimento nas manifestações de que não desistiria da ideia. Em sua cabeça, ela sabia dos riscos de um acontecimento dessa magnitude, mas não via nos protestos em si o monstro de sete cabeças que todos ao seu redor diziam ver. Estava, apesar de tudo, um tanto esperançosa de que aquilo não resultasse em problemas para o seu lado.
Ao contrário dela, estava inquieta. Não podia deixar de pensar no risco que estava correndo ao fazer parte de um protesto em pleno dia letivo. Algo daquela proporção atrapalharia o bom funcionamento da instituição e obrigaria o corpo docente a ter que tomar medidas mais severas, caso eles não recuassem. E eles não recuariam, ela sabia disso. Era tudo muito óbvio e previsível em sua cabeça, mas nada do que ela fizesse faria desistir de uma ideia tão insana, afinal ela já tinha tentado de tudo: dezenas de mensagens de texto, várias ligações; e nada de retornar. Não podia ir à casa da amiga àquela hora da noite e nem sequer recorrer aos amigos em comum para tentar contato com , eles também já haviam tentado se comunicar em uma última tentativa, mas ela estava inacessível a todos, exceto seus pais os quais estavam viajando e distantes o suficiente para não poderem fazer nada, então não havia o porquê lhes preocupar. A situação era perfeita para ... Ou não. O que restava fazer era dormir e rezar para que o dia seguinte fosse apenas mais um dia comum na faculdade.
Não muito distante dali, havia também aquele que se julgava o completo oposto de , mas a imprudência e inconsequência eram equivalentes. Não estava tão perturbado como ela quanto aos protestos os quais ele tomaria partido contrário ao dela, afinal ele não era um dos líderes, mesmo tendo forte ligação com os cabeças da militância de extrema direita. Porém, não ignorava a possibilidade de um confronto muito pior do que apenas oposição à causa ou até mesmo alguma possível troca de insultos. Ambos os extremos de cada lado eram irremediavelmente inflexíveis e explosivos e, tais particularidades ligadas à vivacidade e inconsequência decorrentes da idade e insensatez da maioria, fariam com que ambos os lados partissem para um confronto físico direto sem hesitação. Talvez ele fosse um dos poucos a pensar nisso. Mas não abriria mão dos protestos por causa de alguns receios que vagamente o atormentavam. Sentia a necessidade de representar e defender seus ideais frente a um possível ataque a tudo que acreditava... Ou não seria apenas isso, não somente esse sentimento que o fazia ter essa atitude... Mas definitivamente estaria lá.
Já de madrugada, e Mônica ainda trocavam mensagens discutindo as entrelinhas do trabalho de biologia que eles decidiram fazer juntos. Tipicamente a vida de um universitário entre os que não desistiram da vida acadêmica.
– A me mandou mensagem, ela está preocupada com a , mas eu também não sei o que fazer... Na verdade, já tinha esquecido esses protestos, não acredito que esse povo vai levar isso à diante. – Dizia Mônica, cortando o assunto do trabalho.
– Ela também falou comigo. Acho que ela tentou todos os contatos em comum para tentar falar com a por uma última vez, depois de não ter conseguido convencê-la do contrário. – murmurou em resposta. – Acho que a está se preocupando demais, esses protestos no máximo vão atrapalhar por causa do barulho, mas nada muito preocupante.
– Se fosse só isso... Mas o problema é esse: não é só isso. – Mônica pontuou.
– Uai, o que mais poderia acontecer? – questionou.
– Outra manifestação está sendo formada, com fundamentos contrários àquela que já estamos familiarizados. E pior, vai ser no mesmo dia e no mesmo local, intencionalmente. – Mônica finalizou, expressando sua preocupação na voz.
– Ah, entendi. Realmente, isso é bem ruim. Vai ser quase uma briga de torcida organizada, só que com mais pessoas e no meio da federal. E em pensar que a é uma das líderes disso. – ponderou em voz alta, soando um pouco mais aflito.
– Não só ela... O Nathan e a acham que o também está envolvido nisso, só que do outro lado do jogo.
– Então é melhor torcer para que as coisas deem certo e que não haja nenhum conflito, porque não seria fácil tentar tirar os dois do meio de tanta gente e tanta confusão, caso nós tentássemos fazer alguma coisa. E, conhecendo eles como conheço, não vão sair por conta própria. – argumentava, tentando achar um jeito de amenizar os problemas previstos.
– A probabilidade de isso acabar em conflito é quase certa. A essa altura, eles já devem saber da existência de uma manifestação contrária. Não acho que eles vão apenas parar, sentar e discutir os pontos de vista. Enfim, eu espero estar bem errado.
– Eu também. Espero que essa rixa que esses dois lados têm não se materialize amanhã – estremeceu com o pensamento.
– Mas enfim, acho melhor decidirmos logo o que vamos fazer nesse trabalho. Pensar no que vai acontecer amanhã... Ou melhor, hoje pela manhã – Mônica disse dando ênfase no quão tarde já estava – Não vai ajudar em nada.
