26. I Bet You Think About Me

Finalizada em: 05/09/2022

Capítulo Único

2019

“3 am and i’m still awake, i’ll bet you’re just fine
fast asleep in your city that’s better than mine”



Ela conseguia. Definitivamente conseguia. Só precisava de mais dois minutinhos para ter certeza de que não surtaria, mas depois disso? Ela daria conta. Seria moleza.
, meu anjo, você tem certeza de que quer fazer isso?
Ela desviou o olhar do próprio reflexo por um segundo, encontrando Steven, seu baterista, parado perto da porta.
— A gente nem precisa desse evento. Você sabe disso — ele continuou.
— Mas eu preciso — ela respondeu. — Eu preciso provar que consigo. Tenho que fazer isso por mim.
Steven lhe ofereceu o sorriso reconfortante e compreensivo de que ela precisava: a garantia de que, agora, independente do que pudesse acontecer, ela sempre teria ao seu redor pessoas que a adoravam verdadeiramente e só queriam o seu bem acima de qualquer coisa. E, no fim do dia, era com o abraço delas que ela contaria.
— Nesse caso, minha musa, o palco está te esperando.
E exatamente ali, naquele lugar que fazia tudo voltar de uma só vez, era hora do show.


2016

“well, i tried to fit in with your upper-crust circles
yeah, they let me sit in back when we were in love
oh, they sit around talking about the meaning of life and the book that just saved ’em that i hadn’t heard of”



