Última atualização: 20/10/2015

Prólogo

Quando eu era criança, tinha medo do escuro.
Não só do escuro, do que havia nele. Era assustador. Eu sentia que estavam lá, e tinha medo do que poderia encontrar se procurasse. Ainda que minha mente de oito anos não fosse muito madura, eu estava ciente que não era apenas um monstro no armário.
Certa vez, quando tinha catorze anos, minha mãe me deixou sozinha em casa. Esperei. Tentava me convencer de que ela chegaria antes da escuridão.
Esperei.
Ela não chegou.
O escuro invadiu.
Fiquei encolhida na cama, chorando, enquanto sentia a presença deles, me incomodando, como pequenos alfinetes furando minha pele.
Ouvi suspiros de alívio, sons de vitória. Fechava os olhos bem forte, pensando onde minha mãe estaria, e, àquela altura, eu já me perguntava se a veria novamente.
Será que ela realmente se importava? Será que eu sentiria o abraço reconfortante dela novamente? Será que ela realmente se importava?
E então eu senti um toque. Um toque frio, eletrizante da pior forma possível. Mexi minhas pernas, que estavam encolhidas e eram seguradas pelos meus braços, sem abrir os olhos. Não senti mais nada.
Por pouco tempo.
A mão fria tocou uma de minhas pernas novamente. Não era de um jeito aproveitador, embora pudesse tornar a ser. Os dedos começaram a acariciar minha perna, de um modo estranhamente afetivo.
Todo o medo que tinha deixado para trás veio a tona, mais forte do que nunca. A insanidade estava prestes a me dominar.
E se eu estivesse maluca? E se nada daquilo fosse real?
Era a ilusão que não queria viver. Era a realidade que eu estava vivendo.
Sem pensar, abri os olhos.
Ele destoava com a escuridão. Era pálido, e seus cabelos bagunçados cobriam sua testa. Asas enormes, mais negras do que o escuro que dominava o quarto, se expandiam desde suas costas, batendo levemente. Seu rosto exibia uma expressão assustadoramente calma, com um olhar que dizia “nada vai acontecer” e um sorriso que dizia “quando você menos esperar…”
Com os olhos arregalados, engoli em seco, quando ele começou a acariciar minha bochecha.
, … – sua voz era rouca, terna, e cada letra era um choque de terror. – O medo é bom para as pessoas. Ele as mantém seguras. Agora me responda… – O anjo tombou levemente a cabeça para o lado, como se observasse algo muito curioso. – Estive do seu lado, te mantendo segura, te colocando medo há tanto tempo. Achou mesmo que eu te deixaria agora?
O medo estava no escuro, naquele anjo. E agora que sabia o que ele era, em vez de ficar menor, aumentou cada vez mais, escondido no lado mais escuro de meu coração