Logo, voltaram a discutir sobre o problemático trabalho após a breve pausa para falar a respeito do que todos, exceto os mais próximos dos envolvidos, não haviam dado muita importância. Talvez por julgar o acontecimento seguinte irrelevante, o que claramente não houvera sido. Mais uma noite normal se seguiu sob o desdenho do olhar geral ante o desastre não premeditado.
Capítulo III
Logo pela manhã a faculdade já estava movimentada. Estudantes andavam de um lado ao outro mostrando alguma determinação exaurida ainda nas primeiras semanas de seus respectivos cursos. Tudo estaria dentro da normalidade diária, se não fosse por estranhas movimentações em dois pontos um tanto distantes um do outro.
No lado leste da extensa propriedade de quarteirões da faculdade, dentro de uma das quadras, os primeiros militantes de direita logo se aglomeravam mais às bordas, com a presença incitante dos líderes, fanáticos à defesa de suas bandeiras, inflexíveis quanto a sua posição diante das diversas áreas do conhecimento, por assim dizer.
Logo, junto à subida do sol ao ápice do céu não muito nublado, o conjunto de jovens assim aumentava assustadoramente. Chamava a atenção de quem quer que passasse por ali sem a mínima noção do que estava acontecendo. Faixas e bandeiras com cores e frases de impacto em defesa aos seus ideais, camisetas e cartazes com estampas de variados modelos – com rostos e pequenos ditos que facilmente podiam ser encontrados nas redes sociais e afins – e com atenção especial, é claro, para aqueles que perceptivelmente tomavam a linha de frente ante a aglomeração ali formada.
Passadas algumas horas, já com a presença de todos e com o discurso quase motivador daquele dentre os líderes que se dispusesse a falar, os estudantes excitados e confiantes marchariam sem recuos para outra região da faculdade. Da quadra 87, onde se encontravam, marchariam até as ruas da praça universitária, onde as interditariam, impossibilitando o bom funcionamento de toda aquela região em favor de sua causa, julgada assim, mais importante.
que, até então, não havia acometido a possibilidade de um movimento tão grande, se juntou à linha de frente de toda aquela gente, já passado o espanto. Sabendo que teria a aprovação de todos que ali se encontravam, se deixou levar pela onda de fanatismo até então não experimentada externamente aos seus pensamentos. Seguiria na linha de frente, seguido da multidão que ali se encontrava, sem enxergar possibilidades de hesitação.
Já na quadra 71, mais ao sul, se dispôs a chegar antes da maioria dos extremistas de esquerda. Uma das divulgadoras do evento não podia mostrar pormenores de indeterminação, pensava ela. Logo tratou de ajudar com os cartazes ainda inacabados e as bandeiras ainda não amarradas nos mastros improvisados e de pequeno porte. À medida que mais e mais pessoas chegavam, ela se sentia mais animada, afinal seu trabalho tinha dado resultados realmente incríveis, se fosse comparada a quantidade de pessoas que ela acreditava que compareceriam com a que estava presente, de fato.
Um misto de excitação e preocupação tomou conta dos pensamentos de por um instante. As palavras de que demonstravam uma preocupação maior do que era cabível, ressoavam em sua cabeça. Em um evento daquela proporção, se algo desse errado, daria muito errado. Ela sabia que aqueles que lideravam ao lado dela não hesitariam frente a qualquer coisa que ameaçasse o movimento, mas ainda sim, acreditava que a paralisação que isso causaria na faculdade acabaria dentro do previsto, mesmo sabendo também do movimento de ideais opostos que se formava a alguns quarteirões dali, afinal o combinado dentro da organização era que eles apenas parassem a rotação central da faculdade para fazer um apelo, sem previsão de qualquer conflito.
Definitivamente ela não se deixaria abater por esses pensamentos a essa altura do campeonato. Junto àqueles cartazes com uma escrita personalizada e às conversas paralelas que agora se uniam em uníssono ao ouvir das palavras discursadas no megafone pelo líder, ela marcharia em defesa de seus ideais.
, Síntia e os demais amigos mais próximos de e estavam levando o dia como qualquer outro. Alguns, no entanto, se preocupavam, mas nada que os tirasse a concentração das densas aulas em que estavam presentes, assim como qualquer outro que estava ali naquele dia com a única intenção de estudar. Todavia, logo os olhos fixos às explicações dos respectivos professores foram desviados em razão da chamativa movimentação que estava acontecendo nas ruas em frente às salas da faculdade. Os mais curiosos se posicionam nas janelas, corredores e escadas por um momento, para ver os protestantes passando pelas ruelas aos montes, com faixas, bandeiras, gritos e demais objetos com o propósito de chamar atenção.
Já saindo da quadra, ambos os movimentos não demoraram em subir às ruas. Com os líderes à vanguarda, armados de megafones e bandeiras – incluindo , que segurava um cartaz, convicta e com uma intensidade incrível, e que ajudava a segurar uma bandeira amarrada em ambos os lados por dois mastros –, eles tomavam incessantes as ruas do entorno da imensa praça universitária.