poderia jurar que seria capaz de contabilizar cada meio segundo com uma batida do próprio coração. Ela não precisava de muito conhecimento em biologia para saber que aquilo era muito e provavelmente nada saudável.
— Tudo bem aí?
A voz conhecida enviou um retumbar por sua pele, parecendo entrar em choque com sua pulsação apenas para obrigá-la a desacelerar por um segundo que fosse. Ela ainda não tinha se acostumado com o fato de que ele precisava de tão pouco para deixá-la calma. Ainda parecia tudo um sonho bom demais para ser verdade. Mas, enquanto durasse, ela preferia simplesmente aproveitar a utopia mágica que tinha recebido.
Ela sorriu, esforçando-se para que seu semblante lhe passasse a mesma segurança que ela queria acreditar sentir. Seus dedos correram pelo ar, encontrando a mão dele logo ali, onde sempre parecia estar, bem à sua espera.
— Tudo mais do que bem — ela respondeu. — Vamos?
— Vamos.
Ela estendeu a mão sobre seu peito, fazendo-o parar abruptamente o movimento que mal tinha se iniciado.
— Espera, espera. Tem alguma coisa que eu precise saber?
— Sobre o quê?
— Sobre tudo.
— Bom, nossa anfitriã é a Sloane, minha amiga mais antiga. Ela é fotógrafa e curadora de arte em algumas galerias. Ah, e ela é meio viciada em capivaras, então esteja ciente de que você pode encontrar umas estatuetas e almofadas perdidas pela casa.
riu, concordando. Ao menos era uma esquisitice reconfortante e bonitinha. Desde que ela não entrasse em algum tipo de santuário.
— Ela é casada com a Chastity, advogada que trabalha principalmente com casos de direitos da mulher e processos por violência, abuso etc.
— Minha heroína.
— De todos nós — ele retrucou. — A Chastity é um exemplo do que todos nós queríamos poder fazer para ajudar a combater essa misoginia desgraçada.
— Certo. Então ela já é a minha pessoa preferida, mas eu vou tentar fingir que não.
— Também tem o Nico, que é cubano e abriu um restaurante de comidas latinas que está sendo um sucesso.
— Tipo arepas, tamales, empanadas? Eu amo!
O homem entortou os lábios, precisando pensar por um segundo.
— Acho que é uma culinária mais refinada. A gente tem certeza de que ele está prestes a entrar no páreo para uma estrela Michelin.
focou na parte positiva, oferecendo-lhe um sorriso. Era melhor não entrar no mérito da nuance de desprezo que tinha acabado de fazer um carinho na sua bochecha, lembrando-a do óbvio: ela não era refinada o suficiente. Era essa a mensagem que recebia da arquitetura imponente que lhe intimidava ao encará-la nos olhos e era a mensagem que recebia do próprio namorado, mesmo sem querer, quando falavam de seu círculo social.
Ela sabia que não se encaixava ali. Não precisava ser nenhuma gênia - outra coisa de que era lembrada constantemente pela voz insegura no fundo de sua mente - para perceber isso. Ela não era a peça perfeita que completaria aquele quebra-cabeça. Ela era a peça que sobrava por horas porque ninguém sabia onde colocá-la. Provavelmente tinha vindo da caixa errada.
Só precisava que essas horas antes da conclusão óbvia fossem suficientes para que ela já tivesse conseguido congelar o sorriso na cara e parecido simpática o suficiente para que sua presença se parecesse menos com uma farsa.
— O Jaxon tocava trompete na orquestra, mas agora está publicando livros de poesia e uns de receitas veganas também. De acordo com ele, é o fardo de carregar tantas paixões ao mesmo tempo.
— Se ele for bom em tudo, acho que não faz mal, né? Inclusive, parabéns para ele por isso. Tanta gente tentando ser boa em uma coisa só e se ferrando.
Ele não respondeu e ela não viu quando seus olhos mudaram a angulação por uma fração mínima de segundo antes de prosseguir.
— Também tem a Mariah, que é instrutora de yoga e influencer fitness, e o Gabe, que é cirurgião torácico.
— Basicamente, todos os seus amigos são incríveis.
— Eles são mesmo. Às vezes bate uma pontinha de vergonha quando eles começam a discutir todas as conquistas.
Ela engoliu uma risada amarga, porque discutir era a última coisa que precisava naquele dia, mas era impossível não pensar que, se ele sentia vergonha, ela estava mesmo fodida. Se alguém que tinha um cargo importante nas relações internacionais de uma das maiores empresas automobilísticas do mundo tinha motivo para se sentir menor que os outros, era melhor que os seus amigos tivessem uma lupa consigo se realmente quisessem conhecê-la em toda a sua insignificância.
Se não soubesse o quanto aquele dia era importante para ele, teria simplesmente inventado alguma desculpa - provavelmente criado alguma doença qualquer para uma de suas tias, ou uma queda no piso molhado do banheiro para o avô - e desmarcado. A ideia de lidar diretamente com a causa de sua ansiedade, sem nenhuma rota de fuga, era no mínimo aterrorizante. Mas os amava e ela o amava. Ele sempre dizia como queria apresentá-la para os seus amigos e, uma hora ou outra, ela sabia que não teria mais como escapar de algo que ele considerava tão importante. Precisava fazer isso por ele. Relacionamentos não eram sobre isso no fim das contas? Sobre ceder? Talvez até sobre abrir mão do seu bem-estar por algumas horas só para fazer o outro feliz. É, ela podia fazer aquilo. Ele ficaria contente e era isso que importava.
— Vai ter mais alguém?
— Ah, sempre tem. Mas não tem mais ninguém do nosso grupo em si. Se aparecer mais alguém, é agregado.
soltou uma risadinha anasalada. Então era assim que eles a classificariam também. Uma intrusa, aparecendo de penetra em suas vidas e roubando a atenção que não deveria ser sua. Mas ok, ela sobreviveria.
se adiantou, deixando para trás das costas a mão que ainda segurava a dela. Com as dobras dos dedos livres na porta, deu três toques firmes e espaçados de uma forma que parecia regular e calculada. Era possível ouvir os passos se aproximando. Ela tinha certeza de que era esse o som que sapatos de marca que custavam mais de mil dólares faziam quando se chocavam contra o chão.
— Ora ora, quem é vivo realmente sempre aparece — disse a mulher do outro lado da porta.
E tinha aprendido a aceitar e até a gostar de sua altura, mas agora se sentia minúscula perto da imponência cinco centímetros mais alta que se colocava à sua frente. Os cabelos modelados em cachos vistosos ao redor da cabeça poderiam ser uma coroa ou uma auréola. Ela decidiria mais tarde. E, nossa, aqueles eram os brincos coloridos mais lindos que ela já tinha visto em toda a sua vida.
— Oi para você também, Chastity — disse. — Sim, eu estava morrendo de saudades. Que bom que o sentimento é recíproco!
— Ah, qual é, ? Você sabe que todo mundo aqui está doido para te ver.
— Espero que isso te inclua.
— Com certeza. Eu sou a primeira da fila.
Os amigos se abraçaram carinhosamente. sustentou um sorriso tímido, evitando a vontade estranha de abraçar o próprio corpo e virar um tatu bolinha, girando para bem longe dali.
— E essa deve ser a famosa .
Ela deu uma risada nervosa, forçando os próprios pés a se moverem um pouco mais para frente.
— Não sei sobre o famosa — brincou. — Mas definitivamente sou a .
Meu Deus, que comentário idiota. Que merda ela tinha na cabeça? Por que quanto mais ela se preocupava em não parecer tonta e passar vergonha, mais parecia que era exatamente isso o que ela estava conseguindo fazer?
Chastity se adiantou em abraçá-la, inebriando suas narinas com o aroma aconchegante de lavanda. Era quase perigoso demais para uma jovem de vinte e um anos que estava desesperada por algum conforto e poderia facilmente permanecer pendurada sobre seus ombros por mais instantes do que o normal.
— Você é um doce. Todos estão morrendo de ansiedade para te conhecer.
forçou um sorriso que ela esperava que disfarçasse sua vontade de rir da ironia que era usar aquela figura de linguagem quando, para ela, aquele sentimento estava se aproximando demais do conceito de literalidade que se encontrava nos dicionários.
— Todo mundo já chegou? — perguntou.
— Teoricamente, sim — Chastity respondeu. — Mas você sabe como funcionam as coisas. Daqui a pouco deve surgir alguém que esqueceram de avisar que tinham convidado.
Ótimo. Ela ainda teria que viver o surto em parcelas. O dia não poderia ficar melhor.
tentou alcançar a mão do namorado, mas sentiu seus dedos escaparem quando ele se colocou à sua frente, seguindo a amiga e parecendo se esquecer de quem estava - praticamente vomitando - atrás.
Seus ombros se encolheram um pouco, tentando encontrar em si o conforto que esperava do outro. Ela conseguia fazer isso. Ela definitivamente conseguia. Era só dar um passo e depois outro e mais outro. Se não tropeçasse no próprio sapato já seria um ótimo começo.
— Finalmente! — Uma voz masculina soou na sala, fazendo com que ela levantasse a cabeça, encontrando todos os rostos parcialmente familiares por causa do trabalho de pesquisa em todas as redes sociais possíveis por cada nome. Aparentemente, alguns deles eram descolados demais para o facebook e o instagram, o que havia comprometido um pouco os seus esforços. Por outro lado todos pareciam importantes o suficiente para aparecer de alguma forma no google, nem que fossem em imagens de baixa resolução.