Gotta Get Out

Nunca mais vi aquela figura pálida, mas ainda a sentia. Eu ainda sentia. E o medo que ele provocava em mim era, de certo modo, reconfortante.
É sempre bom saber que há alguém te protegendo, mesmo que do modo mais bizarro de todos.
Eu descobri seu nome em um sonho bem curto, mas ainda sim real meu. Estávamos em uma praça antiga da cidade em que nós morávamos, e ele estava em pé em minha frente. Eu me sentava em um dos bancos, e estava incrivelmente calma. O anjo continuava calado, sem tirar nem por um segundo os olhos de mim. Perguntei qual era seu nome, e ele respondeu. Era . Foi a primeira vez que ouvia sua voz em cinco anos.
Cinco anos se passaram, e o medo ainda estava guardado como uma pedra preciosa.
Cinco anos se passaram para eu poder finalmente me dar conta de que eu precisava dele.
Ele me ajudava nos momentos mais difíceis. Quando eu ia seguir um caminho errado que me parecia certo, ele era a pedra que me impedia de continuar. O medo. O medo ajuda as pessoas a recuarem quando elas veem um incêndio. O medo salva.
Agora, eu precisava do medo que ele me provocava mais que nunca. Precisava desse medo para que ele me impedisse de fazer o que eu tinha em mente.
As lágrimas se misturavam com as gotas de sangue no chão. Minhas mãos trêmulas tentavam enxugar meu rosto de qualquer jeito, minha mente tentava ignorar minha dor de qualquer jeito, mas há coisas que foram feitas para ser sentidas.
A dor não era apenas física.
Minha mãe tinha voltado, três meses antes disso. Me pediu perdão. Implorou para que eu a perdoasse. Eu ainda a amava. Eu a perdoei.
Mas ela não tinha vindo sozinha. Trouxera um namorado dela junto, e eu achei normal.
Até que ele a matou em minha frente. Os socos e chutes que eu tinha levado dele deviam ser a dor maior, mas eu a vi ali, deitada no chão, como se dormisse, mas, na verdade, estava morta. Ele tinha arrancado a vida de minha mãe com as mãos sujas de sangue e impiedade.
Quem sofre com a morte não é quem morreu. Quem sofre com a morte são os vivos.
Eu precisava sair dali. Eu precisava sair dali, eu precisava sair daquela vida, nós precisávamos sair dali. Naquele momento, eu implorava para que meu anjo me levasse dali junto com ele, se não eu só sofreria mais.
Não liguei para a polícia, porque sabia que o namorado de minha mãe voltaria. Apenas vi o transparente das lágrimas e o vermelho do sangue que brotava do machucado em meu rosto se misturarem no chão.
Eu não sairia daquele quarto com vida. Eu não queria mais viver. Eu não tinha mais vontade de viver.
O medo me impedia de me matar.
Me levantei. Gritei. Chorei.
, eu preciso de você! – chamei por ele.
Esperei.
Ele apareceu.
O sorriso não estava mais exibido em seu rosto. Suas mãos estavam presas por cordas, e filetes de sangue escorregavam de seus pulsos. Não chorava. Estava ajoelhado, e não entrou em contato visual comigo. Seus olhos não tinham brilho. Suas asas estavam manchadas de sangue.
Sangue.
Não foi como você esperava, não é mesmo, querida? – Uma voz surgiu num eco perturbador, penetrando meus ouvidos em uma sinfonia tão assustadora que fiquei tonta. Olhei para os cantos no quarto banhado com a luz da lua. – A Terra ao seu redor está caindo, está desmoronando. – A voz continuou. – Não há saídas para você, não há esperanças para você. Suas rezas? Vão para o céu, mas acha mesmo que alguém vai recebê-las?
Aquilo me assustava, me perturbava, mas não tanto quanto a visão de com a cabeça baixa, sangrando e sofrendo calado.
Ela está com medo, , está cheia de medo. Dessa vez, não é medo que você chegue. É medo que você se vá. – ele riu, e se remexeu contra as correntes. – O medo parece uma coisa tão boa agora? O medo não te mantém tão segura quanto você espera. O medo vai te matar. Vai matar sua família. , você tem medo que se machuque, mas isso não impede que a vida o faça. Seu anjo está morto na eternidade. O que você está esperando para o abandonar?
– Ora, cale a boca. – Ouvi a voz de rosnar.
Levante sua cabeça, . Olhe para ela. Você quer sair desse estado, não é mesmo? Mas foi ela quem o provocou. – A voz riu maldosamente. – Você causou isso, . E sabe por quê? Porque ele te ama. O anjinho das trevas ama uma humana! – Falou, como se fosse uma piada. – Agora ele está fodido, e a culpa é sua. E sabe por quê? Porque ele preferiria ficar acorrentado, sangrando pelo resto da eternidade sabendo que você está viva e segura a ir junto com você direto para o Inferno, onde é o lugar dele. Se pronuncie, . Fale alguma coisa, covarde. – rosnou.
Então, ele levantou a cabeça, e seus olhos entraram em contato com os meus. Era como se milhares de espíritos estivessem presos dentro deles, pedindo pelo amor de Deus para serem libertos. Era como se ele implorasse que eu fizesse algo.
Desesperada, ajoelhei. Me aproximei dele. Tentei tocar em seu rosto, mas foi como tocar em fumaça. Ele estava desaparecendo.
Desista dele. Ele está perdido.
A vida estava tão perdida, e isso vinha com um preço tão árduo. Tudo estava caindo, eu estava sofrendo, ele estava sofrendo por minha causa.
Vou ser bom com você, , e estou fazendo isso apenas por você. Mas há uma condição.
– Diga. – falei, ríspida. Não fazia sentido acreditar nisso, mas eu sabia que era verdade, eu sentia.