Com a energia pulsante, os passos largos e os pulmões sendo arduamente usados antes de cada frase proferida, os militantes marchavam pelas ruas. Os carros que vinham na direção contrária logo davam ré e tentavam desviar da onda arrojada que seguia. Pessoas tentava driblar a multidão, mas até mesmo os veículos não escapavam de serem atropelados por alguns estudantes que os cercavam, impedindo-os de seguir pela direção que fosse. Logo interditaram os primeiros metros da rua, e seguiam ainda mais.
Porém, o primeiro vislumbre do problema já podia ser notado. A direção que ambos os grupos tomaram, talvez intencionalmente ao avistarem uns aos outros, era a mesma. Logo que se avistaram, começaram a andar com mais veemência ao mesmo destino, porém sentidos contrários. Talvez a intenção, em primeiro plano, não fosse agressão física, mas um grupo viu no outro a materialização de tudo que eles repudiavam. Quanto mais a proximidade dos dois grupos aumentava, mais rápida era velocidade que eles caminhavam. Até que finalmente o encontro de ambas as partes se deu próxima da quinta avenida. Agora, ambos os grupos se situavam frente a frente, insultando e coagindo mutuamente.
era uma das que logo se pôs a gritar e defender seus ideais na maior altura que pudesse. não se encontrava a frente, mas prosseguia junto aos demais no meio da agitação, não ficando para trás em níveis de histerismo. Gradativamente, o conflito foi se tornando mais e mais intenso, até que alguns estudantes, os mais revoltos, iniciaram uma briga, que se espalhou, tornando-se generalizada.
Foi piorando á medida que o tempo passava. Cartazes e faixas eram substituídos por qualquer coisa que pudesse ferir ou ser arremessado em alguém. Ambos os grupos se fundiram e agora dois protestos, antes uniformemente separados, estavam entrelaçados em um único e intenso conflito. Logo, aquela mancha conflituosa que os grupos havia se tornado, começou a adentrar o gramado a noroeste de onde estava, se aproximando do bloco de engenharia, em uma locomoção generalizada e descontrolada. Os mais envolvidos na briga logo começaram a pegar galhos de árvores e pedras que se encontravam na grama, as estacas que levavam as faixas e bandeiras agora viravam armas poderosíssimas. Logo, a região externa do centro de engenharia se tornava um campo de batalha. Escadas que permitiam o acesso à faculdade eram tomadas por estudantes aos socos, outros já caiam das plataformas mais altas às portas centrais, desacordados. Puxões de cabelo de um lado, pauladas e pedras sendo arremessadas de outro, estudantes sendo pisoteados ao cair no chão ou tentando sair do conflito já sangrando e com fraturas e lesões, um verdadeiro desastre se formara.
Os funcionários rapidamente fecharam as portas do andar térreo dos prédios próximos, o que de muito não adiantou, pois logo os vidros passaram a serem quebrados; pedras jogadas aleatoriamente em meio a balburdia acabavam por invadir o interior das salas e corredores que havia alguma abertura, ora feita por pedradas que destruíram os vidros, ora por já existirem. Com pressa, os funcionários e professores que notaram que a situação se estenderia por mais tempo trataram de chamar a polícia. Apreensivos, fecharam-se nas salas e se isolaram do lado de dentro para evitar serem feridos.
, desde o começo da briga usava o que encontrava pela frente e atirava no primeiro que ameaçasse atacá-la. No ápice da desordem, ela estava rolando escada á baixo com a pedra que usava para se defender em mãos, todavia não se dava por vencida: Com a adrenalina em seu máximo, ela levantava de novo e ia para o meio da confusão, seguida pelo estudante que havia caído junto dela, também pronto para desacordá-la na primeira chance que tivesse. Gritava enlouquecida, se defendendo com movimentos aleatórios a todos que se aproximavam carregando as cores da extrema direita, não pararia tão cedo a menos que algo a fizesse parar.
também não ficava alheio ao núcleo de toda aquela confusão: Com a madeira que antes ele usava para ajudar a estender uma extensa faixa, agora ele usava para distribuir madeiradas aqui e ali a quem quer que fosse.
Síntia não estava sabendo de nada que estava acontecendo até ver pessoas feridas descendo as ruas gritando, grupos de pessoas carregando alguém em estado grave, entre outros casos. Por um momento, pensou se tratar de algum acidente, mas então, resolveu subir mais um pouco para ver o que era e não precisou andar muito a frente. Logo, ao se deparar com as faixas e cartazes rasgados e sujos deixados no chão, já podia imaginar.
Ligeiramente mandou mensagem para os primeiros que achou na sua lista de contados e que imaginou estarem ali na faculdade naquele horário. e Nathan foram os primeiros a receber as mensagens e logo contataram os outros que poderiam comparecer no local combinado. Tinham que tirar a e o do meio daquele tumulto.
As viaturas logo começaram a estacionar na praça universitária onde dezenas de policiais subiam armados para o local da manifestação, no mesmo momento em que Síntia e os demais se reuniam na esquina anterior de onde o tumulto chegava a ocupar.
Os policiais então, com seus escudos e armas com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, começaram uma forte investida contra os estudantes, sem fazer distinção entre um lado e outro. No entanto, o grande número de pessoas ainda envolvidas no conflito não hesitou frente à investida policial. Agora tendo um inimigo em comum do qual se defender, investiram em conjunto contra os oficiais, sem nem mesmo perceber a união, onde atacavam em sua individualidade.