De qualquer forma, a conclusão que ela tirava era a de que aquele deveria ser o Nico, o tal chef de cozinha que desprezava por completo o significado de culinária popular. E, aparentemente, também o fazia em relação à ideia de que calças sociais e chinelos não deveriam ser usados juntos. Apesar de os sapatos dele claramente custarem, pelo menos, o dobro de todo o seu ‘look’ do dia. E talvez ainda precisasse somar o resto do seu guarda-roupas para fechar a conta.
Mas quem era ela para julgar o poder aquisitivo alheio e suas decisões de compra e gosto para moda?
não perdeu tempo. Ele precisou de dois segundos para se tornar a vida da festa, o centro das atenções, o cara que saía abraçando todo mundo e oferecendo os sorrisos mais calorosos do universo como se fosse nada. ficou parada, esperando que ele terminasse de colocar os próprios cumprimentos e comentários em dia para apresentá-la.
— Você não vai apresentar a sua namorada? — Deveria ser Mariah. E ela precisaria sussurrar internamente um muito obrigada para Mariah por ter a delicadeza de lembrá-lo da existência de outra pessoa na sala. Apesar de que, àquela altura, ela já estava prestes a se sentir como o elefante branco ocupando espaço demais e, mesmo assim, sendo completamente ignorado.
— Ah, é claro. Que cabeça a minha. — Ele riu, colocando o braço sobre o ombro dela. — Pessoal, essa é a . , meus amigos.
— Melhores amigos — Jaxon corrigiu, adiantando-se para abraçá-la. — Oi, você é tão fofa!
Ela retribuiu o gesto, tentando ser simpática, apesar de ter odiado completamente o adjetivo escolhido e como ele sempre vinha acompanhado de uma suposição de inferioridade e imaturidade. E sempre em uma posição de hierarquia que a colocava na base por ordem crescente de idade.
— Prazer em conhecer vocês e obrigada por me receberem!
— É claro — Sloane respondeu prontamente, abraçando-a também. — A casa sempre vai estar aberta para você. Você é praticamente parte da família agora.
— Com certeza — Nico completou. — E nessa família nós não vivemos sem um bom vinho. Você já tem idade para beber?
gargalhou junto com os demais. Não era como se ela tivesse uma opção melhor do que entrar na brincadeira, por mais tosca que ela fosse. O que ele esperava? Que o amigo estivesse namorando uma garota menor de idade?
— Já posso ficar alcoolizada legalmente. Quer ver minha identidade?
— Desde que eu não tenha problemas com a polícia, tudo bem.
O casal recebeu taças de vinho branco e brindou com todos os outros ali presentes, antes de engatarem em conversas entrecortadas e arborizadas que só a confundiam mais.
ocupou a cadeira ao lado de , que discutia avidamente com Gabe sobre os avanços tecnológicos em suas áreas, comparando o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas cada vez menos invasivas e mais precisas com o processo de maximização da automação que ele via em seu próprio processo de produção.
Ela brincou com a base de sua taça, admirando o brilho do que deveria ser cristal. Ela duvidava bastante que alguma coisa naquele lugar fosse simplesmente vidro. Ou simplesmente madeira. E tinha quase certeza de que havia visto um sofá bastante parecido com aquele em um artigo sobre objetos de luxo a preços exorbitantes. Era melhor não se forçar a tentar lembrar os muitos dígitos envolvidos quando tudo parecia escolhido com preciosismo para tornar o ambiente de ostentação, mas, acima de tudo, de intimidação.
percebeu que tinha se distraído por tempo demais quando ouviu o pedaço de uma conversa que tinha surgido. Mariah estava rindo enquanto contava sobre a vez em que tinha andado de elefante na Tailândia e ela arriscava dizer que era a única pessoa naquela mesa que não estava familiarizada com os nomes do que deveriam ser cidades. Ou pratos típicos. Ou gírias de sua própria linguagem. Ou literalmente qualquer outra coisa. Ela era péssima de chutes de qualquer forma.
— E você, ?
A jovem não sabia porque tinha sido trazida para a conversa. Considerando o último tópico abordado, ela respondeu:
— Ah, eu nunca andei de elefante. Na verdade, acho que eu nunca vi um sem ser na televisão. Só andei a cavalo mesmo.
— A família dela tem uma fazenda — acrescentou.
— Ah, eu adoro visitar haras! Onde fica o da sua família?
Suas pernas balançaram um pouco, cruzadas sob a mesa - que ela esperava que estivesse conseguindo disfarçar pelo menos um pouco de seu nervosismo.
— Não é um haras, na verdade. É só uma fazenda normal mesmo. Só tínhamos dois cavalos; um era da minha mãe e o outro meu, o Paco.
— Você participava daqueles torneios de equitação e hipismo? Eu nunca sei qual é qual — brincou Chastity.
— Não. A gente só passeava com eles mesmo. Não tinha nada de mais.
— De onde você é mesmo? — Mariah tornou a questioná-la.
— De uma cidadezinha no interior da Pensilvânia. Vocês com certeza nunca ouviram falar.
— Ah, sim. Está explicado, então.
Com um sorriso de dentes largos e clareados, a instrutora voltou a bebericar o seu vinho, dando também um gole no seu copo de água para limpar o paladar antes de voltar a contar sobre suas aventuras tailandesas.
sentiu, mais uma vez, o ímpeto de curvar os ombros um pouco mais; criar uma linguagem corporal de recusa social que fizesse os outros se esquecerem de vez de que ela ainda estava ali. Não era como se a sua presença fosse imprescindível, afinal. Provavelmente seria presunçoso da sua parte assumir que era ao menos desejada.
A refeição foi servida. Entre vieiras, carne wagyu e linguini com lagosta, ela montou o próprio prato, evitando pedaços grandes dos frutos do mar que ela não conhecia. A última coisa de que precisava era se envergonhar por não saber as normas de etiqueta ou por não conseguir disfarçar a própria reação se não gostasse.
— Ah, eu acabei não falando! Vamos fazer uma exposição super interessante em Michigan. Vocês estão todos convocados.
— Quando vai ser?
— Em março — Sloane disse. — Tem tempo para todo mundo se programar então nem tentem me inventar nenhuma desculpa.
— Nós vamos — respondeu imediatamente, obrigando a namorada a abaixar ainda mais o olhar, sem entender se ela fazia parte daquele plural repentino e, se fizesse, porque ele havia decidido escolher e se comprometer por ela.
— É claro que vão — Sloane voltou a falar. — Como eu disse, não é como se eu estivesse aceitando ‘nãos’ como resposta.
— Você gosta de fotografia, ? — Chastity tentou trazê-la novamente para a conversa.
— Ah, gosto. Gosto, sim. Mas acompanho algumas coisas pela internet. Acho que eu nunca fui a uma exposição propriamente.
— Tem uma primeira vez para tudo — Sloane disse, com um sorriso plástico. — Fico feliz de poder compartilhar a sua.
Ela forçou um sorriso, concordando cordialmente. Por Deus, como ela havia se enfiado naquela enrascada e como sairia? Duvidava sequer que conseguisse juntar dinheiro até março para fazer a viagem para Michigan e, definitivamente, não aceitaria que pagasse. Precisava criar limites para o quanto dependeria dele. Poderia ser jovem, mas não era ingênua o suficiente para permitir que aquilo se tornasse um argumento do quanto ela devia a ele. Era o tipo de coisa que não tinha a intenção de tornar literal.
Mais pelo menos quinze minutos de conversa se passaram sem que ela fosse lembrada. Quando a mão de repousou sobre a mesa, tendo terminado de comer, ela fez menção de se mover de forma a juntar seus dedos. Ele, contudo, foi mais rápido, mexendo-a vigorosamente em uma gesticulação que quase a fez pular de susto por ser pega de surpresa. Não tinha sido propósito. Claro que não, ele jamais faria isso. Mas a lâmina sadicamente brincando de se raspar pelas fibras de seu coração ainda estava ali, mesmo assim.
— Você está na faculdade? — Gabe perguntou.
— Ainda não — respondeu por ela. teve que respirar fundo e prender a respiração para não gritar que era capaz de falar por si mesma. — Mas logo estará, temos certeza.
“Quem tem certeza? Que papo é esse?”
— E o que você quer fazer?
— Na verdade — ela se adiantou, antes que ele pudesse fazê-lo —, eu quero trabalhar com música.
— Você toca?
— Violão, baixo e piano. E canto e componho também.
— Alguma música que a gente conheça? — Mariah perguntou.
— Em alguns anos, espero que a resposta seja sim.
— A parte boa desse hobby musical é que ela nem precisa largá-lo enquanto estiver na faculdade — disse. — Faz até bem para a saúde mental em meio aos estudos, sabe?
Aquelas frases tinham juntado tantas palavras que não faziam parte dos seus planos que conseguiram revirar seu estômago ao pousar com indiscrição. Ela não seria capaz de se manter evitando a expressão de desconforto por um segundo sequer.
— Licença, gente — disse ao se levantar. — Sloane, onde posso usar o banheiro?
A anfitriã levou o guardanapo à boca, limpando os lábios que há muito não estavam sujos. Levantou-se imediatamente e a indicou uma porta ao fim do corredor à direita. A mais nova concordou com um sorriso, agradecendo o gesto, e precisou usar de toda a sua força consciente para impedir seus pés de se adiantarem. Precisava de uma porta fechada atrás de si o mais rápido possível.
Com a porta trancada, apoiou as mãos sobre o mármore da pia, deixando que a cabeça pendesse com o cansaço entre os ombros. Ela acreditava plenamente na força que as energias das pessoas tinham. E a dela tinha sido completamente sugada pela de todos ao seu redor.