Você pode viver. Continue com sua vidinha limitada e com prazo de validade marcado. Seu anjinho continuará aqui, preso, sofrendo. Ou você vai junto com ele para o submundo, e estarão livres em sua miséria.
Era como negociar com o Diabo, mas eu não tinha escolha. Não com ele olhando para mim daquele jeito, sem esperanças, esperando para uma decisão.
Esse idiota te ama. Nutriu um sentimento humano por você e sabia que não podia. E você provocou isso. É morrer ou sofrer com a sua curta eternidade. Qual dos dois você prefere?
Não desviei meus olhos dos dele em nenhum momento, e ele também preferiu não o fazer. Parecíamos estar hipnotizados.
Minhas mãos foram em sua direção, mas era como se passassem em meio ao ar. Ele estava desaparecendo. Eu precisava fazer minha decisão.
Eu não tinha mais nada comigo. Eu não tinha mais nada ali, naquela terra. Não tinha meu pai, não tinha minha mãe, não tinha nada para segurar, então continuava me debatendo contra a água, o que só me afundava mais e mais.
Eu só tinha o medo. Só tinha .
Quando você está se afogando, você perde os sentidos. Você tenta se apoiar em qualquer coisa que esteja próximo de você para voltar a superfície. Portanto, se alguém se aproximar de você, você puxará ela junto com você, sem querer. Você vai puxar ela para morrer junto com você.
fez isso comigo. Ele estava se afogando, e agora estava me puxando junto com ele para dentro da água. E eu estava deixando.
Eu deixaria, de qualquer jeito.
– Se caímos, não vai ser sua culpa. Se eu cair, não vai ser sua culpa. É minha culpa. E meu desejo egoísta e impossível de viver junto contigo – Eu quase conseguia ouvir sua voz me dizendo isso, apenas pelos seus olhos opacos e sem vida.
Eu iria direto para o Inferno. Escolher continuar vivendo só prolongaria o meu tempo de sofrimento antes disso.
Mas, na verdade, eu não estava pensando nisso. Não pensava em mim. Eu pensava nele. Pensava no meu anjo.
E então, garota? O seu anjinho vai desaparecer.
Eu precisava dele.
Eu precisava do medo.
Sentia medo de perdê-lo, e era maior do que o medo de sofrer para sempre. E aquele era um sentimento que surgira repentinamente, e que me fazia colocar tudo em jogo por um anjo. Ali, eu descobri que não era um sentimento novo, ele só se escondeu por muito tempo.
O que eu tenho a ganhar perdendo meu protetor?
– Nós precisamos ir embora. – sussurrei para ele.
Naquele momento, as correntes que prendiam fortemente os pulsos de se foram, e suas mãos sujas de sangue seguraram meu rosto imediatamente e seus lábios que, em contraste a sua pele, estavam estranhamente quentes, se colaram aos meus. Nos beijamos tão intensamente, era tão errado, era tão impossível, que parecia um sonho. Suas penas negras sujas do vermelho escuro do sangue estavam relaxadas, pareciam até mortas, e eu temia que ele não pudesse mais voar.
Quando nos separamos, o encarei novamente. Estava chorando.
Acariciou minha bochecha como da primeira vez que nos vimos, mas o medo que eu sentia não vinha dele.
– Me desculpe. – sua voz estava frágil, como se ele estivesse fraco, afetado.
Fechei os olhos por um momento, sentindo uma estranha onda de alívio percorrer todo meu corpo.
Abri os olhos. Ele tinha desaparecido.
Me levantei como se levasse um susto. Olhei em volta, onde tudo estava na sua mais perfeita ordem. Tinha sido um sonho? Tudo que eu vivi, todos os momentos de tensão, não passaram de um sonho?
E se eu tivesse feito minha decisão muito tarde? E se tivesse desaparecido para sempre?
– Não! – gritei uma, duas, três vezes.
E se a Terra terminar desabando em seus pés?
Escutei rangidos, e o chão de madeira em que eu pisava começou a quebrar. Logo, ele se rompeu completamente, e eu caí, me segurando apenas pelas minhas mãos, e me pendurando no restante da madeira. Eu estava caindo, tinha caído em um buraco com um total breu, mas, por algum motivo, não gritei. Aquilo me levaria de volta para . E isso me reconfortava. Nós só precisamos ir embora.
Alguma coisa puxava meus pés, sugando meu corpo para as profundezas da escuridão, e meus dedos foram escorregando da madeira, como se alguém os empurrasse.
E se os arranha-céus caíssem e quebrassem em nossa volta?
Tentei me acalmar, pensando nele, pensando que não haveria mais sofrimento na Terra, não havia mais dor, só ele…
Nós em uma eternidade sufocante. Não importava. Eu não me importava.
Soltei voluntariamente a madeira em que me pendurava, me deixando mergulhar no breu intenso que me cobria e me impossibilitava de ver qualquer coisa.
Eu tinha feito minha decisão.
E estávamos saindo dali, eu estava fazendo isso por ele. Estávamos saindo de uma vida horrível para entrar em uma realidade pior ainda. Mas estaríamos juntos.
Estávamos apenas indo embora.


Fim.



Nota da autora: Oi gatíssimas! Bom, meu nome é Luiza e essa é a minha primeira fic no FFOBS (mas já sou leitora há tempos). É uma short super short mesmo, bem curtinha por conta de alguns imprevistos, mas eu espero que não tenha ficado tão ruim vjsknvs
Espero de todo coração que vocês tenham gostado dessa short e me digam nos comentários o que vocês acharam! Muito obrigada por lerem, até mais! <3 Luiza xx



Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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