No meio de tudo, o grupo de amigos contatados por Síntia – que incluía Mônica, Nathan, e – foi para o meio de todo aquele conflito sem sequer pestanejar, e mesmo sem ao menos conseguir enxergar satisfatoriamente o que estava acontecendo em meio a fumaça que causara os equipamentos da polícia, adentraram-no atentos a qualquer rosto familiar. No entanto antes que se integrassem de fato naquele tumulto insano, avistaram , que vinha correndo na direção deles na tentativa de sair do meio de todo aquele gás.
– ! – Todos exclamaram um pouco mais aliviados, mas ainda sim preocupados com – Você viu a ? – Dizia um. – Onde ela está? – Interrogava outro.
– Eu, eu... – parecia meio tonto, como se houvesse recebido uma pancada forte na cabeça - Na última vez que eu a vi, – ele prosseguiu – ela estava no meio do tumulto, bem na frente, investindo contra os policiais – concluiu, se apoiando em uma pilastra ao lado para se manter de pé.
– Meu Deus, ela ficou louca! – berrava indignada.
– Nós temos que ir atrás dela, antes que algo de pior aconteça. – Nathan falou, incentivando os demais.
– Sim, vamos – Síntia tomava a frente.
– E você não saia daqui, . Quando nós voltarmos com a , passamos aqui e te buscamos – ordenou, tentando alcançar os amigos em seguida.
No entanto, não ficara ali parado como aconselhou o amigo. De repente, todo o sentimento de preocupação com o que poderia acontecer com veio à tona. Ele não podia considerar a possibilidade de não ajudá-la, pois mesmo depois das brigas e desentendimentos, ele se importava com ela.
Tentando se recuperar da tontura, foi a passos rápidos tentar achar , mas não foi muito longe e nem foi preciso muito para pará-lo. Um forte empurrão de alguém que corria em sentido contrário o levou ao chão, não o dando tempo de reconhecer quem o derrubara e nem ao menos de sentir a dor se alastrar por sua cabeça graças a pancada.
Capítulo IV
Quando conseguiu abrir os olhos e, finalmente, ter uma visão nítida do local, constatou que realmente devia ter ficado bastante tempo desacordado: Olhava de um lado para o outro e não via o tumulto dos estudantes, o barulho ou as até mesmo as viaturas que haviam acabado de chegar ao local. A balbúrdia agora havia se transformado em um absoluto silêncio e não havia sequer um resquício do odor atordoador do gás lacrimogêneo no ar. Em pouco tempo pôde perceber que estava deitado, já com outras roupas, em um leito de hospital. Pensava consigo o que havia acontecido, não conseguindo se lembrar de como parara ali. Posteriormente, foi tirado de seus devaneios por uma mulher vestida com um jaleco branco e uma bandeja com algumas coisas em cima.
– Até que você não demorou a acordar. Seus pais estavam preocupados – falou a mulher organizando as coisas em uma estante pequena próxima à maca onde se encontrava. – Consegue se lembrar de tudo? Sente que está totalmente consciente?
– Sim... Sim – disse pausadamente – Como eu vim parar aqui? O que aconteceu depois que eu saí de lá?
– Você é um dos envolvidos naquele protesto que teve lá na federal, não é? – indagou, continuando após o aceno em sinal de aprovação feito por – Os jornais disseram que a manifestação acabou tempos após a investida policial. Alguns policiais e estudantes saíram feridos. – Começou a aplicar um medicamento no soro que estava absorvendo – Mas enfim, seus pais pediram para avisá-los, mas sua mãe já devia estar a caminho, possivelmente estava na recepção. Quer que eu a chame?
O pensamento de na notícia sobre os protestos novamente se interrompeu pela pergunta anteriormente feita – Ah, sim, claro. – Respondeu quase que automaticamente. A enfermeira saiu logo em seguida.
– MEU FILHO! – Minutos depois a voz conhecida de sua mãe soou forte pelo quarto e ela o abraçou fortemente – Graças a Deus, você acordou.
– Mãe, você está me machucando – murmurou ele, tentando retribuir o abraço com as poucas forças que tinha no momento.
– O que você estava fazendo naquele protesto, hein? Foi trazido para o hospital todo ferido! – sua tonalidade e sua expressão mudaram de maneira surpreendentemente brusca. – , quando foi que você se meteu no meio desse vandalismo? Onde já se viu sair agindo igual um delinquente?
nada disse. Após todo aquele acesso de raiva na conversa com e posteriormente nas manifestações, ele agora totalmente calmo, se sentia arrependido de ter participado de tudo aquilo. Havia percebido que aquilo daria errado e mesmo quando teve a chance de recuar no meio de todo aquele confronto irracional, sabendo que aquilo daria errado, não recuou. Preferiu agir da mesma maneira que aquela a quem ele havia jurado guerra agiria.
Acabou assim, pensando em e, por um momento, não pôde deixar de imaginar o que havia acontecido com ela que, em hora alguma, se retirou da linha de frente o confronto. Precisava de notícias sobre tudo: Sobre , sobre os amigos que haviam se arriscado para buscá-los, e principalmente, no que diria àquela mulher lhe interrogando, a qual ele frustrou com atitudes tão imaturas.