Se não fosse uma jogada antiga e vergonhosa, ela arriscaria facilmente pular pela janela do banheiro e fugir. Para onde? Não importava muito. Ela aceitaria absolutamente qualquer lugar no universo desde que pudesse se livrar da enxurrada de comentários não solicitados, arrastando seus sonhos para baixo como a água de uma chuva de verão.
Abriu a torneira que parecia brilhar como se tivesse acabado de ser polida - obviamente por alguém que jamais seria convidado a estar naquela sala. A água escorreu fresca e ela deixou que o líquido se acumulasse entre as palmas das mãos em concha, antes de levá-las ao rosto, esfregando as pálpebras e o espaço entre os olhos e as bochechas, permitindo que a água emulasse as lágrimas que ela se recusava a colocar para fora.
— Você é forte — sussurrou para si mesma no espelho, torcendo para que conseguisse ao menos acreditar nas próprias palavras. — Seus sonhos são maiores que a descrença alheia.
Com a toalha branca felpuda que deveria ter alguns milhares de fios, ela secou o rosto com batidinhas leves nas bochechas, inspirando profundamente e expirando com calma.
Tudo bem.
Ela estava preparada para fingir demência por mais uma hora.
Ao retornar ao seu lugar na mesa, era como se a sua presença fosse imperceptível e ela agradeceu profundamente por isso. A conversa tinha continuado sem ela e não era como se fizesse grande questão de descobrir qual era o assunto, considerando que seu engajamento não era bem-vindo e apenas a faria gastar ainda mais energia.
Sloane serviu mais vinho a todos. optou pelo seu próprio silêncio. Era melhor tomar mais alguns mililitros de álcool se isso significasse poder não interagir para dizer que não queria beber mais. Além de que talvez fosse uma boa ideia adicionar mais uma leve porcentagem de embriaguez ao seu cérebro.
Para alguém que apenas se envolvia na parte musical do complexo artístico, os sorrisos blasé eram esforço demais de sua capacidade de atuação. Contudo, ela parecia estar obtendo sucesso suficiente em sua tentativa de passar simplesmente despercebida.
Em duas horas, viu-se livre do próprio martírio, mas não sem antes cumprimentar todas aquelas pessoas com simpatia forçada e agradecimentos pela tarde adorável.
Dentro do carro, ela apertou o cinto de segurança ao redor do corpo como se aquele movimento fosse suficiente para estrangular sua vontade de gritar.
soltou o corpo contra seu próprio banco, sorrindo com o peito estufado.
— Que almoço incrível — ele disse. — Eles são ótimos. Sempre fico me questionando porque a gente demora tanto para se ver.
— Aham — ela concordou sem muito entusiasmo.
hesitou, não engatando a marcha ré como deveria. Encarou a namorada, piscando algumas vezes. sentiu o olhar fulminante e inquisidor.
— O que foi?
— Eu que te pergunto, . O que foi?
A garota fez uma careta.
— Não sei. Você quem fechou a cara de repente.
— Eu? Você que decidiu ser seca comigo de repente.
— Eu literalmente não fiz nada. Você está criando uma situação que não existe.
— Ah, pelo amor de Deus. Você acha mesmo que eu não te conheço? Que eu não percebo quando tem algo de errado?
— Se você percebesse quando tem algo de errado, talvez fosse menos insensível em relação aos sentimentos dos outros.
soltou um som difícil de se compreender, parecendo ter vindo do fundo do desgosto entalado em sua garganta. Como sempre, ele se sentiria injustiçado. Ela já sabia exatamente pelo que esperar.
— Eu? Insensível? Eu só estava me divertindo com os meus amigos que eu não via há séculos. Conversar com outras pessoas é insensibilidade para você? Talvez precise rever os seus conceitos, porque isso, sim, é meio tóxico da sua parte.
soltou o ar com força pelas narinas, sabendo que aquele comportamento, infelizmente, não a surpreendia, mas ainda a decepcionava.
— Foi isso o que eu disse? Eu por acaso falei ‘, você pode parar de interagir com outras pessoas’? Isso é ridículo. E, no mínimo, ofensivo.
— Agora eu sou ofensivo? Você está criticando pessoas que mal conhece depois de um almoço. E todos foram super simpáticos com você. Ninguém te tratou mal por nenhum segundo sequer.
— Você por acaso consegue se ouvir? Porque eu juro que não é possível que você realmente ache que algo do que está dizendo é de alguma forma certo. Em que momento eu falei que os seus amigos foram maus comigo? Juro, , você precisa parar de tirar as palavras da boca dos outros para criar essas suas histórias.
— Então qual é a porra do problema? Porque eu honestamente não consigo entender o seu comportamento.
— Que comportamento? Hein? Me diz o que foi que eu fiz para você estar tão transtornado.
— Você está estragando uma tarde ótima por nada. É isso que está me deixando transtornado.
— O que eu estraguei? Porque, sinceramente, era como se eu nem estivesse ali. Não sei como eu posso ter te incomodado tanto quando claramente para você era como se eu fosse invisível.
riu, fazendo sentir um amargor enjoativo na boca.
— Sério? E você ainda quer me convencer de que não faz tudo sempre ser sobre você.
— Como é que é?
— Você ouviu perfeitamente. Eu estava conversando com meus amigos. Você queria que eu ignorasse pessoas que eu não via há meses para dar toda a minha atenção para alguém que eu vejo toda semana? Se você não consegue perceber por si só como isso é egoísta, eu honestamente não vou me dar ao trabalho de te explicar. Acho que você é grandinha o suficiente para conseguir entender esse tipo de coisa sozinha. Chama bom senso, não sei se você está familiarizada com isso.
E foi aquele comentário, em meio a tantos outros horrorosos, que fez seu sangue ferver mais do que água em uma chaleira acima de cem graus Celsius. Ela tinha certeza de que conseguia ouvir os próprios batimentos cardíacos latejando à altura das têmporas.
— Você, logo você , quer me falar alguma coisa sobre bom senso? Você desfez dos meus sonhos na frente de todo mundo, . Você basicamente me usou como objeto do seu monólogo de ridicularização e quer mesmo falar algo sobre maturidade e bom senso? Você se acha tão sábio e experiente, mas não tem o mínimo tato para tratar direito quem te ama e está sempre do seu lado. Aqui talvez seja a hora de eu responder sua pergunta com outra pergunta. Parece que tem uma palavrinha importante que você esqueceu de usar no seu vocabulário e na sua vida. Chama respeito. Até uma criança parece conhecer mais isso do que você.
— Ah, então é sobre isso — ele concluiu, com uma gargalhada forçada e irônica. — De novo é essa história. Quando você vai entender que eu não estou destruindo seus sonhos gratuitamente? Eu só estou tentando ser razoável e realista, já que você não está sendo. É para o seu próprio bem.
— Em que universo parece bom para alguém receber só palavras desestimulantes e degradantes?
— Ai, você vai mesmo começar com o vitimismo? Você me faz parecer um monstro sendo que eu não fiz nada. Literalmente, você está criando uma situação muito maior do que ela é. E sabe o que eu acho?
— Prefiro não saber — ela disse, mas foi ignorada.
— Acho que você, no fundo, também já percebeu que essa fantasia não vai dar certo e é só isso mesmo: uma fantasia. E está jogando suas frustrações em cima de mim para poder ter alguém a quem culpar quando tudo der errado. Você só está tentando tirar esse peso das próprias costas. Se isso te fizer feliz, pode colocar sobre mim. Não tem problema. Mas pelo menos tenha a decência de assumir sua participação nesse processo.
Sua inspiração foi tão pesada que, por um instante, ela duvidou que conseguiria comportar todo o ar nos pulmões.
— Me larga em um ponto de ônibus por perto que eu vou para casa sozinha.
— Você só pode estar brincando. Para de ser infantil.
— Não, eu vou ser infantil, sim. Melhor ser criança do que passar mais um segundo sequer com você nesse carro.
— Eu não vou dar corda para essa palhaçada.
— Tudo bem, eu uso o Maps e descubro.
soltou o cinto e abriu a porta, batendo-a com força atrás de si antes de caminhar a passos pesados para longe. Não precisou de muito tempo para ouvir outro som de porta batendo.
— Você não pode ir embora assim.
— Não precisa se preocupar. Ou fingir que se preocupa.
, amor, não faz isso. — Sua voz tinha amansado de repente. — Sério. Volta aqui, vamos conversar.
— Pode voltar para o carro. Eu vou andando.
— É óbvio que eu não vou deixar você andando sozinha por aí em um lugar que você nem conhece. Não é seguro. Você pode me odiar o quanto quiser, a gente resolve isso depois; mas volta para o carro.
Ela respirou profundamente, apertando os olhos conforme permitia que o último fio racional de sua mente parasse seus pés. Não era mesmo seguro.
tinha conseguido alcançá-la e tomou a dianteira, levando as duas mãos às suas bochechas em um gesto afetuoso que quase a fazia se sentir encurralada por um predador.
— Vamos?
se sentiu covarde por não conseguir encará-lo nos olhos.
— Eu não quero brigar — ele continuou. — Já já eu vou passar um mês fora. Não quero viajar estando desse jeito.
— Ok.
— Ei, me desculpa, tudo bem? Me desculpa. Vamos para casa.
— Tudo bem.
— Certeza?
Não. Nem um pouco.
— Sim. Vamos para casa.