– Mãe... – não a olhava nos olhos e nem sequer sabia o que dizer ou como dizer. – Me desculpa... Eu... Eu não sei o que mais dizer, nem como dizer diante de tudo o que eu fiz, mas... Meu Deus – colocou a mão em frente ao rosto em um suspiro. Finalmente, tomava consciência da estupidez que cometera.
A mãe dele se assentou ao seu lado na maca. Olhava para o filho com semblante de desaprovação, mas sabia já não eram mais necessários sermões sobre o que havia acontecido. Percebia o arrependimento em seu olhar.
– Não se desculpe, apenas arque com as consequências dos seus atos – a mãe começou a falar já com certa doçura e preocupação, todavia ainda tentava manter a máxima seriedade possível – Você foi achado pelos paramédicos e seu envolvimento logo chegou à direção da faculdade. Você será um dos penalizados pelo ocorrido junto a alguns outros que foram pegos pela polícia, e os que foram levados para o hospital com ferimentos.
– Eu... – tentou intervir.
– Eu não terminei – falou a mãe, logo interrompendo – Você pode ser expulso ou até preso por ser maior de idade, você tem ciência disso?! Não sei qual vai ser a decisão da reitoria sobre o assunto, mas com um acontecimento que acabou em policiais feridos e patrimônios públicos danificados não vai passar em pune para vocês.
– Muitos se feriram? – perguntou quase pulando da cama.
– Além de você, só três foram considerados casos graves o suficiente para serem citados na televisão. Dois meninos e uma menina, não me lembro de qual lado estavam – informou a mãe, tentando lembrar.
– Uma menina? E como ela era? Você viu? – perguntou , parecendo aflito.
– Eu não lembro bem. A foto deles passou no jornal, mas eu não lembro o nome – a mãe tentava vasculhar na memória o nome e aparência da menina – Ela era morena, cabelo cacheado, magra, não me lembro bem.
agora estava mais aflito do que nunca. Precisava saber se essa menina a quem a mãe mencionara era quem ele estava pensando. Procurou pelo celular rapidamente, não o encontrando.
– Mãe, você viu meu celular? Preciso falar com algumas pessoas urgentemente.
– Está com seu pai, ele quem veio aqui primeiro quando nos informaram sobre o ocorrido. Eu vim só depois, mas não me permitiram vê-lo. – a mãe agora levantava pegando a sua bolsa na estante ao lado – Bem, agora são seis da tarde. Eu volto mais tarde para ver como você está, preciso pegar sua irmã no colégio. Tudo bem? – Ela beijou o filho na testa. – Seu pai já deve estar para chegar, o lembre de te dar seu celular.
Era a primeira coisa que pediria a seu pai quando chegasse, sem dúvidas. Esperava ociosamente em meio àquele apartamento de hospital, contando os segundos até a chegada do seu pai. Chamou as enfermeiras umas três vezes, tentando ao máximo ter notícias, mas nenhuma delas parecia saber de qualquer coisa ou simplesmente não estavam dispostas a ajudar.
– Pai! – exclamou, quase gritando quando o pai finalmente chegou alguns minutos depois.
O pai nenhuma feição de alegria expressou, apenas o olhou seriamente. Deixou a maleta na cadeira do outro lado do quarto e logo se posicionou em pé, em frente à cama em que estava. Por um momento, os dois apenas se olharam. perdeu o entusiasmo da chegada de seu celular por um instante, não sabia o que seu pai falaria e ficou apenas olhando para o pai, que fazia o mesmo. O pai então finalmente se moveu: Após alguns longos segundos sem nada expressar, ele simplesmente o abraçou. ficou sem reação, não por surpreender-se com o a atitude do pai, mas por se sentir mal com suas últimas escolhas, e por ter envergonhado a todos que o amavam com atitudes inconsequentes em forma de agressões armadas e prejuízos desnecessários.
– Sua mãe já deve ter lhe dito todo o necessário – continuou em pé frente a – Bem, eu não vou brigar com você porque você não está mais na idade de ficar levando bronca dos pais. Mas as consequências dos seus atos vão lhe ensinar agora, e elas são piores do que qualquer coisa que eu ou sua mãe pudéssemos dizer. – falou com um olhar extremamente penetrante e um semblante frio. Ele sabia como causar calafrios com suas expressões, se essa era a intenção.
– Pai, eu... Você está com meu celular? – tentou parecer o menos rude possível com a quebra do assunto, no entanto se lembrou da razão do grito, logo que seu pai chegou. – É que eu preciso falar com algumas pessoas da faculdade sobre o que aconteceu, se o senhor puder...
– Aqui – o homem lhe entregou o celular sem nenhuma resistência, para o estranhamento de .
Sem mais delongas, sentou-se na poltrona perto da parede do quarto, atendendo uma ligação a qual passou despercebida por , talvez pelo fato de o celular do pai apenas vibrar quando recebe ligações devido às reuniões e compromissos que tinha.
Sempre que pensava nos pais, se sentia culpado. No fundo, queria ser como eles: Bem sucedidos, maduros, responsáveis, talvez não tão compromissados, mas chegar ao topo como eles chegaram.
Mas não demorou muito tempo pensando, logo ligou o celular e mandou mensagem para , a primeira pessoa que lhe veio à mente.
– , como estão todos? – digitou sem pensar em cordialidades e cumprimentos. Queria informações o mais rápido possível.
– ! Que bom que você acordou, estávamos todos preocupados. – respondeu mais aliviado ao saber que estava bem. – A maioria de nós está bem sim, mas a ...
– O que tem a ? Fala logo de uma vez. Ela está bem? – escrevia agitado, sem paciência de esperar o amigo contar o que estava acontecendo. Nem sequer percebera que o pai falava ao telefone.
– Não, , ela não está bem. – dizia quase fazendo ter uma taquicardia – Ela não saiu muito ferida, então sem necessidade de ir ao hospital. Ela foi presa, os policiais a pegaram. Provavelmente, ela não vai sair da cadeia tão cedo, já que seus pais estão viajando e as condições deles... Bem, eu acho que não são suficientes para pagar uma fiança como aquela que eles exigem.
suspirou fundo, depois de um quase infarto.
– Você quase me matou de susto com esse seu “Ela não está bem”! Caramba! – finalizou, deixando o celular de lado, não se atentando para o que falaria depois ou com as brincadeiras envolvendo a relação de amor e ódio dos dois.
Parte do peso da preocupação com voltou, agora se sentindo culpado pela prisão da moça. Sabia que parte do envolvimento dela com os protestos era sua culpa, apesar de essa não ser a razão central. Sabia também que ela não tinha condições para pagar uma fiança e já estava bem prejudicada, além disso. Precisava arrumar um jeito de ajudá-la, para só então voltar às discussões e à raiva que jurava aos quatro cantos sentir dela.
- Filho, eu já vou. Sai de uma reunião importante para vê-lo e tenho que ao menos dispensar o pessoal. Sua mãe vai vir mais tarde? Caso ela não venha, eu trago o que precisar à noite.
– Não precisa pai, minha mãe vem – murmurou, sorrindo discretamente à empatia do pai.
– Então tudo bem, até mais, filho. – o pai pegou a maleta e se virou antes de ser surpreendido por .
– Pai, espera! Eu preciso sim de uma coisa. – viu no pai a possibilidade de livrar da cadeia. Teria que pedir a ele para pagar a fiança, era a opção mais rápida no momento. O problema seria convencê-lo.
O pai se virou, esperando que prosseguisse.
– É que... Eu tenho uma amiga – quase revirou os olhos quando mencionou como sua amiga. – E ela também estava envolvida nos protestos, só que foi presa... Teria como o senhor pagar a fiança dela, pai?
– O quê? – o pai indagou incrédulo com o pedido de , não se contendo ao soltar um riso debochado. – Você quer que eu pague a fiança de outro delinquente além de você? Eu já vou ter que arcar com as consequências do seu envolvimento, , e provavelmente da sua fiança também. Ou você realmente acha que não vai preso depois que sair daqui?
– Então pague a fiança dela ao invés da minha – pediu em um impulso, repensando as palavras logo em seguida, mas sem poder reconsiderá-las, afinal, seu sentimento se culpa – como queria chamar aquilo que sentia por , não admitindo qualquer outra coisa que ele mesmo chegasse a pensar – não deixava com que ele ficasse tranquilo com presa. – É que... Sabe... Ela não tem boas condições financeiras, e também, eu tenho culpa em ela ter se envolvido e... Ela é especial para mim - agora se odiaria eternamente por ter falado isso, amaldiçoaria eternamente àquele que lhe dera a paulada e falhou em lhe matar.
O pai ficou sem ter o que falar por um instante. Já vivido e experiente, sabia reconhecer o sentimento no semblante de alguém, ainda mais do próprio filho, que agora estava corado, ora por raiva, ora por vergonha das últimas palavras ditas. Semicerrou os olhos, encarando e o fazendo ficar mais vermelho ainda.
– Então você quer que eu pague a fiança dessa sua “amiga”, não é? – indagou com semblante desconfiado, analisando bem as últimas palavras de – Pois bem, vou ver o que posso fazer por ela. Mas é claro, que você terá que me recompensar por isso uma hora. – a empatia do pai resistia em deixar uma garota pobre, que ainda por cima era alvo dos sentimentos de seu filho, na prisão. E afinal de contas, o dinheiro da fiança não lhe faria falta. – Mas então, me conte o nome dessa sua “amiga”.
A ironia do pai em relação à já o estava irritando, mas talvez se ele não houvesse contado ao pai o que realmente sentia não saísse da cadeia tão cedo.
– é o nome dela. – afirmou , mais alivia o que o pai dissera. – . Ela cursa o terceiro semestre de Sociologia na UFG.
– ... – repetiu baixo consigo mesmo, olhando para o filho – Pois bem, eu já vou então. Qualquer coisa ligue no escritório ou para sua mãe.
– Obrigado, pai. – agradeceu com sinceridade.
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– – chamou o carcereiro abrindo as grades da prisão. – Você está livre.