“but you know what they say, you can't help who you fall for
and you and I fell like an early spring snow
but reality crept in, you said we're too different
you laughed at my dreams, rolled your eyes at my jokes”


tinha certeza de que acordaria com um maldito torcicolo.
Já havia se revirado tanto na cama que, definitivamente, não havia mais posição alguma para assumir que ela não houvesse testado antes. E os resultados não estavam sendo exatamente os melhores.
Mas a pior parte de tudo era ficar esperando.
Esperando enquanto seus olhos se tornavam mais pesados, a tensão nos ombros piorava e o coração parecia afundar, perdendo migalhas da expectativa e se fechando.
Ela já estava quase cedendo à impossibilidade de evitar o sono e deixando que os olhos se fechassem, quando o alarme irritante de seu celular soou.
— Boa noite, Bela Adormecida.
esfregou os olhos, sorrindo de leve com o apelido carinhoso. Tinha preparado todo um discurso para expressar como se sentia rejeitada e até desrespeitada por terem combinado um horário e ele aparecer só depois de duas horas. O discurso, no entanto, tinha se esvaído de sua mente assim que ouvira a voz dele. Jamais admitiria em voz alta, mas ele tinha um poder sobre ela que era indiscutível.
— Eu acordei meio cedo. É só isso.
— Fez algo de bom?
deu de ombros.
— Eu tinha consulta com o ginecologista.
O ginecologista?
Ela revirou os olhos.
— É um médico, pelo amor de Deus. Para alguém que fala tanto sobre ética trabalhista, deveria conhecer o termo ‘profissionalismo’.
— Eu sei. Eu só estou brincando.
Mas ela conhecia aquele tom de voz bem o suficiente para saber que existia um importante fundo de verdade em sua fala. E também sabia que não valia a pena discutir.
— Como foi o seu dia?
— Uma reunião atrás da outra - ele contou. — Sério, eu nem consegui parar para almoçar. Fui comer já era quase quatro da tarde e só porque um dos clientes sugeriu um restaurante aqui por perto. Meu estômago estava prestes a se digerir.
riu, concordando.
— Almoços são sagrados. É uma pena que a vida adulta não respeite isso.
— É um absurdo, na verdade. Mas o que eu posso fazer?
— Espero que você deixe seus funcionários almoçarem. De preferência, por pelo menos uma hora e meia. Nada desse papo de o oprimido se tornar opressor.
— Ah, não. Eu sou um ótimo chefe. As pessoas me agradecem por fazê-las me obedecerem.
riu da piada, concordando. não era exatamente a pessoa mais tranquila do mundo e ela não havia tido a oportunidade de conhecer muitas pessoas que trabalhavam para ele, mas pareciam mesmo ter um relacionamento bastante bom dentro do que se poderia supor dentro da hierarquia oferecida pela imagem de um chefe.
Ele era bom no que fazia. Bom não; incrível. Possivelmente um dos melhores. E ela se sentia tão orgulhosa em ver o seu sucesso. Só queria que ele sentisse o mesmo orgulho ao ver os seus esforços para seguir os próprios sonhos.
Mas tudo bem. Ela até meio que entendia. Era difícil levar a sério quem só estava começando, ainda mais quando você já tinha alcançado o topo da cadeia alimentar. Ela só queria que ele entendesse que todos precisavam começar em algum lugar e esse era o dela. Ela estava tentando. Estava mesmo.
— Sabe do que eu estava me lembrando? — A pergunta dele a trouxe de volta para a realidade de repente.
— Do dia em que eu ganhei de lavada de você no tênis de mesa?
gargalhou do outro lado.
— Por que raios eu ficaria me lembrando disso? É basicamente a maior vergonha da minha vida.
— Não deveria se cobrar tanto. Não é sua culpa que eu esteja claramente perdendo meu tempo ao não assumir um lugar na seleção feminina de tênis de mesa dos Estados Unidos nas próximas olimpíadas.
, você não presta.
Ela riu, fazendo uma reverência bastante torta e desajeitada.
— Mas, enfim, na verdade, eu estava pensando no dia em que fomos até aquele parque. Lembra?
— Não fomos exatamente ao parque, né? Estávamos indo àquele museu e nos perdemos. O parque foi um achado depois de termos perdido o horário para entrar na exposição.
O rapaz riu alto. Lembrava-se claramente dos altos e baixos daquele dia, indo da completa raiva consigo mesmo por não conseguir seguir as coordenadas demonstradas no aplicativo até a mais pura risada de si mesmo e de sua própria incompetência.
— Provavelmente foi bem mais divertido assim.
— Ah, tenho certeza de que sim. Te ver tão irritado com você mesmo foi hilário.
— Duvido que teria achado tão engraçado se fosse você dirigindo.
— Ah, qual é? Você precisa admitir que foi, sim, bem engraçado.
— Foi mesmo. Mas teve mais uma coisa engraçada naquele dia…
— Não fala do susto que eu tomei no elevador.
— O susto que você tomou no elevador!
gemeu, escondendo o rosto atrás dos dedos longos. Infelizmente, não era apenas que não havia superado aquele fatídico momento. Ela também não tinha conseguido fazê-lo.
— Eu nunca vou te perdoar por aquilo.
estava literalmente lacrimejando de tanto rir. Ainda se lembrava de cada detalhe.
Ela não era a maior fã de brinquedos radicais - achava aqueles infantis já bastante agressivos para seu gosto -; era verdade. Mas a coisa que mais temia era ter de sequer pensar em sentir seu corpo em queda livre, caindo em alta velocidade a favor da gravidade com a sensação de pânico de um chão que parecia nunca chegar e, se chegasse, talvez significasse que ela se esborracharia contra ele.
E, mesmo assim, ele tinha conseguido convencê-la a se sentar naquele banco, presa de forma quase claustrofóbica enquanto subia lentamente até o ponto mais alto do parque, arrependendo-se milhões de vezes por ter aceitado aquela ideia absurda. De olhos fechados e apertados com força, murmurou quaisquer que fossem as preces e orações que se lembrava de ter ouvido sua avó rezando e torceu para que Deus concordasse que ela era muito nova para morrer. Ainda mais de forma tão pública e vergonhosa.
Quando o som do trilho travando tomou suas orelhas, ela teve certeza de que era isso. Acabou. Aquele era seu fim.
Mas não foi uma morte rápida e indolor. Foi doloroso enquanto ela gritava com tanta força que parecia prestes a expelir seus pulmões pela boca apenas pela função da própria pressão na garganta. A queda fez seu estômago fazer algo muito pior do que se revirar. Ela não saberia explicar. Era como se um vácuo tivesse sido formado, como se um buraco negro sugasse sua alma para fora pela barriga. E foi horrível. Cada segundo foi absolutamente horrível.
E quando pensou que finalmente tinha acabado e poderia abrir os olhos para observar a segurança da terra firme, ouviu o namorado gritar:
— Espera só! Agora é a queda mais rápida. Você vai adorar!
Instintivamente, apertou as pálpebras ainda mais e apertou as alças do cinto que lhe prendia os braços. Os nós de seus dedos estavam prestes a adquirir sequelas permanentes de isquemia.
Ela não ousou se mover, esperando pelo pior. Foi quando percebeu que já tinha tempo demais que nada acontecia e havia um pequeno som de risada estrangulada perto demais de si.
Ousou arriscar com a própria sorte e abriu apenas um dos olhos, encontrando pessoas em pé bem à altura de seu campo visual. E, pior, estava bem à sua frente, rindo como uma hiena ridícula.
Enquanto soltava o cinto, percebendo que a fivela já tinha sido afrouxada automaticamente pela parada do brinquedo, ela quis matá-lo. Quis usar todos os palavrões que conhecia e o teria feito se não tivesse uma criança que deveria ter por volta de cinco anos logo ali. Ela não arruinaria a inocência de uma pobre alma porque seu namorado era o maior filho da puta do universo. Então, simplesmente disse, entre dentes:
— Eu. Te. Odeio.
— Você me ama.
— Não. Nem um pouco.
Mas ela sabia que amava. Amava quando ele a tinha feito querer matá-lo naquela porcaria de elevador. Amava agora que ele a lembrava daquele momento. Amava em todos os outros dias no meio do caminho. Mesmo que nem sempre se sentisse como a pessoa mais abençoada com o privilégio da reciprocidade no mundo.
— Foi um dia incrível mesmo — ela concordou. — Tirando a parte em que eu tive certeza de que você teria que comunicar aos meus pais que eles tinham perdido a filha para um elevador.
— Precisamos fazer isso de novo um dia desses. Talvez sem essa última parte.
— Podemos substituir por uma peça de teatro. Não tinha aquela que você queria ver?
Le Bourgeois Gentilhomme — ele respondeu em seu melhor sotaque francês, quase digno de um nativo. — Vamos quando eu voltar. Acho que vai sair de cartaz logo, então precisamos aproveitar.
Enquanto concordava, não conseguiu esconder o bocejo desajeitado. Estava tão cansada. Não importava o quanto quisesse continuar ali, conversar mais com o namorado. Existiam algumas coisas das quais ela não podia escapar e uma delas era o seu sono.
— Acho que você precisa descansar — ele disse. — Desculpa por ter demorado tanto.
— Tudo bem — ela respondeu, com um sorriso de canto. — Desculpa por não aguentar ficar um pouco mais.
— Não é sua culpa. Dorme bem, amor. Já já eu estou de volta. Vai passar mais rápido do que você pensa.
Ela concordou, soprando um beijo para a tela. Esperava que ele estivesse certo.


“Mr. Superior-Thinkin’, do you have all the space that you need?
I don’t have to be your shrink to know that you’ll never be happy”



Obviamente tinha sido bem menos do que isso, mas se o tempo pudesse ser definido apenas pela percepção que temos dele, teria dito que o período distante entre ela e tinha durado pelo menos uns três meses. E ainda seria pouco para compensar o quanto pensou nele todo santo dia, passando as noites esperando uma ligação e contando os segundos para poder abraçá-lo com toda a sua força. Deus, nem sabia que era possível sentir tanta saudade de alguém assim.
Estava pulando de um pé para o outro, trocando seu peso de base como se o chão estivesse pegando fogo logo abaixo da sola de seus sapatos. Se continuasse assim, alguém iria expulsá-la do aeroporto por sacudir o solo e atrapalhar a rota de pouso logo logo.
Tinha desenhado corações e estrelas em uma cartolina e escrito o nome dele da forma que faziam nos filmes, mas já havia tido tempo suficiente para se sentir infantil demais e socar o papel no fundo da bolsa.
Pensando bem, aquilo provavelmente era algo que ela gostaria de receber. Algo simples e talvez meio bobo, mas que demonstrava que a pessoa se importava.
Mas, pensando melhor , não era ela. Ele daria um jeito de fazê-la se sentir como uma criança carente de atenção, mesmo sem querer. Nem que fosse comentando sobre as canetinhas que ela tinha arranjado em um estojo antigo da época da escola ou sobre o traçado de cinco linhas sucessivas que continuava sendo o único jeito que a permitia desenhar uma estrela. E ainda não era uma lá das mais bonitas. Um abraço apertado era mesmo a demonstração de afeto mais segura.
O corredor, até então praticamente vazio, começou a se encher de pessoas com malas e mochilas, a maioria já vidrada à tela do celular, fosse para solicitar um carro, avisar a família do pouso ou apenas para alimentar o vício interrompido do uso da internet tão logo houve sinal suficiente de Wi-Fi.
Momentos como aquele eram um dos poucos em que ela realmente apreciava sua altura. Enquanto vários por ali estavam saltitando, ficando nas pontas dos pés ou tentando olhar sobre os ombros alheios, ela só estava preocupada em encontrar assim que ele atravessasse aquele portal.
E então ela o viu. Lindo como sempre, com a gravata um pouco solta ao redor do pescoço - da forma que ele fazia quando considerava que poderia ser um pouco ‘descontraído’ -, uma camisa branca e calça azul. Os cabelos levemente desalinhados poderiam fazer algum desconhecido assumir que ele havia aproveitado as horas de voo para tirar um cochilo, mas sabia que não. não dormia em aviões, trens ou carros. Aquela pequena bagunça era só um sinal de seus fios sendo teimosos como de costume. Era essa a característica que mantinha a voraz indústria de gel de cabelo rodando suas engrenagens.
Um sorriso largo e caloroso iluminou seu rosto, enquanto seu coração acelerava com a animação de colocar um fim à gigantesca saudade que lhe assolara. Ela ergueu uma das mãos, acenando avidamente para que ele a visse. Esperava um sorriso gigante à altura do seu. Queria capturar na memória para sempre o momento exato em que veria o brilho nos olhos dele acendendo como pisca-pisca em uma árvore de natal, feliz em vê-la.
Mas não foi isso o que aconteceu quando a viu.
Ao encontrá-la acenando animadamente, ele apenas meneou a cabeça, como se estivesse se assegurando de que ela soubesse que tinha sido vista. Arrastando a mala cujas rodinhas se moviam amplamente ao longo de todos os trezentos e sessenta graus, ele continuou completamente concentrado em seu celular, falando com quem quer que fosse.
A cada passo que o namorado dava em sua direção, ela sentia o coração afundar um pouquinho, dando-se conta de que a sua presença ali era tão insignificante quanto seria a sua ausência. Como uma flor murcha, ela percebeu os ombros encolhendo levemente, fechando-se para a decepção. Mas era apenas o trabalho. Ela sabia que sim. Ele precisava se manter focado e cumprir com as suas obrigações. Teria tempo para ela depois.
continuou falando ao telefone, parecendo levemente alterado, quando entregou a ela o blazer para que ela o carregasse no caminho até o carro. As palavras ‘por favor’ e ‘obrigado’ nunca foram ditas. Não era mesmo de seu feitio. Dentre as ‘palavras mágicas’ que seus pais lhe haviam ensinado, a única que saía da boca dele com certa frequência era ‘desculpa’ e, geralmente, apenas para amenizar a situação e servir como uma forma de botar fim a quaisquer discussões.
decidiu andar à sua frente, tentando lhe dar o espaço para manter alguma privacidade em sua conversa e se livrar do peso de querer saber o que estava acontecendo - menos por curiosidade do que por um instinto de cuidado e de querer sempre assumir os problemas dos outros para si, como se pudesse suavizar ao menos um pouco da situação.
Abriu o carro e assumiu a posição atrás do volante, esperando enquanto ele colocava a sua mala sobre o banco de trás e se sentava na posição do carona. bufou frustrado, antes de dizer qualquer coisa sobre como resolveriam isso depois e desligar o telefone.
— Oi — arriscou, observando-o perifericamente enquanto esfregava as têmporas.
— Oi — ele respondeu. — Podemos ir para casa?
— Dia difícil? — A sua pergunta era praticamente retórica; apenas como uma forma de buscar evitar que o silêncio desconfortável repousasse sobre o ambiente ainda antes.
— Muito.
Ela simplesmente assentiu, passando a marcha ré e saindo do estacionamento.
O caminho até a casa dele tinha sido preenchido pelo vazio e pelas dúvidas; pela sensação de que seria pior se ela arriscasse puxar qualquer assunto, por mais inocente e despretensioso que fosse.
Lá, ele desceu com a bagagem e seguiu diretamente para o quarto para deixá-la lá. se sentou no sofá da sala, que era muito mais chique que confortável, e esperou.
Esperou até que ele voltasse, soltasse o corpo com força ao seu lado e colocasse as mãos sobre os olhos. Nem um abraço sequer. Ela estava mais desapontada do que gostaria de transparecer.
— O voo foi bom?
— Tudo estava ótimo lá em cima. O problema começou no desembarque.
— Quando você me viu e pensou “Não acredito que eu ainda vou ter que lidar com essa maluca”.
Era uma brincadeira, é claro; mas não estava no melhor dos humores para piadas.
— Pelo amor de Deus, . Eu honestamente não tenho tempo para isso agora.
As palavras lhe atingiram como um soco. Ele não tinha tempo para isso. Não tinha tempo para ela .
— Tudo bem — respondeu, porque parecia a única coisa que poderia fazer naquele momento. Claro, além de se levantar e começar a caminhar em direção à porta de entrada.
— Onde você vai?
Ela não se deu ao trabalho de se virar.
— Para a minha casa.
— Por quê? A gente acabou de chegar.
— E você não tem tempo para isso. Sei que você está estressado e não quero ser causa de mais estresse. Não tem problema. Mesmo. A gente conversa amanhã.
— Não foi isso o que eu quis dizer. — Ela sabia pelo som dos pés cobertos apenas por meias cinzas que ele estava se aproximando. A confirmação veio pelo toque de seus dedos gélidos não pele do antebraço dela. — Eu me expressei mal. Perdão.
— A gente não precisa mesmo fazer isso. Você precisa descansar.
— Preciso mesmo — ele concordou. — Mas queria você comigo para isso.
Ela se sentiu dividida - o que vinha acontecendo mais frequentemente do que ela havia se dado conta até o momento. Presa em um dilema que a consternava, sem saber se o certo era se manter firme ou simplesmente ceder. Ele tinha pedido desculpas, afinal. O que mais precisava que ele fizesse?
Estava com saudades. Precisava mesmo se manter em sofrimento e distanciamento quando poderia demonstrar alguma benevolência inclusive em benefício próprio? Droga, ela só queria estar com ele. Por que não podia ser simples assim e pronto?
— Vamos? — Ele perguntou, em um tom que variava entre a súplica e a hesitação receosa.
engoliu o bolo incômodo travado na garganta e aceitou a mão estendida, deixando-se levar. Mais uma vez.


ooh, block it all out, the voices so loud saying “why did you let her go?”
does it make you feel sad that the love that you’re looking for… is the love that you had?



Ela usou o dorso da mão para se livrar de um suposto floco de poeira que nem sabia se realmente estava ali. No fim das contas, talvez estivesse começando a criar imagens na sua cabeça para compensar a ausência das coisas que, de fato, deveriam estar presentes.
— Feliz aniversário, meu amor!
recebeu o abraço de mais uma das amigas, sustentando um sorriso largo e quase estático. Era mais fácil do que deixar transparecer o nervosismo que parecia prestes a fazer seu cérebro explodir dentro da cabeça, incapaz de parar de pensar por um segundo sequer.
— Obrigada! Fico feliz que tenha vindo!
Era meio que o básico e educado a se dizer. Contudo, não deixava de ser um esforço.
— Onde está o ? Estou louca para conhecê-lo. Ele parece tão lindo nas fotos.
— Ah, ele ainda não chegou — ela explicou. — Deve ter ficado preso em alguma reunião de última hora.
A fisionomia da amiga deixava claro que ela sentia pena. odiava a sensação de ter alguém sentindo dó dela.
— Que pena…
— Mas ele vai chegar — se adiantou a explicar. — Tenho certeza de que logo, logo ele deve estar por aqui.
A amiga assentiu e se afastou, encontrando outras pessoas para cumprimentar, e a abandonando com o questionamento acerca da temerosa possibilidade de sua afirmação ser apenas uma tentativa de convencer a si mesma.
— Onde é que você está? — A pergunta pairou no ar, rondando a si mesma com o peso de toda a crescente insegurança.
Ele não perderia aquele dia, perderia?
Ela não tinha tempo para pensar naquilo. Tinha esperado tanto para ter aquele momento com as pessoas que amava e poder comemorar com elas tanto a benção de mais um ano de vida quanto a dádiva de uma nova oportunidade em sua vida. Não podia deixar que seu momento fosse destruído pela expectativa. Ao fim do dia, ainda tinha a função de ser uma boa anfitriã.
foi até seu celular, ligado a uma caixa de som via bluetooth e aumentou levemente o volume, trocando para uma playlist um pouco mais animada e que não tinha nem um traço sequer das letras tristes e melodias angustiantes que ela, sinceramente, adorava. Não era hora de sentir pena de si mesma. Poderia fazer isso mais tarde, no conforto da solidão de seu próprio quarto, com um pijama de flanela e uma máscara coreana de skincare que provavelmente não tinha sido produzida na Coreia.
Pegou alguns quitutes da mesa principal e seguiu até o grupo de amigas, envolvendo-se em uma discussão acalorada que tinha conseguido misturar os tópicos New York Fashion Week, a nova temporada da NFL e quem deveria ou não estar cotado para os principais prêmios do Oscar naquele ano. Diga-se de passagem, as opiniões sobre o último estavam completamente divididas. Era difícil manter a imparcialidade e o padrão de crítica neutro quando se tratava dos seus favoritos protegidos. Era uma longa metragem de pano para passar para cada um deles.
— Honestamente, se esnobarem de novo o Leonardo DiCaprio, eu desisto.
— Acho que ele também.
— E ainda tem a Brie Larson. Ela merece muito esse ano.
quase começou a discussão de que música merecia a estatueta de ‘Melhor Canção Original’, mas duvidava que fosse achar uma alma sequer para discutir a produção de trilhas sonoras para as quais a maioria nem dava atenção. Enquanto isso, essa era a sua parte favorita do cinema. Parecia um roubo contra a sétima arte, mas o que ela poderia fazer? Era mais forte do que ela.
— E as animações? Meu Deus, eu vi todas.
A aniversariante riu sozinha, sentindo a alegria daquelas pequenas coisas e seu amor pelas pessoas que também se divertiam com elas. Em um devaneio ressentido, transportou-se de volta para o jantar com os amigos de , encarando a escancarada realidade de que nunca estaria tendo uma conversa despreocupada daquelas com nenhum deles. Eles não falariam de filmes que não fossem representativos do gênero cult - se é que isso existia - e não discutiriam animações. Não falariam sobre músicas se não fossem de Chopin ou Mozart ou de algum artista plástico contemporâneo que não fosse completamente fora da casinha. E precisava ser honesta, mesmo que o assunto fosse banal, ela ainda não conseguiria se sentir confortável. Era simplesmente impossível não se sentir acuada e julgada por pessoas que, quase involuntariamente, pareciam sempre estar ali para te lembrar de que estavam a um nível muito superior ao seu. Ela e eram de mundos completamente diferentes e às vezes isso doía.
Será que era por isso que ele não tinha ido? Não estava disposto a se dar ao trabalho de comparecer e se esforçar para se encaixar, mesmo que minimamente, em meio aos seus amigos e familiares? odiava se sentir assim e pensar desse jeito, mas às vezes parecia que só uma das pessoas naquele relacionamento estava disposta a fazer esforços e abrir concessões.
E essa pessoa definitivamente não era ele.
— O bolo está na mesa — seu pai anunciou em um pequeno cantarolar, chamando a atenção de todos os convidados. — Hora de cantar os parabéns para a nossa querida aniversariante.
rolou os olhos de leve, de uma forma que transparecia mais o carinho que a vergonha pela escolha de palavras do pai. Apesar de constantemente achá-lo exagerado ao cumprir sua função de pai orgulhoso, chegava uma hora na vida em que você simplesmente percebia que não havia tempo a perder quando se tratava de quem se ama.
Em questão de instantes, a música tinha sido suspensa e todos estavam mais ou menos organizados ao redor da mesa principal, em volta de um grande bolo red velvet e uma bandeja cheia de cookies com gotas de chocolate que não necessariamente gritavam aniversário, mas eram os seus favoritos e o dia era dela para fazer o que bem entendesse.
assumiu a posição central, onde deveria estar para soprar as suas velas vermelhas. Estava preparada para o momento de imobilidade constrangedora em que as pessoas simplesmente cantavam parabéns e você ficava lá no meio, sem saber se cantava junto, batia palmas sem propósito ou ficava olhando para o além sem se mover.
— Mas antes de começarmos, tem algo a dizer — seu pai voltou a tomar as rédeas do diálogo majoritário do ambiente, fazendo suas bochechas enrubescerem.
Ela nem sabia se queria mais contar. Não era assim que ela havia imaginado esse momento durante toda a semana, criando possíveis cenários e treinando o que deveria falar para causar impacto, mais preocupada com o que escutaria em retorno. Preocupada com qual seria a reação dele . Mas se ele não estava em lugar algum para ser encontrado. seu anúncio sequer tinha o mesmo valor? De repente, nem parecia tão importante assim, mesmo que dias atrás tivesse se colocado à força, inevitavelmente, como o melhor momento de toda a sua vida.
— É brincadeira dele, gente — ela se apressou a dizer, percebendo as palavras saindo de sua boca quase que involuntariamente. — Vamos para os parabéns, que eu quero comer bolo.
— Não, não; nada disso. É um grande momento na sua vida, não é hora de modéstia.
— Ai, pai… Não, sério. Deixa para lá.
— Jamais. O representante de uma gravadora topou sentar para ouvir as músicas dela.
— É uma conversa casual e sem compromisso — fez questão de explicar rapidamente, atropelando os gritinhos animados das amigas. — Não significa nada.
— Significa muita coisa — a amiga garantiu, abraçando-a. — Significa a oportunidade que a gente sempre soube que você merecia. Vamos estar aqui torcendo por você.
— E já deixando guardado o dinheirinho para o seu primeiro álbum e seu primeiro show — completou outra.
Entre beijos e abraços, eles puxaram a canção dos parabéns, jogando pequenos papéis laminados recortados em formato de coração para o alto e gritando todos os melhores desejos para aquela mulher incrível que parecia uma flor desabrochando em sua melhor fase.
E mesmo se sentindo cheia de amor, orgulho e expectativas, ela também conseguia se sentir completa e absolutamente vazia. O que fazer quando a pessoa que mais significa para você é exatamente a pessoa que não aparece?
Sentiu os olhos ardendo profundamente e respirou fundo, engolindo o choro que não permitiria escorrer.
Ele ligou mais tarde e só disse:
— Oi, amor! Sinto muito por não ter conseguido ir.
E ela disse:
— Eu também.
E mesmo que se recusasse a admitir, naquele momento, ela soube que o fantasma do fim tinha se aproximado a ponto de lhe deixar claustrofóbica.


***



Ela se olhou no espelho mais uma vez, tentando garantir que conseguia manter o sorriso estampado por mais tempo. Molhou a parte interna dos pulsos com água gelada e respirou fundo antes de decidir que não poderia ficar trancada naquele banheiro por tanto tempo.
Havia tomado a decisão de fazer as coisas ficarem bem e era exatamente o que faria. Viraria a tranca da porta e sairia com um sorriso no rosto, sendo a vencedora do título de Miss Simpatia 2016 para qualquer um que, por acaso, quisesse ver.
— Vamos sair ou pedir alguma coisa por aqui mesmo? — perguntou com o tom mais animado que havia conseguido cavar dentro de si, em meio ao desespero de sentir a perda carregando-o para longe de seus dedos. Precisava fechar a mão. Precisava fazer algo. — Eu tinha pensado naquele restaurante de comida tailandesa que você gosta. Tenho certeza de que não tinha nada tão aconchegante e com gostinho de casa quanto isso na sua última viagem.
Ela se interrompeu ao vê-lo sentado na poltrona, exatamente na mesma posição em que o tinha deixado quando se aventurou a ir ao banheiro. Ele continuava ali, estático, congelado no lugar como se alguém tivesse simplesmente encontrado o botão de pause no controle da sua vida.
De repente, seu coração pareceu decidir praticar bungee jumping dentro do próprio peito. De repente, ela tinha ainda menos certeza de que realmente queria estar ali.
— Amor? — Perguntou, a voz trêmula e apavorada, tateando o ambiente sabendo que ela ia cair.
Ele se remexeu, finalmente, de forma desconfortável. Uma respiração funda, as mãos entrelaçadas e apertadas uma contra a outra. As palavras que ela menos queria ouvir saíram como um sopro:
, nós precisamos conversar.
Ela engoliu em seco o bolo preso na garganta e se sentou, simplesmente porque não sabia o que mais poderia fazer.
— Isso não está dando certo.
Cada sílaba parecia um tapa ardido na sua cara.
Não tinha a força para responder. Ainda não.
— Você é uma garota ótima, de verdade. Mas não acho que isso esteja mais funcionando como um relacionamento amoroso, sabe?
Ela ia considerar que aquilo tivesse sido uma pergunta retórica. Ele não poderia estar esperando mesmo que ela fosse lhe dar uma resposta àquilo.
E isso porque ela estava realmente tentando ignorar a escolha da palavra “garota”. Pena que doía demais em seu orgulho e amor próprio o propósito falsamente inocente com o qual ela havia sido usada.
— Acho que nós estamos em momentos completamente diferentes da vida e somos pessoas diferentes demais também. Parece que nós dois estamos nos esforçando muito para nos encaixar na vida um do outro.
Aquela foi a gota d’água para ela. Ela podia aguentar ouvir muita merda calada, como bem vinha provando; mas nunca uma mentira tão absurdamente deslavada como aquela. Aquilo era simplesmente baixo demais até para ele.
— Como é que você tem coragem de falar uma merda dessas?
empalideceu. Aparentemente, nem ele acreditava que ela encontraria voz para revidar de alguma forma. Provavelmente estava esperando que ela continuasse em silêncio, sendo conivente e concordando com tudo para evitar criar mais intrigas e problemas.
— Nós dois estamos nos esforçando? É muita cara de pau sua realmente achar que tem o direito de se colocar nesse lugar. Você nunca fez NADA por mim.
, escuta…
— Não, . É você quem vai me escutar.
Ela sentia as bochechas queimando de… Raiva? Ódio? Um gigante senso de injustiça? Ou apenas a sensação de ser uma completa idiota?
— Você não tem o direito de dizer que está se esforçando para fazer parte da minha vida quando sequer teve a consideração de aparecer na porcaria do meu aniversário.
“Você tem noção de como foi para mim? Do papel constrangedor de idiota que você me fez passar na frente de todo mundo que me perguntava onde você estava? Meu Deus, eu perdi as contas de quantas vezes precisei falar para todo mundo que você provavelmente só estava atrasado e chegaria logo. Só para nunca chegar.”
— Nós já conversamos sobre isso — ele disse, a voz repentinamente mais baixa. Ela conhecia bem esse jogo. Era o seu jeito de deixar claro que ela estava gritando sozinha, como a louca que era. — Eu fiquei preso no trabalho.
— Sim, preso em um bar.
— Era uma reunião com um cliente.
— Não, era a extensão da sua reunião para um happy hour dd várias horas enquanto a idiota da sua namorada ficava tentando inventar qualquer desculpa que justificasse a sua ausência.
— É exatamente disso que eu estou falando, sabe? Sobre estarmos em momentos diferentes da vida. Você não consegue entender a importância do trabalho. Ainda está brincando de sonhar com o futuro em vez de tomar decisões e não consegue valorizar o que as pessoas fazem enquanto você vive no seu eterno faz de conta.
não sabia exatamente em que momento daquele curto - e paradoxalmente infinito monólogo - ela havia começado a chorar, mas sua visão estava embaçada e uma lágrima tinha sido derrubada, escorrendo por sua mão. Nem a pequena gota queria mais estar ali, ávida pela oportunidade de se afastar do epicentro daquele caos enquanto ainda tinha tempo.
— Eu não sou criança. E, ao contrário de você, que nasceu em berço de ouro com a vaga na empresa multimilionária do papai, eu aprendi com os meus pais, todos os dias, a valorizar o trabalho de quem precisa de cada hora mal paga para simplesmente sobreviver. Eu nunca tive nada de mão beijada. Então, você pode falar a merda que quiser de mim, mas nunca que eu não valorizo o trabalho dos outros.
Ela respirou fundo, apertando os dedos em punhos, sentindo as unhas se enfiando dolorosa e mais profundamente nas palmas de suas mãos.
— Para quem se vangloria tanto da própria maturidade, acho que te faltou a responsabilidade afetiva e o bom senso de saber diferenciar o que é obrigação do trabalho e o que é só uma desculpa para não ter um pingo de consideração por quem sempre fez de tudo por você.
“Seus amigos são esnobes e a maioria das suas ideias de passeio é só uma tentativa de parecer mais inteligente e refinado do que você de fato é. E é um inferno. Vocês são incapazes de conviver com outras pessoas sem fazer com que elas se sintam constantemente inferiores a vocês.
Mas eu engoli vários sapos e várias humilhações para estar do seu lado, para ser a melhor namorada que eu podia porque era isso que eu achava ser o certo a se fazer por quem se ama. Você, por outro lado, nunca fez questão de mover um dedo por mim, pela minha família ou para demonstrar qualquer sinal de respeito, quem dirá de amor.
Sejamos sinceros, . Você nunca me amou. Não importa quantas vezes tenha dito que sim. Não importa quantas vezes tenha tentado me convencer disso. Ou se convencer.”
— Como é que você pode realmente acreditar nisso?
Ela deu uma risada amarga, sentindo o lábio inferior tremendo com o desalento. Era como se tivesse ficado com o encanamento entupido por tempo demais e, agora que a torneira finalmente tinha sido aberta, toda a dor estava vertendo como a pior cachoeira do mundo.
— Talvez seja por você nunca ter demonstrado o contrário. — Ela esfregou os olhos, livrando-se das próprias lágrimas de uma forma quase raivosa. Sentia-se uma otária por estar chorando por ele, por permitir que ele visse o poder que tinha de afetá-la. — Eu amei sozinha. E, se você vai terminar comigo, no mínimo deveria ser sincero o suficiente para dizer o motivo real, em vez de ficar inventando essas histórias que só confortam sua consciência.
— Não é falta de amor — ele tentou novamente. — Eu realmente acho que se a gente tivesse idades mais próximas, as coisas teriam dado certo.
— Ah, vai se foder.
agarrou a bolsa sem nenhuma delicadeza e se colocou porta afora, saindo andando o mais rápido que podia, deixando que a voz dele se tornasse cada vez mais baixa, até não existir mais para além dos ecos doloridos em sua mente.
Continuou andando até não poder mais ignorar o cansaço das pernas e o peso sobre os seus ombros. Sentada em um banco de uma praça que ela nem tinha reparado que existia no caminho, ela pediu um uber para casa.
Esperando o carro, ela se permitiu chorar toda a sua cota de mágoa por alguém que não merecia sua decepção.


2019


“now you’re out in the world, searching for your soul
scared not to be hip, scared to get old
chasing make-believe status
last time you felt free was when none of that shit mattered
‘cause you were with me
but now that we’re done and it’s over
i bet it’s hard to believe
but it turned out i’m harder to forget than i was to leave
and i bet you think about me”



Parecia quase ironicamente hilário que, três anos depois, estivesse se lembrando de todos aqueles momentos que, na época, pareceram o fim do mundo.
E, agora, com um álbum de estreia que tinha feito sucesso no nicho country e garantido imediatamente o contrato para mais dois álbuns, ela era uma mulher bem sucedida e que tinha confirmado que seus sonhos eram tudo menos surreais e inatingíveis.
E a pessoa que sempre havia feito tanta questão de reafirmar o contrário estava logo do outro lado da porta daquele camarim.
— Ele não sabe que é você? — Stephen perguntou, enquanto a via encarando uma risada quase maníaca no espelho, finalmente superando a ansiedade e achando graça em toda aquela ironia do destino.
— Não. O pai da noiva nos contratou porque, aparentemente, ela é uma grande fã. Mas ele não contou para absolutamente ninguém para garantir que fosse uma surpresa para ela.
— E você também não sabia.
Ela meneou a cabeça, negando.
— Eu bloqueei ele e todos os conhecidos dele de todas as redes sociais. Eu literalmente nunca mais tinha ouvido falar o nome . Eu não fazia ideia de que ele estava noivo. — E com uma risada quase amarga, completou: — Pelo menos, ao que parece, ele finalmente conseguiu uma milionária herdeira como ele.
— A vida é mesmo engraçada. Mas se você estiver tranquila para subir naquele palco, então vamos lá, fazer um puta show como sempre.
sorriu largamente, erguendo a mão para que ele batesse. Pegou seu violão vermelho, uma das várias palhetas que tinham sido produzidas com sua assinatura em dourado e respirou fundo, sabendo que aquele era o seu momento. Finalmente.
— E acho que é hora de a gente tocar aquela música nova.
Stephen arqueou a sobrancelha, levemente chocado e simultaneamente orgulhoso. Ela precisava do encerramento daquela história. Merecia poder colocar o seu próprio ponto final.
— Você quem manda.
Respirando profundamente duas vezes, ela assentiu para a sua banda, assinalando a deixa para que eles começassem a tocar a entrada.
Mas qualquer um que já tenha vivido seus enérgicos e entusiasmados momentos de fã sabe perfeitamente que mesmo os rostos que ficam em segundo plano se tornam os mais completos conhecidos e poucos segundos quase estáticos de introdução de uma música são o suficiente para arrancar gritos ensurdecedores e emocionados, que logo viravam lágrimas.
sentiu o carinho que aquela pessoa deveria sentir por ela antes mesmo de pisar no palco e isso lhe deu o último empurrãozinho de força de que estava precisando.
Ela era forte. Ela era talentosa. Ela era amada. E ninguém jamais poderia tirar isso dela.
— Boa noite! Ouvi dizer que alguém aqui está fazendo aniversário hoje.
Assim que ela pisou no palco, a aniversariante berrou ainda mais, sendo seguida pelos demais convidados. Bem ao lado dela, o viu imediatamente. O queixo caindo, boquiaberto ao vê-la ali, exibindo seus longos cabelos ondulados e lábios preenchidos por um marcante batom vermelho.
— Feliz aniversário, querida! Como presente, nós achamos que seria legal cantar para vocês uma música inédita. Esperamos que gostem.
E, cantando com toda a sua alma, ela não poderia estar se sentindo mais leve e plena, inebriada pela incrível sensação de dever cumprido e a realização de que a única pessoa a quem ela deveria orgulhar era a si mesma. E, Deus, estava muito orgulhosa.
Especialmente quando finalizou com os últimos versos:

“when you’re out at your cool indie music concerts every week
i bet you think about me in your house with your organic shoes and your million-dollar couch
i bet you think about me when you say
‘oh my God, she’s insane, she wrote a song about me’
i bet you think about me”




FIM



Nota da autora: Só Deus sabe o parto que foi para essa fic ficar pronta kkkk, gente, sério.
Eu tinha escrito quase a fic toda no Word, que SUMIU com o documento.
Recomecei no docs e tive um mega problema de saúde e só consegui terminar recentemente
Agradeço às meninas pela paciência e a vocês por terem lido até aqui <3

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