, desde a manhã dos protestos até um dia depois, quando recebeu o alento vindo da boca daquele carcereiro, não havia comido nada. Havia apenas ficado ali sentada no canto da cela, pensativa, refletindo sobre os últimos acontecimentos.
Durante a visita de alguns familiares ficara sabendo sobre a quantidade de feridos dentre os envolvidos, incluindo policiais. Sentia-se, assim como , culpada, só que em proporções infinitamente maiores, afinal de contas, era ela quem divulgou todo o grandioso evento. Se os participantes que foram pegos já iam ser severamente punidos, imaginava consigo, os líderes então... Mas isso não a importava no momento, pois a memória daqueles que haviam sido feridos a seguiam e atormentavam. No entanto, no fim, estava livre, logo caminhou para fora daquela jaula na delegacia.
Não demorou a chegar em casa. Foi recebida com abraços e broncas por , que não ficou sozinha durante os sermões, pois logo Nathan e chegaram acompanhados de Mônica e Síntia, os mesmos não hesitando em se unir, quase em uníssono, à no falatório.
Porém, a pergunta que mudaria algumas coisas para enfim veio: Quem a havia tirado de lá? Ela contou aos amigos o nome do homem que lhe havia informado na recepção da delegacia, mas que não sabia quem era. Entretanto, , que se lembrava daquele nome em algum lugar, tratou de se certificar de que sua memória não o estava enganando quando afirmou, para a própria surpresa e incredulidade de todos, que era o pai de que pagara a fiança de . Mas, mesmo com a espantosa notícia e a desconfiança de alguns perante a mesma, não deixaram de se alegrar pela liberdade de .
Todavia, não deixou de ficar absorta. Estava incomodada com o que falara. Não queria acreditar, porém sabia que ele não afirmaria uma coisa daquelas sem ter certeza. Não deixava também de se preocupar com , vítima de seu ódio incondicional – como assim aceitava chamar seus sentimentos por ele –, pois ele havia sido gravemente ferido naquele tumulto e... Bem, sempre que começava a pensar nele, não admitia qualquer sentimento, apenas uma preocupação cordial, assim como tinha por todos os feridos no conflito.
O que falou não a deixaria dormir. No outro dia, já não suportava mais, precisava retirar aquela dúvida cruel que a martirizava. Então, surpreendentemente, passando por cima de seu orgulho, foi até o hospital onde se encontrava, não admitindo para si mesma que estava indo lá por preocupação, afinal, podia usar o argumento de que queria apenas tirar uma dúvida, para assim enganar a si mesma.
Epílogo
Seis anos depois...
– Você vai chorar de novo? – revirou os olhos, enchendo mais uma vez o copo de cerveja. Bebericava a bebida, entediado. Antes estivera preocupado, no entanto aquela situação teimava em se repetir. Já perdera as contas de quantas vezes ele e foram parar no bar e ficaram horas a fio com o mais velho entre eles se queixando de um de suas dezenas de casos românticos frustrados.
– Zomba de mim só porque está prestes a se casar com o amor da sua vida! Mas não são todos que têm essa sorte! – resmungava, engolindo o choro que ameaçava aparecer novamente.
não conteve a risada.
– Não é questão de sorte, é de visão – ele piscou para o amigo.
– Não sei se capitei a dica relevante à minha vida amorosa. – debochou, sorvendo um grande gole de sua cerveja em seguida.
– Quando conheci , eu acreditava nessas coisas de alma gêmea, romance de contos de fada e coisas do tipo...
– Moleque sonhador. – murmurou ao interrompê-lo. – Mas eu nunca apostaria em vocês no altar um dia, muito menos que seria sua “alma gêmea”. – fez aspas com as mãos.
– Por isso que digo que é tudo questão de visão. – batucou a têmpora com o dedo indicador. – Depois daquela catástrofe na universidade, eu paguei a fiança dela e ela me pediu para ajudá-la contar aos pais que havia sido presa por causa de uma manifestação...
– , você já me contou essa história umas cinquenta vezes. – agora era quem revirava os olhos e tinha a feição entediada.
– É uma história incrível. Por favor, não me interrompa. – pediu, o sorriso abobado quase rasgando suas bochechas – Voltando: quando estávamos com os pais dela foi bem tenso, parecia que eu ia pedir a mão dela. Acredite ou não, o pai dela ficou aliviado em saber que eu só estava ali para contar que a filha dele foi presa e que, no fim, ninguém namoraria.
“Quando isso aconteceu ainda não havíamos conversado sobre o porquê eu pagara a fiança dela, sendo que mal nos falávamos e também... nos odiávamos. Dei a desculpa de que tinha feito aquilo porque me sentia culpado, já que a galera tinha me pedido para tentar impedi-la de participar e eu não havia levado o pedido muito a sério na hora. De fato, não era mentira, mas eu sabia que não havia sido somente por culpa e meu pai vivia insinuando coisas que me faziam pensar sobre o assunto mais que o recomendado.
Mas como você já sabe, logo que ficamos sabendo que não seriamos expulsos da Universidade tudo voltou ao normal. Todas as semanas ocorriam brigas no refeitório e em todos os passeios ao shopping, parques ou festas, ela me ignorava. Teve aquela vez que ela quase me bateu na fila do Villa Mix, mas esse foi o ponto máximo que nossas intrigas chegaram.
Até que um dia, em uma viajem para Pirenópolis com a galera, paramos no Frango Frito para comer e...", ele começou a rir ao se lembrar. "A passou a discutir com o cara do caixa sobre a legalização da maconha. Eu juro que fiquei com muita raiva por ela estar estragando nosso passeio com aquilo. Definitivamente, não era hora disso. Mas o que veio a me surpreender não foi isso, aliás, toda a situação era muito comum, o que me deixou surpreso foi o fato de eu estar mais puto com o caixa por estar se aproveitando da situação para dar em cima dela explicitamente, do que com o fato de que ela aprovava a legalização da maconha."
– Ganhar uma cantada enquanto fala sobre maconha é para poucos. – revirou os olhos rindo. Mesmo que já houvesse escutado aquela história dezenas de vezes, sempre tinha um comentário a acrescentar.
– Sim! Qual era o problema daquele cara? – parecia indignado, o que só causou risos no mais velho. – O que estou querendo dizer, , é que assim como você, eu não via como minha noiva. Para mim, ela era alguém difícil e que tinha ideais extremamente absurdos. Até que algo naquela personalidade dela me atraiu e eu neguei com todas as minhas forças essa verdade... Para você foi sorte, para mim foi visão.
– Pode falar minha língua, Sócrates? – sorveu os últimos goles da sua cerveja, batendo o copo na mesa em seguida.
– Não é óbvio? Eu tentei examinar as ideias com os olhos dela. A questão do aborto, por exemplo, quando se é pobre ou mulher... É diferente.
– Você precisou se imaginar como uma mulher pobre e grávida para chegar nessa conclusão? – fez uma careta.
– Bem... Sim. Eu ainda não concordo com a legalização do aborto ou da maconha. – torceu o nariz. – Porém, não acho tão absurda a ideia e compreendo o porquê ela defende. – deu de ombros. – Quando deixei de olhar para ela como uma retardada – ria outra vez. – passei a enxergar a garota divertida e segura de si que conheci no primeiro dia.
– Você olhava para ela com uma visão mais...
– Tolerante? Apaixonada? Não sei definir, . Só sei que me ensinou a habilidade, mesmo que indiretamente, de olhar para o mundo com uma visão nova.
– No fim, ela ganhou.
– Não, não. – tratou de descordar rapidamente. – Eu não concordo com ela, apenas a amo, é diferente.
– Você não me ajudou em nada, cara. – revirou os olhos.
– Certo. A história é menos filosófica do que eu pretendia. – ele riu, abrindo a carteira para tirar uma nota de 50 reais dali e deixar sobre a mesa. – Vamos fazer assim: Veja as coisas, as pessoas, as ideias com amor. Com menos ódio. Quando temos amor envolvido, amor pela humanidade...
– Que visão linda do mundo! – gargalhava. – Você pensou nisso sozinho?
deu de ombros, um sorriso engraçado no rosto.
– Surpreso?
– Um pouco. Quem diria que a faria com que você se tornasse humanitário?
– Quem diria que Queen abriria minha mente para este mundo. – corrigiu. – Pensei nisso enquanto ouvia One Vision do Queen. É por causa deles que hoje somos noivos. – ele sorria ao sacar o celular do bolso para conferir uma mensagem que recebera. O seu sorriso se alargou e um brilho quase imperceptível despontou em seu olhar com o que lera.
gargalhou novamente.
– Não acredito que toda sua pseudofilosofia é derivada do Queen! – estava quase sem ar de tanto rir e precisou de um momento para continuar falando em seguida. Essa história eu gostaria de ouvir. Até hoje não entendi como aconteceu esse pedido de casamento! falou sobre umas quatro horas seguidas, mas foi incapaz de explicar como aconteceu.
– Talvez, uma próxima vez. – desviou o olhar feliz do telefone apenas para piscar cúmplice para o amigo antes de deixar o bar com a pressa de quem tinha uma noite programada para ser... Agitada.
Fim.
Espero que tenham entendido todas as referências da música, foram muitas... Amei escrever sobre, mesmo que nunca tivesse escutado a música antes!
Quero agradecer, especialmente, a todxs que leram até aqui! Agradecer aos responsáveis pela organização do ficstape também, que tiveram toda paciência de me esperar (risos) pq só enrolei! Obrigada as minhas companheiras de vida de fanfiqueira que leram antes de todos pra me dar opinião (queridas, Lau, Tiffany e Gabbes!!). E por último e não menos importante, para o Igor, meu melhor amigo, que foi forçado a escrever comigo (mais risos, mas agora de nervoso) pq eu não ia dar conta sozinha... Cara, amei escrever em dupla com ele! Só eu dava as broncas! A-M-E-I!
Espero que nos vejamos uma próxima vez e que ninguém tenha se sentido ofendido com os posicionamentos defendidos aqui rsrs...
P.s: O Igor demorou demais pra fazer uma nota e eu precisava enviar logo o ficstape kkkkkkkkk PERDOEM ELE!
L. Abreu:
Igor Bequiman: