Just Back
(Back at home)


Um estrondo.
Eles gritavam. As vozes machucavam nossos ouvidos. Eram quatro ou cinco, seus vultos negros não me deixaram contar com precisão. Sequer houve tempo pra isso. Em um segundo, nós duas estávamos deitadas, acuadas, no chão, com um cano tão prateado e brilhante que chegava a reluzir à luz fraca do abajur.
Podia sentir minhas mãos tremerem e meus olhos molhados pelas lágrimas que eu me obrigava a conter. As mãos de minha mãe me abraçavam com tanta força junto ao próprio corpo, que minhas costelas chegavam a reclamar de dor. Ela sussurrava “Não se mecha. Não se mecha”, enquanto os passos pesados ecoavam por toda a casa, junto ao barulho de coisas caindo e vidros se estraçalhando sobre o piso.
Numa tentativa ousada e débil, achando que passaria despercebida, ergui o rosto e cruzei diretamente com o olhar envenenado, feroz, de um dos homens que tinham seus rostos cobertos por uma touca preta. A pele que lhe envolvia ao redor dos olhos e em parte do nariz à mostra era branca, porém encontrava-se rosada e suada. Sua pupila dilatada quase saltava a órbita. Eu estava condenada.
De imediato fui arrancada dos braços de minha mãe, e o tilintar do destrave da arma soou bem ao pé do meu ouvido, o metal gelado em contato direto com a minha testa. Aquele braço forte me sufocava em volta do pescoço, e as lágrimas que eu tanto contive derramaram-se ao ver minha mãe se desesperar.
E foi tudo muito rápido.
Um grito. Um baque. Um tiro. O Escuro. E o silêncio.
- AAAAAHHH! – minha voz áspera rasgou a garganta, o pulmão ofegando impedindo-me de respirar com regularidade. Minha testa suava e minhas mãos estavam geladas. Os pontos do machucado recente na testa latejavam.
Há três dias aquelas imagens torturavam minha mente. Minha sanidade. Eu podia jurar que enlouqueceria a qualquer instante.
- ! – adentrou o quarto apressado, ajoelhando-se ao lado da minha cama.
Eu não precisava contar-lhe de novo sobre aquele pesadelo. Pelas lágrimas que saltavam de meus olhos e minha feição assustada e contorcida em dor, já sabia que aquele fantasma viera assombrar meus sonhos outra vez.
Agarrei-me com toda força naquele corpo quente que me abraçava tão protetor. afagava meu cabelo enquanto meus soluços ecoavam pelo quarto.
- Aqueles olhos... – eu balbuciava entre o choro – Eles me encaram até agora... Eles me olham a todo instante...
- Calma, minha pequena. Calma. – sussurrava, tentando me acalmar.
- Foi minha culpa, . – apertei-lhe os braços, a dor me rasgando por dentro.
As mãos de seguraram meu rosto, e seus olhos verdes me fitaram sem pestanejar.
- Não foi sua culpa. Quantas vezes preciso repetir?
- Até que ela esteja aqui de novo... – disse com a voz embargada, sem qualquer controle sobre minhas lágrimas.
respirou fundo e voltou a me abraçar. Meu corpo estremecia levemente. O pavor, a culpa, cobrindo-me como mantos que levavam meu sono, minha felicidade e minha paz embora.
- Vem. – ele disse.
Ajeitamo-nos na cama de solteiro, as mãos de me envolvendo a cintura. Sua respiração batia contra meu rosto, enquanto eu me encolhia e me aconchuegava em seu peito. Não sei dizer por quanto tempo permanecemos acordados e mudos, mas sabia dizer que dali a dois dias eu já não teria meu anjo da guarda tão perto de mim.


Capítulo um.




A paisagem mal podia ser vista por conta da velocidade do trem. Borrões verdes e marrons riscavam as janelas, e o céu nublado tingia o fundo de cinza. O barulho dos trilhos, para mim, era somente ruído. Apenas ouvia o som estridente dos tiros, dos gritos, que ainda ecoavam em minha mente vazia. Depois disso, só o forte cheiro de éter, que impregnava aquele maldito quarto de hospital, tomava conta de minhas lembranças, enquanto o médico dava-me a notícia de que minha mãe não resistira.
Respirei fundo, fechando os olhos, tentando afastar o mínimo que fosse aquelas passagens da minha cabeça. Mas no segundo seguinte, as palavras secas do Oficial de Justiça, mandado pelo Juizado de Menores, dizendo-me que eu teria de voltar a Londres para morar com meu pai, frustraram qualquer tentativa que eu estivesse buscando de me livrar daqueles pensamentos. A dor era tão forte quanto a de reviver sozinha a noite daquela tragédia. E, de fato, ali estava eu, duas semanas depois, torturando-me mentalmente dentro de um trem, imaginando como seria minha vida nos próximos quatro anos naquela cidade, naquela casa, com aquela família que nunca fora e nem nunca seria minha.
Encolhi-me, puxando ainda mais contra meu corpo o casaco de lã preta que vestia. O frio começava a aumentar à medida que a claridade lá fora diminuía. Preferi fechar os olhos, já que as colinas borradas daquela estrada estavam me deixando tonta, mas desisti assim que as últimas cenas em Bolton se formaram diante da breve escuridão.
As luzes do vagão se acenderam, e as pessoas começaram a se agitar nas cabines e corredores. A velocidade do trem reduzia, o que começava a me sufocar. Enquanto os passageiros transitavam inquietos, relaxei no banco, sentindo os olhos arderem. Reprimi um soluço baixo, contraindo os lábios, deixando que lágrimas pesadas rolassem por minha pele e molhassem a gola da blusa branca. Não sei por quanto tempo chorei calada, mas, quando avistei a estação, através dos vidros molhados por conta da fina chuva que começava a cair, rezei. Rezei para que a dor se tornasse suportável, e que eu fosse forte o bastante.

Ainda soluçava em silêncio enquanto o trem ia, aos poucos, parando na plataforma. Todos dentro do vagão já caminhavam em direção às portas, mas, quanto a mim, permaneci onde estava. Uma agonia tamanha me apertava o peito, quase me deixando sem ar. Assim que a locomotiva parou, apertei minhas mãos em volta do livro em meu colo. Esperei que, um por um, os passageiros saíssem. Quando o barulho tornou-se pouco, não havendo mais ninguém ali, respirei fundo e sequei as lágrimas, que teimosamente ainda escorriam pelo meu rosto.
Guardei o antigo livro de poesias que pertencera a minha avó na mochila, colocando-a sobre os ombros ao levantar. Peguei o violão, todo o tempo encostado próximo à janela, e, então, caminhei vagarosamente até o fim do corredor, sentindo o vento frio de King Kross atingir meu corpo ao descer do trem. Minhas duas malas, sozinhas, encontravam-se perto de uma coluna. Caminhei até elas e afastei-as um pouco para o lado, encostando-me na pilastra de concreto. Dei uma olhada em volta. Pessoas e pessoas andando apressadas, com horários marcados. Famílias se reencontrando, amigos se abraçando, outros se despedindo. Uns chegando, outros indo. Quanto a mim? Era uma boa pergunta.
Tirei do bolso traseiro do meu jeans um pequeno papel. Li e reli o nome da rua e o número da casa algumas vezes. Suspirei pesadamente, tentando rapidamente imaginar como iria bater naquela porta de forma natural. Impossível.
- Com licença, senhorita. Está tudo bem? – assustei-me quando um dos guardas da estação dirigiu-se a mim, sem que eu ao menos tivesse notado sua aproximação. Apenas assenti, e neguei em seguida quando me perguntou se estava perdida. O homem gorducho e baixinho, bem fardado, lançou-me um breve sorriso e se afastou, tornando a fazer sua ronda.
Voltei a encarar o papel em minha mão e uma pequena lágrima escorreu. Funguei baixinho e amassei o endereço, desejando poder jogá-lo fora, mas voltei a guardá-lo no bolso. Respirei fundo e arrastei as malas – com certa dificuldade – até um dos telefones públicos situado próximo aos banheiros da estação.
- ? – era completamente notável a ansiedade em sua voz.
- Cheguei há quinze minutos. – disse-lhe baixinho.
- Por que não ligou antes? Ninguém foi te buscar?
– Eles não viriam, , já sabia disso. E você também.
- Nem o oficial de justiça?
- Não.
Ficamos em silêncio.
- Como foi a viagem? – ele soprou, totalmente entristecido.
- Eu não quero ficar aqui, ... – soprei, fechando os olhos, sentindo o rastro úmido das lágrimas que escorriam por minhas bochechas.
Voltamos a ficar em silêncio. Não havia o que dizer.
O apito de uma das locomotivas fez-me distrair dos devaneios sobre o garoto que ainda estava calado do outro lado da linha. Não sei no que pensava, mas tirou-me as palavras da boca quando disse que já estava com saudades.
- Eu também. – respondi com um suspiro. Olhei o grande relógio de ponteiro que pendia em uma das paredes de pedra, o qual marcava sete e cinqüenta e sete PM. Funguei, passando as costas de minha mão livre por baixo dos olhos, e falei contra minha própria vontade – Preciso ir agora.
- Prometa ligar.
Mordi meu lábio por dentro, encostando a testa no aparelho telefônico.
- Está prometido. – e, com um sussurro quase inaudível por conta do barulho do trem que se deslocava às minhas costas, lhe disse – Eu te amo.
- Eu também.
Antes mesmo que pudesse me debulhar em lágrimas outra vez, afastei lentamente o telefone do ouvido e o coloquei no gancho, desligando. Permaneci onde estava, e, em menos de três minutos, minhas entranhas pareceram dar um nó. Ao soar da badalada das oito, reuni as poucas forças que me restavam, e voltei a segurar as malas, arrastando-me junto com elas para fora da estação.
A chuva havia cessado, mas o clima lá fora era ainda mais frio do que na parte de dentro. Um velhinho baixo, de bochechas rosadas e andar engraçado, ofereceu-me seus serviços quando me aproximei do ponto de taxi. Assenti, aceitando, colocando com sua ajuda as malas no bagageiro. Entreguei-lhe o papel todo amassado do tal endereço e, ao entrar no carro, fechei a pequena janela que havia entre os bancos da frente e os de trás, demonstrando minha falta de interesse em conversar.
Eu sentia meu corpo tenso e cansado, e desisti de lutar contra a exaustão quando as ruas de Londres começaram a ficar turvas diante de minha vista. Não sei por quanto tempo adormeci, nem que caminhos o taxista percorreu para levar-me até meu destino, mas, assim que chegamos, o simpático senhor cutucou-me amigavelmente, esperando-me do lado de fora já com toda minha bagagem na calçada.
Um tanto desnorteada, e talvez um pouco tonta, suspirei, saindo do carro com o violão e a mochila. De dentro dela tirei a carteira, e paguei o que me fora cobrado com as poucas libras que tinha. Só depois que o taxi desaparecera de meu campo de visão, foi que me dei conta de onde realmente estava. A rua era vazia, pouco movimentada, o que me fez duvidar se em algum momento ela fosse diferente daquilo. As casas, enfileiradas uma ao lado da outra, tinham suas fachadas levemente distintas, fosse pelos tons de bege, cinza claro e branco, por portões prateados ou bem cuidados jardins, ou por grandes e pequenas janelas de vidro e sacadas nos andares superiores de cada uma.
A brisa gelada me cortou a pele, fazendo-me arrepiar e estremecer. A temperatura devia ter caído uns dois graus desde que deixara o trem. Aconcheguei-me sob a lã de meu casaco e virei-me finalmente para admirar a casa, que pouco ansiosamente estava a minha espera. Confesso que, de todas daquela rua, aquela era a mais bonita. Completamente alva, dois andares, um jardim magistral. Cogitei a possibilidade de o taxista ter se enganado, mas, ao conferir o papel que ele me devolvera, certifiquei que era ali mesmo.
Olhei o relógio em meu pulso, oito e vinte e seis PM. Mais uma brisa fria lembrou-me de que estava ficando tarde, e que por mais que eu tentasse adiar, uma hora eu teria de entrar naquela casa. Senti como se todos os meus órgãos estivessem sendo espremidos ao mesmo tempo, de tanto nervoso e tristeza. Apertei as mãos nos guidões das malas e, lentamente, caminhei até os degraus de mármore que davam acesso às portas daquela mansão.
Subi um a um, sentindo como se minhas pernas pesassem o dobro de todo o peso do meu corpo, cada uma. Fiquei parada por alguns segundos, sem a certeza de que ainda respirava, encarando a campainha assustadoramente próxima. Quando meus pulmões enfim suplicaram por ar, respirei fundo e estiquei minha mão levemente trêmula até o pequeno botão. Quando as forças para apertá-lo pareceram nulas, anunciei a eles minha chegada. Fora o fim de todo aquele filme em câmera lenta.
Não demorou muito para que passos pesados pudessem ser ouvidos cada vez mais próximos da porta. Minhas entranhas pareciam contorcer-se e revirar-se dentro de mim, enquanto o barulho das chaves girando na maçaneta pelo lado de dentro quebrava o silêncio daquele lugar. Não houve tempo de piscar os olhos, antes de ver em minha frente a silhueta daquele homem que, por alguns anos, tentei desenhar mentalmente. Mamãe nunca me mostrara fotos, nem falava muito sobre ele.
O homem encarava-me igualmente mudo, mas era impossível decifrar o que estava pensando. Talvez estivesse assustado, ou com raiva. Seus olhos não me diziam nada, assim como a expressão séria e fria de seu rosto. Não sei por quanto tempo nos mantivemos parados e calados, mas sei que ao lado dele surgiu outro rapaz, um pouco mais jovem, bem vestido, que deduzi ser o Oficial de Justiça londrino, que também estava a minha espera.
- Ficamos preocupados com sua demora. – ele disse. – Por favor, venha, temos que conversar.
Patética preocupação.
Voltei a encarar o homem que não tirara os olhos de mim, mas não mantive aquele contato visual por muito mais tempo. Virei-me para pegar minhas malas, acompanhada do Oficial. Ao entrarmos, uma mulher apareceu no alto da escada para a qual o homem apenas indicara com a mão. Deixei que o Oficial passasse na frente, e, quando chegamos ao segundo andar, a mulher, em silêncio, virou-se e dirigiu-se até a última porta do corredor da direita.
- Este é o seu quarto. – ela disse cordial. Passei por ela, dessa vez com o rapaz ao meu encalço, e deixei as malas ao lado da cama. O cômodo era grande e bem decorado, mas o desconforto que eu sentia por dentro era tanto que não me permitia ver nada daquilo com bons olhos ou causar-me grande admiração.
- Venha Srta. Jones, temos alguns...
- , por favor. – minha voz saíra fria, rouca e baixa, interrompendo o Oficial de Justiça assim que um calafrio percorrera minha espinha ao ser chamada por aquele sobrenome.
- Como preferir. Por favor, nos acompanhe, temos alguns assuntos a tratar. – ele me indicou a porta, e mais uma vez segui a ele e a mulher até um escritório no andar de baixo.
O homem que abrira a porta encontrava-se sentado numa poltrona de couro atrás de uma mesa se madeira escura, escrevendo alguma coisa em alguns papéis, o que me fez questionar se ele realmente estava ocupado, ou se era somente uma desculpa para não me olhar nos olhos.
- Por favor. – o Oficial indicou-me uma das poltronas à frente da mesa, e sentou-se na outra ao meu lado. A mulher, que deduzi ser esposa daquele homem, sentou-se em um sofá que também havia na sala, atenta ao que o Oficial de Justiça começava a dizer.
- Temo ainda não ter me apresentado como deveria. Oficial Carl Gilspert. – assenti, demonstrando mais calma e seriedade do que realmente sentia por dentro. – Primeiramente, gostaria de desculpar-me pela minha ausência na estação. Houve um...
- Tudo bem. – cortei. Era indiferente qualquer que fosse o motivo de sua falta.
O Sr. Gilspert pigarreou e recompõe-se, retomando sua fala.
- Estou aqui para acertarmos alguns detalhes de sua estadia. Começando por assuntos educacionais, presumo que esteja no segundo ano colegial, certo? – assenti mais uma vez. – Bom, assim que a justiça teve conhecimento de sua situação, esta tomou a liberdade de adiantar os processos para que seus estudos não fossem prejudicados. Em outras palavras, sua transferência do colégio onde estudava em Bolton, para o colégio daqui, já fora providenciada e todos os papéis já estão devidamente encaminhados e autorizados.
Sem muita escolha ou motivo de contestação, apenas voltei a assentir. O Sr. Gilspert acomodou-se melhor na cadeira e tornou a dizer:
- Suponho que suas aulas começarão logo, então, todo material didático também já fora providenciado.
Os minutos se arrastaram naquela pequena reunião. Minha cabeça pesava e tornava-se cada vez mais difícil assimilar as palavras pronunciadas pelo Oficial. Quando olhei o relógio em meu braço, já impaciente, desejando que aqueles assuntos terminassem logo, os ponteiros marcavam quase onze horas PM.
- A senhorita deve estar cansada, é melhor que descanse agora. Acredito já termos adiantado boa parte das pendências de sua mudança. Deixo meu cartão com você, caso haja alguma dúvida. – ele tirou do bolso interno do paletó um pequeno cartãozinho branco, com seu nome e telefones para contato em letras douradas. – Se for necessário, voltarei para uma nova conversa.
O Oficial pôs-se de pé e apertou a mão do homem que poucas vezes olhara-me diretamente durante a reunião. A Sra. Jones, que em momento algum interrompera a fala do Sr. Gilspert, ofereceu-se para acompanhá-lo até a porta, e, enquanto os dois saíam da sala, resolvi fazer o mesmo.
- É uma merda que aquela vagabunda esteja tão presente em você.
Se meu corpo fazia menção de mover-se para qualquer lugar, desistiu. Paralisada, aquelas palavras me cortaram como lâminas, sem dó nem piedade. Um nó formou-se em minha garganta e custou-me muito esforço para controlar as lágrimas que, de imediato, marejaram meus olhos. Só depois de respirar fundo, tentando manter o pouco controle que me restava, girei lentamente o corpo até ficar de frente pra ele.
- Uma merda é que você esteja tão presente em mim. – cuspi as palavras que o mantiveram calado. Era inegável, eu tinha os mesmos olhos , o queixo e a boca bem desenhada dele. Até o formato da sobrancelha era parecido. Poucos traços de minha mãe ressaltavam-se em meu rosto diante dele agora.
Instantes se passaram sem que nenhum dos dois dissesse alguma coisa ou emitisse qualquer som mais alto do que nossas respirações pesadas e atingidas. Cansada daquele jogo de olhares mudos, dei as costas, secando os olhos, que por pouco denunciaram toda minha fraqueza, com a manga do casaco. Ao sair do escritório, notei que a mulher de poucas palavras esperava-me ao pé da escada, e, ao me ver, aproximou-se.
- Gostaria de um pouco de água, ou um lanche talvez?
- Só... Um copo d’água, por favor. – pedi num choroso fio de voz.
- Venha. – e, deixando que ela fosse à frente, acompanhei-a até a cozinha.
Era um cômodo amplo e bem decorado, assim como todos os outros da casa, eu supunha. A mulher serviu e me trouxe um copo com água. Em silêncio, observou-me beber todo conteúdo devagar.
- Diana Jones. – ela disse enquanto lhe devolvia o copo vazio. – Não acredito que me conheça.
Neguei. Realmente não sabia quem ela era.
- Espero que consiga sentir-se em casa aqui.
Não contive um sorriso irônico ao ouvir tais palavras. Sentir-me em casa seria a última coisa a acontecer. Certamente ela entendera.
- Haverá tempo pra isso. – Diana disse calma e pausadamente, quase num tom amigável.
Dirigiu-se até a pia, onde deixou o copo de vidro, e voltou até mim. Suas palavras ecoavam em minha cabeça, fazendo com que um turbilhão de dúvidas surgisse de repente. Antes mesmo que eu pudesse medir as palavras, elas soaram de meus lábios tão rápido que foi impossível contê-las.
- Você já era casada com ele quando eu nasci?
- Sim. – ela afirmou, aparentemente sem se sentir abalada com aquele assunto.
Fiz menção de lançar-lhe alguma outra pergunta ou prolongar mais aquela conversa, mas Diana apenas negou com a cabeça.
- Não se incomode com isso, . Basta saber que não lhe quero mal, e que todo dia poderá sentar-se a mesa para fazer as refeições conosco na sala de jantar. – ela lançou-me um breve sorriso e balbuciou um “com licença”, retirando-se dali.
Respirei fundo e busquei o caminho que me levava de volta ao quarto que, pelos próximos quatro anos, seria meu. Ao passar novamente pelo escritório, pude ver e ouvir pela porta entreaberta que o Sr. e Sra. Jones conversavam. Dirigi-me até a escada e caminhei pelo corredor, indo até o último cômodo. Girei a maçaneta, mas, para minha surpresa, estava trancada. Estranhei, pois não me lembrava de ter visto a Sra. Jones trancá-la quando descemos para a reunião com o Oficial de Justiça.
Ouvi um pequeno barulho de metal aos meus pés, e passos atrás de mim. Primeiro, olhei pro chão e vi a chave da porta jogada ao meu lado. Depois, olhei pra trás e vi um garoto, aparentemente da minha idade, ou um ano mais velho que eu, encarando-me da mesma forma fria e curiosa que o Sr. Jones. O garoto não disse nada, e, já sem paciência para continuar naquele diálogo sem palavras, e sem sentidos também, abaixei-me para pegar a chave.
Dei as costas ao garoto enquanto destrancava a maçaneta, mas, assim que entrei no quarto, pude ouvi-lo dizer:
- Você sempre será uma estranha aqui.
Parei onde estava e respirei fundo. Parecia brincadeira. Maneei a cabeça e, sem nem mesmo olhá-lo, fechei a porta, trancando-a por dentro. Mantive a luz apagada e caminhei devagar até a cama. Sentei, e por alguns instantes fiquei observando aquele quarto envolto de luxo e conforto, totalmente estranho pra mim. Sem que nem me desse conta, meu rosto já estava outra vez banhado por lágrimas. Lágrimas essas de dor, desespero. Eu tinha nojo de estar entre aquelas pessoas que me julgavam por um passado que não era meu.
Mordi fortemente o lábio, contendo um soluço que chegou a doer em meu peito, e o mal estar pelo qual eu tanto temia começava a se manifestar. Sentia meu coração apertado, sufocado. Tinha vontade de gritar, e por pouco não o fiz. Deixei que meu corpo desabasse na cama, e que a ardência de meus olhos os mantivesse fechados. Não faço idéia de por quanto tempo chorei e rezei pra que eu tivesse o mínimo de paz, mas, felizmente, o sono chegou, fazendo-me, por algumas horas, esquecer de todo aquele pesadelo em vida real.


Capítulo dois.



Acordei com a claridade atingindo diretamente meu rosto. Na noite anterior, esqueci de fechar a segunda camada da cortina, o que favoreceu deslealmente o sol a me acordar às oito e meia AM. Esfreguei os olhos e estiquei meu corpo preguiçosamente, não querendo levantar dali. Perdi certo tempo encarando o teto, com pensamentos vagos, até que, finalmente, criei coragem e levantei para tomar um banho.
Só quando calcei os chinelos, dei-me conta do quanto estava faminta. Desde que saíra de Bolton, meu estômago estava embrulhado demais para receber qualquer coisa. Terminei de secar o cabelo com a toalha, pendurando-a no vidro do box. Passei uma rápida escova nele, arrumando a cama logo depois. Mas, antes de destrancar a porta, pensei sobre o que Diana falara na noite anterior. Não me faria bem sentar à mesa com os Jones. Brincando com meu escapulário entre os dedos, decidi que seria melhor não me juntar a eles, e dirigi-me direto até a cozinha.
Não havia notado quanto o andar de baixo era enorme. As paredes em tom bege e os móveis de madeira escura combinavam perfeitamente com os sofás de couro da sala de TV e as luminárias douradas do escritório. Quadros, espelhos e tapetes também faziam parte da decoração. Enquanto andava até a cozinha, notei que a parede que dava pros fundos da casa era toda de vidro, com portas de correr.
Quando finalmente cheguei à cozinha, vi que uma senhora baixinha, gordinha, de pele escura, mexia alguma coisa no fogão, enquanto outra moça mais alta, de pele alva, cabelos negros e bem, bem mais nova, lavava a louça. A mais alta encarou-me assim que entrei no cômodo, e logo a outra também me viu. As duas se olharam por alguns instantes e então a mais gordinha abriu um pequeno sorriso em minha direção.
- Com fome, querida? – ela perguntou com uma voz docemente maternal. Assenti, ouvindo outra vez meu estômago implorar por comida. – Pode sentar, vou servir o café pra você.
A moça que lavava louça secou as mãos no avental e providenciou xícara e pratos, colocando em minha frente na mesa. Ela ainda me olhava com certa curiosidade, mas seu olhar não me ofendia tanto quanto os dos outros naquela casa. A senhora veio em minha direção, colocando ovos no prato. Deixou a panela suja na pia e buscou o bule, que, com cuidado, colocou sobre a mesa. Trouxe pão, queijo, presunto, geléia, biscoitos, leite, e, quando ia trazendo uma cesta de frutas, fiz um sinal com a mão indicando que já havia o suficiente.
- Obrigada. – agradeci timidamente, começando a me servir.
Ela sorriu, levando de volta a cesta. A senhora veio até mim outra vez, parando próxima a mesa enquanto eu servia o café na xícara.
– Desculpe, mas você é a , não é?
Suspirei, assentindo com a cabeça, e, ao terminar de misturar leite ao café, tornei a ouvi-la.
- Sou Maria, e ela, Laline. - olhei para a mais jovem, que sorriu levemente. Retribuí seu sorriso.
Assim que pediram licença, ambas retornaram aos seus afazeres. Eu comia devagar, olhando através da parede de vidro, que também se estendia pela cozinha, a água da piscina mover-se levemente com a brisa que soprava lá fora, e nem percebi Diana entrar na cozinha. Só me dei conta de sua presença quando ouvi sua voz, dizendo à Maria que já podia retirar as coisas da mesa da sala de jantar. Nossos olhares se encontraram e, com um leve sorriso, ela disse à Maria:
- Cuide bem dela. – e saiu.
Sim, aquilo estava me deixando bastante confusa. Procurei desviar-me daqueles pensamentos antes que perdesse o apetite, enfim terminando meu café da manhã. Levantei da mesa e peguei a xícara, juntamente com os pratos para levá-los à pia. Não cheguei a dar dois passos quando Laline abordou-me e me tirou a louça das mãos, pedindo que eu não me preocupasse com aquilo. Agradeci e, vendo que qualquer tipo de ajuda minha na cozinha era dispensável, tomei o rumo do quarto outra vez.
Trancada, parei diante ao espelho que compunha a porta de correr do closet. Encarei-me por alguns instantes e respirei fundo, tentando definir minhas emoções. Sentia-me totalmente deslocada, sensível e tensa. Sentia como se não pudesse tocar em nada, nem ao menos olhar os quadros da sala ou até mesmo os azulejos do banheiro. Suspirei e desviei meu olhar do espelho pras malas que mal tinham sido abertas desde a noite anterior. Abri a porta do closet e vi como era espaçoso, e que metade dos cabides disponíveis ali continuariam vazios, por conta da quantidade quase miserável de roupas que eu trouxera.
Pensei duas vezes antes de realmente colocar minhas coisas ali. Talvez o Sr. Gilspert me ligasse dizendo que eu poderia voltar a Bolton e morar sozinha, ou talvez na casa de . Ao pensar nele, senti uma pontada no peito. Desde que soltei sua mão antes de embarcar no trem, era como se faltasse uma parte de mim. Eu precisava dele e ele simplesmente não estava comigo. Pelo menos, não ao meu alcance. Jamais imaginei tal situação, nunca pensei que isso aconteceria. Nossa promessa de não deixarmos um ao outro era tão firme que... Que era quase cruel não poder abraçá-lo mais.
Com esses pensamentos, comecei a desfazer as malas, organizando as roupas no armário e alguns pertences sobre as estantes e cômodas. As horas iam se arrastando, e eu procurava remanchar cada vez mais, à medida que as malas iam ficando vazias. Não tinha nada mais que eu pudesse fazer naquela casa a não ser distrair-me com minhas próprias coisas. Quando, por fim, tudo já estava em seu devido lugar, o toque baixo do meu celular chamou minha atenção.
Atendi ao ver o prefixo de Bolton, apesar de saber que não era , e sim o Oficial de Justiça que me dera a infeliz notícia de minha mudança para Londres. Felizmente, agora, eram boas notícias. A conta bancária de minha mãe seria transferida para o meu nome, já que o Sr. Jones autorizara. Talvez, pela primeira vez, eu tivesse alguma razão para agradecê-lo, mas não o faria de jeito algum. Ouvi do Oficial, burocracias e recomendações, até que ele disse, finalmente, que o dinheiro seria liberado no final da semana seguinte. Era quinta-feira e eu podia esperar até lá.
Joguei meu corpo cansado sobre a cama. Ainda não havia descansado o suficiente, comparado ao estresse da noite passada, e, quando minhas pálpebras aparentaram pesar mais do que realmente pesavam, deixei que se fechassem e o sono me vencesse mais uma vez. Dormir e pensar em eram os únicos passatempos que me pareciam viáveis dentro daquela prisão.

As suaves batidas na porta do quarto despertaram-me do sono. Olhei as horas no visor do celular e assustei-me ao perceber que já passavam das três e meia PM. A pessoa ao lado de fora insistiu, então resolvi atendê-la. Diana estava parada com algumas sacolas nos braços e outras no chão.
- Estava dormindo? Desculpe. – ela disse ao reparar meu cabelo um tanto bagunçado e minha expressão sonolenta.
- Tudo bem. – respondi baixo. – O que são...?
- Seus materiais da escola. Se importa? – e gesticulou pra dentro do quarto – Estão um pouco pesados.
Logo dei passagem a ela e peguei as sacolas restantes, deixando-as sobre a cama. Diana sentou-se nela, e eu fiz o mesmo, enquanto pegava e observava os livros, um por um.
- Acredito não faltar nada. Eu mesma fiz questão de providenciar tudo.
Ergui meu olhar para a mulher que, até então, não tinha reparado no quanto era jovem. Seu cabelo castanho claro, levemente ondulado, passava um pouco dos ombros, mas mal lhe tocava o busto. Os olhos bastante azuis e a pele clara ressaltavam as leves sardas que lhe pintavam as bochechas e o nariz. Questionei-me quantos anos teria, mas distrai-me com a pergunta que fez:
- O que gostaria de saber?
- Por que não tem raiva. Porque se importa que eu me sinta bem e... Porque tem sido tão cordial. Na sua situação, uma bastarda como eu não é a melhor das hóspedes pra se ter debaixo do mesmo teto.
- A culpa é sua? - desviei meu olhar do dela e neguei em silêncio. – Então acho que tem a resposta para sua pergunta. , sei que está sozinha, e que será difícil acostumar-se com essa casa e conosco, mas quero poder ajudá-la em alguma coisa se for preciso.
Ela fez uma pausa e eu mantive meu olhar fora do dela. Era impressão, ou Diana estava tentando ganhar minha confiança? A questão é que ela tinha razão. Eu estava sozinha, e, aparentemente, ela era a única que me estendia a mão. Voltei a olhá-la e soprei:
- Está com pena de mim?
Ela maneou com a cabeça.
- Não estou fazendo nada disso por piedade. Ganharia alguma coisa agindo assim?
- Obrigada. – sussurrei, um tanto envergonhada, desviando meus olhos dos dela de novo.
- Suas aulas começam segunda-feira. Gostaria de conhecer a escola antes? – ela mudou de assunto.
Respirei fundo, ponderando a sugestão. Não me parecia má idéia.
- Posso levá-la até lá amanhã, caso esteja livre.
Não pude conter uma leve risada diante da ironia. Fora ver a vida passar diante de meus próprios olhos, eu não tinha mais nada o que fazer naquele lugar. Ergui meu rosto e vi que Diana sorria. Hesitei ainda por alguns instantes, mas acabei aceitando o convite.
- Depois do café da manhã, está bem?
Assenti, retomando minha atenção aos livros. Diana levantou-se, mas antes de sair do quarto, ouvi a voz de Maria à porta.
- A menina não almoçou, senhora. Ela não está com fome?
Encarei as duas mulheres que me olhavam.
- Não quer descer e comer alguma coisa?
Antes mesmo que eu pudesse pensar em uma resposta, ouvi meu estômago dar sinais de vida e de que estava faminto outra vez.
- Eu já vou. – sorri para as duas de leve.
Quando fecharam a porta, caminhei até o banheiro para lavar as mãos. Junto a elas lavei o rosto, voltando a encarar meu reflexo no espelho. Mais perguntas me vieram em mente e eu desejei ter alguém com quem conversar, com quem dividir toda aquela agonia que se agitava cada vez mais intensamente em meu peito. Não demorou para que as lembranças de aparecessem e soassem em minha cabeça como uma antiga canção de ninar. Sorri sozinha, um tanto triste, dando meia volta, dirigindo-me para a cozinha.

O sol se punha mais lentamente do que de costume. O vento era como música para as folhas das árvores que eu admirava da pequena sacada do quarto, que dava para o quintal da casa. A água da piscina ondulava ao mesmo ritmo, e, bem ao longe, era possível ouvir o cantar dos pássaros. Àquela altura do dia, eu já havia tomado um bom banho e, durante as últimas horas, ficara ali sentada no chão, apenas observando as mansões vizinhas e o passar da tarde. Peguei o celular que descansava ao meu lado e digitei aqueles números tão familiares.
- Achei que não ligaria mais. – ele atendeu, e um sorriso terno abriu-se em meu rosto.
- Não brigue comigo, por favor.
- Você merece. Sabe que estou preocupado.
Mirei meu olhar em qualquer ponto distante, suspirando.
- Como estão as coisas ai?
- Confusas, desconfortáveis. – respondi.
- Imagino. E como foi a sua chegada ontem?
- Estranha. – baixei os olhos e, com minha mão livre, comecei a fazer desenhos imaginários sobre o piso impecavelmente branco daquela sacada. – Sou igual a ele, . Igual.
Ouvi-o suspirar do outro lado da linha. Uma das vantagens de poder conversar com , é que palavras quase não eram necessárias.
- Ele é casado, e havia um garoto aqui na noite anterior, mas não tornei a vê-lo hoje. Se parece muito com a mulher que me recebeu. – contei, mas só então decifrei o que acabara de dizer. Meu olhar congelou em algum ponto no horizonte, e quase foi impossível entender a pergunta de .
- Você tem um irmão?
- Eu... Eu não sei. Eu acho... Ah. – fechei os olhos e encostei minha cabeça na parede, completamente desanimada. – Me tire daqui. – sussurrei.
Não sei por quanto tempo ao certo continuei conversando com aquele garoto que tanto me fazia falta. Quando minha pele permaneceu arrepiada por conta do frio, resolvi desligar e entrar novamente no quarto para assistir um pouco de TV. Mas, antes que eu pudesse sequer colocar meu celular sobre a cômoda de cabeceira, notei uma silhueta me encarando à porta, que, até então, eu pensava estar fechada. Ele entrou e só então a bateu atrás de si.
- O que faz aqui? – perguntei ao garoto que, lentamente, andava em minha direção com as mãos nos bolsos da frente de seu jeans.
- Eu é que devia fazer essa pergunta. – ele respondeu sério, frio.
- Tenha certeza que não foi por opção minha.
Ele ficou calado e deu uma olhada em todo o quarto, notando meus pertences e alguns objetos do próprio quarto que eu havia mudado de lugar.
- Pelo visto já está se sentindo em casa.
Aquela conversinha começava a me incomodar.
- O que você quer? – risquei.
- Que se coloque no seu lugar. – seus olhos azuis me cortaram, a aspereza transbordando em sua voz.
Revirei os olhos, sorrindo descrente com relação ao que acabara de ouvir. Mas, antes que eu pudesse lhe responder qualquer coisa, os olhos do garoto caíram sobre as sacolas que eu havia colocado num canto do quarto. Ele andou até lá e retirou um dos livros de dentro, franzindo o cenho ao folheá-lo. Fechou-o e encarou a capa.
- Ah, quer dizer que você vai estudar no meu colégio? – seus olhos encontraram os meus.
A expressão de seu rosto era uma mistura de incredulidade, irritação e ironia. Jogou o livro de qualquer jeito sobre a escrivaninha próxima, e antes que eu pudesse sequer respirar, sua mão já me segurava com força pelo braço.
- Me solta! Você ficou maluc...?
- Olha aqui, garota, eu só vou te avisar uma vez. Se alguém descobrir que eu tenho algum tipo de parentesco imundo com você, a sua vida vai virar um inferno muito maior. Não é a filha de uma vagabunda que vai manchar minha reputação.
Eu mal conseguia sentir a circulação em meu braço quando ele o soltou e saiu em dois segundos do quarto. As palavras cuspidas de sua boca ecoavam entre aquelas quatro paredes, e não demorou para que as lágrimas de raiva saltassem de meus olhos. Minha vontade era gritar, pular no pescoço daquele idiota. Quem ele pensava ser pra falar comigo naquele tom, falar da minha mãe daquele jeito? Meu braço latejava levemente de dor, e a marca vermelha dos dedos em volta dele ainda podia ser vista. Acariciei o local de leve, sentando-me na cama. Por quanto tempo eu agüentaria aquele lugar e suportaria aquela situação, era difícil saber.


Capítulo três.



Ouvi batidas na porta aberta e desviei meu olhar do espelho para ver quem era. Diana encostava-se no vão, olhando-me com um leve sorriso.
- Bom dia.
- Bom dia. – respondi.
- Já está pronta?
Mostrei-lhe a escova de dentes que segurava e ela assentiu.
- Estou esperando lá em baixo.
Voltei a me olhar no espelho. Calça jeans, pólo branca, sandália rasteira simples... Nada mal para apenas uma visita ao colégio numa sexta-feira antes das dez AM. Escovei os dentes e peguei minha bolsa, que atravessei pelo corpo, seguindo para o andar de baixo.
- Qual é! – a voz do garoto soou estridente, e eu pude ouvi-la antes mesmo de chegar ao final da escada.
- Chega, Daniel! – Diana também elevara a voz.
- Se ela não importa pra você, também não importaria se ela estudasse em qualquer outro lugar!
- São ordens judiciais e eu não quero mais ouvir falar nesse assunto. – Sr. Jones encerrou a conversa e um breve silêncio instalou-se ali, sendo cortado apenas por passos apressados que vinham em direção à escada.
Daniel nem parou para me encarar. Subiu praticamente marchando, fazendo questão de esbarrar-se em mim ao passar. Respirei fundo e terminei de descer os degraus, indo até a sala. O Sr. Jones lia o jornal em sua poltrona, e Diana estava parada à janela, de braços cruzados. Esperei até que ela notasse minha presença e viesse até mim.
- Nós já vamos, Hugo.
O Sr. Jones fez um breve sinal com a mão, sem sequer soltar o jornal e desviar os olhos dele. Diana tocou meu ombro, e, enfim, saímos de casa.

A escola não era tão longe, o que dispensava as caronas do Sr. Jones pelas manhãs. Durante o caminho, Diana me mostrava e ensinava os jeitos mais próximos de chegar a padarias, lojas, praças, farmácias, entre outros lugares que ela julgava importante que eu soubesse como ir.
- Assim você não precisa sempre pedir informação a alguém, já pode andar com as próprias pernas. – ela sorria.
Chegamos ao estacionamento que ficava em frente ao enorme edifício de pedra marrom. O jardim era impecavelmente verde, bem cuidado, e a escadaria de mármore dava acesso aos grandes portões cor de marfim.
- Uau. – murmurei deslumbrada, enquanto caminhávamos em direção a entrada.
Diana trocou algumas palavras com o porteiro, que prontamente liberou nossa passagem. Atravessamos o imenso corredor de portas e armários, que dava acesso a outros corredores, enquanto Diana ia me sinalizando tudo que eu precisava saber.
Ao final do corredor, imensos portões de vidro davam para a área externa do colégio, aos fundos, como quadras esportivas, cantina, ginásio e vestiários. Tudo dentro de uma ampla área verde, com bancos de pedra e árvores espalhadas por todo canto, onde imaginei os alunos reunidos durante os intervalos conversando e ouvindo música em seus Ipods.
Voltando ao interior do prédio, descemos as escadas que levavam ao refeitório e as salas de oficinas de arte, como pintura, música, dança e teatro.
- O que está achando? – Diana perguntou ao ver meu sorriso um tanto bobo.
- Eu... Nossa, nem tenho palavras. – notei minha voz um tanto embasbacada, e ri de mim mesma.
- Ainda faltam algumas coisas pra você ver. – ela disse e guiou-me até o elevador.
No terceiro andar, em uma das extremidades, encontrava-se a biblioteca, com pequenas salas individuais de estudo e informática.
- Pra que servem essas salas individuais?
- Os alunos que geralmente estudam em grupo, fazem uso dessas salas. Assim eles não precisam falar tão baixinho para não incomodar as outras pessoas, e se concentram melhor. – Diana respondeu.
Aquilo pra mim era novidade. Saímos da biblioteca e passamos pelos laboratórios de biologia, química e física, chegando, por fim, na outra extremidade, à enfermaria.
- Tudo aqui é enorme. – comentei enquanto descíamos os degraus de mármore do lado de fora.
- Logo você se acostuma.
Sorri ironicamente pra mim mesma. O verbo “acostumar” estava um tanto banido do meu vocabulário desde que me vi fora de Boston.
- Que acha de tomarmos um chocolate quente e darmos uma volta pela cidade? Ou você já conhece Londres? – Diana sugeriu e, confesso, a idéia me pareceu extremamente aceitável.
- Não, não conheço. – sorri.

Eram quase três PM e nós ainda estávamos na rua. Almoçamos em um restaurante italiano e passamos por alguns pontos turísticos. De fato, Londres era uma cidade linda, mas sua beleza era fria diante de meus olhos. Do alto do London Eye, admirávamos a paisagem, e, tão distraída, deixei que meus pensamentos vagassem sem destino.
Gritos. Medo. Tiros. As imagens daquela noite voltaram como uma bala, tão rápidas quanto as que atingiram minha mãe no peito. Fechei os olhos, notando que minha respiração alterara-se de repente. Segurei-me na barra de metal quando senti o balançar da roda-gigante e senti-me zonza.
- , você está bem? – Diana perguntou segurando-me delicadamente pelos braços.
- Eu... Estou, sim, está tudo bem. – sorri amarelo quando a olhei.
Voltei a encarar a cidade pelos vidros da cabine, e tudo pareceu diferente. Era como se eu olhasse para uma outra Londres, uma outra cidade escura e sombria, que não esbanjava beleza alguma. Apertei minhas mãos na barra de ferro, dessa vez com raiva. Aquelas malditas vozes soavam em meus ouvidos tão nitidamente como se gritassem comigo naquele exato momento. Desejei que todos eles estivessem mortos, no inferno, e a dor era tanta que mal pude disfarçar os olhos marejados.
Diana não disse nada, apenas abraçou-me de lado, pelos ombros. Talvez ela imaginasse o que eu estava pensando, ou talvez não. O importante é que ela estava ali, me consolando por qualquer que fosse o motivo. E o importante também é que eu não via interesse da parte dela em se aproximar de mim pra conseguir alguma coisa. Eu não tinha nada mesmo. Ela me olhou e esboçou um leve sorriso que, sinceramente, eu retribuí.
- Acho que já está na hora de irmos pra casa. – ela disse quando descemos da roda-gigante. Assenti, seguindo-a até o carro.

Fui direto para o quarto assim que chegamos. Tranquei a porta e peguei o celular dentro da bolsa, que deixei sobre a mesa de madeira. Joguei-me na cama, um tanto cansada, e dei um toque pra , esperando que ele retornasse. Não demorou para que o aparelho vibrasse em minhas mãos.
- Você não vai acreditar. – eu disse, deixando que toda minha exaustão transparecesse pela voz.
- O que aconteceu? – notei um fio de preocupação em sua voz.
- Uma coisa muito séria. – tentei manter meu tom de voz tenso, mas na verdade eu sorria, apenas esperando pelas reações de .
- Fala de uma vez, ! O que houve?
- Eu gostei de sair com a minha madrasta. – falei, e ri quando me mandou à merda.
- Você me assustou, sua ridícula. – ria junto comigo. – Mas calma, como assim você gostou de sair com ela? Você saiu com ela? Por quê?
- Ela me levou até o colégio onde vou estudar. ... – suspirei – é coisa de filme. Tudo é imenso e... Na verdade, tudo relacionado a essa família é imenso. Só essa casa deve ser do tamanho do nosso quarteirão ai em Bolton. – ri, acompanhada por ele.
- E o que mais?
- Então, depois que saímos de lá ela me levou pra dar uma volta pela cidade. Tomamos chocolate quente em uma Starbucks e almoçamos em um restaurante italiano. A cidade me pareceu linda, até... – pausei.
- Até o que?
- Aquela noite, . Veio tão nítida na minha cabeça! O barulho dos tiros e... – senti minha voz vacilar, e mais uma vez minha respiração estava alterada.
- Ei, ei . Acalme-se.
Respirei fundo algumas vezes, controlando-me para não chorar. Quando notou minha calma de novo, voltou a falar.
- Nós já conversamos sobre isso. Não quero que se esqueça de tudo que falei, e do que você prometeu a mim, a sua mãe e a si mesma.
- Você está certo. – sussurrei.
- Então, me conte mais sobre o seu dia.
Contei com mais detalhes sobre o passeio e sobre as breves conversas que eu Diana tivemos dentro do carro. Pude conhecê-la melhor, assim como ela a mim, e encontramos certos pontos em comum entre nós.
- Pelo visto não está sendo tão ruim como você pensou que seria, hm? – senti a ironia de e sorri.
- Por parte. Você não conhece Daniel.
- Daniel?
- Meu irmão. – revirei os olhos e desmanchei o sorriso que havia em meus lábios. – Ele me ameaçou.
- Ameaçou como?
Contei-lhe o que acontecera na noite passada, assim que desligamos o telefone. Eu podia ouvir a respiração pesada e irritada de que, se pudesse, com certeza torceria os ossos de Daniel até que ele gritasse para a Inglaterra inteira que era a Barbie Malibu.
- Que garoto filho de um...
- Dois votos. – revirei-me na cama, deitando de lado, interrompendo qualquer que fosse o final da frase.
Passamos mais algum tempo conversando, tempo esse suficiente para que meu corpo se sentisse mole de sono. Despedi-me de e, do mesmo jeito que repousei o celular sobre o colchão, dormi.
Acordei com o quarto quase escuro por completo. Já passavam das sete PM, e meu estômago começava a reclamar de fome. Levantei e fui para o banheiro, onde me desfiz das roupas que vestia desde a manhã e deixei que a água quente relaxasse minha alma. Depois de me secar e vestir um vestido de flanela rosa bebê, desci até a cozinha em busca de um pacote de biscoitos ou afins.
Peguei uma xícara no armário e servi com o café que se mantinha quente dentro do bule que descansava sobre a mesa. Havia também uma cesta com pães e metade de um bolo caseiro. Cortei um pedaço do mesmo e coloquei no prato que estava próximo, sentando-me na cadeira para comer sossegada.
Pelo pouco que conhecia da casa, um dos lugares que mais gostava era a cozinha. Não só pela comida maravilhosa feita por Maria, mas pela parede de vidro, que me dava uma vista tão calma do quintal, que me distraia com facilidade. Quer dizer, qualquer coisa me distraía com facilidade. Rs.
Mastigava o bolo tão calmamente, que o leve soar do envelope branco sobre o mármore da mesa fez com que eu me assustasse. O Sr. Jones estava parado ao meu lado, olhando-me como se esperasse apenas que eu lhe fizesse a pergunta essencial para que pudesse ir embora.
- O que é isso? – repousei o garfo no prato, pegando o envelope e abrindo-o com cautela.
- Um cartão de crédito. – a má vontade em sua voz era notável.
Olhei-o atordoada, vendo-o dar meia volta para sair da cozinha, sem qualquer outro tipo de explicação.
- Como assim um cartão?
- Gilspert explicará melhor. – ele disse ao cruzar a porta da cozinha, sem me olhar.
Novamente sozinha, tirei de dentro do envelope algumas folhas de papel e o cartão prateado. Estava em meu nome, e pelo que li rapidamente nos papéis, eu tinha todo o direito sobre ele até que completasse a maioridade. Depois disso, o Sr. Jones poderia cancelar a conta.
Ainda estava sem entender o motivo daquele “presente”, então terminei de comer com pressa para ligar para o Sr. Gilspert. Disquei o primeiro número dourado que havia no pequeno cartãozinho que ele me dera na quarta-feira, e, depois de alguns toques, ele atendeu.
- Hm... Boa noite, Sr. Gilspert. Sou , acredito que se recorde.
- Claro. É a filha do Sr. Jones. – revirei os olhos – Em que posso ajudá-la?
- Bom, eu recebi um cartão de crédito dele, em meu nome, mas não entendi direito o motivo. – expliquei, sentando-me na cama, encarando os papéis em minhas mãos.
- Ótimo que já o tenha recebido. O Sr. Jones é um homem bastante influente, com certeza deu um jeito de acelerar as providências. Estava previsto que você só recebesse esse cartão daqui um mês, até porque foi uma decisão tomada recentemente.
Suspirei. Uma coisa que muito me irritava naquele homem, era a mania de dar voltas e voltas antes de ir direto ao ponto.
- Pode me explicar, com clareza, por que o tenho? – pedi.
- Então, acompanhe meu raciocínio. Você é filha do Sr. Jones tanto quanto Daniel Jones, e por isso goza dos mesmos direitos que ele. Tendo em vista que durante dezessete anos você não teve nenhum tipo de assistência vinda do Sr. Jones, foi proposto a ele que, além de oferecer-lhe moradia, alimentação, saúde, lazer e educação, fosse dado a você um tipo de pensão, ou mesada, como prefira definir.
- E o que isso tem a ver com Daniel Jones?
- Esse dinheiro que é disponibilizado a você é para uso pessoal, da mesma forma que Daniel Jones também o recebe. A diferença é que ele ganha tudo diretamente dos pais, como roupas e outros utensílios. Você receberá o dinheiro, para que decida particularmente como deseja gastá-lo, sem ter que pedir nada diretamente ao Sr. ou a Sra. Jones.
- Entendi. – fiz uma pausa, assimilando com cuidado todas aquelas informações. – Tenho mais uma dúvida.
- Pois não.
- Ontem pela manhã eu recebi um telefonema do Oficial de Justiça de Bolton, dizendo-me que a conta bancária de minha mãe seria passada para o meu nome. Isso interfere de alguma forma nessa mesada que vou receber do Sr. Jones?
- Não, de jeito algum. Só há uma diferença entre as duas contas. Essa que o Sr. Jones lhe fornece é, digamos, temporária. Quando você completar a maioridade, ele poderá cancelar o cartão. Já a conta da sua mãe, não. É exclusiva sua por direito.
Assenti pra mim mesma, pensando nos pontos positivos e negativos desse dinheiro que eu passaria a receber. De qualquer forma, era um conforto não ter que pedir nada diretamente ao Sr. Jones ou a Diana.
- Mais alguma pergunta, Srta. Jon...?
- . – interrompi-o. – Acredito que não. Obrigada.
- Qualquer coisa torne a ligar.
- Boa noite.
Desliguei o celular e deixei-o sobre a cômoda. Li atentamente os papéis que continham informações e instruções sobre o uso do cartão, e, por fim, analisei o pequeno objeto prateado em minhas mãos.
Bem ou mal, sorri agradecida. Mesmo que fosse de má vontade, ele estava entrando em acordo com a justiça para que não houvesse nenhum tipo de caos dentro daquela casa. Obviamente, ele tomaria todas as medidas possíveis que nos levasse a ter o menor contato possível, mas não deixavam de ser medidas – mesmo que temporárias – para o meu bem estar.
Se eu não tivesse ciência de que minha mãe não possuía muito no banco, ou tivesse a certeza de que poderia me sustentar apenas com o dinheiro dela, talvez nunca aceitasse o dinheiro vindo do Sr. Jones. Entretanto, era inegável que eu viria a ter necessidades que o dinheiro de minha mãe não bancaria, a começar pelo meio social em que eu viveria pelos próximos anos, então eu não tinha como recusar aquele cartão.
Guardei-o na gaveta da cômoda e segui até o closet para mudar de roupa. Eu estava cabeça a mil diante de todas as informações que me tinham sido passadas. Vesti o pijama e deitei, pensando nas melhores maneiras de usar aquele dinheiro. Imersa em tantas idéias, peguei no sono. Talvez o sono mais tranqüilo das últimas duas noites.


Capítulo quatro.



Acordei com minhas entranhas retorcendo-se sobre si mesmas. Uma náusea leve e incômoda fazia com que meu estômago revirasse. Desliguei o despertador, que com seu toque irritante anunciava que minhas aulas começariam dali uma hora e meia, e dizia que chegar atrasada no primeiro dia de aula, sendo aluna nova, em uma cidade estranha, não ia ser nada legal.
Respirei fundo e levantei, indo ao banheiro sem olhar para o espelho do closet Nem queria ver minha cara de desânimo e nervosismo, amassada e com os cabelos totalmente rebelados sobre ela. Caminhei direto para o chuveiro, que fez com que algum resquício de coragem surgisse em mim quando a água quente escorreu por minha pele.
Enquanto lavava o cabelo, alguns pensamentos me invadiam. Eu estava a apenas cinco dias naquela casa, e muito me aconteceu. Coisas boas, inclusive. Fora os constantes olhares tortos de Daniel sobre mim, e a total indiferença e frieza do Sr. Jones, a companhia de Maria e Laline durante as tardes, e as breves conversas com Diana estavam me confortando de algum modo, mas não o suficiente para que eu me sentisse em casa.
Imersa em tais pensamentos, terminei o banho e fui ao armário, perguntando-me o que vestiria. Algumas roupas ficaram em Bolton, o que reduzia minhas opções a 75%. Puxei uma bermuda jeans, que chegava até o meio das coxas, e uma blusa de manga ¾ vermelha, folgadinha, com um decote comportado em v. Calcei meu all star branco e dei uma olhada no espelho. Aceitável.
Terminei de secar o cabelo com a toalha e passei um pente por ele, descendo em seguida até a cozinha para tomar café. Maria e Laline já me esperavam com a mesa posta.
- Bom dia. – cumprimentei.
- Bom dia menina . – Maria sorriu. – Animada para a escola?
Dei de ombros. Eu estava curiosa para ver como todos aqueles filhinhos de papai se comportavam em bandos fora dos filmes. Em Bolton isso não era muito comum.
- E você vai de carro com o Sr. Jones? – Laline perguntou um tanto hesitante, enquanto trazia uma jarra de suco.
- Não, vou andando. O colégio não é tão longe. – respondi enquanto me servia do suco de laranja.
- É melhor mesmo. – a voz de Daniel invadiu o cômodo, chamando minha atenção por um instante. Voltei a ignorá-lo logo, mais preocupada com as torradas e geléias que chamavam desesperadamente pelo meu nome.
Não prestei atenção no motivo que o fizera ir à cozinha. Mais uma vez, meu olhar estava nas águas da piscina e no balançar das folhas das árvores do quintal. Ouvia, sem prestar muita atenção, Daniel e Maria trocarem algumas palavras, ela com seu jeito extremamente carinhoso e maternal. Ele também parecia respeitá-la, e a curiosidade entre a relação dos dois venceu meu orgulho, fazendo-me olhar de esguelha pra eles.
Daniel estava apoiado na ilha da cozinha, mordendo uma fruta, olhando e sorrindo para a senhora que preparava alguma coisa no fogão. Eles falavam sobre algum assunto que eu não entendia, e antes que ele notasse que eu o estava encarando, voltei minha atenção para meu café. Percebi Maria entregar alguma coisa em um prato para o menino, que a beijou na testa e saiu. O cheiro era bom, parecia panqueca.
- Quer também, menina ? – Maria ofereceu e eu a olhei, negando com a cabeça e sorrindo em agradecimento.
Com um único gole, terminei o que ainda restava na xícara e limpei os farelos das torradas de minhas mãos com um guardanapo, levantando. Despedi-me das duas moças, que já iam retirando as coisas da mesa, e subi mais uma vez até o quarto para escovar os dentes e pegar minha bolsa com o material escolar.
Já ia esticando a mão para a maçaneta das portas principais da mansão, quando Diana surgiu atrás de mim.
- Vai mesmo andando?
Olhei-a e assenti, suspirando. Ela não disse mais nada e saiu, o que me arrancou mais um suspiro antes de sair de casa. Atravessei o jardim e notei o dia lindo que fazia. O céu estava extremamente azul e não havia uma nuvem sequer para borrá-lo. Sorri de leve pra mim mesma, e segui em direção ao majestoso edifício que eu visitara há dois dias. Coragem, . Coragem.

Era exatamente como nos filmes americanos, porém, muito mais assustador e totalmente diferente do com o que eu estava acostumada. Os grupinhos em bandos, as patricinhas em seus conversíveis, os autistas alternativos enfurnados em seus mundos de rock e skates ou qualquer que fosse o estilo que admitissem.
Passei pelos portões marfim e, em meio a todos aqueles alunos que corriam e andavam de um lado para o outro no corredor, procurei a sala que me dizia respeito. Duvidei que fosse naquele térreo, por estar tomado pela faixa etária dos dez aos catorze anos, e subi as escadas que me levavam ao segundo andar. Foi fácil avistar a placa de bronze na porta, cujo número correspondia a 208 A.
Entrei, timidamente, sentindo os olhares curiosos das pessoas que já se encontravam naquele metro quadrado – bastante grande, por sinal - e procurei por uma cadeira afastada da porta, quase escondida no fundo da sala. Encontrei uma próxima a grande janela, que era coberta por uma película escura que impedia a entrada total da luz do sol, mas que também não adiantava muito. Dali eu tinha a vista do pátio e das quadras de futebol americano e vôlei. Ótimo.
Estava completamente alheia, olhando através do vidro que, por mais doce que a voz soara, fez com que eu me assustasse.
- Hey.
Encarei a menina de feições delicadas e sutis que sorria pra mim. Ela tinha um sorriso quase infantil e usava roupas simples como as minhas. Esbocei um sorriso e respondi.
- Hey.
- Desculpe pelo susto, não achei que estava tão distraída. – ela deixou a bolsa sobre a carteira ao meu lado e virou-se completamente pra mim, sentada.
- Ah, não foi nada. Isso acontece sempre.
A garota deu uma leve risada e encolheu os ombros.
- Então, aluna nova? – fiz que sim com a cabeça. – Onde você estudava antes?
- Na verdade, eu morava em Bolton. – forcei um sorriso.
Que fracasso.
Antes que ela pudesse puxar mais algum assunto, o sinal soou e quase que instantaneamente a sala se viu repleta de gente. Todas as carteiras foram ocupadas e uma figura imponente, um tanto acima de seu peso ideal, com um bigode que lhe tomava metade do rosto, atravessou a porta. Notei que alguns alunos fizeram careta ao vê-lo, inclusive a menina ao meu lado. Franzi o cenho e esperei até que o homem se apresentasse.
- Bom dia, classe. Sou Sr. Stevens, professor de matemática. Alguns já devem me conhecer pela infeliz fama de carrasco que correm pelos corredores dessa instituição.
- E fora dela também. – alguém no meio da sala disse, arrancando risinhos dos outros.
O professor apenas sorriu de canto, gravando mentalmente, talvez, a fisionomia da primeira pessoa que ele veria durante as férias de verão.
- Já que sou tão popularmente conhecido, não se enganem, porque faço jus à fama que tenho. – ele manteve o sorriso sarcástico nos lábios, enquanto todos os outros silenciavam suas risadas. – Abram os cadernos. – e virou-se para o quadro, onde já começava a escrever alguns assuntos de revisão.
- Ótimo... – resmunguei, pegando o estojo dentro da bolsa, praticamente de má vontade.
- Meu primo perdeu de ano com ele. Stevens não o aproximou dois décimos. – a garota ao meu lado comentou sem me olhar diretamente, enquanto copiava as fórmulas que já estavam na lousa.
- Quem é seu primo? – perguntei, mesmo que fosse indiferente sua resposta.
- Dougie. Ele é do terceiro ano. Apesar de popular, você ainda não deve conhecê-lo.
Dei de ombros. Realmente não fazia idéia de quem ele pudesse ser. Retomei minha atenção para o quadro e os vários números diziam claramente “você se fudeu”.
Quando me dei conta, os três primeiros horários já haviam acabado e eu nem ao menos sabia o nome da garota com quem, vez ou outra, trocara comentários durante as aulas. Era intervalo, e grande parte dos alunos já havia saído da sala. Como eu não tinha pressa, levantei-me devagar e percebi que a garota acompanhava meu ritmo. Assim que ficamos frente a frente, ela me estendeu a mão, sorrindo.
- .
Apertei a mão da garota e lhe retribuí o sorriso.
- .
- Companhia pro intervalo?
- Até então, nenhuma. – disse enquanto caminhávamos porta a fora, rumo ao pátio.
- Então vem, quero te apresentar alguém.
Segui a garota para os imensos jardins da escola. Andamos até uma árvore, onde um casal conversava sob sua sombra.
- Bom dia! – disse com a energia que me faltava há três semanas.
- Bom dia, ! – disseram juntos.
- Essa é , coleguinha nova.
Sorri tímida.
- Oi ! – eles responderam felizes e eu apenas acenei, um tanto sem jeito.
- Essa é a Audrey, namorada do Dougie, o meu primo que te falei. – sentou-se próxima aos dois e fez um gesto para que eu a acompanhasse.
- Andou fazendo propaganda do meu homem de novo? – a garota cutucou na barriga, que riu. Audrey virou pra mim – Só porque o primo dela é tudo de bom, lindo, fofo... – ela intercalava cada palavra com um selinho no loiro ao seu lado, fazendo-o rir. pigarreou, fazendo a garota voltar a dizer o que pretendia - Enfim, ela se acha no direito de sair falando dele por ai. – ri.
Durante os trinta minutos que passamos naquele jardim, descobri que os meninos sentados à mesa de pedra da cantina formavam um grupo de street dance. Que era apaixonada por um desses garotos - que quando a olhou e sorriu, a fez suspirar infinitamente. Que Audrey e as amigas do terceiro ano faziam parte de um grupo de patinação no gelo da escola, e que Dougie tocava baixo e costumava arranhar um som com os amigos de vez em quando.
- Você costuma andar com o pessoal mais velho? – perguntei enquanto subíamos as escadas de volta pra sala.
- É. Quando cheguei aqui na escola, há dois anos, Dougie era a única pessoa que eu conhecia, e isso fez com que eu andasse mais com a turma dele do que com o pessoal da minha sala. Não que eu ignorasse as pessoas da minha idade, mas eu acabei amadurecendo mais do que os outros. – ia dizendo entrando na sala, e indo até nossos lugares. - Daí eu fiquei bem mais próxima deles do que da galera daqui.
Continuamos conversando, mesmo que a professora de história já estivesse presente. Os assuntos simplesmente fluíam, o que até me assustava um pouco. Eu deveria estar me sentindo completamente deslocada, e, no entanto, ao lado daquela garota, era fácil sentir-me confortável.
- Te vejo amanhã? – perguntou quando, finalmente, o sinal anunciara o término das aulas.
- Claro. – sorri.
Despedimo-nos e, enfrentando aquele mar de gente, segui até a supervisão da escola. Precisava encontrar monitoria de matemática antes que corresse o risco de perder de ano por dois décimos. Empurrei a porta de vidro, dirigindo-me até o balcão.
Pedi ajuda a moça que se sentava atrás dele, e quando requisitei a monitoria da área de exatas, ela me entregou uma tabela com nomes de alunos aptos a darem aulas extras aos outros que tivessem dificuldade. Corria os olhos pela pequena lista, quando outra pessoa postou-se ao meu lado no balcão. Apoiou sua mochila no joelho e começou a procurar por alguma coisa, em silêncio.
- Todos eles estão disponíveis? – perguntei a moça, indicando a área de cor vermelha da tabela. Que ironia, RS.
- Monitoria de exatas? – a pessoa ao meu lado perguntou, fazendo-me olhar para ela.
- Er... Sim. – respondi um tanto tímida, colocando uma mecha do cabelo pra trás da orelha.
- Posso te ajudar se quiser. – o garoto sorriu, colocando a mochila no ombro.
Hesitei. Olhei mais uma vez a tabela em minhas mãos e voltei a encará-lo.
- Eu... Bom, eu não sei...
- Amanhã na biblioteca, às duas PM? – ele perguntou sem desfazer o sorriso dos lábios, o que me venceu e me fez aceitar sua ajuda.
- Certo. – retribuí o sorriso.
- Thomas Fletcher.
- Ele é um dos melhores monitores. – a moça, que até então permanecera calada, arrancou uma leve risada de Thomas e minha, também sorrindo.
- . – me apresentei e, enquanto guardava a pequena tabela em minha bolsa, Thomas entregou o que quer que fosse que segurava na mão para a mulher, trocando meia dúzia de palavras com ela.
- Então até amanhã. – ele disse, já seguindo para a porta.
- Até. – esperei que ele saísse, e, depois de também me despedir da secretária, caminhei em direção a saída.


Capítulo cinco.




Eram cinco horas PM quando saquei o celular para ligar para , mas antes mesmo que eu pudesse digitar o número, senti-o vibrar em minhas mãos.
- Telepatia? – atendi, indo até a sacada do quarto.
- Não, saudades. – aquela voz que me envolvia por completo também parecia sorrir.
- Você não imagina o quanto... – debrucei-me sobre a grade branca.
- Como você está, pequena?
- Depois de um fim de semana tedioso, até que o meu primeiro dia de aula foi agradável.
- Então você está gostando da vidinha boa, é? – riu, o que me fez revirar os olhos.
- Boa? Onde? – apenas sorri pela ironia. Suspirei. - Não é bem assim. Tudo é diferente e... Sei lá. Acho que só não me senti totalmente deslocada naquele colégio porque encontrei alguém parecida comigo.
- Achei que você estava em uma escola de gente bacana, não em um hospício. – mais uma vez lançou seu humor nada conveniente, mesmo assim me fazendo rir.
- Larga mão de ser ridículo, vai. É sério. O nome dela é .
- Gatinha? Solteira?
- , se eu pudesse te acertava o meio das fuças. – falei com meu melhor tom ameaçador, enquanto o garoto apenas ria do outro lado da linha. – Mas sim, ela é bonita. Já se está solteira, não sei.
- Como se eu realmente fosse me interessar por ela. – ele disse e eu sorri por dentro.
- Você se interessou por metade da sua classe da faculdade. – baixei o tom de voz, assim como ele o fizera.
- Por nenhuma delas como por você.
Meu coração palpitou e um sorriso bobo se formou em meus lábios. Entretanto, uma pontada atingiu meu peito, apertando-o, desmanchando meu sorriso.
- Sinto sua falta, . – sussurrei.
- Eu também, . Eu também sinto...
Ficamos alguns instantes em silêncio.
- Andei pensando muito em você. Em nós. – ele comentou, mas o silêncio ainda permanecia.
Era como se toda nossa história, ou pelo menos a parte mais intensa, mais gostosa dela, se passasse pela cabeça dos dois. Suspiramos quase que no mesmo tempo, o que nos fez rir baixinho. Tantas coisas eram comuns entre a gente, que chegava a ser assustador.
Quebrei aquela nostalgia voltando a falar sobre como havia sido minha manhã, e como eu imaginava que seriam todas as próximas. Ele também contava sobre seu dia e as coisas que ele planejava fazer durante a semana. Quando desligamos já eram quase seis PM.
Estava sem fome, o que me deixava sem muitas alternativas sobre o que fazer. O Sr. Jones e Diana estavam na sala, Maria e Laline já haviam se recolhido e Daniel, provavelmente, estava em seu quarto. Isenta de qualquer perturbação, segui em direção a biblioteca, naquele mesmo andar, segurando os livros e cadernos referentes às aulas daquele dia.
Abri a porta devagar, certificando-me de que realmente não havia ninguém ali, e deixei a mesma entreaberta, para o caso alguém ir até lá e não se surpreender de imediato com a minha presença. Segui até uma grande mesa oval próxima a uma das paredes e deixei minhas coisas ali, indo em direção a uma das compridas estantes de livros.
Passava leve e lentamente o dedo por sobre as dezenas de capas, quando o som da porta batendo fez com que eu me virasse abruptamente em direção a pessoa que causara meu susto. Daniel me encarava, como de praxe, com as mãos nos bolsos e seu olhar gelado. Entretanto, um sorrisinho presunçoso brotava de seus lábios.
- Como foi o seu primeiro dia de aula? – ele perguntou e uma imensa vontade de rir me subiu pela garganta. Como se isso realmente importasse pra você, idiota. Contive-me, apenas o ignorando e voltando meu corpo para os livros. – Foi divertido ou você se sentiu um patinho feio, como aqui em casa?
Continuei sem dar ouvidos àquela ironia prepotente. Retirei um dos livros da estante e analisei a capa dura com letras douradas. Shakespeare, hm. Abri em qualquer página, enquanto os passos de Daniel ecoavam pelo cômodo, e sua voz tornava a despejar veneno.
- Bem diferente, não acha? Um colégio de elite comparado a qualquer espelunca onde você estudava em Bolton. Era público?
Respirei fundo e, mentalmente, contei até cinco. Aquela chateação começava a me corroer por dentro. Tentei disfarçar, fingindo ler uma das muitas passagens poéticas do livro, mas as palavras que Daniel voltara a dizer conseguiram, enfim, penetrar meus ouvidos.
- As pessoas riram de você? Porque sabe, não é todo mundo que aceita alguém do seu tipo no grupo e...
Soquei com força o livro de volta na estante e o encarei. Daniel estava ao meu lado, encostado no móvel, rindo do próprio sarcasmo e das reações que ele me causava.
- Aonde você quer chegar? – perguntei, a voz carregada de ódio.
- Quero apenas te alertar pra uma coisa: cuidado com quem você anda, e com as coisas que você diz. – Suas feições tornaram-se sérias e duras, como da última vez que ele viera me prevenir sobre a escola. – Nem sequer olhe pros meus amigos.
- Não me vejo ganhar nada olhando, muito menos interagindo com pessoas como você. – lancei-lhe um sorriso sínico, desvencilhando-me e indo em direção a mesa. Ainda restava uma pequena vontade de estudar.
Porém, antes que eu chegasse aos cadernos, aquela mão que outrora me segurara pelo braço, dias atrás, voltara a me apertar e me impedir de ir a qualquer lugar. Que mania!
- Desencosta! – soltei-me bruscamente dele, fitando-o já a ponto de arrancar, com as próprias unhas, sua jugular.
- Se eu fosse você, não tentaria me afrontar.
- Se eu fosse você, ia pra put...
- Daniel. – O Sr. Jones estava parado à porta, segurando-a aberta pela maçaneta. Ele olhava sério para a pequena discussão que acontecia, e com apenas um aceno de cabeça, indicou a saída da biblioteca.
O garoto me olhou de cima a baixo antes de dar as costas e sair. Mais uma vez, sozinha, respirei fundo e levei as mãos ao rosto. Não era possível caber tanta arrogância e presunção dentro de uma pessoa só! Joguei-me de qualquer jeito numa das seis poltronas fofas que compunham o conjunto com a mesa oval e fechei os olhos. Desejei que Daniel explodisse. Desejei que Hugo Jones explodisse junto. Desejei que aquela casa, aquela vida, aquela realidade cruel e medíocre explodisse para sempre, ou que, pelo menos, eu deixasse de fazer parte dela.

Levantei e segui para o banheiro, um tanto mais disposta do que na manhã anterior. Sonhara com durante a noite, o que me rendeu um sorriso no rosto e uma excitação matinal que, eventualmente, acontecia quando eu e ele dormíamos juntos. Sorri lembrando.
Era dia. Estávamos entre folhas e sombras, o som de águas correntes ao fundo. Faltavam-me algumas peças de roupa, assim como a ele. Nossos corpos se enroscavam entre a grama, que fazia cócegas e pinicava, causando-nos uma súbita vontade de rir e suspirar. Suas mãos percorriam meu corpo num carinho gostoso e ousado, sabendo exatamente onde tocar.
Minhas unhas o arranhavam a pele dourada que, de tanto roçar na minha, já estava suada. Cada beijo em meu pescoço, cada lugar que sua língua alcançava causava-me um arrepio diferente. Podia sentir vivamente suas mordidas, arrancando-me suspiros e engrandecendo ainda mais o desejo de tê-lo.
No sonho, era como se eu fosse um tipo de espectadora e participante ao mesmo tempo. Como ver um filme pornô de mim mesma, sentindo cada sensação de prazer e satisfação que me trazia. Ele sussurrava coisas em meu ouvido, que me faziam sorrir e gemer, apertando-o ainda mais contra meu corpo.
O calor que emanava dele se misturava ao meu, causando-nos leves choques e arrepios. Já sem nenhuma peça de roupa, eu podia sentir simultaneamente a leveza e a ansiedade de . Sua excitação era notável, assim como a minha. Seu membro roçava entre minhas pernas e, numa provocação deliciosa, ameaçava me penetrar.
As palavras que eu sussurrava pra ele soavam distantes em minha mente, e eu não conseguia lembrá-las com exatidão. Minha voz e minha risada se misturavam sem formar uma idéia concreta. Um gemido alto irrompeu por entre meus lábios, ecoando por toda clareira. Meus olhos fechados, o sorriso sem me abandonar o rosto. fazia de nós dois apenas um.
Seus movimentos perfeitamente encaixados a mim só me estimulavam a lhe arranhar e puxar seu cabelo, que hora ou outra estava entrelaçado em meus dedos. Nossas línguas, quando não ocupadas entre pescoços e lóbulos, brincavam em perfeita sincronia. Nossas respirações descompassadas contrastavam com a suave melodia do riacho ali próximo.
aumentava o ritmo das investidas a cada gemido arrastado que eu soltava. E quanto mais intensos eram seus movimentos, mais altos e gostosos eram os gemidos que eu dava. Sua boca, beijando e chupando levemente meus seios, me excitavam ainda mais, causando-me espasmos em diversas partes do corpo. Sentia-me estremecer cada vez que ofegava contra minha pele, e não foi preciso mais do que leves contrações para que o peso dele estivesse sobre mim.
Fechei os olhos e reduzi um gemido perigosamente alto a apenas um ofego pesado. Sentia minha intimidade completamente molhada e meus dedos melados. Levantei-me do vaso sanitário e me encarei no espelho, respirando rápido. Fazia pouco mais de duas semanas que eu e transamos pela última vez, e meu corpo já pedia pelo dele.
Mordi meu lábio inferior enquanto desfazia-me do pijama, procurando normalizar minha respiração. Sorri pra mim mesma. Era gostoso pensar em assim. Ri. Certamente ele me chamaria de pervertida se soubesse que às cinco e cinqüenta AM eu estava me tocando no banheiro, fantasiando com um garoto. Ou talvez não, se soubesse que o garoto era ele.

- Alguém me parece bastante animada essa manhã. – disse quando me aproximei. Ri.
- Consequência de uma boa noite de sono. – respondi ao me sentar ao seu lado.
- Nem chegue perto quando tiver insônia! – ela riu e eu demorei alguns instantes para entender a piada. Revirei os olhos, sorrindo.
- Procurei monitoria ontem por causa do Sr. Stevens. – comentei.
- Mas já?
- Está sentindo esse cheiro?
respirou fundo e franziu o cenho, maneando negativamente com a cabeça.
- Que cheiro?
- O cheiro do desespero.
sorriu comigo.
- E com quem terá aulas?
- Com o... – por um momento o nome falhou-me à memória, mas logo lembrei – Thomas, parece.
- Ah, o Fletcher! Ele é um amor. Você vai adorá-lo.
- Você o conhece?
- Sim, ele é bem amigo do Dougie.
Antes que o professor de geografia interrompesse nossa conversa, contei que nos encontraríamos naquela tarde, e desatou a falar sobre como Thomas era gentil e bem humorado e atencioso e lindo e paciente... Eu só ria do jeito meigo como ela falava do amigo. Se já não soubesse que só tinha olhos para Pietro, do grupo de street, teria certeza de que ela era afim de Thomas.
- Que idéia nada a ver! – ela disse quando comentei. – Até porque ele escolhe bem as garotas com quem fica. Não quer nada sério com nenhuma delas, mas escolhe bem as que quer pegar. Não que eu seja qualquer uma também, mas você entendeu.
Rimos.
- Senhoritas, será preciso retirá-las de sala logo no segundo dia de aula? – o professor dirigiu-se a nós duas, que o encaramos de imediato.
- De forma alguma, professor. Desculpe. – disse e, quando o Sr. Gilbehart voltou a girar o corpo para a lousa, trocamos sorrisos cúmplices.
As aulas de sociologia e espanhol não demoraram a passar. Pude trocar algumas palavras com outros colegas da turma, que foram tão simpáticos quanto fora no primeiro dia. Talvez eu estivesse engana em relação aquelas pessoas. Talvez elas não fossem tão más como, durante a semana que antecedera o início das aulas, eu pensei que fossem. Talvez elas não me achassem um bicho, como parte dos Jones achava. E por que achariam? Eles não sabiam da minha história. Não tinham motivos para me condenar.
Descemos para o pátio quando o sinal soou. Acenamos para Audrey, que conversava com as amigas, todas sentadas em um dos bancos de pedra. Os meninos do street estavam reunidos com mais outros tantos garotos, que riam e falavam gesticulando com as mãos de forma um tanto exagerada. Quando os olhares de e do garoto de cabelo preto e bem liso, jogadinho de lado, de olhos cinza e lábios levemente rosados se cruzaram, ambos sorriram e não poupou suspiros. Ri.
- Você realmente gosta dele, não é? – perguntei quando sentamos na arquibancada da quadra de futebol.
- Muito. Muito mesmo. – mostrou-me um sorriso doce e suas bochechas levemente coraram. Suspirou. – Pena é que ele não sabe disso.
- E não tem como vocês se aproximarem?
- Ter tem, mas... Sei lá. – a garota deu de ombros e, ao ouvirmos risadas altas, desviamos nossa atenção para um grupo de garotas e garotos mais a diante, também na arquibancada.
Uma das silhuetas era extremamente familiar e fez meu estômago embrulhar por um instante. Ele estava cercado por aquelas meninas de roupas curtas e sorrisos maliciosos, que mascavam chiclete de forma vulgar. Ria e socava o ombro do amigo de olhos igualmente e extremamente azuis, que segurava uma das meninas pela cintura.
- Quem são? – perguntei, sem desviar os olhos daquele grupo.
- A turma mais popular do terceiro ano. – disse, encarando-os da mesma forma.
- E por que são tão populares? – voltei meu olhar para a garota ao meu lado, que também o fez.
- A maior parte daqueles caras forma o time de futebol do colégio, e os que não jogam são lindos e ricos o suficiente para se juntarem ao grupo. Como o Jones e o Judd. Está faltando gente ali, por sinal. – esticou o pescoço, a procura de alguém, mas logo desistiu. Senti meus órgãos revirarem ao tentar enquadrar Daniel à palavra “lindo”. – E as meninas são cheerleaders. – ela disse com ar de quem diz algo óbvio.
Voltei a encarar aquelas pessoas. Algumas das meninas faziam uma dancinha com rebolados, caras e bocas, deixando por pouco que suas calcinhas não fossem vistas por baixo das saias curtas que usavam. Alguns dos meninos batiam palmas e assoviavam, um deles atrevendo-se a dar um leve tapa na coxa de uma das loiras que dançava. Foi impossível conter uma careta diante daquilo. Ridículo.
- Se importa de sairmos daqui? Por favor. – pedi.
apenas assentiu e levantamos, seguindo para qualquer lugar em que Daniel e seus amigos se mantivessem fora do meu campo de visão.


Capítulo seis.




- Que horas você e o Tom vão se encontrar? – perguntou, guardando suas coisas na bolsa ao final das aulas.
Olhei meu relógio de pulso. Doze e trinta e cinco PM.
- Daqui à uma hora e vinte e cinco minutos.
Ela olhou-me de cima a baixo, quando já estávamos de pé.
- Arruma esse cabelo, passa um blush no rosto, coloca uma roupa mais sensu...
- , eu vou me encontrar com ele para estudar. Qual parte disso você ainda não entendeu? – rimos.
- Tudo bem, tudo bem. Mas depois me conte como foi, ou eu mesma perguntarei a ele.
- Pode deixar.
Despedimo-nos e optei por não voltar para casa. Almoçaria na escola, já que dali a pouco eu teria de estar na biblioteca. Desci as escadas até o refeitório, que estava relativamente cheio. Deduzi que por causa dos cursos extracurriculares que o colégio oferecia.
Peguei uma das bandejas que se amontoavam em uma pilha, próxima ao balcão em que as funcionárias serviam o prato do dia. Não parecia ruim, mas, certamente, a comida de Maria exalava um aroma muito melhor. Depois de servida, dirigi-me até uma das poucas mesas vazias e sentei, deixando a bolsa e o caderno de lado. Duas meninas e três meninos da minha classe apareceram, perguntando se podiam se juntar a mim, já que o resto do refeitório estava cheio.
- Claro. – assenti e eles sentaram, agradecendo.
Comíamos em silêncio, vez ou outra as meninas fazendo algum comentário ou perguntando qualquer coisa sobre mim. Eu as respondia e ria das bobagens que os meninos falavam. Quase perdi a noção de horário, e assustei-me quando notei que faltavam apenas quinze minutos para minha monitoria.
- Preciso ir pessoal. Até amanhã. – eles sorriram e acenaram em despedida, retomando a conversa enquanto eu me punha dali direto para a biblioteca.
Que porcaria de escada! Amaldiçoei todos aqueles degraus. Pensaria duas vezes antes de descer até o subsolo para almoçar da próxima vez. Abri a porta da biblioteca ofegando. Respirei fundo, na tentativa de retomar o ritmo normal da atividade dos meus pulmões, caminhando até uma das mesas redondas mais ao canto. Ao contrário do refeitório, aquele lugar estava praticamente vazio e silencioso.
Por conta da ausência de Thomas, segui até as estantes de livros e procurei pela sessão de poemas. Pensei no livro de minha avó, em como ela gostava de escrever seus próprios versos e/ou transcrever poesias de seus autores favoritos, ou apenas aquelas rimas que a emocionavam. Antes de falecer, ela me pedira que nunca o deixasse de lado. Que sempre que pudesse, redigisse sobre aquelas páginas, já manchadas e amareladas, palavras que, para mim, fizessem sentido.
Escolhi um livro de autor desconhecido, e deixei-me perder entre aquelas linhas. Esqueci-me até de voltar à mesa.
- Gosta de poesias? – uma voz soou baixa atrás de mim, fazendo-me sobressaltar.
- Céus, que susto. – minha mão estava espalmada ao peito, e Thomas ria um riso leve por conta daquela cena.
- Desculpe, não queria te assustar.
- Tudo bem, isso... Isso acontece quase sempre. – sorri quando me senti um pouco mais relaxada.
- , não é? – ele perguntou e eu assenti.
- E você, Thomas.
- Tom, por favor. ?
- Como preferir.
Sorrimos. Um breve silêncio instalou-se entre nós. Ele me olhava e sorria, deixando-me um tanto sem graça. Fechei o livro em minhas mãos e o devolvi à estante, voltando a olhar o garoto que segurava a alça da mochila sobre o ombro com uma mão, mantendo a outra no bolso de seu jeans.
- Ahm... Vamos? – perguntei e Tom assentiu, acompanhando-me até a mesa onde tinha deixado todo meu material.
- Você não é terceiro ano, é? – ele perguntou quando nos sentamos.
- Não, não. Segundo. – respondi, pegando meu caderno.
- Bom, eu perguntaria qual assunto você está estudando agora, se tivesse dado tempo do Sr. Stevens ter iniciado algum. – ele disse quando nos sentamos. Sorri. – Então, me diga qual foi o último assunto que a Sra. Dullan deu no primeiro ano.
- Eu não estudava aqui. Mudei-me de Bolton pra cá há pouco tempo. – desviei meu olhar do dele ao dizer tais palavras, fingindo procurar meu estojo dentro da bolsa.
- Entendo. E qual o último assunto que você estudou por lá?
Forcei um pouco minha memória para lembrar, mas as únicas coisas que me vieram à mente foram alguns gráficos e equações. Tom levantou e, em instantes, estava de volta com um livro de matemática nas mãos.
- Vamos lá então. – ele sorriu e, após procurarmos pelo assunto certo entre todas aquelas páginas, começou sua explicação.
Ele falava clara e pausadamente, temendo que me surgissem dúvidas diante seu discurso. Era simples entender o que dizia.
- Tem certeza que precisa mesmo de monitoria? – Tom perguntou, duas horas depois, quando fechei meu caderno e o empurrei para frente, como alguém faz com o prato de comida ao estar satisfeito. Eu estava satisfeita de números por aquela tarde.
Havia resolvido todos os exercícios e tirado dúvidas bobas, vez ou outra até completando algo que ele dizia.
Tom sorria.
- Na verdade, procurei monitoria por medo.
- Medo? O Sr. Stevens não é tão ruim. – fiz uma careta e Tom riu. – Ok, certo, confesso que ele é carrasco sim.
- Por isso mesmo. Não quero perder de ano por dois décimos.
- Conheço alguém que perdeu. – ele disse relaxando na cadeira, rindo ainda.
- Eu também. – puxei minha bolsa, guardando o estojo. Voltei minha atenção para ele, desfazendo o sorriso em meus lábios – Mas... Sei lá, você deve ter outros alunos que precisam realmente de monitoria e eu estou ocupando uma vaga por bobagem, então, se preferir, eu posso procurar outra pesso...
- Não, que isso. Não se preocupe. – ele interrompeu, maneando com a cabeça.
Sorrimos.
- Obrigada.
Olhei meu relógio, que já marcava mais de quatro PM.
- Bom, eu preciso ir. – levantei, colocando minha bolsa sobre o ombro e segurando o caderno nas mãos.
- Onde você mora? Posso te dar uma carona. – Tom ofereceu, levantando.
Engoli em seco com sua proposta. Droga.
- Não, eu... Eu agradeço a carona, mas é melhor não.
- Claro, tudo bem. Fica pra próxima. – ele sorriu compreensivo, fazendo-me retribuir seu sorriso, um tanto nervosa.
- Isso.
- Terças e quintas, nesse mesmo horário, está bom pra você? – Tom mudou de assunto, caminhando comigo em direção à saída.
- Sim, está. Sem problemas. – eu não tinha mais o que fazer mesmo durante as tardes da semana.
Enquanto descíamos as escadas, Tom puxava assunto. Eu o respondia e era quase difícil desviar o olhar da covinha que se formava em sua bochecha quando sorria.
- Nos vemos depois de amanhã, então? – ele disse quando estávamos a ponto de nos separar.
- Sim. – respondi, cerrando levemente os olhos quando saímos, por conta do sol.
- Então, até lá. – ele sorriu e piscou, seguindo para o seu volvo preto, majestosamente estacionado ali perto. Uau.
Suspirei e tomei o rumo da minha prisão.
- Menina, como você demorou! – Maria disse preocupada quando me viu entrar pelas portas do fundo. – Aconteceu alguma coisa?
- Desculpe não ter avisado, mas não acredito que alguém tenha perguntado por mim. – dei de ombros e Maria sorriu um sorriso doce. Retribuí.
- Não fale assim. Mas me diga, quer um lanche? Tem uns biscoitos saindo do forno logo.
Respirei fundo, sentindo o cheiro de chocolate tomar meus pulmões.
- Vou lá em cima tomar um banho, trocar de roupa, e desço para provar os biscoitos. Ok?
Maria assentiu e eu segui para o quarto. Entretanto, antes mesmo de adentrar o corredor, a porta do quarto de Daniel fora aberta e uma risada feminina soou pelo andar de cima. Só me faltava essa. Escondi-me no lavabo próximo, deixando apenas uma fresta aberta. Esperava ver uma das meninas de pouca roupa do colégio sair de lá, mas surpreendi-me ao ver Laline com o uniforme amassado, sorrindo de canto para Daniel, que se apoiava no vão da porta com uma das mãos.
Ele tinha o mesmo sorriso safado nos lábios e faltava-lhe a camisa no corpo. Estava apenas de calça jeans, com o botão e a braguilha abertos. Laline aproximou-se de Daniel e sussurrou algo em seu ouvido, que fez o garoto morder o lábio e puxá-la para um beijo que me lembrava dois animais em briga. Quando se separaram, os lábios vermelhos e as respirações ofegantes, Laline deu as costas, levando um tapa na bunda antes mesmo que tivesse dado dois passos.
Ela olhou o garoto por sobre o ombro, sorrindo com malícia, sem nem ao menos se abalar com tal ousadia. Daniel a olhava com luxúria, enquanto a morena de pele alva descia as escadas silenciosamente. Esperei até que ambos sumissem dali e, passo a passo, quase que na ponta dos pés, fui direto para o quarto, fechando e trancando a porta.
Eu estava perplexa. Perguntei-me quantos anos mais velha do que Daniel, Laline seria. Talvez uns dois ou três? Não sei. Encarei a porta, como se através dela eu pudesse ver o que, minutos ou horas antes, teria acontecido no quarto de Daniel entre eles dois. Meu rosto se contorcera em careta, e, enjoada só por imaginar tal episódio, larguei minha bolsa e minhas roupas sobre a cama, correndo para o chuveiro.

Senti por dispensar os biscoitos de Maria, mas entrar na cozinha e dar de cara com Laline estava fora de cogitação. Reuni alguns livros e os abri sob a escrivaninha, numa tentativa frustrada de fazer os exercícios, mas, levando em consideração a velocidade e tensão com que minha mente trabalhava, era quase impossível até soletrar o alfabeto em ordem.
O toque do meu celular despertou-me de meus devaneios, fazendo-me levantar para pegá-lo em cima da cama.
- Hey. – disse, voltando a me sentar na cadeira junto à escrivaninha.
- Quanta animação pra falar comigo. – ironizou.
- Hoje não foi um dia assim tão bom.
- O que aconteceu?
Suspirei, encarando a parede a minha frente. Passei minha mão livre pelo rosto, num movimento cansado.
- Essa casa é muito estranha, . Quando você pensa que pode pisar firme, você pisa em falso. É um horror.
- Ainda não me respondeu.
- Não foi nada. – mordi o lábio. Odiava esconder as coisas dele, mas eu realmente não queria tocar naquele assunto.
- Tem certeza?
- São só coisas que vejo e não tolero.
- Hm. E a escola?
- Tudo certo. Estou tentando fazer alguns exercícios. – peguei o lápis e comecei a rabiscar qualquer coisa na folha em branco do caderno que estava aberto.
- Quer ajuda?
- Ah, por falar em ajuda, estou com um professor de monitoria em exatas. – desviei sem querer de assunto.
- Vai tomar no cu, . – ri – Você tira notas ótimas em exatas, pra que monitoria?
- Conheci um garoto que perdeu de ano por dois décimos com o meu professor. Não quero ter o mesmo destino.
- Você sabe que isso está fora de questão.
- Parcialmente. Mas, de qualquer forma, o garoto que me deu aula hoje é bem simpático.
- Até imagino o sorriso idiota que você está estampando na cara agora.
Ri mais uma vez. me conhecia tão bem a ponto de saber exatamente meu comportamento até mesmo sem me ver. Sorte a minha ter esse mesmo domínio sobre ele e sentir seu ciúmes aflorar num só instante.
- Pare com isso. Eu apenas disse que o achei legal.
- E me deixe adivinhar, esse legal quer dizer alto, loiro, dos olhos verdes?
- Não olhos verdes. – e ri.
- Já está arrastando asa pro cara?!
- Não ! Afinal, que juízo você faz de mim?
- O pior, sabe disso.
- Idiota.
Nós ríamos, e era algo tão bom, tão natural de se fazer, confortável como respirar.
- Ei, lembra da Farah? – ele perguntou, e, voltando a rabiscar em meu caderno, resmunguei concordando. – Estou saindo com ela de novo.
- Que bom. – dei de ombros. Farah até era uma garota legal, da mesma turma que ele na faculdade. Chegamos a sair juntos algumas poucas vezes em Bolton.
- É... – ele suspirou meio bobo.
- Me avise se o lance ficar sério.
Era sempre desse jeito, quando sentia ciúmes, ele tinha que me pôr ciúmes também. E, de fato, conseguia.
- Pode deixar. – ele concordou e ouvimos um bip, indicando uma chamada em espera, interromper nossa conversa. – Uh, preciso desligar.
- Ta né... – fiz biquinho e suspirei, despedindo-me dele e repousando o aparelho sobre a escrivaninha.
As coisas me pareciam um tanto confusas. Eu não conseguia digerir a cena ridícula que presenciara à tarde, e ainda mais essa de estar saindo com uma garota. Arrrg, ódio. Respirei fundo e tentei controlar minha indignação, buscando retomar minha atenção para os livros. Fracasso. Por mais que eu me esforçasse em concentrar minha cabeça nos acontecimentos históricos e discursos políticos da página cento e trinta e sete, todas aquelas informações pairavam e iterrompiam por entre meu raciocínio quase todo o tempo.
A sala de aula estava praticamente vazia quando cheguei. Fiz questão de levantar cedo e engolir o café, procurando de todas as maneiras não cruzar meu olhar com o de Laline. Mal cumprimentei Maria, com medo de que, pela minha boca, saíssem coisas que eu não pudesse controlar, ou que, acima de tudo, não pudesse provar.
Olhei através da janela e vi o pátio pingado com pouquíssimas pessoas. Senti meu estômago reclamar. Se eu dera duas mordidas em uma fatia de pão com geléia e dois goles de vitamina, havia comido muito naquela manhã. Pequei uns trocados na carteira e, enquanto contava as moedas descendo as escadas, esbarrei de frente com alguém, fazendo com que todas aquelas coisinhas prateadas saíssem rolando pelo chão.
- Awn, droga. – resmunguei batendo o pé, quase esquecendo de me desculpar com a pessoa em quem me batera. – Ah, me desculp...
- Hey. – disse Tom com seu melhor sorriso.
Sorri, um tanto sem jeito, confesso.
- Hey. Desculpe por esbarrar em você tão cedo.
A essa altura, os outros alunos que subiam os degraus iam catando as moedas que encontravam pelo caminho, certamente pensando que aquele era o seu dia de sorte, pro meu azar. Adeus suco.
- Não foi nada. Eu que te devo desculpas, joguei seu dinheiro no chão e... – ele olhou em volta, notando que já não havia mais moedas por ali.
- Não, sem problemas. Eu já estava desistindo mesmo de ir à cantina. – menti.
- Não tomou café? – ele perguntou, ajeitando a mochila nos ombros.
- Não direito. – confessei, sentindo meu estômago reclamar mais uma vez.
- Te pago um. – ele ofereceu.
- De maneira alguma. Posso esperar até o intervalo.
- Eu insisto. – Tom segurou minha mão e foi me puxando escada abaixo.
- Mas Tom...
- Você é sempre assim, difícil? – Tom perguntou, chegando ao andar de baixo. Sorriu, vencendo-me por fim.
- Não sempre. – falei, caminhando ao seu lado até o pátio.
- Dizem que as difíceis são as melhores. – ele disse, fazendo-me rir desconcertada. Indireta, oi?
Preferi manter-me calada até chegarmos à cantina. Antes mesmo que eu pudesse pedir apenas um suco de morango, Tom se adiantou, pedindo um sanduíche de queijo e presunto, uma barrinha de chocolate e mais o suco.
- Tom, isso é absurdo! – reclamei, tentando impedi-lo de entregar o dinheiro a moça do caixa.
- Vou queimar o seu filme com o Sr. Stevens se não me deixar pagar seu café.
Dei dois passos pra trás na hora. Tom riu e pagou o pedido.
- Isso é chantagem barata, não é justo. – revirei os olhos, pegando o lanche e indo até uma das mesas de pedra.
- Não, é apenas um argumento que funciona com você.
- Um dos poucos. – disse ao dar meu primeiro gole no suco.
Tom riu, e enquanto o sanduíche misto desaparecia entre meus dedos, nós conversávamos sobre coisas aleatórias.
O pátio já estava mais cheio quanto terminei de comer. Tom olhou o relógio e fez uma leve careta.
- Eu preciso ir, os caras estão me esperando.
- Tudo bem, nem sei como te agradecer e já tomei bastante o seu tempo.
- Sempre que quiser. – ele disse, despedindo-se de mim com um beijo no rosto. – Até mais, .
- Até. – esforcei-me para que minha voz não soasse chocada ou surpresa por aquele gesto dele.
Fiquei observando o loiro correr pela grama e adentrar os portões de vidro do colégio, enquanto minha cabeça parecia dar um nó. Que Thomas era bonito e gentil, isso era um fato, mas não estava um tanto cedo para que trocássemos beijos no rosto, ou até mesmo que eu me sentisse tão à vontade quando estava em sua companhia? Não seja tola, acha que ele está interessado em você? E por que não? Está se esquecendo de ? Não, mas ele está com outra. E só por isso vai se jogar nos braços do primeiro que aparecer? Ele já não está fazendo isso? Hunf.
Imersa em minha briga interior, refiz o caminho da sala de aula, encontrando com a cara colada no vidro da janela.
- Hm... ? – toquei seu ombro, incerta se podia realmente chamá-la daquela forma.
- Me explica o que foi aquilo! – ela disse com os olhos arregalados e um sorriso imenso no rosto.
- Aquilo o que? – recuei, vendo a garota sentar-se e puxar a carteira onde minhas coisas estavam, pra mais perto de si.
- Não seja tonta. Você e o Tom, lá em baixo. – ela sussurrou quando me sentei ao seu lado.
Então eu sorri.
- Ele... Bom, ele me pagou um lanche.
- WTF!!! – a garota gritou, atraindo certos olhares. Sorriu amarelo e voltou sua atenção pra mim – Como isso aconteceu?
Expliquei então tudo do início. Como havia sido a aula na tarde anterior, o modo gentil como ele agiu comigo, a hora que nos esbarramos e o que conversamos lá em baixo.
- Ele está caído por você! – ela disse, os olhos brilhando de felicidade e empolgação. – , você não imagina o quão difícil é chamar a atenção de um cara como o Tom.
Quando ia perguntar o que ela queria dizer, o Sr. Stevens deu o ar da graça, pedindo imediatamente ordem e silêncio. Voltei minha carteira para a posição normal e, relembrando os assuntos que revisara com Tom no dia anterior, tive facilidade com os exercícios que o professor passara para a classe.
Confesso que, volta e meia, minha mente vagava pelas palavras de . “Ele está caído por você”. Impossível! Nós nos vimos apenas três vezes! Seria realmente verdade? Não. E ? Eu não trairia o que sentia por . Qual é, . Vocês nunca foram disso. Cocei a cabeça, respirando fundo e voltando minha concentração para as questões que ainda me esperavam em branco.

Capítulo sete.



saiu tão afobada da sala, que mal conseguimos nos despedir. Ela disse que Pietro estava extremamente lindo hoje, que precisava vê-lo mais uma vez antes de voltar pra casa, e tinha que correr para alcançá-lo na saída.
Desci as escadas rindo comigo mesma, quando percebi alguém acenando em minha direção, próximo aos portões. Era Dougie.
- Hey. - ele me cumprimentou.
- Hey. – respondi, ainda me perguntando o que, justo ele, teria pra falar comigo.
- Você é a , amiga da , não é?
- Acho que sim. – sorri, um tanto incerta se eu e já podíamos ser consideradas amigas.
- Ela pediu que eu entregasse isso a você, antes dela sair correndo. – ele estendeu um livro de capa vermelho vinho, com detalhes dourados em volta. Reconheci a autora pelos versos que minha avó escrevera em seu livro algumas vezes.
Estranhei. Não me lembrava de ter comentado com que gostava de poesias. Contudo, sorri, pegando o livro em mãos.
- Obrigada. Agradecerei a ela amanhã.
Dougie assentiu e, com um sorriso, afastou-se.
Saí, tomando o caminho de casa. Enquanto andava pela calçada, abri o livro, encontrando um post it amarelo grudado no verso, com a caligrafia bem desenhada de , dizendo: “Desde quando o Tom gosta de poesias?”. Foi ai que eu entendi. Ao virar a folha, encontrei um bilhete. “Meu avô disse que é o melhor que ele tem, e deixou que eu o emprestasse a você. Espero que goste. Tom”.
Que horas ele teria entregue isso a ela? E que horas ela teria entregue isso a Dougie? De qualquer forma, agradeceria aos dois quando os visse no dia seguinte.
Rodeei a casa e entrei, mais uma vez, pela porta de vidro dos fundos.
- Boa tarde, Maria. – sorri para a senhora que remexia alguma coisa no fogão, e que cheirava muito bem, por sinal.
- Boa tarde, menina . Com fome?
- Confesso que sim. - sorri, debruçando-me sobre a ilha.
- O almoço logo estará servido. – Maria retribuiu o sorriso, pingando na mão um pouquinho do caldo que borbulhava levemente na panela, para experimentar. – Está bom de sal. – disse para si mesma.
- Maria, posso fazer uma pergunta? Espero que não se ofenda. – mordi meu lábio por dentro.
- Claro. – ela se virou para mim, baixando a intensidade do fogo sob a panela.
- Você não é inglesa, é?
A moça me olhou doce e secou as mãos no pano que pendia do bolso da frente de seu avental. Aproximou-se de mim e também se recostou sobre o balcão.
- Não, sou brasileira. – ela respondeu, um sorriso saudoso brotando em seus lábios. – Vim muito pequena pra cá. Minha mãe foi enganada por um homem que lhe prometeu uma vida maravilhosa aqui, e, quando chegamos, não era nada do que ela pensava.
Suspirei, sentida pela história que ouvia.
- Você gostava do Brasil?
- Sim. Nós tínhamos uma boa vida lá, e minha mãe abriu mão de tudo para vir. Depois não tivemos como voltar e, com esforço, consegui esse trabalho. Sirvo ao Sr. Jones desde antes de ele se casar. Vi a Sra. Jones chegar, engravidar... Criei o menino Daniel.
- Essa família significa muito pra você, não? – eu sorria, encantada pela ternura com que ela se referia àquelas pessoas.
- São como a minha própria família.
Um pequeno bip soou do fogão, anunciando que o que quer que estivesse no forno, já estava pronto.
- Vá lavar as mãos, a comida estará na mesa em minutos. – Maria disse sorrindo e eu assenti, dirigindo-me até as escadas. Entretanto, antes mesmo que pudesse passar pela porta, dei de cara com Laline, que entrava na cozinha para ajudar Maria com o almoço.
- Boa tarde, . – ela disse com um sorriso que, se eu não tivesse uma visão completamente desgostosa sobre ela, me pareceria simpático.
Sorri amarelo e apertei o passo até o andar de cima, esforçando-me para não perder a fome com as imagens da tarde anterior, que voltaram à minha mente com força. Era fato que eu teria de conviver com aquilo, e, se não quisesse arranjar problemas, me restavam duas opções: ou esquecia, ou me acostumava. Ok, nenhuma das duas vai dar certo.

O vento fazia com que as cortinas do quarto dançassem suaves, e uma brisa fresca tornasse nulo qualquer tipo de calor. Passava das quatro e quinze PM e meu dever de casa já estava pronto, até mesmo as atividades que foram acumuladas na noite passada, o que me deixava com tempo livre para ver a vida passar diante de meus olhos, sem ter nada pra fazer.
Guardava o material, quando meu olhar pousou sobre o livro do avô de Tom, que descansava sobre a cômoda de cabeceira. Sorri. Peguei-o e olhei o dia através da sacada. O sol já não batia com força nas águas da piscina, e uma árvore do quintal vizinho fazia sombra sobre algumas das espreguiçadeiras brancas.
Não havia sinal dos Jones em casa. Hugo voltara para a empresa depois do almoço, Diana saíra com algumas amigas e Daniel não aparecera em casa depois da escola. Sem problemas circular pelo quintal, certo? Desci e, pela primeira vez, caminhei calmamente pelo gramado bem cuidado e verdinho. Olhei pela parede de vidro, em direção a cozinha. Estava vazia, assim como os outros cômodos que eu podia ver através da parede transparente.
Agachei-me à borda da piscina de formato irregular. Era grande, e uma de suas extremidades mais rasa tinha forma perfeitamente circular, o que dava impressão de ser como uma banheira de hidromassagem. Degraus estendiam-se debaixo d’água, à medida que a piscina ia ficando mais funda. Esta era toda coberta por pequenos ladrilhos azuis, que degradava de cor da extremidade rasa, que era de um azul mais claro, até a mais funda, que tinha um tom azul marinho.
Notei refletores dentro dela, e tentei imaginar o quão bonita ela ficaria quando eles estivessem acesos. Era fato, desde que pusera os pés naquela mansão, uma das coisas que mais me encantara fora aquela piscina. Era inegável, também, que eu estava morrendo de vontade de dar um mergulho, mas seria algo completamente desconfortável se algum dos Jones chegasse em casa e me visse ali, e sim, eu estava me referindo a Daniel. Ele não pouparia críticas e nem dosaria o veneno de sua língua.
Suspirei, secando no short jeans a mão que mexia vagarosamente na água impecavelmente limpa e cristalina. Saquei o celular do bolso e, discretamente, tirei uma foto. A imagem ficara um tanto cortada, mas dava perfeitamente para que tivesse uma pequena noção de como ela era de perto. “Vamos dar um mergulho? Haha” Digitei e enviei a foto, sorrindo pela provável cara que ele faria quando recebesse a mensagem.
Levantei e andei até uma das seis espreguiçadeiras brancas. Estavam impecavelmente enfileiradas, próximas à borda da piscina, e próximas ao quiosque que comportava uma cozinha completa ao lado de fora da casa. Tinha geladeira, freezer, uma pia com um enorme balcão, uma mesa redonda com seis cadeiras, e, é claro, uma churrasqueira.
Por um momento imaginei como não seria um churrasco numa tarde de sábado naquele espaço, e questionei se Hugo Jones, naquele porte todo de empresário compenetrado e rígido, saberia assar carne. Mas logo a resposta me veio, fazendo-me sentir a pessoa mais idiota do mundo por sequer cogitar essa possibilidade. Ele contrata um churrasqueiro, lerda.
Sentei-me, tirei os chinelos – certificando se que meus pés estavam realmente limpos, afinal, aquelas cadeiras estavam tão alvas que quase me faziam achar que nunca teriam sido usadas -, e estiquei meu corpo sobre o confortável semi-leito. Voltando a me concentrar no real motivo que me fizera ir até ali, abri o pequeno livro de capa dura e passei os olhos pelo primeiro título, FALTA.

“Meu sorriso sumiu
Meus olhos já não brilham mais
Tudo isso é culpa
Da falta que você me faz.

Meu rosto entristeceu
Meu riso mudou
Desde aquele dia
Minha graça se dissipou.

Tentaram me fazer sorrir
Tentaram tudo pra me alegrar
Mas de nada adiantou
Tentar, tentar, e tentar.

A beleza perdeu a cor
Não se ouve nenhum ruído
Apenas a respiração falha
De um coração partido.

Um coração dividido
Em pequeníssimas formas desiguais
Pedacinhos deformes, distorcidos
Que não se juntarão mais.
E tudo isso é culpa
Da falta que você me faz.”


Passei os dedos levemente sobre a página do poema. De alguma forma, aquelas palavras me fizeram sentido. Não foi preciso de um segundo para que minha mãe me viesse à mente, e um enorme vazio pesasse dentro de mim. Aqueles versos soavam em meus ouvidos, fazendo com que as lembranças que estavam guardadas em mim surgissem como um filme diante meus olhos.
Nossas risadas, nossos abraços, nossos carinhos. As noites em que ela me colocava pra dormir quando era criança, e cada palavra de amor que ela dizia quando gastávamos qualquer tempo juntas. Não havia sequer um dia em que ela não dissesse que eu era sua pequena princesa, seu grande tesouro. Seu rosto aparecia pra mim com nitidez, e a vontade de apertá-la contra meu corpo fez com que as lágrimas se desprendessem de meus olhos.
Mordi o lábio, sentindo meu peito se contorcer de saudade. Queria ir pra casa, descobrir que tudo não passara de um terrível pesadelo. Queria que ela estivesse lá, me esperando de braços abertos, e que, à noite, ela me oferecesse seu colo para que eu deitasse e lhe contasse sobre meu dia. Ou, se tudo isso fosse pedir muito, queria que ela apenas me ligasse e dissesse que me amava, tanto quanto eu a amo.
Funguei, fechando o livro. Afastei as costas do encosto da espreguiçadeira e abracei meus joelhos, escondendo o rosto entre eles. O choro me vinha como viera naquela noite no hospital, como nos dias seguintes que passara na casa de , como na tarde dentro do trem. Eu podia estar cercada de luxo e conforto, de uma beleza artificial que, inevitavelmente, me encantava, e podia estar conhecendo pessoas legais como Maria, , e Tom, mas, no fundo, no fundo, eu não queria nada daquilo.
Não queria o dinheiro dos Jones, não queria estar morando ali de favor. Não queria alguém esfregando na minha cara que eu não pertencia àquele mundo, àquela realidade, me fazendo ameaças e grosserias. Eu queria voltar pra minha casa, voltar pra onde jamais ninguém deveria ter me tirado. Queria voltar pra e pra tudo que ficara em Bolton. Eu queria minha mãe.
Forcei o aperto de meus braços contra mim mesma, sentindo meu corpo tremer levemente. Eu precisava tanto dela, e saber que ela não estava ali, me destruía por dentro. Os soluços não tardaram a chegar, tornando meu choro audível. Uma terrível solidão me envolvera, um sentimento de agonia, tristeza e, talvez, raiva, me cobria. Podia sentir a ardência que minhas unhas causavam por fincarem-se com cada vez mais força sobre minhas pernas, e o ar começara a parecer insuficiente para a real necessidade que eu tinha dele.
- , por Deus, o que aconteceu? – ouvi uma voz conhecida, soando extremamente preocupada junto de mim.
Ergui o rosto e encontrei Diana agachada ao meu lado, seus olhos angustiados me encarando à espera de uma resposta. Funguei mais uma vez, buscando retomar o controle sobre mim mesma.
- Eu... Só... – fechei os olhos, procurando qualquer desculpa cabível para meu choro incessante. Inútil. As lágrimas continuaram caindo, forçando-me a secá-las com as costas da mão.
- Alguém te fez mal? Te machucou? – ela perguntou, passando carinhosamente a mão por meu cabelo. Neguei com a cabeça, notando seu alívio. – Quer ficar um pouco mais sozinha?
Olhei-a e, sentindo-me como uma criança pequena, implorei com o olhar para que ela não saísse dali. Já estava me sentindo sozinha, e vê-la sair dali, naquele estado, traria-me a horrível sensação de abandono. Neguei mais uma vez com a cabeça, vendo brotar um leve sorriso nos lábios daquela mulher.
Diana levantou, sentando na ponta da espreguiçadeira. Estendeu os braços e, com carinho, me puxou pra perto de si em um abraço. Foi mais forte que eu. Qualquer resistência que eu ainda tivesse sobre ela fora por água abaixo. Naquele instante, as lágrimas me tomaram por completo, e um conforto inexplicável me invadiu, tornando mais forte meu abraço sobre ela.
Sentia seu carinho em meu cabelo, que perdurou até que meus pulmões reclamassem e meus olhos já não tivessem mais o que chorar. Desfizemos nosso abraço em silêncio, com calma, e, só então, quando meu rosto já estava livre das lágrimas, Diana voltou a falar.
- Quer conversar?
Respirei fundo, com a cabeça baixa.
- Foi apenas... Saudades. – minha voz soou rouca e grave, contrastando com a leveza da voz de Diana.
- Da sua mãe?
Assenti, ainda sem encontrar seu olhar. Senti sua mão sobre a minha, apertando-a de leve.
- Só isso?
Mordi meu lábio por dentro, finalmente a olhando. Ela sabia que, por mais que os dias passassem, eu não conseguia me enquadrar, me acomodar ali. Era como querer encaixar uma peça de um quebra-cabeça no lugar errado.
- Eu não faço parte disso aqui, Diana. – respondi.
Ficamos alguns segundos em silêncio, ela parecia medir exatamente o que ia dizer.
- Imagino como você se sinta e... Acho que não há muito que eu possa fazer pra te ajudar em relação a isso. Mas eu espero que saiba que estou aqui, se você precisar de um abraço. Como agora. – Diana lançou-me um leve sorriso, que eu retribuí sincera.
- Obrigada. De verdade, obrigada. – sussurrei.
- Não há de que.
O sol já se punha quando a temperatura baixou e Diana sugeriu que continuássemos conversando lá dentro. Fomos até a sala, que olhei detalhadamente pela primeira vez. Desde que chegara, só passara rapidamente por ela.
Diana me chamou até uma estante, que ocupava quase dois terços de uma das paredes, com diversos DVDs.
- Estão todos divididos por temas, digamos assim. Em cima, os maiores clássicos do cinema, como ‘E o Vento Levou’, ‘Cantando na Chuva’, ‘Casablanca’, entre outros antigos. São os preferidos de Hugo. Logo abaixo, mais especificamente, os musicais famosos, como ‘Chicago’ e ‘Moulin Rouge’. Os meus preferidos. – ela sorriu – Em seqüência tem terror, ação, ficção, drama, romance, comédia e Disney. – Diana aproximou-se e sussurrou em meu ouvido – Os preferidos de Daniel.
Não contive uma leve risada. Soava hilário que Daniel, com seus prováveis dezoito anos, tivesse como preferidos os filmes da Disney.
- Mas não comente nada, ele não gosta que saibam. – Diana piscou e eu assenti, ainda rindo junto a ela.

- Só não senti inveja da piscina porque meu pai ligou hoje, perguntando quando vou visitá-lo. – disse.
Já estava deitada, pronta pra dormir, quando meu celular tocou. Passava das dez e dez PM.
- E ai, quando você vai?
- Não sei. As coisas apertaram na faculdade. Talvez só daqui uns meses, depois das provas.
- Mande um oi ao seu pai por mim, apesar de não conhecê-lo.
- Você podia dá-lo pessoalmente.
- Sabe que eu adoraria ir pra Austrália com você, mas não é a primeira vez que sou obrigada a recusar seu convite. – suspirei.
Desde que se mudara para Bolton, a cada seis meses, costumava passar um tempo na casa do pai, na Austrália. Ele nascera e morara lá até os oito anos, quando seus pais se divorciaram e sua mãe o trouxera consigo para a Inglaterra. Ela era inglesa e conhecera seu pai durante uma viagem de férias, o que a prendera na Austrália por quase dez anos.
- Droga. – ele resmungou.
- ... – chamei.
- Oi pequena. Contei a ele sobre o poema que li, e a crise de choro que resultara numa longa conversa com Diana. Comentei que ela, de fato, estava conseguindo a minha confiança e, acima de tudo, minha gratidão.
- , você não acha estranho?
- Tudo aqui é estranho, rs.
- Não, sério. Esse comportamento dela com você. Ela devia te odiar, não te querer por perto e... Sei lá, te oferecer uma maçã envenenada!
Sorri. Incrível como conseguia ser engraçado até nessas horas.
- É, eu sei... Mas ela me parece tão sincera quando está do meu lado...
- Mesmo assim. Você é fruto de uma traição do marido dela. Não é normal que ela tenha perdoado seu pai e ainda te trate bem assim.
- Eu concordo, e já parei pra pensar nisso. Perguntei a ela mesma uma vez se estava com pena de mim, e ela negou. O fato é que estou sozinha aqui, . Eu precisei de um abraço hoje, e foi ela quem me deu.
- Você não tem medo que ela possa se aproveitar dessa sua fragilidade, pra te fazer algum mal?
- Sei lá, . – disse cansada.
Meus sentimentos estavam embaralhados e minha mente confusa. A saudade ainda pesava em meu peito, e toda a atenção que Diana me dera naquela tarde fora significativa. Eu não conseguia ter qualquer visão negativa sobre ela, ou imaginar pretextos pra que ela quisesse a minha confiança, e usar isso pra me ferir.
Ele ainda tentou me convencer de que Diana era suspeita, e sugeriu que eu andasse com um spray de pimenta no bolso.
- Nunca se sabe, .
Rimos.
- Boa noite, .

Capítulo oito.



Não tinha como não reparar nas olheiras formadas sob meus olhos. Estes um tanto doloridos ainda pela crise de choro da tarde passada, quase não se abriram ao soar do despertador. Meu reflexo no espelho era horrível, e só fazia com que eu me perguntasse como era possível, a cada manhã, que minha cara acordasse de um jeito diferente.
Depois de um bom banho quente, o que melhorou em cento e vinte por cento a minha aparência, vesti um jeans claro e um blusa branca, enorme, com o Mickey estampado na frente. trouxera pra mim quando fora visitar o pai no ano passado, e os dois foram juntos à Disney. Calcei meu all star branco e, por ter tido preguiça de lavar o cabelo, prendi-o num rabo-de-cavalo.
Minha mãe odiava quando eu ia com esse jeito largado pra escola. Ela dizia que eu parecia um menino, e que assim nunca arranjaria um namorado. Mal sabia ela que discordava totalmente dessa opinião. Ele dizia que eu ficava ainda mais atraente. De onde ele tirava isso? Não faço a mínima.
Sorri sozinha, lembrando de algumas tardes em que costumava ir pra casa dele vestida desse jeito. Sua mãe passava todo o dia trabalhando, deixando-nos completamente à vontade.
Flashback

me levava carregada quando entramos em sua casa. Ele me ligara chamando pra ir pra lá, mas eu estava morrendo de preguiça e disse que só iria se ele me levasse nas costas.
- Ainda bem que você mora apenas a duas esquinas daqui. – ele reclamou ao alongar as costas, assim que chutei meu tênis e as meias pra longe, antes de voltar ao chão.
- Não te obriguei a nada. – dei de ombros e corri para a cozinha. Tia Lucy fazia um mouse de chocolate maravilhoso, e eu esperava encontrar pelo menos os restos mortais dele na geladeira.
riu, me seguindo.
- Tenho que parar de mimar você, garota.
- Não acredito que detonou o mouse, ! – fiz biquinho, fechando a geladeira.
se aproximou e passou os braços pela minha cintura, puxando-me pra perto de si. Seus lábios se juntaram aos meus em um selinho demorado, e então seu hálito de chocolate me invadiu. Ouvi-o sussurrar:
- Diz se o mouse não fica mais gostoso assim?
Revirei os olhos, mas não contive um sorriso. Mordi seu lábio inferior, dando início a um beijo que, graças os movimentos das nossas línguas, deixou o gostinho do leite condensado em minha boca. Sussurrei de volta:
- Bem mais gostoso...
Senti as mãos de me segurarem firme pela cintura e, dando um leve impulso no chão, entrelacei minhas pernas em volta de seu corpo. Sorrimos um para o outro, enquanto nossos lábios voltavam a se encontrar. Nossas línguas se davam tão bem juntas, que era quase difícil separá-las uma da outra.
Com cuidado, fui levada até o quarto que, depois do meu próprio, era o meu mundinho. Meu mundinho e de , onde ninguém tinha o poder de invadir ou desvendar. Era algo só nosso. me deitou na cama, interrompendo nosso beijo, o que me fez resmungar em reprovação. Seu corpo estava sobre o meu, e, por um longo momento, nossos olhares conversaram.
- Não quero apressar nada. – ele disse, acariciando meu rosto, enquanto roçava seus lábios na altura do meu maxilar.
Sorri.
- Cedo ou tarde isso vai acontecer. – fechei os olhos, passando minhas mãos por aquele corpo que perfeitamente se encaixava ao meu – E eu quero que aconteça... – fui baixando meu tom de voz, até que fosse apenas um sussurro -... Com você. – ergui meu rosto, alcançando o lóbulo de sua orelha, que mordi de leve sentindo-o arrepiar.
retribuiu a mordida em meu queixo, logo juntando sua boca à minha outra vez. O beijo era mais intenso, e eu o correspondia de uma forma como nunca fizera antes. As mãos de deslizaram por minha pele, até alcançarem minhas coxas. Apertando-as de um jeito gostoso, deixei que ele afastasse minhas pernas, logo sentindo a pressão do seu corpo de sobre o meu.
Não demorou para que minha blusa encontrasse o chão, assim como a dele. A boca de já passeava pelo meu pescoço e colo, e suas mãos iam e vinham por minha barriga e seios. Arqueei levemente as costas para que ele se desfizesse de meu sutiã, e, assim que a pequena peça se juntou às demais longe de nossos corpos, um doce prazer me invadiu.
A língua de brincava por entre meus seios, mordiscando-os e sugando-os de uma forma tão gostosa que me arrancava suspiros. Mordi meu próprio lábio, curtindo cada arrepio que era capaz de me causar. Quase reclamei quando seus lábios se afastaram apenas para me dar um selinho. Seu corpo afastou-se muito pouco e eu me obriguei a abrir os olhos para entender o que estava acontecendo. O botão de meu short já estava aberto, e começava a corrê-lo por entre minhas pernas.
Nossos olhares se encontraram e nós sorrimos. percorreu os olhos por meu corpo seminu, acariciando-o tão carinhosamente que cheguei a me perguntar se ele realmente me desejava, ou se aquilo estava acontecendo apenas porque éramos amigos.
- Eu te desejo tanto, ... – disse baixinho. Pergunta respondida.
- Eu também... – apenas o movimento mudo dos lábios o respondeu.
Retribuí o selinho demorado que ele me dera, e acompanhei com o olhar escorregar a língua vagarosamente até minha barriga. Suspirei, arrepiada com os beijos e chupões que ele me dava, e estremeci quando sua mão alcançou minha intimidade por sobre a calcinha. Ele me acariciava e fazia leves movimentos circulares sobre o clitóris, que me arrancavam gemidos quase inaudíveis.
Meus olhos estavam fechados, permitindo-me sentir cada detalhe daquilo. De repente, os lábios de já não estavam em volta do meu umbigo, e, antes mesmo que eu me perguntasse o que aconteceria em seguida, sua língua quente deslizou por meu sexo, descoberto pela calcinha que já estava no chão, fazendo-me estremecer mais uma vez.
Levei uma das mãos até a nuca de , que intensificava, aos poucos, os movimentos que fazia. Encarei o teto, suspirando, e baixei meu olhar para o garoto que também ergueu seu olhar até mim. Algo diferente brilhava em seus olhos, uma espécie de luxúria que poucas vezes ele demonstrara. Mas, naquele momento, era mais intenso. O sorriso de canto que ele me lançara era quase desafiador, e, sem dúvidas, o deixava muito mais sexy.
O gemido irrompeu por minha garganta quando senti-me penetrada por dois dedos. Minha mão livre agarrara o lençol, enquanto a outra se entrelaçara com força por entre o cabelo de . Ele os movimentava muito lentamente, talvez com medo de me causar qualquer tipo de dor, mas eu me sentia tão excitada que o movimento inconsciente de minha cintura delatou minha vontade de mais. Eu queria mais, e não hesitou em me dar.
Logo os movimentos de seus dedos tornaram-se mais velozes, e sua boca voltara a me chupar de forma tão prazerosa, que minha vergonha de gemer alto já não existia. Sua mão livre me arranhava a coxa, apertava, e eu sentia que algo estava por vir. Um calor me tomava pelas partes de baixo, e eu quase pedia pra que não parasse. Entretanto, contrariando minha vontade, se afastou, obrigando-me a abrir os olhos de novo.
Minha respiração era rápida, e eu sentia meu corpo inteiro formigar. se desfazia da própria bermuda e cueca, sem nem notar que eu o olhava cheia de desejo. Quando jogou finalmente as peças de roupa no chão e voltou seu olhar pra mim, jogando o cabelo pro lado, ele sorriu, mordendo rapidamente o canto do lábio inferior. Deitou-se mais uma vez sobre meu corpo e me beijou, quase que oferecendo a própria língua pra que eu a sugasse e sentisse meu gosto.
- Você é mais gostosa do que eu pensei que fosse... – ele sussurrou, enquanto procurava por algo embaixo do travesseiro.
- Quer dizer que você pensava nisso? – soltei uma risada um tanto maliciosa, enquanto descia minhas mãos lentamente pelas suas costas, arranhando-o tão fraquinho que seu arrepio foi notável.
- Várias vezes. – confessou, finalmente encontrando a camisinha.
puxou uma de minhas mãos e a levou lentamente até seu membro, com medo que eu recusasse, como de todas as outras vezes em que ele tentara que eu pusesse a mão lá. Mas, para sua alegria, segurei-o firme em minha mão, começando um leve movimento.
- Hmm... – gemeu. – E pensava muito nisso também... – ele sussurrou de olhos fechados, sua testa colada na minha.
Sorri pra mim mesma e aumentei quase que nada a velocidade com que o masturbava. Ele gemia e, vez ou outra, sussurrava pra si mesmo algo que eu não conseguia entender. A embalagem da camisinha já estava no chão quando ele, acredito que contra a própria vontade, pediu que eu afastasse a mão.
colocou a camisinha com atenção. Se eu não o conhecesse bem, diria até que estava nervoso. Ele me olhou e balançou mais uma vez o cabelo pro lado, afastando-o dos olhos, antes de deitar-se sobre mim. Sua boca encostou-se a minha, mas não houve beijo. Elas apenas se roçaram, assim como eu sentia sua cabecinha roçar pela minha entrada.
- Tem certeza? – ouvi sua voz rouca perguntar, e apenas suguei seu lábio em resposta. Até parece que eu estaria ali se não estivesse certa de que queria aquela transa.
segurou minha cintura e forçou o corpo contra mim, penetrando-me com todo cuidado. Fechei os olhos com força. Eu sabia que doeria, mas não tanto. continuou. Soltei um gemido de dor, arrastado, o que fez com que ele parasse.
- Estou machucando você?
- Vai, . – pedi. Eu já estava ali e não iria voltar atrás.
Senti os lábios de contra os meus, e retribuí o beijo. Ele procurava me distrair, enquanto ia, aos poucos, movimentando-se dentro de mim. E, pouco a pouco, foi funcionando.
Meus ombros já não estavam tão tensos, e a dor já não era tão desconfortável. não deixara de mover o corpo um instante sequer, o que me proporcionava um leve prazer, mesmo com a lentidão. Quando minhas mãos voltaram a passear por seu corpo dourado, e minha boca desviou-se da sua em direção ao seu pescoço, percebeu que já podia intensificar as coisas.
Passou a acelerar os movimentos, tornando-os levemente mais fundos. Ele se apoiava com os antebraços no colchão, diminuindo o peso sobre mim e mantendo uma leve distância entre seu peito e o meu, o que me permitia acariciá-lo e arranhá-lo até a barriga.
Não soube dizer o momento em que a dor já não era nada, e os movimentos que fazia me arrancavam gemidos e suspiros cada vez mais altos. Sua mão segurava uma de minhas coxas na altura de sua cintura, ao mesmo tempo em que a alisava e arranhava. Hora ou outra sua mão escorregava até minha bunda, apertando-a com a força necessária para me fazer gemer.
gemeu meu nome de forma rouca, passando a investir com mais rapidez. Envolvi meus braços em seu pescoço, sentindo o mesmo calor de antes me tomar, não só pelas partes baixas, mas sim pelo corpo inteiro. Segurei seu cabelo com força, e com um gemido alto, uma sensação maravilhosa de prazer me invadiu.
Senti-o segurar minha cintura com força e dar quatro ou cinco investidas fortes, lentas, enquanto também gemia. Seu peso estava todo sobre o meu corpo, e, se não fosse pelos beijos em meu pescoço que dava, deixando-me completamente entorpecida, certamente estaria pesado. Nossos lábios se encontraram num selinho demorado, que deu inicio a um beijo calmo e cansado.
- Foi especial? – ele sussurrou, sem desgrudar nossas bocas.
Apenas assenti, ofegando, passando minha língua entre seus lábios, retomando o beijo.
Flashback

Abanei a cabeça, afastando aquelas lembranças. Não que eu não as quisesse, mas eu mal havia acordado e um longo dia me esperava. Dei mais uma olhada no espelho e, brincando com meu escapulário entre os dedos, abri a porta do quarto, desejando poder fechá-la assim que a porta em frente também fora aberta.
Daniel tinha os ombros da pólo azul marinho respingados por conta de seu cabelo molhado. Ele estava de cabeça baixa, fazendo uso de uma das prováveis mil funções do seu celular de última geração, e só percebeu minha presença quando bateu a porta atrás de si.
- Que é garota? – ele disse. Apenas ergui uma das sobrancelhas, fechando a porta às minhas costas e seguindo para as escadas.
Daniel veio atrás, e acredito não ter aberto mais a boca porque o Sr. Jones saía da biblioteca com algumas pastas na mão.
- Bom dia, pai. – ele disse quando chegamos mais perto.
- Bom dia, Danny.
Já havia descido dois degraus quando sua voz me chamou.
- .
Parei onde estava e respirei fundo, sentindo o esbarrão proposital de Daniel ao passar por mim. Girei meu corpo lentamente até ficar de frente pro homem que tirava alguma coisa do bolso e jogava em minha direção. Segurei. Era uma chave, presa a um chaveiro prateado na forma da letra J.
- O que...?
- É a chave da casa. – ele me cortou.
- Não preciso disso. – risquei, pronta pra lhe jogar a chave de volta.
- Foi um pedido meu. – a voz de Diana soou ao pé da escada. Olhei-a e ela tinha um leve sorriso nos lábios. – Você não precisa mais entrar pela porta dos fundos.
- Isso é ridículo. – Daniel se contrapôs, surgindo à porta da sala de jantar. – Ninguém entrega a chave da própria casa a uma estranha.
- Não se meta, Daniel. – O Sr. Jones interveio, antes que aquele diálogo se transformasse em uma discussão. – Ela mora aqui.
Daniel deu um soco na porta com a lateral da mão esquerda, fechada em punho. Encarou-me com raiva, antes de entrar novamente na sala de jantar. O Sr. Jones tomou o caminho de seu quarto, deixando-me a sós com Diana. Suspirei, descendo finalmente as escadas. Parei à sua frente, notando a tristeza e talvez vergonha em seu olhar.
- Daniel é um garoto difícil. – seu tom era praticamente um tom de desculpas.
Dei de ombros e encarei o chaveiro por alguns instantes. Voltei a olhá-la e quase lhe devolvi a chave, se ela não tivesse colocado as mãos sobre a minha, fechando-a em volta do objeto prateado, dizendo:
- Eu faço questão.

- Bom dia! – me cumprimentou quando sentei na carteira atrás da dela.
- Bom dia... – respondi um tanto desanimada.
- Ei, aconteceu alguma coisa? – ela perguntou, virando-se pra mim.
- Digamos que... Está um clima chato em casa. – suspirei.
- Brigou com seus pais?
Sorri irônica, notando o quão sarcástica soara aquela frase. Se soubesse a minha real situação, nem cogitaria dizer algo do tipo.
- Não exatamente.
A garota franziu levemente o cenho, mas guardou suas perguntas com a entrada do professor de biologia. Era um homem alto, de cabelos pretos, com a barba por fazer, no auge entre os seus trinta e cinco ou trinta e nove anos. Usava uma jaqueta jeans sobre a camisa verde clarinha, e tinha um porte bastante jovem.
- Bom dia, turma. Antes de me apresentar, por favor, organizem-se em duplas. – ele pediu.
- Vai me trocar por alguém? – falou e eu sorri, negando com a cabeça.
Ela arrastou a cadeira, ficando ao meu lado. Levou alguns minutos até que todos se acomodassem e fizessem silêncio.
- Então pessoal, me chamo Garcez e vamos estudar biologia juntos esse ano. – ele tinha um sorriso no rosto – Gostaria de dar um aviso que a direção da escola me passou há pouco. Prestem atenção, sim?
O Sr. Garcez desencostou-se da mesa, dando dois passos à frente, aproximando-se dos alunos.
A direção da escola, junto ao corpo de professores, dará início ao projeto interdisciplinar que envolve toda a área de exatas. É um trabalho em grupo, onde o segundo e terceiro ano tem liberdade para trabalhar da forma que preferir.
- Como assim? – uma garota interrompeu.
- Calma, vou explicar. Vocês podem montar grupos de até sete pessoas, com componentes do segundo e terceiro ano. Cada grupo receberá um tema, que será trabalhado durante algum tempo. Esse trabalho consiste em uma pesquisa científica sobre o assunto e, no final, uma apresentação desta. O tempo costuma variar, depende do interesse dos alunos para com o projeto.
- E como são distribuídos esses temas? – perguntou.
- Aleatoriamente. Os grupos devem fazer uma “pré-inscrição”. Quando a direção já tiver em mãos a relação de grupos inscritos, é feito um sorteio pelos professores para estabelecer o tema de cada um. Se, quando receber o tema, o grupo não quiser mais participar, ele pode, sem problema algum, desistir. Se, por ventura, um grupo quiser trocar de tema com o outro, e ambos estiverem de acordo, sem problemas também.
- Que grande perda de tempo. – um garoto de moletom preto, sentado um pouco mais atrás, resmungou.
O sorrisinho que o professor dera para si mesmo mostrava que ouvira a colocação do aluno, mas preferiu ignorar e continuou.
- Enfim, quando todos os temas de todos os grupos já estiverem definidos, são feitas as reais inscrições. Vocês pesquisam, trabalham, montam uma apresentação oral, áudio-visual, ou teatral, como quiserem. O auditório estará à disposição, as salas de aula, as salas de oficina, tudo. O colégio disponibiliza a maior parte de recursos possíveis para que vocês apresentem um trabalho maravilhoso e ganhem seu ponto extra no final do ano.
- Ponto extra? – o mesmo garoto de moletom perguntou, mostrando-se bastante interessado dessa vez.
- Sim, ponto extra. Em todas as matérias.
- Opa! Quem quer ser do meu grupo? – ele disse com um enorme sorriso.
- Fica quieto, Drew! – outro garoto, do outro lado da sala, acertou-o com uma bolinha de papel.
- Sr. Garcez, eu tenho mais uma dúvida. – ergueu o braço, a fim de chamar a atenção do professor.
- Garcez apenas, por favor. – ele sorriu – Diga.
- Essas apresentações são todas em um só dia? É como uma feira de ciências, com estandes e etc?
- É. Acontece em um dia de sábado, pela manhã ou pela tarde. Cada grupo recebe uma sala para montar sua apresentação, ou, se preferir, o colégio monta os estandes no pátio... Isso depende muito da quantidade de grupos que participam, e da idéia de apresentação de cada um. E toda e qualquer pessoa pode assistir. Colegas, famílias... Quem quer que seja que quiser prestigiar vocês.
Os primeiros cinqüenta minutos da aula foram completamente dedicados a tal explicação do projeto. Todos pareciam empolgados com a idéia de receber um ponto extra em todas as matérias no final do ano.
- Bom pessoal, acalmemos a ansiedade. Voltaremos a falar sobre o projeto depois. Preciso da atenção de vocês nessa segunda aula.
Garcez então explicou porque pedira que sentássemos em dupla. Era apenas um dinamismo que ele gostava de dar à aula. Segundo ele, isso também auxiliava com os exercícios de classe.
Passados os cem agradáveis minutos de biologia, que me fizeram esquecer o quase mau humor em que chegara à escola naquela manhã, a professora de literatura entrou na sala, ocupando o lugar do professor mais legal que se apresentara durante aquela semana.
- Cara, a voz dessa mulher é um sonífero! – reclamou, espreguiçando-se na cadeira quando sinal soou.
- Nem fale. – levantei, também esticando o corpo.
- , eu vou precisar ver uns livros na biblioteca. Se der, te encontro lá no pátio antes de acabar o intervalo.
- Certo. Ah! Por falar em livro, Dougie me entregou o livro do Tom.
- Ainda bem, Tom me odiaria o resto da vida se esse livro não chegasse até você. – ela riu – Ele me entregou no final do intervalo de ontem, quando você foi ao banheiro. Colei até um recadinho, você viu?
- Vi. – disse rindo.
- Então, só que eu esqueci de te entregar, e quando saí correndo pra ver o Pietro, o livro caiu. Foi aí eu lembrei. Nessa hora o Dougie passou, e, aproveitando que ele já te conhecia, pedi que entregasse a você.
Separamo-nos ao chegarmos às escadas. Desci e fui até a cantina. Depois de comprar uma barrinha de chocolate igual a que Tom comprara pra mim no dia anterior, andei alheia pelo gramado, sozinha, sem pensar em nada exatamente enquanto comia. Meu olhar pousou sobre um grupo de pessoas que estava distante, se exibindo, e não tardei a reconhecer quem eram. Desviei meu caminho até as arquibancadas, que estavam mais vazias do que o resto do pátio.
Sentei, os joelhos dobrados pra cima, e abri o livro que começara a ler na tarde passada. Fazia um ventinho gostoso, e os versos do poema PRIMAVERA me distraíram ao ponto de nem perceber a chegada do garoto ao meu lado.
- Está gostando? – Tom perguntou sorrindo, fazendo-me encará-lo.
- Sim, muito. – sorri de volta. – A propósito, obrigada.
- Não há de que. Esse poema é bom? – ele indicou com a cabeça a página aberta.
- Eu gostei.
- Lê pra mim? – pediu, e não havia como dizer não àquela covinha tão fofa.

“O sol se foi, o brilho, o calor.
Saudades daqueles dias
De primavera com espinhos
Sangrava exalando perfume de flores
Perfume doce, suave. Droga.
Vício que queima, conforta, machuca.
Faz se perder a razão.

Erro perfeito, gostoso, perverso
Aquele que segue e guia para a dor.
Dor que mata em consciência fria
Que tortura de olhos abertos
Vendo a felicidade sorrir distante.

Felicidade intocável, palpável, insegura
Se esvaindo em rios incolores, mudos, salgados.
O lenço branco não balança ao vento
Mas está cheio de dúvidas, incertezas.
Certo de que um dia a primavera voltará
Sem espinhos.”


- Nossa, que... Profundo, hm? – Tom disse, o cenho franzido parecendo um tanto confuso.
- Os poemas cubistas parecem que não fazem mesmo muito sentido. Mas eu gosto, às vezes consigo me adequar a eles.
O garoto ergueu as sobrancelhas, fazendo-me rir. Certamente estaria me chamando de doida em pensamentos. Ouvimos o sinal tocar, anunciando o final do intervalo.
- Te vejo hoje à tarde? – ele perguntou, e eu assenti. – Então até lá.
Tom piscou antes de se levantar e sair correndo. Pulou nas costas de um de seus prováveis amigos, que o empurrou de leve, ambos rindo.
Voltei à primeira página, onde tinha o poema que li na tarde passada. Marquei a pontinha da folha, querendo não esquecer de copiar aqueles versos no livro de minha avó.

Capítulo nove.



Cheguei ofegando à biblioteca, onde Tom já me esperava. Respirei fundo e caminhei até ele, sentindo pena por interromper sua concentração.
- Atrapalho? – perguntei, chamando sua atenção.
O loiro ergueu o rosto e sorriu, negando imediatamente com um sorriso.
- Claro que não. – olhou em seu relógio de pulso – Cinco minutos atrasada, hm?
- O refeitório estava cheio, e o livro do seu avô também tem culpa.
Thomas riu, fechando seu caderno e pousando o lápis sobre ele. Puxou de dentro da mochila um livro diferente do que o usado na terça-feira, e, diga-se de passagem, bem maior que o outro também.
- Você é uma garota inteligente e não precisa de monitoria, sabe disso. – ele disse e eu sorri – Então, eu pensei em fazermos o seguinte: das duas horas aula, dedicamos uma hora e meia ao assunto, de fato, que você está estudando. Nos outros trinta minutos te adianto alguma coisa do próximo, assim, você sempre estará um passo à frente do Sr. Stevens.
- Me parece um bom plano de fuga da recuperação. – brinquei.
- Sou genial. – rimos – Vamos?
Comentei o assunto que tinha sido dado na última aula e começamos desde tal. Tom tinha uma habilidade incrível para explicações, e imaginei que, se um dia ele aprontasse alguma coisa, sua boa dicção e argumentação o livrariam de um castigo ‘daqueles’ com os pais.
Ás duas horas passaram tão rápidas que pareceram insuficientes para o tanto de assunto que havíamos estudado.
- Você me deve uma carona. – ele comentou enquanto guardávamos nosso material.
- Eu?! – me fiz de desentendida, preocupada que ele insistisse mais uma vez para me levar em casa.
- Tem medo de dar uma volta de carro comigo? – ele perguntou divertido, me encarando.
- Não, não é isso. É só que...
- Então aceita tomar um chocolate na Starbucks aqui perto?
Abri a boca para argumentar, mas o olhar pidão que me foi lançado venceu qualquer chance que eu tivesse de recusar aquele convite. - Você joga muito sujo comigo, Thomas. – revirei os olhos e sorri.
Levantamos, seguindo em direção ao estacionamento do colégio. Seu volvo preto nos esperava magnífico, e ainda podia-se sentir o cheirinho de novo dentro dele. Transpassei o cinto pelo peito, suspirando desconfortável.
- Relaxa , nós só vamos ali na frente. – ele sorriu, fazendo-me rir sem graça.
- Se chegarmos vivos, pra mim já está bom. – brinquei, encarando a expressão fingidamente ofendida de Tom, enquanto dava a partida no carro.
Levou menos de dez minutos até pararmos em frente à Starbucks mais próxima. O rádio fora todo o caminho ligado, servindo apenas de fundo para os assuntos que falávamos.
- Já divulgaram o trabalho de ciências no segundo ano? – Tom perguntou quando nos sentamos, um de frente para o outro, numa das mesas com bancos acolchoados.
- Sim. O professor de biologia falou sobre isso hoje de manhã.
Sorri à garçonete que veio nos trazer o cardápio.
- E você já tem grupo?
- Na verdade, não. Nem sei se vou fazer. – respondi, passando os olhos pelo menu de chocolates quentes.
- Já escolheu o que vai querer? – ele perguntou depois de alguns instantes, e eu assenti, apontando em seu cardápio o chocolate quente tradicional.
A garçonete se aproximou e Tom fez o pedido, voltando a me encarar quando a moça se afastou.
- Nós podíamos montar um grupo. – sugeriu.
- Você não vai fazer o trabalho com seus amigos?
- Não são todos que se interessam.
- A vai adorar isso. – pensei alto. – Ah! Por falar nela... Como você sabia que ela me conhecia?
- Você acha que é transparente? Estão sempre juntas no intervalo.
Ri.
- É verdade. Mas então, a gente pode falar com ela sobre essa idéia do grupo. Ela vai gostar. E com o Dougie também, já que é primo dela, e ela disse que vocês são amigos.
- Você conhece o Dougie? – Tom pareceu surpreso.
- Conheço. Não foi ele que perdeu de ano por...
-... dois décimos. – ele me interrompeu. Rimos.
A garçonete chegou, trazendo nossos chocolates.
- Podemos chamar a Audrey.
- Claro. Ta vendo só? Já temos cinco pessoas. – ele sorriu.
Continuamos conversando sobre o trabalho, e logo sobre outros assuntos. O céu já tinha um azulado mais escuro quando levantamos.
- Tem certeza de que não quer que eu te deixe em casa? – Tom insistiu.
- Tenho. Não se preocupe.
- Mas eu faço quest...
- Até amanhã, Thomas. – sorri, cortando-o.
Ele suspirou, derrotado, e nos despedimos.
- Ainda vou te convencer. – ele disse, piscando pra mim antes de entrar no carro.
Esperei até que seu volvo sumisse de vista, para, então, tomar o rumo da mansão dos Jones.

Hesitei. O chaveiro balançava em minha mão. Suspirei e, tentando fazer o mínimo de barulho possível, girei a chave. A porta se abriu sem nenhum ruído, e, da mesma forma a fechei. Não cheguei a dar dois passos em direção a escada, quando a voz de Diana me surpreendeu.
- Céus, graças a Deus. – ela parecia aliviada em me ver, parando de andar de um lado para o outro na sala.
Passei minha mão pelo cabelo, sentindo-me um tanto culpada.
- Desculpe por não avisar que chegaria tarde.
- Tudo bem. – ela veio até mim. – Maria disse que na terça você também demorou.
- É que estou com monitoria na escola dias de terça e quinta, e hoje depois da aula eu fui dar uma volta. – amenizei as informações. O que ela pensaria de mim se dissesse que tinha saído de carro com um garoto? E, ainda por cima, sendo ele o meu professor?
- Está sentindo dificuldade no colégio? – ela pareceu preocupada.
- Não me surpreenderia. A diferença de ensino deve ser muita daqui pro buraco de onde ela veio.
Só então notei a presença de Daniel largado no sofá. Ele zapeava os canais da TV, e sua cabeça estava apoiada sobre um de seus braços.
Revirei os olhos.
- Não. Estou com monitoria por bobagem. – dei de ombros. vDiana assentiu e eu pedi licença, dirigindo-me até o quarto. Larguei as coisas sobre a cama e fui até a sacada. Restava muito pouco de dourado entre as nuvens, e as estrelas já salpicavam. Fechei os olhos, sentindo o vento acariciar minha pele. Suspirei.
- Está pensando em se jogar? Eu sugeriria o telhado, é mais alto. – a voz de Daniel soou tão próxima a mim que o susto foi inevitável.
Encarei-o. Ele estava parado ao meu lado, igualmente apoiado na grade branca.
- O que...?
- Você é tão ridícula, garota. – ele riu. – Dando satisfações a minha mãe como se fosse a sua.
- Dá o fora daqui.
– Veja se minha mãe seria...
Girei meu corpo, a fim de deixá-lo sozinho, mas sua mão me impediu.
- Não toca em mim, inferno! – quase gritei, puxando meu braço com força.
- Quando eu falo, quero atenção. – disse sério.
- Lamento por você, mas a minha você não tem.
- Não agüenta ouvir umas verdades?
- Verdades? O que um arrogante como você sabe sobre verdades?
- Você acha mesmo que eu não sei sobre a sua mãezinha?
- Olha aqui, idiota. – apontei-lhe o dedo na cara – Você não tem moral pra falar nada de mim, nem da minha mãe.
Daniel riu mais uma vez.
- Moral? – deu um tapa em minha mão, afastando-a – Pode ir baixando a bola. Você não passa de uma imundazinha, bem igual a quem te pariu.
Empurrei-o com força, fazendo-o bater as costas contra a grade da sacada. Ele se segurou, e, por um instante, vi o
medo de cair passar por seus olhos.
- Dá o fora daqui agora. To de saco cheio de você. – eu podia sentir a raiva pulsando dentro de mim, minhas mãos fechadas em punho.
- Mas já? Eu mal comecei. - Daniel olhou-me de cima a baixo com um sorrisinho presunçoso nos lábios, e saiu, batendo a porta do quarto.
Perdi as contas de quantas vezes respirei fundo, tentando manter a calma. Com um pouco mais de força, Daniel estaria desacordado sobre o gramado do quintal naquele momento, talvez sangrando, e a culpa seria minha. Certamente, era isso que ele queria. Que eu perdesse o controle o atacasse. Mas ele não ia conseguir, ah... Ele não ia.
Procurei por meu celular dentro da bolsa.
- , eu quase fiz uma loucura. – disse sentando na cama, antes mesmo que ele completasse a palavra “alô”. Meus cotovelos apoiaram-se nos joelhos, minha mão livre sobre minha testa.
- O que você quase fez?
Contei quando Daniel apareceu e as coisas que ele dissera.
- Eu fiquei com tanta raiva, que... Que o empurrei contra a grade e ele quase caiu da sacada.
- , o que você tem na cabeça? Bosta? – seu tom era de reprovação e, ao mesmo tempo, preocupação. – Já pensou se esse garoto cai? No que você acha que a família ia acreditar, na sua versão ou na dele?
- Eu sei ! Mas... Mas é todo dia assim! Eu só queria que ele calasse a boca e esquecesse que eu existo! Eu não quero nada dele, . Nada! Eu não quero tirar nada dele, eu não quero tomar ninguém dele, eu...
- Ei, ei. Respire. – me cortou, notando o nervoso e a agonia em minha voz.
Respirei fundo, sentindo meus olhos marejarem.
- Me tire daqui, por favor... – sussurrei.
- Se eu pudesse, nem teria te deixado ir.
Sorri entre as lágrimas que escorriam silenciosas por minhas bochechas.
- Você tem que ser forte, . Você tem que aprender a lidar com isso, porque, sinceramente? Ele não vai parar. Ele sabe o seu ponto fraco, e vai te atingir sempre. Ta ai! – de repente, ele pareceu ter uma idéia brilhante.
- Hm? – funguei, secando o rosto.
- Por que você não descobre o ponto fraco dele também? Assim você reagiria de igual para igual.
- , ele é muito mais forte do que eu. Qualquer queixa que ele fizer de mim, o pai dele vai acatar. E quem sai perdendo? Só eu.
- Você não disse que sua madrasta estava do seu lado?
- Diana é mãe dele, . Acorda.
- Então o ignore, . Ignore-o como você gostaria que ele ignorasse você, entende? Finja que ele nem existe. - Ele faz tanta questão de marcar presença... - , você é uma mulher ou um rato?! Que porra!
Sorri. se irritava fácil quando eu me colocava pra baixo, ou me fazia de coitada.
- Vou tentar.
- Prometa.
- Prometo.
Naquele momento, provavelmente ele me daria um abraço e beijaria minha testa, antes de dizer que me amava.
- Eu te amo, e sabe que estarei sempre com você. – ele disse e eu deitei meu corpo sobre o colchão.
- Eu também te amo, .
Ficamos alguns instantes em silêncio, apenas ouvindo nossas respirações.
- Sinto tanto a sua falta... – sussurrei.
- Sabe que eu também sinto.
- Hoje de manhã, eu... Eu estava pensando em você. – sorri.
- Ah, legal saber que você só pensa em mim em uma hora do dia. – ironizou.
- Cala a boca. – rimos – Lembrei de... Uma tarde, na sua casa.
- Uh, qual delas? – ele estava interessado no assunto.
- A primeira. Não exatamente a primeira, mas...
- Entendi. Mas já tivemos melhores.
- É, tivemos.
Ficamos mais uns instantes em silêncio.
- Qualquer dia desses nós podíamos...
- Nem sugira . – ri. – Nós já conversamos sobre falar sacanagens por telefone.
- Qual é, . – ele ria.
Desconversei, cortando-o sempre que ele tentava retomar o assunto. De repente, a ligação caiu, e então me dei conta que meus créditos tinham acabado.
Porcaria.
Tranquei a porta do quarto, largando minhas roupas sobre a cama e indo para o banheiro. Mesmo que, por alguns minutos, tivesse conseguido me distrair e me acalmar, minha cabeça ainda pesava e, com certeza, eu não suportaria encarar Daniel antes de mandar toda aquela raiva por ralo abaixo.

Capítulo dez.


“Tenho uma novidade pra você.”
Escrevi no pequeno pedaço de papel dobrado, que passei pra na cadeira da frente.
“O quê? O quê? O queê?”
Ela devolveu.
“Eu, você, Audrey, Dougie e Tom pro grupo do trabalho interdisciplinar. A sugestão foi dele. O que você acha?”
virou-se pra trás, com os olhos levemente arregalados e eu ri.
- Perfeito. – ela disse sorrindo. – Quando ele sugeriu?
- Ontem à tarde, quando fomos tomar um chocolate quente depois da monitoria.
- Você nasceu com a bunda virada não só pra lua, mas como pro universo inteiro, garota. – disse.
Ô. Você nem sabe o quanto.
- Srta. vire-se, por favor. – a professora de redação pediu, interrompendo nossa conversa.
- Psiu. – ouvi às minhas costas. Ignorei, mas quando me chamaram pelo nome, olhei por cima do ombro.
- Desculpa, mas você deixou o bilhete cair e eu acabei lendo sem querer. – Drew, eu acho, disse-me, estendendo o papel.
- Ah, não tem problema. – lancei-lhe um leve sorriso, pegando o bilhete de volta.
- Eu ainda estou sem grupo, e... Bom, eu queria saber se podia fazer o trabalho com vocês. – ele pediu de um jeito meio sem jeito. Adorável.
- Se importa se eu falar com o pessoal antes?
- Não, claro que não. Espero uma resposta.
Assenti, voltando minha atenção para o texto que ainda estava pela metade. Redação não era o meu forte, ainda mais quando o tema era livre. Eu nunca sabia o que escrever com temas livres.
“Qual o problema com os garotos desse colégio?”
Mandei pra , que logo respondeu.
“Por que?”
“São tão fofos!”
Ouvi rir.
“Vai trocar o Tom por quem?”
Chutei as costas da cadeira da frente, fazendo rir mais alto, cessando imediatamente quando recebeu um olhar repreensivo da professora. Dessa vez quem riu fui eu.

- Ali ele. – apontou. - TOM! – gritou.
Nós estávamos sentadas em um dos bancos de pedra do pátio, na hora do intervalo. Eu sobre o encosto e os pés no assento, e sentada normalmente com as pernas cruzadas feito índio. Tom caminhava em direção a arquibancada da quadra de futebol, junto com dois caras que vestiam o casaco do time. Parou imediatamente ao ser chamado. acenou com a mão para que ele viesse até nós, fazendo-o logo após se despedir dos prováveis amigos.
- Bom dia, lindas. – ele sorriu ao se aproximar, cumprimentando-nos com um beijo no rosto cada uma. – Que me contam?
- A me falou sobre o grupo do projeto. Eu to dentro, e duvido que Audrey e Dougie não estejam.
- Eu não disse que ela adoraria? – disse, admirando a covinha extremamente fofa se formando no rosto do garoto.
- Certo então. Fechamos o grupo? – Tom perguntou.
- Na verdade, um garoto lá da sala pediu pra fazer com a gente.
- Quem? - perguntou.
- Acho que o nome dele é Drew.
- Ah, sim. Ele é legal. A gente já fez uns trabalhos em grupo juntos no ano passado.
- Tudo bem pra vocês?
- Por mim, sim. – concordou.
- Sem problemas. Tranqüilo então se eu falar com umas pessoas também?
- Claro. – e eu respondemos em uníssono.
- Ótimo. Na segunda a gente se encontra na biblioteca pra preencher a ficha, acertar tudo e tal, ok?
- Ok. – mais uma vez eu e respondemos juntas. Sorrimos.
- Então deixa eu ir aqui. Até mais, meninas. – Tom se despediu e tomou, mais uma vez, o rumo das arquibancadas.
- O jeito como ele te olha me deixa enjoada. – zombou, fazendo uma leve careta. Soquei-lhe o braço de leve, fazendo-a rir.
- E ai, gatinhas. – Audrey e Dougie surgiram do nada.
- Olha quem se lembrou da minha existência! – ironizou, arrancando risadas do casal.
- Você estava na minha casa ontem à tarde, cala a boca garota. – Dougie disse.
- Mesmo assim. Sou insignificante pra você na escola.
- Ei, para de drama! – Audrey disse sentando-se no banco, Dougie sentando em seguida sobre seu colo.
- Mas e ai, do que estavam rindo? – Dougie perguntou, olhando da prima pra mim.
- É que o...
- Nada. – dei uma leve joelhada na garota, que riu. – falando besteira. – disfarcei, fazendo-a rir.
- Certo, mas sem ser besteira agora, vocês vão fazer o trabalho interdisciplinar com a gente, não é?
- Pode ser. Estamos sem grupo ainda. – Audrey disse. – Qual é o grupo de vocês?
- Nós quatro, um carinha lá da sala, o Tom e mais umas pessoas que ele disse que ia chamar. – respondeu.
- Legal. Vamos, amor? – Audrey disse, dando um beijinho no ombro do namorado, que assentiu.
- Ótimo. Segunda, na biblioteca, pra gente acertar tudo.
O sinal soou ao mesmo tempo em que Audrey confirmava. Despedimo-nos e seguimos de volta pra sala, encontrando Drew nas escadas. Parei em sua frente.
- Segunda, na biblioteca. Não esquece.
- Tô no grupo? – ele sorriu.
- Sim. – sorri de volta.
- Você é demais, garota. – ele estendeu a mão e eu retribuí um daqueles cumprimentos que as pessoas costumam fazer, vendo-o se afastar.
Encarei , que sorria achando graça da situação.
- Me dá a receita do seu mel?
Revirei os olhos, rindo.
Entramos na sala onde o professor já esperava que todos chegassem e se acomodassem em seus devidos lugares.
- Bom dia, professor. – o cumprimentou, quando passamos por ele.
- Bom dia, meninas. – ele sorriu.
- Eu já comentei o quanto ele é um gato? – cochichou, rindo, quando nos sentamos.
- E eu já comentei que ele usa uma aliança dourada na mão esquerda?
- E daí que ele é casado?
- Você se envolveria com um cara comprometido?
- Não sei se teria essa coragem e cara de pau. – rimos. – Mas é o tipo da coisa, se ele está com a reserva, é porque a titular não está dando conta.
- E desde quando ser reserva é boa coisa? Só fica no banco, esperando.
riu, mas antes que pudesse responder qualquer coisa, Garcez pôs-se a falar sobre o trabalho interdisciplinar. Maior parte da turma passara a demonstrar interesse pelo ponto extra no final do ano.

- O que vai fazer nesse fim de semana? – perguntou enquanto caminhávamos em direção aos portões da escola, no final das aulas.
Suspirei.
- Acho que nada.
- Me dá seu telefone? A gente podia ir ao clube amanhã, se você quiser. – ela sorriu.
- Claro. Mas o prefixo é de Bolton.
- Não tem problema.
Ela sacou o celular do bolso de traz da calça e anotou os números que ditei.
- Prontinho. – voltou a guardar o celular no bolso – Eu te ligo então. Umas nove e trinta AM está bom?
- Uhum, ótimo. – sorri.
- Legal, nos vemos amanhã.
Despedimo-nos com dois beijinhos no rosto e a vi caminhar em direção a Dougie, que esperava encostado em seu carro no estacionamento. Ele acenou pra mim e eu retribuí, vendo-os entrar no carro e se perderem dentre os outros veículos que saíam dali. Mencionei meu corpo a tomar o rumo de casa, quando, de repente, tudo ficou escuro e eu pude sentir um par de mãos cuidadosamente colocadas sobre meus olhos.
- Adivinha quem é. – ele disse inutilmente, tentando disfarçar a voz que eu já conhecia e que seria capaz de reconhecer em qualquer lugar.
- O lobo mal. – brinquei, cerrando os olhos por conta da claridade que voltara a me atingir.
Tom colocou-se em minha frente.
- Só nas horas vagas. – ele disse e nós rimos.
- E está em hora vaga agora?
- Na verdade não, estou conversando com uma pessoa que entretém bastante o meu tempo. – ele respondeu e foi inevitável não sentir as bochechas esquentarem.
- Tom, você é sempre assim tão... Galante?
Ele sorriu pelo o adjetivo.
- É o que dizem pela escola. – ele deu de ombros. – Quer dar uma volta? Almoçar comigo, talvez?
- Está tentando me comprar pelo estômago? – disse falsamente desconfiada, arrancando dele uma gargalhada gostosa, extremamente cativante. - Só essa semana você já me pagou um lanche e um chocolate quente. Não vou ficar te explorando.
- Eu a convidei para ambos, não há exploração.
- Combinamos outro dia, Tom. – lancei-lhe um leve sorriso, como se me desculpando. Ele assentiu tranqüilo.
- Tudo bem. Uma carona e um almoço. Sua lista de dívidas comigo está crescendo. – rimos.
- Pagarei todas elas.
E então o silêncio se fez entre nós. Tom brincou com os próprios dedos numa atitude meio desconfortável, o que contradizia seu aspecto sempre tão seguro de si. Desviei meu olhar dos castanhos que me admiravam, e nós sorrimos desconcertados.
- Bom, então até segunda. – ele disse e eu assenti, voltando a olhá-lo.
- Até.
E depois de um beijo em meu rosto ele se afastou em direção ao volvo preto, deixando-me, mais uma vez, em guerra com os meus pensamentos.

Depois de almoçar tranquei-me no quarto, jogada na cama encarando o teto. Fechei os olhos por um bom tempo, esperando que o sono viesse, mas não veio. Respirei fundo, virando a cabeça em direção à pequena cômoda de cabeceira. Estiquei meu braço até a gaveta e a puxei, tirando de lá o pequeno cartão prateado. Observei-o por algum tempo. é rica. Provavelmente o clube que nós vamos é de gente rica. Gente rica tem dinheiro pra pagar por coisas caras. As coisas do clube devem ser caras. E, tipo assim, eu não tenho dinheiro nem pra comprar um rolo de papel higiênico.
Suspirei. Por orgulho eu podia mexer no pouco que minha mãe deixara pra mim. Entretanto, eu temia que por alguma emergência eu precisasse dele. E se tratando daquela casa, daquela família, emergências podiam ocorrer a qualquer momento. Girei o cartão em meus dedos pensando no que deveria fazer.
- Diana? – a chamei, abrindo a porta da biblioteca lentamente.
Ela estava sentada confortavelmente sobre o sofá, lendo algum livro do qual desviou os olhos ao ouvir minha voz. Sorriu.
- Entre, querida.
- Eu... Queria falar sobre... Bom, sobre isso. – entreguei-lhe o cartão, um tanto desconfortável.
- Ah, sim. – ela olhou-o por alguns instantes. – O que há demais com ele?
Suspirei, sentando-me no sofá ao seu lado.
- Eu... É que... Uma menina que conheci na escola me convidou para ir ao clube com ela amanhã, e... E quando eu vim de Bolton, não tinha mais do que poucas libras na carteira, sendo que metade delas eu gastei com o... Táxi. – contei, ainda sentindo-me pouco a vontade, notando a expressão de leve vergonha que se formou em seu rosto por lembrar-se daquele dia. – Eu não queria mexer no dinheiro que minha mãe deixou, mas eu não sei se... Se devo. – apontei para o pequeno objeto em suas mãos.
Diana não disse nada de imediato, desviando seu olhar de mim para o cartão. Por fim, lançou-me um sorriso.
- Não precisa me pedir permissão, De. Pode usá-lo para qualquer necessidade que tiver. Leve-o ao clube e divirta-se.
Sorri, pegando de volta o cartão.
- Quer dizer então que já tem amigos? – Diana perguntou interessada, fechando o livro e repousando-o sobre o colo.
- Eu acho que sim. – disse, colocando meu cabelo pra trás da orelha. – As pessoas que conheci foram muito legais comigo.
- Pode chamá-los aqui quando quiser. A piscina e o salão de jogos estão a dispor.
Engoli em seco com a idéia, mas a surpresa de ter um salão de jogos na casa me fez arregalar os olhos admirada.
- Há um salão de jogos aqui?
Diana riu, provavelmente da minha cara de idiota.
- Venha, vou te mostrar.
Descemos e atravessamos a sala, seguindo por um corredor que até então me passara despercebido. Entramos pelas portas de correr. O chão do salão era completamente coberto por um tipo de carpete vermelho vinho. As paredes tinham um papel de parede listrado verticalmente em cores pastéis, com quadros e letreiros coloridos e iluminados. Máquinas de games e pinball encostavam-se a elas.
Mais ao centro, uma mesa de sinuca dividia espaço (que não era pouco naquela sala) com uma mesa de ping-pong, um jogo de totó e uma daquelas mesas em que há um tipo de disquete o qual duas pessoas ficam até tontas e com dores musculares horríveis no braço de tanto tentar acertá-lo no “gol” adversário. Ao fundo uma TV na parede ficava bem a frente de dois enormes sofás colocados em posição de L.
Na parede oposta às máquinas de games havia uma mesa de madeira escura, onde três computadores descansavam simetricamente um ao lado do outro. Tinha também uma daquelas máquinas de dança, em que aparecem setinhas na tela e você sente que suas pernas acabarão dando um nó de tanto tentar acompanhá-las. Uma estante estava coberta por jogos de tabuleiro e cartas.
- Uau. – disse um tanto sem fôlego.
- Gostou? – Diana sorria.
- Isso é quase um parque de diversões completo. – eu estava completamente embasbacada.
- Daniel e os amigos adoram. Quando quiser, pode vir.
Assenti, mesmo sabendo que não conseguiria usufruir de metade daquela diversão toda, principalmente quando Daniel estivesse em casa.
- Eu fiquei de queixo caído. – admiti, enrolando a ponta da fronha do travesseiro em meu colo. – Você ia adorar.
- É, ta ai uma coisa que eu gostaria de ver. – disse, certamente tentando imaginar aquele espaço.
- Com certeza aquele é o refúgio do Daniel.
- E você, já tem um?
- Além do meu quarto? Tá brincando. Aquele garoto me persegue até se eu for ao banheiro! – revirei os olhos, ouvindo a risada de .
- Eu seria um pouco mais rebelde no seu lugar.
- E me encher de problemas? Não. Eu só quero que esses quatro anos passem logo pra que eu possa voltar à Bolton. Você ainda vai me abrigar, né?
- Nós teremos uma casa só nossa, . – ele disse e eu sorri, por hora lembrando os planos que costumávamos fazer.
- Com cinco cães, um cágado, dois gatos e três passarinhos?
- Não se esqueça do papagaio.
Rimos.
- Ah, amanhã vou ao clube com a .
- Tirem fotos de biquíni. – podia ver com nitidez o sorriso malicioso nos lábios de .
- Tiraremos claro. Só não vou mostrá-las a você. – debochei.
- Você é perversa.
- Obrigada. Mas e você, o que vai fazer esse fim de semana?
- Eu e a Farah devemos sair pra algum lugar. – suspirou.
- Ainda estão juntos?
- É. Ela diz que estamos namorando, mas... Mas pra mim não é nada sério.
- Hm. – resmunguei, encarando qualquer ponto na parede à minha frente.
- E o seu professor de monitoria? – ele perguntou de má vontade.
Sorri.
- Vai bem. Ele tem sido muito gentil comigo.
- Viado. – bufou.
- Para, . – ri.
Meu quarto já estava levemente escuro quando desligamos. Deixei o celular ainda quente sobre a cama, levantando para acender a luz. Caminhei até o closed e o abri, indo até onde meus biquínis estavam guardados. Olhei um por um. Que tragédia. Peguei o menos pior, ou menos velho, e deixei-o separado sob a poltrona frente a escrivaninha, junto ao short e blusa que eu pretendia vestir na manhã seguinte.

Capítulo onze.




- Bom dia! – me cumprimentou animada às nove AM quando atendi o celular.
- Bom dia, . – sorri.
- Então, já está pronta?
- Quase.
- Nos encontramos no clube daqui a meia hora?
- Certo.
Prestei atenção no endereço que ela explicou. quase falava grego, afinal, eu pouco sabia andar pelas ruas de Londres ainda. Desligamos depois de repassar pelo menos duas vezes o caminho, e, assim que repousei a escova de dentes sobre a pia do banheiro, saí do quarto em busca de Diana.
Encontrei-a na sala conversando com o Sr. Jones, ambos em pé próximos a janela. Por um instante, reparei no casal. Notei o quanto Hugo Jones era jovem, assim como ela. Ele não tinha mais do que quarenta, e ela, duvidei ter mais do que trinta e cinco. Depois de um beijo rápido no esposo, Diana percebeu minha presença e sorriu pra mim.
- Bom dia, querida.
- Bom dia. – disse, um tanto desconcertada. – Você tem um minuto?
Diana se aproximou e Hugo afastou-se para atender o aparelho que tocava em seu bolso.
- Sabe me dizer que ônibus posso pegar para chegar ao British Yacht Club?
- Eu já falei com Hugo, ele vai levar você.
- O qu...?! – meus olhos arregalaram, mas, antes mesmo que eu pudesse contestar, a voz grave do Sr. Jones irrompeu pela sala, a caminho da porta.
- Vamos.
Diana deu-me um leve sorriso confiante, empurrando-me fracamente em direção ao homem que já atravessava o jardim, indo para a garagem. Sentindo meus órgãos remexerem-se por completo dentro de meu corpo, segui-o. Olhei Diana à porta pela última vez antes de entrar no carro, sentando-me no banco do carona.
Meus dedos estavam gelados – não por conta do ar condicionado, e eu podia jurar que Hugo Jones ouvia nitidamente o descompasso do meu coração nervoso. Baixei do cabelo meus óculos escuros e permaneci boa parte do caminho olhando pela janela, até que sua voz cortou o silêncio e me fez tremer dos pés à cabeça.
- Como aconteceu?
Um nó se fez em minha garganta. Desde que deixara Bolton, não havia falado sobre aquele assunto.
- Tiros. – disse apenas.
- Soube que foi na casa de vocês. – meus olhos marejaram, mas engoli o choro. Eu estava prestes a ter um sábado incrível e não deixaria que aquele tipo de conversa estragasse o meu humor.
- Se importa de não falarmos sobre isso? – pedi, a voz rouca me custando a sair pela garganta.
- Tudo bem. – silêncio. – Sua mãe chegou a mudar de vida?
Não contive um riso descrente. Tá brincando...
- Por que você finge que se importa? – encarei-o, sentindo a raiva me ferver o sangue. – Sei que não se interessa por como minha mãe morreu, com o que ela trabalhava, como nós vivíamos em qualquer lugar em que o seu dinheiro nos jogou, ou o que costumávamos comer no almoço aos domingos. – disparei as palavras que o mantiveram calado. Alguns instantes se passaram até que tornei a dizer – Não precisa se fazer de preocupado comigo agora pelas prováveis coisas que Diana tem dito. Não espero isso de você.
- E o que você espera? – ele me olhou, ao parar o carro em frente à entrada do clube.
- Nada. – respondi, saindo do carro sem sequer olhar pra trás.
Passei pela portaria assim que conferiram meu nome na lista de visitantes convidados, e segui para onde disse que me esperaria. Confesso que estava deslumbrada, e que por pouco não me perdi naquele espaço.
- ! – ouvi me chamarem, e finalmente encontrei quem procurava.
- ! – sorri, abraçando-a quando me aproximei.
- O que você ainda está fazendo com essas roupas? Pelo amor de Deus, olha esse sol! Uma vez em nunca faz um dia tão bonito assim em Londres! – ela riu, voltando a se deitar sobre a espreguiçadeira à borda da piscina.
Tirei minha blusa e short, guardando-os dentro da bolsa que deixei no chão.
- Foi difícil chegar aqui? – perguntou enquanto eu passava protetor.
- Até que não. – respondi com simplicidade.
- Sabe quem está jogando bola na quadra? – vi um sorriso se abrir no rosto da garota a minha frente, e apenas uma pessoa a fazia sorrir daquele jeito.
- Pietro?
- Uhum! – ela riu, mal contendo sua empolgação. – Acho que ele não me viu quando passou. Está com os meninos do street.
- Se tivesse visto, com certeza já estariam os dois se pegando na sauna.
- ! – me repreendeu, mas acompanhou minha risada.
O garçom se aproximou, nos trazendo coquetéis de frutas.
- Espero que não se importe, pedi pra gente. – disse, dando um gole pelo canudinho colorido.
- Tudo bem. – eu disse, lembrando-me do cartão que fazia minha bolsa pesar o triplo de seu peso real.
Enquanto tomávamos nossos drinks e o sol nos avermelhava a pele – porque brancas do jeito que éramos, o máximo que conseguiríamos seria um quase câncer de pele -, conversávamos sobre assuntos avulsos. me contava sobre sua antiga escola e os motivos que a fizeram sair de lá.
- As pessoas eram extremamente boçais, inclusive as que, por desventura, andavam comigo. Eu e as meninas éramos cheerleaders na época, vivíamos rodeadas de pessoas fúteis, e eu meio que tinha horror a isso.
Concordei com a cabeça, atenciosa ao que ela dizia.
- Então, eu me cansei de toda aquela vida patética que me cercava. Abandonei os scarpins e minissaias, a maquiagem rotineira. As patricinhas só faltaram morrer quando me viram usar calças um pouco mais largas e tênis. – rimos - “, o que há com você? Está doente?” “A febre afetou a parte do seu cérebro que corresponde à moda?” Elas diziam afetadas, e eu apenas as ignorava. Daí elas começaram a se afastar de mim, me criticaram porque abandonei a equipe, passaram a inventar fofocas ao meu respeito. Foi aí que resolvi mudar de escola.
- Entendo. Por isso então você se veste mais simples? – perguntei, vendo-a assentir.
- Não quero me assemelhar à gente desse nível.
- Admiro sua atitude. Incomum. Pelo menos a maioria das garotas daria tudo pra ter a vida que você tinha. Ser uma cheerleader, meninos lindos à sua volta, roupas caras...
- Você daria tudo por isso? – ela perguntou e eu suspirei.
- Eu daria tudo para voltar à Bolton.
- Você não me falou nada sobre lá.
- É... – suspirei novamente. – Tudo de bom que eu tenho está em Bolton.
- E o que te trouxe a Londres? – perguntou, terminando seu coquetel.
- Longa história. – disse também ao terminar o conteúdo da taça de vidro que segurava entre os dedos. Um garçom aproximou-se e recolheu as taças, oferecendo-nos outros drinks. aceitou.
- Você tinha muitos amigos em Bolton?
- O necessário para me tirar do tédio nos fins de semana, para ir às festas e trocar bilhetinhos na aula. Mas... Tinha um em especial. – sorri. – Tinha não, ainda tenho.
- Hmm, quem é?
- Ele se chama . Nós... – meu celular tocou na bolsa, me interrompendo. – Só um instante. – pedi, enquanto procurava o aparelho. – Você não morre mais! – atendi, sorrindo.
- Sério, por quê? – perguntou e parecia contente.
- Estava falando de você pra .
- Você está com ela?
Coloquei a chamada em viva-voz.
- Diga oi pra .
- Hey, ! – disse, fazendo a garota ao meu lado também sorrir.
- Hey, !
- Ta a fim de pegar um cinema? – brincou e nós rimos, fazendo com que eu colocasse a chama em fone novamente.
- Certo, chega de gracinhas. Estamos no clube, te falei que viríamos.
- Ah, é mesmo. Já tiraram as fotos de biquíni?
- Besta. – eu ria.
- Só liguei mesmo pra saber como você está.
- Estou bem, mas nós conversamos no final do dia, pode ser? Preciso te contar de uma conversa que tive com o... – parei por um momento. Não podia falar o sobrenome “Jones” perto de . – O homem lá.
- Seu pai?
- É.
- Uh, não pode falar sobre ele com a sua amiga do lado?
- Não.
- Tudo bem, a gente se fala depois. Aproveitem o clube.
Desligamos e voltei a guardar o celular na bolsa.
- Ele parece ser bem legal. – comentou.
- Ele é a pessoa mais incrível que já conheci. A mais adorável, companheira, linda...
- Ih, o Fletcher está perdendo pra esse ai. – me interrompeu e nós rimos. – Vamos dar um mergulho, estou morrendo de calor!
Aquela manhã de sábado estava realmente quente. Depois de ficarmos um tempo na piscina, recolhemos nossas coisas e fomos dar uma volta pela área verde do clube, propositalmente passando pelas quadras poliesportivas. De fato, Pietro estava por lá com os amigos, o que fez com que me obrigasse a sentar com ela em um dos bancos próximo à quadra para assisti-lo.
- Aquele não é o Drew, lá da sala? – perguntei, apontando ligeiramente para o garoto de cabelos dourados que comemorava o gol que acabava de marcar.
- É, é sim. Não sabia que ele conhecia os caras do street.
- Acho que ele nos viu.
- Ei, meninas! – Drew aproximou-se das grades da quadra, sorrindo.
- Hey! – o cumprimentamos.
- Estão sozinhas?
- Aparentemente. – respondeu.
- Querem jogar? – ele riu, aprontando com a cabeça para o campo onde os outros garotos também nos olhavam.
Percebi enrijecer.
- Eu... Acho melhor não. – seu olhar encontrou o de Pietro, o que a fez enrubescer.
- Ah, qual é. Vamos! , eu sei que você quer jogar. – Drew insistiu.
Ri.
- Não sei... Não quero humilhar vocês, sabe?
e Drew gargalharam.
- Vai lá, amiga, eu tiro as fotos! – sacou meu celular, sorrindo.
- Certo, vou mostrar meus dons futebolísticos. – brinquei, levantando.
- A vai jogar com a gente! – Drew anunciou aos outros, que me secaram e assobiaram assim que entrei na quadra.
- Não ligue pra eles, são uns tarados punheteiros. – Drew me disse, fazendo-me rir.
Depois de devidamente apresentada aos meninos, dividimos os times e começamos a partida. Sentia-me um tanto receosa de levar uma bolada, mas estava me saindo muito bem em desviar dos chutes mais fortes. Quando finalmente dominei a bola, driblei um, driblei dois, toquei pra Drew que driblou mais um e tocou a bola de volta pra mim. Ajeitei e chutei.
- Gol! – ouvi gritar e bater palmas, enquanto eu ria e sentia Drew praticamente pular sobre mim em comemoração.
- Onde você aprendeu a jogar? – ele me olhava impressionado ao mesmo tempo em que sorria.
- Eu sou menina moleca, rapaz. – disse, rindo. Rimos ainda mais.
A partida continuou. Os caras do street, vez ou outra, brincavam comigo passando a bola por entre minhas pernas, ou contornando-a por cima de mim em movimentos que eu jamais conseguiria repetir. não me ensinara como pedalar ou dar um “chapéu” no adversário.
Em dado momento do jogo, quando eu já quase não conseguia mais chutar de tanto que ria e levava passes, consegui pegar a bola com as mãos e agarrá-la junto ao corpo. Saí correndo em direção ao gol com todos os meninos atrás de mim, achando graça, tentando me pegar. Joguei a bola no gol e saí comemorando, ouvindo a gargalhada divertida de .
- Ai, preciso descansar. – comentei, jogando-me – toda suada - na grama aos pés de , quando o jogo acabou.
- Você até que não joga tão mal, . – disse, entregando-me o celular para que eu visse as fotos.
- Segunda a reunião do trabalho está de pé? – Drew perguntou, saindo da quadra com os meninos.
- Sim, senhor. – respondeu.
- Então, até lá. Foi ótimo encontrar vocês, meninas!
Despedimos-nos e acenamos, vendo os garotos se afastarem e irem embora. suspirou.
- Ganhou seu fim de semana, hm?
- Sim, e perdi uma oportunidade e tanto de me aproximar dele. – ela colocou as mãos no rosto.
- Não fica assim, vai. Quando você nem perceber, será a best-friend-forever-love-always dele.
franziu o cenho e nós rimos.
- Deixa de falar besteiras e levanta. Vamos tomar uma ducha e almoçar.
Voltamos à área da piscina e, depois que desligamos os enormes e deliciosos chuveiros, nos secamos e seguimos para o restaurante climatizado do clube. Meus ombros vermelhos – ou talvez meu corpo inteiro – agradeceram pelo friozinho do ar condicionado que pairava sobre o lugar e, juro, quase tive um orgasmo por isso.


Capítulo doze.




Saí do banho com a toalha enrolada na cabeça, vestida apenas com um short de tecido leve e um sutiã sem alças. Meus ombros latejavam de ardor e imploravam por um creme ou qualquer coisa do tipo. Minhas bochechas também estavam rosadas e eu não duvidaria se dali a cinqüenta anos eu tivesse algum problema de pele, seria provavelmente rugas ou um câncer.
Sentei na cama, de frente pro espelho, e sorri relembrando meu dia. Foi tão divertido passar um tempo com , apenas conversando e ignorando minhas angústias, que eu mal podia esperar para repetir uma saída daquela no próximo final de semana. Passava o hidratante distraída, devaneando sobre a manhã no clube, que demorei a escutar as batidas na porta.
- Só um instante! – pedi, vestindo a blusa de malha fina que havia separado e tirando a toalha da cabeça. – Entra.
Diana sorriu, fechando a porta atrás de si.
- Pelo seu bronzeado, imagino que o dia tenha sido bom. – ela comentou, se aproximando.
- Foi maravilhoso. – assenti, retribuindo o sorriso.
- Aquele é mesmo um ótimo lugar. Somos sócios, podemos colocar seu nome como...
- Não, não precisa. – a interrompi. – Mas de qualquer forma, obrigada.
- Amanhã nós sairemos para almoçar. Gostaria que fosse conosco.
Suspirei. Eu precisava falar com ela.
- Diana eu... Eu queria te pedir que não forçasse muito as coisas. Agradeço toda a sua atenção comigo, sei que está se esforçando pra que eu me sinta da melhor forma possível aqui e isso, de verdade, não tem preço. Mas... Eu ainda quero manter meus pés no chão. Sei onde estou, sei quem eu sou e por que vim pra essa casa. Não queira que eu me comporte como parte da sua família em menos de duas semanas, por favor.
Ficamos em silêncio quando terminei.
- Eu entendo. – ela disse com um ar estranho, quase triste. – Me desculpe se meu comportamento tem apressado as coisas pra você.
- O Sr. Jones nunca será um pai pra mim. Ele pode eventualmente me levar à escola e pagar minhas contas, mas... não somos hipócritas a ponto de fingir que ele se arrepende muito pelo que fez e que está feliz por me conhecer. Ele não está.
- Você está certa. Me desculpe. – ela pediu sincera. – Você é uma garota muito sensata, . Admiro isso. – Diana me sorriu de leve.
Baixei os olhos.
- Lá em Bolton... Nós não tínhamos uma vida de luxo, sabe? – voltei a encarar a mulher que me escutava com atenção. – Morávamos numa casa pequena, mas com tudo o que precisávamos. Dois quartos, sala e cozinha, basicamente falando. Era ajeitadinha. – sorri pra mim mesma. – Desde que me entendo por gente, morava naquela casa. Aprendi a andar, falar, e gravei a tabuada de sete por entre aquelas paredes.
Meus olhos marejaram, e eu não queria prender o choro.
- Com onze anos, tive pneumonia. Fiquei quatro dias no hospital escarrando sangue e com febre alta. O plano de saúde não cobria, o que obrigou minha mãe a tirar dinheiro da poupança para pagar a conta hospitalar. – uma lágrima escorreu. – Quando fiz treze anos, ela me disse sentida que não poderia fazer sequer um bolinho, mas que tinha um presente que esperava que eu levasse comigo pro resto da vida. – tirei o escapulário de dentro da blusa, mostrando-o a Diana.
Ela tocou-o rapidamente, como se com medo de estragá-lo.
- Mais crescidinha, comecei a trabalhar para ajudar nas contas de casa, ou pelo menos pra ter meu dinheiro próprio e não dar mais despesas a minha mãe. Ela trabalhava o dia todo, muitas vezes à noite. Tem horas em que eu... Desejaria que ela estivesse no trabalho naquela noite. – funguei. Minha voz embargada quase me impedia de falar. – O que eu quero dizer é que a vida nunca foi fácil pra gente. – olhei nos olhos de Diana. – Eu sempre tive noção de tudo o que me rodeava, e uma dessas coisas é que nós, por mais difícil que fosse, nunca precisaríamos de Hugo Jones. Ele também nunca vai precisar de mim, Diana.
Passei as mãos pelo rosto, secando as lágrimas. Não sei dizer por quanto tempo ficamos em silêncio, apenas nossas respirações preenchendo o quarto. Diana então segurou minha mão, apertando-a de leve, e sorriu.
- É uma pena. Hugo não sabe a filha maravilhosa que tem. – ela se levantou da cama, fechando a porta ao sair.
Mordi meu lábio, sentindo novas lágrimas escorrerem por meu rosto.
“Mãe, quem é o meu pai?”
“Ele...”
“Por que está chorando, mamãe?”
“Porque eu lamento que o seu pai não te conheça, filha.”

Solucei. As palavras de minha mãe ecoavam em minha cabeça. Eu era tão pequena... E com o tempo, saber quem ele era já não fazia a mínima diferença pra mim.
Peguei o celular, ainda chorando, e disquei o número de . Desligado. Tentei mais uma vez. Nada. Deixei o aparelho de lado e me deitei, encarando a noite pela janela. O céu estava salpicado de estrelas, a brisa fria embalava as cortinas. Não demorou para que o sono viesse, e fizesse com que minhas pálpebras se fechassem, cessando meu choro.

Acordei de madrugada com a claridade do quarto incomodando. Estava tão cansada que havia me esquecido de apagar a luz, e até mudar de roupa para dormir. Levantei preguiçosa, indo até o closed para colocar o pijama. Depois, fui até o banheiro escovar os dentes, mas algo me interrompeu a caminho do interruptor. Gemidos.
Respirei fundo. Não queria. Não queria pegar Laline saindo do quarto de Daniel outra vez. Apaguei a luz e me abaixei diante a fechadura da porta, só para tentar me enganar de que eu tinha ouvido coisas. A vista era limitada, mas como o outro quarto era bem em frente ao meu, vi com precisão quando a empregada mais jovem saiu depressa, apenas de roupas íntimas, de volta aos seus aposentos. Os pais dele não desconfiam? Eu tinha vontade de vomitar. Daniel era nojento. Laline era uma puta.
Voltei pra cama, cobrindo-me até a cabeça. Pregar os olhos de novo seria difícil.
O sol me despertou por volta das oito e vinte AM. Respirei fundo. A preguiça me dominava. Forcei-me a ir até o banheiro e tomar uma ducha, pentear o cabelo, fazer essas coisas que pessoas civilizadas têm como hábito pela manhã. Depois de vestida com a mesma roupa da noite anterior, desci até a cozinha. A casa estava em completo silêncio, o que me dizia que todos ainda dormiam.
Tomei a liberdade de misturar um pouco de leite e achocolatado, para acompanhar as torradas e geléia que descansavam sobre a mesa.
- De pé a essa hora, menina ? – a voz de Maria ecoou pelo cômodo.
- Bom dia. – sorri para a moça que caminhava vagarosa em minha direção, ainda vestida em seu camisolão branco.
- Ouvi uns ruídos, por isso levantei. Quer que eu prepare alguma coisa? – ela ofereceu, também sorrindo.
- Não, imagina! Já estou terminando.
- Tem certeza? Você ainda não provou as minhas panquecas.
- Amanhã, antes da escola. – eu disse, e ela sorriu, concordando.
- Está bem. Vou trocar de roupa e preparar a refeição dos Jones. Com licença. – Maria pediu, dando meia volta.
Depois de limpar as mãos com um guardanapo, levei a louça suja até a pia, deixando-a lavada sobre o escorredor de pratos. Voltei ao quarto e suspirei, olhando em volta. Meus olhos pousaram em algo que, desde que eu chegara, estava intacto.
Peguei meu violão e sentei na cama, passando a mão vagarosamente por ele. Eu e costumávamos tocar juntos. Dedilhei algumas notas, assustando-me com tal desafinação. Credo. Concentrei-me, então, em deixá-lo impecável. Ouvido absoluto era um dom. Quando finalmente terminei, comecei a tocar a introdução da primeira música que me veio à cabeça, mas fui interrompida com o estrondo da porta sendo escancarada.
- Qual é a sua doença mental, garota? – Daniel quase berrou. Ele usava uma samba-canção azul marinho e uma camisa cinza gola V. Os cachos de seu cabelo estavam bagunçados, e seus olhos azuis, extremamente vermelhos.
- Bom dia pra você também. – ironizei.
- Se não quiser que eu transforme isso em um cavaquinho, de tanto que vou chutá-lo, é melhor parar com o barulho. – ameaçou, apontando pro meu violão.
Ergui uma sobrancelha.
- Atreva-se. – disse apenas.
Daniel só me encarou, bateu a porta e voltou ao seu quarto. Ai dele que chegue perto do Joe.

- Tem certeza de que não que ir almoçar com a gente? – Diana perguntou, colocando só a cabeça pra dentro do cômodo.
Era pouco mais de doze PM. Desviei o olhar do livro que Tom me emprestara e a olhei.
- Tenho sim. – assenti, com um leve sorriso.
Diana, então, acenou e se despediu, voltando a me deixar sozinha. Levantei e peguei o livro de minha avó, onde comecei a escrever os versos que havia marcado há alguns dias. Assim que repousei a caneta sobre o papel, meu celular vibrou.
- Ei. – atendi.
- Oi, pequena. Você me ligou ontem.
- E você não me atendeu.
- Desculpe. Sei que combinamos de nos falarmos no final do dia, mas... – não completou a frase.
- Mas...?
- Eu estava com a Farah.
- Hm. – resmunguei. – Tudo bem, não queria interromper a foda de vocês.
- , não fala assim... – ele pediu, sentido.
Bufei, esticando meu corpo sobre o colchão. Abracei um travesseiro.
- Deixa pra lá. – sussurrei. Não ia dar uma crise de ciúmes.
- Me diz, como estão as coisas? – suspirou.
- Eu e o Sr. Jones conversamos ontem. Ele me levou de carro até o clube, e perguntou como minha mãe morreu.
- E você contou?
- Bem por alto. Duvido que ele estivesse realmente preocupado.
- E aí?
- E aí que eu disse a ele que não precisava fingir se importar comigo só porque Diana quer isso. Que eu não espero nada dele. Então, ele calou a boca e fim.
- As coisas devem estar complicadas aí.
- É... Ontem eu também conversei com Diana. Pedi a ela que não ficasse tentando me aproximar do Sr. Jones, ou que quisesse que eu me comportasse como membro da família dela, coisa que eu não sou. E depois eu chorei.
- Por quê?
Fiquei em silêncio alguns segundos.
- Antes de sair do quarto, Diana disse algo que minha mãe também dizia. Que sentia muito pelo Sr. Jones não me conhecer melhor.
- Cara, qual é a dessa mulher? Ela não me desce, . Sério mesmo.
- Diana é uma boa pessoa, .
- Se ela é boa, eu sou o capeta.
- Disso eu já sei. Seja outra coisa. – brinquei.
- Idiota. – ele riu. – E ontem no clube, como foi?
- Foi ótimo! Me ensina a dar um chapéu?
- Você vai numa loja, compra um e entrega a alguém! E embala bonitinho, as pessoas notam as embalagens dos present...
- Não, imbecil. No futebol! – o interrompi.
- Ah! Ensino. – gargalhou. – Mas por que isso agora?
- É que eu joguei futebol ontem com os meninos da escola, que estavam no clube também.
- Você jogou futebol de biquíni no meio de um monte de macho?
- Eu estava de short, ok?
- Você tem noção que à noite todos eles bateram uma pensando nos seus peitos quicando, né?
- ! – eu o repreendi, mas não conseguia cessar minha risada.
Quando desligamos, minha barriga já estava revirando de fome. Tomei o rumo da cozinha, onde encontrei Maria lendo uma revista de receitas.
- Essa me parece deliciosa. – apontei, chegando por trás dela.
- Será o almoço de amanhã então. – ela me sorriu. – Já quer comer?
Assenti, vendo a morena levantar-se para me servir. Sentei-me e tamborilei os dedos em minha perna, incerta sobre se deveria ou não dar vazão à coceirinha em minha língua.
- Ahm... Onde está Laline? – senti a bile me subir à garganta, mas obriguei-me a engoli-la de volta.
- Foi visitar a família.
- O que você sabe sobre ela, Maria? – tentei parecer indiferente, temendo que ela percebesse meu real interesse naquela conversa.
- Laline tem vinte e três anos, e vem de uma família humilde. Não teve oportunidade de ir para uma faculdade, e trabalha para sustentar o filho.
- Ela tem um filho?! – meus olhos arregalaram. – Digo... Nossa, tão jovem e já é mãe? – disfarcei.
- Pois é. O menino é uma gracinha, tem dois anos. – Maria disse, colocando a travessa de arroz sobre a mesa.
- Ela já trouxe o filho aqui?
- Ela o traz em alguns fins de semana para tomar banho de piscina. O Sr. e Sra. Jones permitem, e ele adora o Danny.
- Ah. E... O pai, quem é? – perguntei, colocando um pedaço de carne na boca.
- Um comerciante do bairro onde os pais dela moram, parece. – Maria trouxe a jarra de suco.
- Ah. Hm... O filé está uma delícia! Tempero novo? – obriguei-me a mudar de assunto.
Então, Laline tinha vinte e três anos, vinha de família humilde e trabalhava para sustentar o filho.
Quando terminei, depois de muito conversar com Maria, pedi que ela me levasse no segundo andar uma vasilha enorme de pipocas e refrigerante.
- Mas você acabou de almoçar!
- Minha barriga tem um compartimento especial para porcarias. – rimos.
Fui até a sala e escolhi alguns filmes. Passaria o resto do dia inteiro trancada no quarto, sem vontade de fazer mais nada além de ver filmes, comer, dormir e respirar.


Capítulo treze



me apertou o pulso tão forte, que eu podia jurar que meu sangue parara de circular.
- O que ele está fazendo aqui? – ela sussurrou esganiçada, escondendo-se por entre as prateleiras de livros.
- Ai! – puxei meu braço de volta – Eu sei tanto quanto você. – respondi, também sussurrando. – Vai ver o Drew que chamou ele.
- Alguém vai morrer. Ah, vai sim. – reclamava.
- Você de felicidade, ou o Drew de pancadas? – brinquei e me deu um tapinha leve no braço, fazendo-me rir.
- Vocês vão ficar conversando, ou já podemos começar a reunião? – Dougie aproximou-se de nós.
Eu e nos entreolhamos e então seguimos para a mesa onde Tom, Audrey, Drew e Pietro nos esperavam. Quando sentamos, estava dura feito pedra de tão sem jeito.
Tom começou a falar sobre o processo de inscrição, e deu algumas idéias sobre formas de apresentações.
- Dependendo do tema, sei lá, podia ser uma apresentação áudio-visual. Mas nada muito monótono. Se for um tema científico, nós podemos planejar alguma prática experimental para que o próprio público faça. – sugeri.
- É difícil pensar em apresentações sem tema, gente. Devemos esperar pra ver o que acontece. Enquanto isso, adiantamos a inscrição e nos reunimos de novo quando já soubermos sobre o que vamos pesquisar. – Audrey disse.
- É, eu concordo. Então acho que por hoje é só. Já assinamos a lista, falamos sobre o trabalho... Ainda dá tempo de tomar um suco na cantina. – disse Tom com um sorriso.
Ia saindo com da biblioteca, quando Tom segurou-me delicadamente pela mão.
- Acha que vai a algum lugar sem me contar sobre o seu fim de semana?
- Te vejo na aula. – se despediu de nós com um sorriso estilo “vai lá, danadinha”.
Sentamo-nos novamente na mesa.
- Ah, foi bom. Eu e a fomos ao clube. Os meninos do street estavam lá, joguei bola com eles.
- Você jogando futebol? Tinha que ter visto isso. – Tom riu.
- Eu jogo muito bem, ok? Depois te mostro as fotos. – ri - E você, o que fez no sábado e domingo?
- Sábado eu passei o dia com os caras. Teve uma festa na casa de uma menina e tal. E ontem não fiz nada demais. A ressaca não deixou.
Conversamos e rimos até o sinal anunciar o fim do intervalo. Tom me acompanhou ao segundo andar, de onde se despediu de mim com um beijo no rosto.
- DREW! – ouvi gritar de dentro da sala.
O garoto a olhou assustado. Aproximei-me.
- Que idéia foi essa de chamar o Pietro pro grupo? – ela o encarava com as mãos na cintura, dramatizando extrema irritação. Só dramatizando.
- Ele que pediu! – Drew se defendeu, desarmando .
- Ele... Ele o que? – ela gaguejou. Eu ria.
- Sábado ele ouviu quando perguntei sobre a reunião, e pediu pra entrar no grupo. Ai eu disse que sim. Não podia?
- Relaxa, Drew, ta tudo bem. O Tom ia falar com mais gente, mas parece que as pessoas que ele convidou já tinham grupo. – eu disse. estava sem palavras.
- Ele pediu? – ela murmurou – Ele pediu.
- O que ela tem? – Drew perguntou a mim, apontando pra menina ao meu lado que falava sozinha.
Abanei o ar e segurei pelos ombros, levando-a até sua carteira.
- Ele... ELE PEDIU, AMIGA! – acordou de seu transe assim que a coloquei sentada, levantando-se de um salto. – Cara, eu não acredito... Mas por que ele pediu?
- Eu tenho duas teorias. – sentei, fazendo o mesmo.
- Quais?
- Ou o Pietro estava sem grupo e pediu pra fazer o trabalho com o Drew porque o conhece, ou...
- Ou...?
- Ou o Pietro estava sem grupo e pediu pra fazer o trabalho com o Drew porque você está no mesmo grupo que ele. – vi o rosto de se iluminar.
- Será?
- Não sei, amiga. Mas, cara, vocês vão passar um bom tempo juntos a partir de agora! Aproveita!
colocou as mãos no rosto e ficou me encarando por uns instantes, antes de cair numa risada alta, abobalhada e apaixonada.

- As meninas terão treino de patinação agora à tarde. Nós podíamos ficar para assistir. – comentou, enquanto guardávamos nossos materiais ao final das aulas. – A menos que você tenha algum compromisso.
- Não, não. Vai ser legal assistir. – Sorri.
Encaminhávamo-nos para o refeitório, quando alguém chegou por trás, pelo meio de nós duas, nos abraçando pelos ombros.
- Para onde duas gatinhas sem companhia estão indo? – eu e sorrimos.
- Para o refeitório, Tom. E você? – perguntou.
- Vou ficar pra ver o treino dos caras, e depois vou procurar pelo professor Garcez, saber se ele tem uma noção de quando os temas do trabalho serão sorteados.
- Almoça com a gente. – convidei.
- Eu adoraria, mas os malucos já estão me esperando. A gente está querendo passar um som à noite, também.
- O Dougie deve ir, então.
- A idéia foi do seu próprio primo. Vai ser na garagem dele. Se vocês quiserem passar lá depois... – Tom sugeriu com um sorriso fofo.
- Vamos ver. – sorriu.
Tom despediu-se com um beijo no rosto de cada uma quando chegamos à porta do refeitório e voltou a subir as escadas para encontrar os amigos onde quer que fosse.
- Confesso que eu ainda não entendi muito bem essa amizade ai. – comentei, enquanto sentávamos em uma das mesas mais ao canto. O refeitório estava cheio, como de costume.
- Minha e do Tom?
- É. Tem certeza que nunca aconteceu nada entre vocês?
riu, levando um tanto de macarronada à boca, negando com a cabeça.
- Nunca. Tom é um dos melhores amigos do Dougie, e antes mesmo de vir estudar aqui eu já o conhecia. Os meninos vivem lá na casa da minha tia.
- Ah sim... – assenti, mastigando sem pressa um pedaço da carne em meu prato.
- Você não terminou de me contar sobre o seu amigo naquele dia do clube. – sorriu de canto, me fazendo soltar uma leve risada. – Tem certeza que nunca aconteceu nada entre vocês?
- Não. – ri – sempre foi especial demais pra ser apenas um amigo.
- Eu sabia! – riu, e eu fui obrigada a repousar o garfo no prato. Qualquer tentativa de comer alguma coisa, rindo daquele jeito, seria um engasgo na certa. – Me conta!
Durante o resto do almoço, resumi – evitando, mais ou menos, os detalhes sórdidos – a minha relação com .
- Em suma, é algo do tipo... fraterno-sexual, entende? – ri. Esse termo existe?
- Entendi sim, apesar de isso soar como um incesto.
- É quase um. – rimos.
- Mas pelo visto o Tom vai ter que investir mais um pouco pra concorrer de igual pra igual com o .
- Para, ! – dei um tapinha em seu braço, enquanto andávamos em direção ao ginásio.
- Lindas! – Audrey sorriu quando nos avistou atravessando os portões. Ela e todas as outras já estavam patinando e dando algumas piruetas, se aquecendo.
- Hey! – dissemos juntas.
- Viemos assistir o ensaio de vocês. – comentou quando Audrey encostou-se à grade da pista de gelo.
- Ótimo! Daqui a algumas semanas é o jogo de hóquei dos meninos, e o diretor pediu que nós fizéssemos uma apresentação de abertura. A coreografia ficou tão boa que provavelmente poucas adaptações serão feitas para o campeonato. – ela contou empolgada.
Antes que eu ou pudesse fazer qualquer comentário, uma das quatorze meninas do grupo chamou Audrey, avisando que iriam começar. Ela nos soltou beijos e foi se juntar às outras, que falavam animadas algo sobre a coreografia.
Todas se posicionaram em seus devidos lugares, e uma outra garota que estava nas arquibancadas com a gente deu o play num aparelho de som ao seu lado. Uma música alta e animada começou a tocar, ao mesmo em que as meninas começavam a dançar e deslizar pelo gelo. Era simplesmente incrível! Todas em perfeita sincronia moviam-se com elegância e equilíbrio, sorrindo, como se estivessem descalças em solo firme.
- Eu levaria, no mínimo, uns seis meses pra me equilibrar nesses patins desse jeito. – disse e eu ri junto a ela, que balançava levemente o corpo no ritmo da música.
Quando as meninas fizeram a pose final, eu e mais algumas outras pessoas que chegaram ao longo do ensaio bateram palmas e soltaram gritinhos. As meninas agradeceram, se reunindo para discutir alguns detalhes. Logo se posicionaram novamente, prontas para passarem a coreografia impecável mais uma vez.
- Vocês vão arrasar! – disse animada à Audrey, que se encostou à grade outra vez ao final do treino.
- Jura? Gostaram?
- Demais! Aquela hora em que você e aquela loira albina que eu me esqueci o nome fazem um movimento assim – tentou imitar o gesto, sem sucesso, nos fazendo rir – é muito original! Não vai ter pra ninguém no campeonato!
- Ai, tomara! – Audrey cruzou os dedos. – Mas então, não querem patinar um pouco?
- Você sabe que eu sou extremamente habilidosa com esses patins, não sabe? – sorriu irônica e Audrey riu.
- Vamos, ! Tenho certeza que a está doida pra patinar também!
- Você já não quis jogar futebol lá no clube. Vai negar patinar comigo também? – Audrey franziu o cenho sobre o futebol, mas riu quando revirou os olhos ao ver o olhar pidão que eu fazia.
- Ta, ta bom! Vamos. – Bati palminhas animadas enquanto puxava pela mão até a entrada da pista, para colocarmos os patins.

- Cacete! – bradou. Já era o sétimo tombo que ela levava em menos de vinte minutos de patinação. Eu e Audrey ríamos descontroladamente. – Vocês vão ver, vadias! – levantou e começou a “correr” atrás de nós, também não controlando a risada.
- Você patina bem, ! – Audrey comentou quando finalmente desistiu de nos perseguir, já que quase levara outro escorregão.
- Nada. Eu só patinei algumas vezes, em época de natal, quando o prefeito lá de Bolton mandava armar uma pista de patinação na praça. Estou acostumada a fugir de pessoas me perseguindo no gelo. – rimos.
- Você consegue fazer isso? – Audrey fez um pequeno passo de dança, que não pareceu muito difícil. Tentei imitar, mas a minha falta de técnica me impediu de reproduzir o movimento com exatidão. – Ergue mais o corpo, e dobra um pouco mais os joelhos. Isso. Agora tenta de novo.
Ela repetiu o passo, e com a nova postura senti mais facilidade para imitá-la. Ela sorriu.
- Você leva jeito pra patinar no gelo, .
- Ah, para vai. Foi um só passinho. – sorri sem jeito.
- É sério. Você podia vir assistir mais vezes os nossos ensaios, aprender algumas coreografias. O grupo está mesmo precisando de uma cara nova.
- Ei, por que eu nunca recebi esse convite?! – falou se aproximando de nós duas, com as mãos na cintura, encenando uma espécie de indignação.
- Você nem amarra os patins direito, . – Audrey falou e nós olhamos para os pés de , cujos cadarços dos patins estavam completamente tortos e embolados. O riso foi instantâneo.

- E ai, quer dar um pulo na casa da minha tia? – perguntou enquanto andávamos rumo à saída do colégio. Já se aproximava das cinco e quarenta da tarde.
- Não vai dar, amiga. Está meio tarde, e não avisei a ninguém que demoraria a chegar em casa. Devem... estar preocupados. – suspirei com a pequena mentira. Eu gostaria de ir, mas depois ficaria tarde para voltar sozinha. Tom provavelmente insistiria em me dar uma carona, e seria muita grosseria da minha parte recusar (de novo).
- Tudo bem. Acho que vou dar uma passada lá assim mesmo. A única coisa ruim é que, vez ou outra, algumas daquelas cheerleaders nojentas também vão e ficam, literalmente, babando o ovo deles. – falava enquanto jogava os livros no banco de trás de seu conversível, e eu ria com uma careta.
- Nos vemos amanhã. – abraçamo-nos em despedida e fiquei esperando sair com o carro pelo estacionamento do colégio. Só então, quando já havia sumido de vista, dei meia volta e segui em direção à mansão dos Jones.
Abri e fechei a porta com cuidado. Ouvi pequenos ruídos vindos da cozinha e imaginei ser Maria, aprontando o jantar. Fui até lá, confirmando minha suposição, e sorri quando a morena me viu.
- Demorou, menina ! – Maria disse, também sorrindo, temperando algum prato que do ângulo em que eu estava não conseguia identificar.
- Eu preciso lembrar mais vezes de te avisar sobre as minhas demoras.
- Está com fome?
Minha barriga respondeu por si só. Toda aquela patinação à tarde, e mais a caminhada até em casa fizeram meu estômago dar algum sinal de vida.
- Talvez. – sorrimos.
- A janta não está pronta ainda, mas fiz gelatina mais cedo.
Meus olhos brilharam. Duzentos e dois mil anos que não como gelatina! Não foi preciso mais do que isso para que Maria me entregasse um dos potinhos de vidro e uma colher. Dei um beijo em sua bochecha, agradecendo, e avisei que comeria lá em cima, já que ia tomar um banho e trocar de roupa para o jantar.
Estava tão distraída começando a comer minha gelatina, que sequer ouvi os passos que se aproximaram de mim, e o corpo que propositalmente se esbarrou no meu, quase deixando cair no chão o meu manjar dos deuses. Daniel nem se abalou quando soltei “inferno” baixinho, e continuou seu caminho até a porta. Não pude deixar de reparar que, apesar de bem casual, ele estava arrumado e digitava alguma coisa em seu celular.
Revirei os olhos assim que ele saiu, perguntando-me mentalmente qual era o meu problema, e qual era o problema dele também, voltando a subir os degraus. Saquei meu celular do bolso quando entrei no quarto. “Eles comem coisas normais, ! Gelatina! Incrível!” Enviei ainda rindo, relaxando meu corpo na cama, e suspirei. Mamãe e eu quase sempre fazíamos gelatina aos domingos.


Capítulo quatorze



A semana parecia estar se arrastando. Ainda era quinta-feira, e eu esperava Tom na biblioteca, que estava vinte minutos atrasado para a nossa monitoria. Lia calmamente o livro que ele me emprestara, que, por sinal, já estava praticamente no fim, quando o garoto quase sem fôlego sentou-se à minha frente, cansado.
- Nossa, o que aconteceu? – perguntei fechando o livro.
- Desculpa, . Eu tive que resolver uns assuntos em casa, e quando cheguei aqui esbarrei com o professor Garcez. Ficamos conversando um tempo e então eu tive que vir correndo. – Tom falava apressado.
- Tudo bem, sem problemas. – dei um pequeno sorriso, que ele retribuiu.
- Ele disse que os temas já começaram a ser distribuídos.
- O nosso grupo já tem algum? – indaguei enquanto Tom retirava seu caderno e estojo de dentro da mochila, junto ao livro que usaríamos.
- Bom, segundo Garcez os temas devem ser revelados aos grupos em tempo uniforme, para que um não leve vantagem sobre o outro. Mas... – ele sorriu sapeca, o que me fez soltar uma leve risada.
- Mas você é Thomas Fletcher, o adorado universal dessa escola. – ele riu e fingiu uma feição modesta, meio que encolhendo os ombros.
- Exato. – rimos – “Os revolucionários avanços tecnológicos do século XX”.
Ergui a sobrancelha.
- Isso parece complicado.
- Fácil não é, e nem vai ser, eu concordo. Por isso o nosso grupo devia aproveitar esses dias que o Garcez nos deu para começar a pesquisar.
Afirmei com a cabeça e ficamos nos encarando por alguns segundos, até nossos olhares desviarem para as enormes estantes recheadas de livros e enciclopédias. Ao que nossos olhares se cruzaram de novo, sorrimos e nos levantamos, seguindo de imediato para a sessão de história.
Durante muito mais do que duas horas, eu e Tom reviramos não sei quantas prateleiras atrás de informações que pudessem ser úteis ao nosso trabalho. Aproveitamos quando a bibliotecária saiu por demorados minutos e tiramos cópias de livros antigos, o que não era permitido, e inventamos qualquer desculpa quando a mesma questionou tal alvoroço.
Nossas letras pareciam garranchos por conta da velocidade em que transcrevíamos os parágrafos daquelas páginas.
- Meu pulso já está reclamando. – comentei enquanto massageava o pulso e a mão direita, repousando o lápis em cima da mesa.
- Acho que a gente podia dar uma pausa por hoje. – Tom relaxou na cadeira e olhou no relógio. – E já está ficando tarde também.
De repente, lembrei-me do horário. Nem me dei conta do passar das horas enquanto nós estávamos com a cara enfurnada nos livros. Olhei pela janela e o sol já estava quase posto por completo, e como as minhas suspeitas, já se aproximava das sete. Levantei de um salto, fazendo Tom me olhar com a testa levemente franzida.
- O que houve?
- Eu... É que... – droga, preciso inventar alguma coisa! – É que eu preciso ir à farmácia, e a que tem lá perto de casa fecha daqui a pouco. – eu dizia afobada enquanto jogava tudo de qualquer jeito na bolsa, sem olhar Tom diretamente nos olhos
- Calma, eu te levo lá. – ele disse, também se levantando.
- Não! Digo... Não precisa, é sério. Se eu correr ainda chego a tempo.
- Então... Tudo bem.
Não soube decifrar o que o olhar de Tom queria me dizer. Talvez fosse um olhar frustrado, por eu (mais uma vez) rejeitar sua carona, mas havia um fio de... dúvida correndo sua íris de chocolate.
Parei com a minha agonia um instante, quando o loiro desviou finalmente os olhos dos meus e começou a recolher suas coisas. Suspirei e me aproximei dele, tocando seu braço. Ele não me olhou.
- Desculpa. Mas... Pensa pelo lado bom, agora são duas caronas que eu fico te devendo.
Sorri com o pequeno sorriso que se formou em seus lábios, e então aproximei meu rosto do dele para um beijinho de despedida. Tom pareceu ter a mesma ideia, e virou o rosto pro meu antes que eu pudesse desviar. Nossas bocas se encontraram de canto, e por dois segundos pareceram não querer desgrudar. Como o coração dispara, a respiração descompassa e a pele arrepia em dois segundos?
Afastei-me meio devagar, meio assustada, meio surpresa, meio tímida, meio...
- Desculpa, eu... – Tom disse a fim de acalmar a confusão de sentimentos estampada na minha cara. Ele sorria, e no fundo não estava se desculpando por nada.
Não foi o pedido de desculpas, mas sim aquele sorriso que me fez sorrir sem jeito e sentir as bochechas corarem.
- Que isso. Me desculpa também, eu que...
- Não, imagina. – ele me interrompeu e nós rimos baixo, levemente envergonhados com o clima que se instalara ali.
Peguei minha bolsa, transpassei pelo corpo e peguei os livros. Sorri mais uma vez para Tom, que passava a mão no cabelo e me olhava.
- Então... até amanhã. – eu disse, ainda sentindo minhas bochechas mais aquecidas do que o normal.
- Até, . – Thomas suspirou, sem deixar se desmanchar sua covinha.
Acenei e virei em direção à porta, sentindo o olhar de Tom me acompanhar até onde foi possível.

Ao adentrar a casa, pude ouvir o som dos talheres e o cheiro bom da comida vindo da sala de jantar. Tinha caminhado tão devagar, distraída, que só me dei conta do quão tarde estava quando cruzei aquelas enormes portas. Posso piscar os olhos e me encontrar trancada no quarto? Infelizmente não. Suspirei e caminhei em direção à escada, ouvindo a voz de Diana assim que minha silhueta tornou-se visível quando passei em frente à sala de jantar.
- !
Parei. Hugo Jones estava sentado à cabeceira da mesa, e nem se deu ao trabalho de erguer os olhos do prato com a minha presença. Daniel sentava-se ao lado direito do pai, e ao contrário do mesmo, me encarava. Seu olhar afiado dizia claramente “não ouse se sentar”. Diana, por sua vez ao lado esquerdo do marido, sorriu e apontou para um prato vazio à direita de Daniel.
- Não gostaria jantar com a gente?
Voltei a encarar Daniel, que percebi segurar o garfo com mais força do que, supus, normalmente. Olhei para Diana e forcei um sorriso.
- Desculpe, mas estou sem fome. Comi uma bobagem na rua.
Diana fez que sim com a cabeça, sendo essa a minha deixa para pedir licença e me retirar. Se minha barriga tivesse roncado, como roncou assim que pisei o primeiro degrau, me desmentido, juro que acataria a sugestão dada por Daniel certa vez, e me jogaria do telhado.
Tranquei-me no quarto e revirei minha bolsa até encontrar uma barra de cereal perdida por lá. Joguei o corpo na cama, respirando fundo, e dei uma mordida na barrinha que mais tinha gosto de lama barrenta do que de banana com aveia e mel.
- Quem comprou essa droga? – pensei alto, revirando os olhos ao lembrar que havia sido eu mesma há dois dias, e continuei comendo. Lentamente, meus pensamentos vagaram para Tom. Aquele brilho nos olhos após o leve toque dos nossos lábios, o jeito sem jeito como ele passara a mão pelo cabelo... O arrepio que eu senti. De repente veio , embaralhando tudo o que eu tentava organizar mentalmente. Ele parecia adivinhar quando eu estava imersa no olimpio dos meus pensamentos.
Sem levantar, estiquei o braço até a bolsa e saquei o celular, que vibrava e piscava o nome dele na tela.
- Hey. – atendi.
- Ei, pequena!
- Ei...
- Está tudo bem? – perguntou já com um leve tom de preocupação.
- Está sim, eu só... me sinto exausta. – respondi amassando a embalagem vazia da barra de cereal.
- Dia puxado?
- É. Eu e o Tom ficamos até tarde na biblioteca, fazendo umas pesquisas pra um trabalho em grupo.
- Você e aquela loira tingida ficaram sozinhas na biblioteca a tarde toda?
Ri.
- Sem maldade, . E ele é loiro natural. – certamente revirou os olhos.
- Qual é, . Eu nem preciso estar ai pra saber que está pegando alguma coisa.
- , para de falar merda, ta bom? Nós só estávamos estudando. Mas e o seu dia, como foi?
- Normal, exceto por uma ligação do meu pai.
- Sério? E ai?
- Ele está programando minha viagem pra daqui uns dois meses, ou antes.
- Isso é ótimo! Vê se dessa vez traz o meu canguru de pelúcia, que você sempre faz o favor de esquecer.
riu.
- Pode deixar.
Ficamos conversando por mais alguns minutos, sem falar nada importante. Como eu ainda precisava passar a limpo os rascunhos das pesquisas, que não eram poucos, despedi-me de e desliguei. Levantei, pegando o caderno e o estojo, a fim de sentar-me à escrivaninha, mas antes mesmo de repousar o material sobre ela, lembrei que precisaria usar a internet.
Suspirei e saí do quarto em direção à biblioteca. Por sorte, estava vazia. Como eu precisaria imprimir as páginas de alguns sites, resolvi digitar todo o material. Meus pulsos agradeceriam. Sentei-me frente ao notebook preto, que ficava em uma mesa ao lado da estante de livros, e me pus a pesquisar e redigir.
O relógio marcava onze e vinte e seis da noite quando minhas costas passaram a reclamar. Eu estava sentava ali há quase três horas, e meu corpo pedia um descanso. O trabalho já estava praticamente pronto, faltavam apenas algumas considerações finais e imprimir. Levantei e alonguei o corpo, estalando as costas e o pescoço, e caminhei para o lavabo naquele mesmo andar. Lavei o rosto e as mãos, prendendo o cabelo num coque frouxo.
Desci até a cozinha e enchi um copo com água. Enquanto bebia, percebi o quão silenciosa a casa estava. Todos já deviam ter se recolhido. A água da piscina continuava sua dança serena ao ritmo do vento, e as árvores balançavam suas folhas devagar. Coloquei o copo vazio sobre a pia e voltei à biblioteca.
Sentei-me frente ao computador e mexi o pequeno mouse para que a tela retornasse à área de trabalho, mas nada aconteceu. Franzi o cenho e digitei algumas teclas, mas o visor continuava apagado. Estava desligado. Então reparei em meu caderno. As folhas das pesquisas estavam riscadas, levemente apagadas e amassadas. Um desespero me subiu à garganta. Eu não podia ter perdido tudo.
- Mas... Mas como...? – balbuciei, chorosa, e a resposta logo surgiu.
- Desculpa, foi sem querer.
Levantei e me virei num pulo. Daniel estava parado ao lado da porta, os braços cruzados, com o mesmo sorriso sarcástico e nojento no rosto. Eu não o havia visto quando entrei. Daniel ainda soltou um risinho debochado, vendo minha cara de completa incredulidade. Meu corpo estava imóvel, como se a própria vontade de avançar em seu pescoço estivesse me paralisando.
Controlei ao máximo as lágrimas de ódio que se formaram em meus olhos, só as deixando cair assim que Daniel saíra da biblioteca. Sentei-me de novo na poltrona e levei as mãos ao rosto, num misto de desespero, preocupação e raiva. Tom pedira que eu levasse pronta minha parte para o grupo amanhã! Era isso que Daniel queria, afinal? A minha loucura, meu fracasso, minha insanidade?
Sequei as lágrimas, respirei fundo e encarei meu caderno. Estava riscado, mas ainda era razoavelmente legível. As partes apagadas e borradas eram decifráveis. Eu conseguia me lembrar de alguns sites e citações. Liguei o notebook e, de novo, respirei fundo. Eu terminaria aquele trabalho, e depois mataria Daniel Jones.

Meu pescoço e todo o resto do corpo doíam. As olheiras mais pareciam dois nocautes certeiros. Meu cabelo, definitivamente, estava de mau humor, assim como eu. E, como se não bastasse, eu acabara de ficar naqueles dias.
- Porra! – xinguei quando me vi toda suja antes de entrar no banho. – Porra, porra e porra!
Tentei me concentrar na água morna que caía de modo relaxante sobre meus ombros, mas a imagem de Daniel sorrindo sínico na noite anterior só alimentava ainda mais o repúdio a respeito dele que se criava dentro de mim.
Vesti uma calça jeans escura e uma blusa básica preta, por baixo de um moletom dois números e meio maior do que o meu. O dia estava invernado, e o perfume de impregnado naquela peça de roupa era o único remédio para o meu estado de espírito naquela manhã. Eu, que tinha certa resistência à maquiagem, obriguei-me a usar pó e corretivo para dar um jeito na “pessimidade” da minha cara. Fiz uma trança embutida.
Peguei a bolsa, os livros e, com certo ar vitorioso, o trabalho impresso. Ter ido dormir além das três e trinta da manhã, afinal, valera à pena. Saí do quarto, e a primeira coisa que fiz foi bater na porta em frente a minha. Confesso que estava insegura, mas eu precisava mostrar que ele não me faria de idiota. Daniel girou a maçaneta e franziu o cenho ao me ver. Antes mesmo que pudesse sequer abrir seu sorriso asqueroso ou lançar alguma piadinha, bati com força uma cópia do trabalho em seu peito, fazendo-o cambalear por não esperar tal atitude minha.
- Você perdeu o senso, garota? – Daniel disse já enraivado, mas eu apenas o imitei, sorrindo sinicamente de canto.
- Fiz questão de imprimir pra você. Não precisa me dizer se gostou depois.
Dei as costas e dirigi-me à escada, ao som de papéis sendo rasgados e da batida da porta. Eu sorria abertamente.


Capítulo quinze.




- Nossa, a sua cara está péssima! – disse quando me aproximei e sentei na carteira ao seu lado.
- Bom dia pra você também. – forcei um sorriso amarelo, largando minhas coisas sobre a mesa.
- Espera ai! Isso embaixo dos seus olhos é corretivo? E... Meu Deus! Você está usando pó? – tinha os olhos arregalados e falava como se o fato de eu estar levemente maquiada (qual é, corretivo e pó nem são dignos de serem considerados como maquiagem!) fosse uma coisa de outro mundo. Ok, era mesmo.
- Toda a sala agora também está sabendo disso. Muito obrigada, . – continuei forçando meu sorriso amarelamente irônico.
- Desculpa, é que desde que a gente se conhece nunca te vi usar nada, e... Bom, devido ao meu passado negro eu devo te alertar que está um pouquinho evidente.
Ela fez um gesto com a mão, indicando que o corretivo estava muito marcado - na opinião de maquiadores profissionais e de ex-patricinhas animadoras de torcida. Suspirei, abaixando o rosto e o apoiando nos braços dobrados sobre a mesa.
- Culpe a bosta das olheiras pela noite mal dormida. – falei com a voz abafada.
- Posso? – virei o rosto devagar e já segurava uma pequena nécessaire, que deduzi conter maquiagem e talvez alguns remédios básicos que toda mulher carrega consigo. Menos eu, óbvio.
- Ta brincando que você anda com isso na bolsa?!
- Confesso que certas manchas obscuras dos meus anos de nojentice ainda permanecem em mim. – riu, me fazendo sorrir, e saiu puxando meu braço até o banheiro, que para nossa adorável sorte estava lotado. – Entra ai!
Sentei na tampa fechada do vaso, no box em que me empurrara e trancara a porta. Ela apoiou a pequena bolsinha em meu colo e primeiramente procurou uma esponja arredondada.
- Você não está pensando em brincar de salão de beleza comigo, não é?
- Hoje não, mas estou pensando em te dar sérias dicas de como disfarçar olheiras sem deixar isso óbvio! – ela sorriu, pegando um estojinho preto da Mac. – Agora olha pra cima.
Ficamos conversando enquanto retocava – diga-se, refazia – a minha maquiagem.
- E agora, o toque final! – ela disse tirando da nécessaire um tubinho preto, da mesma marca do pó e corretivo que tirara de lá de dentro anteriormente.
- Rímel?! Fala sério! – já ia me levantando quando segurou meus ombros e me fez sentar novamente.
- Fica quieta, olha reto no horizonte e não reclama. – ela disse séria, mas acabamos rindo e, com ou sem o meu consentimento, ela se pôs a contornar meus cílios com a máscara transparente. Pelo menos era transparente.
- . – sussurrei.
- Que? – ela também sussurrou, quase terminando com o rímel.
- Eu e o Tom quase demos um selinho.
- COMO ASSIM? – gritou e enfiou sem querer o pincel do rímel no meu olho.
- AI, PORRA! – bradei, sentindo meu olho arder e doer, sem conseguir abri-lo.
- Ai, céus, desculpa ! Ai, calma. Ai! Ai! Ai, to doendo! Ai! – ela falava angustiada enquanto desenrolava o papel higiênico.
- , quem levou um pincel no olho fui eu! – ri, enquanto ela me entregava o pedaço de papel. Forcei contra o olho, ainda rindo com ela, que se ajoelhou na minha frente voltando a sussurrar.
- Me conta exatamente o que aconteceu.
Abri a boca para começar a contar, mas o sinal me interrompeu antes mesmo de dizer a primeira palavra. A voz da supervisora do corredor soou pelo banheiro, mandando que todas as meninas voltassem às suas salas imediatamente.
- Você não terá sossego enquanto não me disser tintim por tintim. – disse guardando sua maquiagem e eu assenti, sorrindo, seguindo-a quando destrancou a porta. Não consegui, contudo, dar um passo antes de analisar bem o que via no reflexo do espelho. Como tinha ficado tão natural? Parecia que eu tivera a melhor noite de sono possível, num colchão d’água com travesseiros de penas de cisnes brancos!
- No caminho pra sala você me agradece. – me puxou e eu ri, agarrando-a pelo pescoço num abraço.

- E foi só isso. – eu disse, tomando o último gole de chocolate quente. Como o dia estava nublado e chuviscava lá fora, e eu decidimos passar o intervalo na sala, descendo na cantina apenas para comprarmos chocolates quentes e algumas rosquinhas.
- Só isso? Só isso? Como um quase beijo desentupidor de pia em Thomas Fletcher pode ser só isso?
Ri.
- Que beijo desentupidor de pia? Foi apenas um... pequeno acidente. – fingi indiferença, dando de ombros.
- Ah ta. – revirou os olhos. – Quando você vai admitir pra si mesma que está rolando o maior clima entre vocês, desde que essa monitoria fingida começou?
- Primeiro, não é monitoria fingida. Eu já sei qual é o próximo assunto que o Stevens vai ensinar, e minhas atividades referentes ao mesmo já estão todas feitas, e...
- Me ensina! – ela me interrompeu e eu sorri, assentindo, retomando o que dizia.
- E segundo... Ok, talvez esteja rolando um climinha. – dei de ombros de novo, forçando toda a minha indiferença, e riu. Eu apenas sorri com incerteza. – Mas não dá...
- ? – fiz que sim com a cabeça. - Ah, qual é . Você mesma não falou que ele está saindo com outra garota? – disse mordendo a última rosquinha do pacote.
- Eu sei que está, mas não significa que eu tenha que fazer o mesmo sem ter vontade, só pra revidar. – eu mexia o canudo no copo vazio, mais falando pra mim mesma do que para .
- Mas você quer, e é aí que está a questão!
Suspirei.
- Tom é um garoto legal, lindo, inteligente...
- Carinhoso, atencioso, charmoso, fofo, meigo, engraçado, divertido, toca violão e guitarra, tem moral com a escola inteira, é muito bem relacionado, não é galinha, é respeitador, seguro de si, e de brinde... é estupidamente rico! Por que tanta dúvida?
Saquei o celular do bolso, selecionando uma foto minha e de pra que ela visse com os próprios olhos o motivo de tanto receio quanto a Tom.
A foto fora tirada durante uma tarde em que nós e nossos amigos estávamos na praça, jogando vôlei e tomando sol. deixava à mostra seu peitoral bronzeado herdado do pai. Em qualquer época do ano, tinha a cor do verão na medida perfeita – menos quando ele voltava das férias na Austrália, claro. Seu cabelo castanho alourado, levemente suado, caía sobre os olhos verdes. Seu sorriso era tão espontâneo, que eu podia ouvir sua risada nitidamente nas lembranças daquele dia. Eu estava em suas costas, com as pernas envoltas em sua cintura, também sorrindo e o abraçando pelo pescoço, com nossos rostos colados.
deixou o queixo cair.
- Esse é o motivo.
- De fato, é um bom motivo. – devolveu o celular, que voltei a guardar no bolso.
- Exceto pela grana, é tão maravilhoso quanto. Um pouco explosivo e impulsivo e tarado às vezes, mas... ele é incrível. E o tipo de relação que nós temos também é! Eu não posso simplesmente ligar e dizer “Hey , estou ficando com outro cara só porque você está pegando uma gostosa da sua faculdade. Beijos”. Não é assim.
- E nem eu estou dizendo que é pra ser assim, . Me corrija se eu estiver errada, ta? Vocês sempre tiveram liberdade de ficar com outras pessoas, certo? – assenti – Com quantos você já ficou, fora ele?
- Uns... dois ou três, eu acho.
- E ele?
Certo, bem mais do que o triplo daquilo. Por inúmeros fins de semana me ligou bêbado, de madrugada. Sempre vinha com uma declaraçãozinha fajuta ou uma conversa safada, que cheirava à outra mulher. Dessas ele nunca me contou, e nem precisava. Elas mesmas se denunciavam no dia seguinte, cheias de carinhos e sorrisos pra ele.
Minha resposta à foi um suspiro longo e pesado.
- Ta vendo ai? Não é nem questão de revidar! Você conheceu um garoto legal, e não tem nada de errado em ficar com ele. Curtir um pouco.
Pensei em responder, mas o soar do sinal me manteve de boca fechada. Olhei em direção à janela, e através da película mais escura era possível ver a chuva batendo com mais força contra o vidro. A sala encheu rapidamente, e o assunto com acabou morrendo por ali mesmo, enquanto eu ainda repensava suas palavras. Era ou não era questão de revidar?

Cutuquei no braço, que escrevia concentrada as passagens de uma revista de história. Depois do almoço, Tom pedira que o grupo se reunisse na biblioteca para pesquisar, e já ir discutindo algumas ideias sobre a apresentação e mais detalhes.
- Porra , você me borrou! – ela reclamou baixinho, riscando a palavra que errara.
- O Drew fica o tempo inteiro olhando pra cá e cochichando com o Pietro.
fez menção de olhar na direção em que eles estavam, próximos a maquina da xérox, mas eu a impedi segurando seu rosto e o virando pra mim.
- Nem pense. Continue escrevendo, porque assim ele consegue reparar mais na sua beleza.
Rimos baixinho e voltou a escrever em seu caderno, enquanto Tom vinha na minha direção. Abaixou-se ao meu lado e sussurrou.
- Achei um livro que parece muito bom. Eu vou distrair a bibliotecária, levá-la lá fora, e ai você copia o capítulo vinte e um e vinte e dois, pode ser?
- Inteiros?!
- Sinta-se naqueles filmes de missão impossível. – Tom sorriu e me entregou o livro.
- Arranje uma desculpa muito boa! – sussurrei ao que ele se levantou e foi andando em direção à senhora esquelética conservada à base de formol, que usava seus óculos na ponta do nariz arrebitado e pontiagudo.
Não imagino que diabos Tom inventou, que em segundos a mulher se levantou e saiu às pressas da biblioteca, seguida por Tom, que piscou pra mim e fechou a porta. Essa fora a minha deixa para levantar e ir correndo para a máquina, que Drew discretamente já deixara no ponto à minha espera.
- Quanta eficiência! – brinquei, colocando o livro para copiar.
- A está mesmo concentrada naquela revista, hm? – Drew comentou fazendo uma careta. Eu ri.
- Sim, pelo menos ela está fazendo alguma coisa, não é mesmo?
- To te ajudando com a xérox, nem vem. – ele virou a página do livro e voltou a colocá-lo na máquina, fingindo a maior concentração, mas não segurou a risada por muito tempo.
Terminamos de tirar as cópias com folga de tempo, uma vez que Tom e a Sra. Willous ainda demoraram cerca de dez minutos para voltarem. Ela trazia consigo uma pilha de revistas aparentemente antigas, e dirigiu-se à sessão de geografia.
- Missão cumprida? – ele perguntou aproximando-se novamente da mesa em que eu e estávamos. Mostrei-lhe as folhas grampeadas e sorriu. – Perfeito.
- Como você a tirou dali? – perguntei.
- Aqui pertinho tem um sebo de livros, e quando saí na hora do almoço por um instante, vi uma placa de promoção de revistas e livros, ou algo do tipo. Então, quando me despedi dos caras, dei uma passada rápida lá. Sabia que seria útil hoje, e como a Sra. Willous é completamente obcecada por essa biblioteca, achei que ela se interessaria em atualizar a sessão de geografia, que não recebe doações há quase quatro meses.
- Você é um gênio! – disse impressionada. Havia parado de escrever quando Tom começou a contar e ficou prestando atenção até que ele terminasse. Nós rimos.
- Realmente, meus parabéns. – elogiei.
- Erm... , você pode me ajudar aqui? – ouvimos a voz de Pietro de repente. Em um segundo estava mais branca do que papel, e a caneta que segurava começara a tremer suavemente. Ela virou-se pra ele, tentando conter o sorriso para que não rasgasse os cantos da boca e encostasse nas orelhas.
- Clar... – sua voz saiu fina e aguda, o que a fez forçar a garganta e sorrir meio sem jeito, voltando a falar normalmente. – Claro! Senta aqui.
- Vamos ali. – chamei, puxando Tom pela mão até uma sessão de livros qualquer.
Enquanto andávamos, olhei em volta. Só havia nós sete na biblioteca, mas apenas cinco eram visíveis. Pietro e estavam compenetrados na revista que Pietro levara consigo pedindo ajuda. Drew folheava sem interesse um livro, e eu e Tom adentrávamos a sessão de ciências.
- Onde estão Audrey e Dougie? – indaguei com o cenho franzido. Até então nem dera por falta deles.
- Uma libra que estão em uma das salas individuais.
- Fazendo o q...? – Tom sorriu malicioso e eu arregalei os olhos, levando a mão à boca, e em seguida começando a rir – Não acredito!
- E não é a primeira vez que acontece.
- Entre eles?
- Também, mas me refiro esse tipo de coisa naquelas salas.
- Isso é sério? – eu estava incrédula.
- É sim. Há uns anos, dizem, uma menina ficou grávida depois de sair lá de dentro. Pelo visto isso nunca chegou aos ouvidos do diretor, ou ele já teria interditado essas salas. – Tom sussurrava. – Outra vez, rondam os boatos, encontraram uma camisinha usada. Também não houve repercussão porque a bibliotecária que fez a vistoria antes de fechar a biblioteca teria sido o motivo de uso da camisinha.
- A Sra. Willous?! – perguntei sussurrando esganiçada, vendo Tom rir e negar com a cabeça.
- Não, a que trabalhava antes dela. Dizem que Morganna tinha um caso com um dos antigos jogadores de futebol, e que foi após esse incidente que ela se demitiu.
- Eu to chocada, sério. – deixei escapar um risinho, ainda impressionada com tudo que Tom estava contando. Pelo visto, tinha muita coisa a respeito daquele colégio que eu ainda precisava saber. E que, certamente, me deixariam tão chocada quanto simples sexo casual na biblioteca.

Capítulo dezesseis.




- E ai, como foi? – perguntou desanimada, sentando-se ao meu lado. O tronco da árvore era suficientemente largo para que nós duas nos encostássemos e descansássemos sob sua sombra.
- Talvez um B+. E você?
- Um B pra mim já está de bom tamanho.
- Que isso, você é inteligente e o Garcez te adora. Duvido que ele te deixe só com um B. – sorrimos.
- Você vai amanhã? – perguntou, e eu demorei alguns segundos para responder.
Fazia três semanas que estávamos pesquisando. Os temas já haviam sido distribuídos a todos os grupos e agora a biblioteca ficava um inferno de tão cheia. Tom queria agilizar, ganhar tempo para que pensássemos em uma apresentação boa o bastante, e então sugeriu que todo o grupo fosse à sua casa no sábado. Suspirei.
- Eu não sei ainda.
Depois do quase selinho, eu e Tom nos esforçamos ao máximo para tudo continuar em seu normal, mas os olhares e os sorrisos sem jeito começavam a me deixar tímida em sua presença.
- Você precisa ir, . Você vem dando várias sugestões pro trabalho, fora que são justamente você e o Tom que estão tomando a frente de tudo. Quando a gente menos esperar, já vai estar na cara da apresentação!
Revirei os olhos pra cara de cachorro pidão que ela fazia.
- Tudo bem, tudo bem. Eu vou.
sorriu e me abraçou.
- Eu tinha certeza que você não nos deixaria na mão. E mudando de assunto, o que vai fazer agora à tarde?
- Nada. Pensei em tirar a poeira do violão, aproveitando que aquela casa costuma ficar vazia às sextas-feiras.
- Você toca?
- Eu tento. – sorri modesta.
- A gente podia usar isso na apresentação.
- Nem vem, . – ri da sugestão.
- Vamos andando? Fiquei de passar na casa da Audrey pra pegar umas coisas que o Dougie esqueceu por lá. Provavelmente, meias e cuecas sujas. – rimos.
Levantamos e seguimos para o estacionamento do colégio. ofereceu carona e, como de costume, fui obrigada a recusar. Esperei que ela virasse a esquina e dei meia volta, caminhando para o lado contrário. Fui andando devagar, e decidi virar numa rua que até então eu só observara de passagem. Havia algumas lojas e estabelecimentos, o que já seria útil para me tirar de casa nos fins de semana.
Starbucks, loja de CD’s, locadora de filmes, curso de francês. Mais adiante a rua começava a descer, e ao pé da ladeira era possível avistar algumas lojas de roupas e sapatos. Sorri. Quando não tivesse mais nada o que fazer, como agora e sempre, eu iria bater perna por ali. Fui descendo a rua e me deparei com uma lojinha de suvenires, que não pensei duas vezes em entrar.
- ia gostar disso aqui. – disse pra mim mesma enquanto analisava uma camisa bem gay com a bandeira da Inglaterra. Ri sozinha.
Passei alguns minutos olhando tudo. Havia mais duas pessoas ali, o que deixava o espaço um pouco apertado. Avistei uma daquelas camisas bem clichês “I <3 London” e revirei os olhos. Eu não amo isso aqui. Mas apesar de não gostar de estar em Londres, tive que baixar a resistência ao me deparar com um pequeno chaveiro. Era uma miniatura linda de um dos ônibus vermelhos que circulava pela cidade. Sorri e peguei mais um. ia gostar.
Ia saindo da loja, guardando os chaveirinhos na bolsa, quando um cara bastante mal encarado esbarrou em mim, deixando a sacolinha cair no chão. Sequer ele se virou para pedir desculpas. Abaixei pra pegar, xingando o homem até sua oitava geração, mas tive de fazer uma pausa em minha ira para tirar o cabelo que veio todo no rosto. No que fiz um movimento com a cabeça, meu olhar foi diretamente na saída de um beco próximo, do outro lado da rua. Mais precisamente, meu olhar foi direto em quem saía de fininho do beco.
Ele tinha uma mão firmemente posta num dos bolsos da frente de sua calça e usava óculos escuros. Seus passos eram duros e apressados. Encolhi-me atrás de uma caixa de correio azul, que por sorte ficava bem à frente da saída da loja, e enquanto Daniel subia a rua, notei que outro cara – tão mal encarado quanto o que esbarrada em mim – também saía de lá. Franzi o cenho, voltando meu olhar para Daniel, que virava a rua em seu ponto alto.
Guardei depressa o saquinho na bolsa e levantei, subindo a rua com certa cautela. Se Daniel chegasse a me ver ali, eu estava ferrada. Esperei um pouco frente a uma vitrine, fingindo olhar as roupas e bolsas à mostra. Quando cheguei ao topo da rua, não havia sinal de Daniel. Preferi não esperar por um, e saí caminhando o mais depressa possível pra casa.
- Mil vezes bosta! – disse irritada, jogando o celular sobre a cama. Estava trancada no quarto, sequer cumprimentei Maria quando cheguei.
Não parava de andar de um lado pro outro, tensa. Preocupada. E agora irritada porque o celular de estava desligado. Fui até o banheiro e fiquei me encarando no espelho, enquanto perguntas e mais perguntas rondavam pela minha cabeça. Eu conhecia aquela cena. Eu não era burra.
- Só me faltava essa... – sorri descrente pro espelho, mirando meu reflexo. Era muito desgosto pra uma pessoa só.

- Já está pronta?
- Quase, . – respondi equilibrando o celular no ombro, pressionando-o à orelha, enquanto arrumava as pesquisas em uma pasta de plástico. – Me encontra daqui a dez minutos na Starbucks.
- Ta legal. – e desligamos.
Dei uma última conferida no espelho. Short jeans, ok. Regata básica, ok. All Star branco, ok. Preferi deixar o cabelo solto, ele finalmente resolvera ficar de bom humor. Transpassei a bolsa no corpo e peguei a pasta. Olhei em volta, certificando-me de que não estava esquecendo nada e saí do quarto com tudo em mãos, rumo a Starbucks mais próxima onde encontraria .
Ainda esperei pouco mais de cinco minutos – suficientes para comprar um muffin e devorá-lo – até que parasse seu conversível à minha frente, me flagrando lamber os dedos.
- Bom dia, flor do dia! – ela me cumprimentou e eu sorri.
- Bom dia. Não dá colocar o teto não? – pedi, entrando no carro. O sol estava esquentando o pouco juízo que eu tinha.
- Não! O dia está lindo e merece ser apreciado. Coloca isso aqui. – abriu o porta-luvas e tirou um Ray Ban lá de dentro, me entregando.
- Por que você está com um óculos no rosto, e tem com outro no porta-luvas?
- Precaução. – ela riu e eu sorri, colocando os óculos. deu a partida e, um segundo depois, nossos cabelos estavam esvoaçando em direção a casa de Tom.
Meu queixo cedeu discretamente, óbvio, quando chegamos. A casa dos Jones, de fato, era incrível, mas a de Tom não ficava por baixo. Aconchegante, a fachada toda pintada de um amarelo bem claro. O volvo preto, cuidadosamente estacionado, descansava à sobra de sua vaga sob as palmeiras enormes e lindas do jardim.
- ! – a voz de despertou-me do transe. Ela já estava fora do carro, caminhando até a porta. – Vamos!
Saltei do carro e corri, chegando ao seu lado antes que ela pudesse tocar a campainha. Depois de feito, esperamos alguns segundos até que passos pudessem ser ouvidos, e enfim o barulho da chave girando na fechadura.
- Hey, lindas! – sorrimos. Era impossível não sorrir com o ‘bom dia’ daquela covinha.
- Bom dia, Tominho. – Tom fez uma careta e nós rimos, enquanto o abraçava e entrava na casa.
- Bom dia... – repeti o gesto, sentindo o perfume bom que exalava de sua roupa. Nossos olhares se encontraram ao nos afastarmos, e acabamos sorrindo um pro outro meio sem jeito.
- Er... Que bom que vocês chegaram. Dougie e Audrey já estão no escritório. – Tom disse, fechando a porta atrás de mim. Eu não podia deixar de reparar na decoração.
Tudo parecia estar organizado em sua simetria e harmonia perfeita, de modo que todos os objetos emanavam leveza em seus devidos lugares. A sala era extremamente espaçosa, e havia um bar – digo, um mini pub particular – mais ao lado direito do cômodo.
- Já colocou os dois pra trabalhar? – brincou, e só então voltei a prestar atenção nos dois que já começavam a subir as escadas.
Tom entortou a boca e nós rimos.
- Se eles não tiverem aproveitado esses cinco minutos pra se amassarem no sofá, já é lucro.
Tom nos guiou até umas portas de correr, no hall do andar superior. Empurrou uma delas, nos dando passagem. Perguntei-me mentalmente com o que o pai, ou a mãe dele, devia trabalhar. Política? Empresas? Certamente algo importante, para precisar de um escritório tão grande e luxuoso.
Havia uma mesa de vidro, cumprida e oval, rodeada de poltronas de couro preto. Na outra extremidade da sala, próxima a janela que dava vista para o jardim, tinha outra mesa menor, pessoal, com uma grande poltrona, também de couro preto. Na parede atrás dela, repousava um quadro enorme, de pintura abstrata, simples e elegante.
- E ai, casal? – a voz de , mais uma vez, me trouxe de volta.
Audrey estava sentada no sofá, com um laptop no colo, enquanto Dougie se esparramava pelo tapete felpudo no centro do cômodo, encostado no sofá, jogando alguma coisa em seu Iphone. Aproximei-me para cumprimentar os dois, mas antes mesmo que eu tivesse me acomodado ao lado de Audrey no sofá, ouvimos o soar da campainha.
- Ele chegou. – falou baixinho, batendo palminhas retardadas, fazendo com que eu e Audrey revirássemos os olhos e sorríssemos. Tom pediu licença e foi receber os meninos. Ainda no andar de baixo, era possível ouvir Drew reclamando que hoje era dia de jogar futebol e beber, e não de pesquisar sobre a criação da penicilina e sobre a segunda guerra mundial. Concordo.

- Dude, to com fome. – Dougie reclamou, espalhando-se na poltrona com um ar cansado. De fato, já havia passado das duas da tarde, e apesar dos sanduíches maravilhosos que a empregada de Tom nos servira gentilmente mais cedo, passar todo aquele trabalho a limpo não estava sendo moleza.
- Dois votos. – levantou a mão sem tirar os olhos do notebook, onde editava tudo que nós já tínhamos adiantado.
- Três! – Audrey manifestou-se do sofá, também sem tirar os olhos do computador.
- O que, isso é genético e contagioso aos agregados? – Tom brincou. – Cuidado, Pietro... – ele mal terminou de falar e o caderno no qual eu escrevia foi tomado de minhas mãos, sendo lançado contra Tom por , que o fuzilava com o olhar enquanto todos nós ríamos a plenos pulmões.
- , com fome também? – Tom perguntou gentil, devolvendo-me o caderno.
- Não, não. Tudo ok comigo. – sorri pra ele.
- Ah, ta. Pede quatro pizzas grandes na Domino’s ai, Tom. – Dougie lançou o celular para o amigo, que o pegou num perfeito reflexo e já discava o número da pizzaria.
Depois do pedido feito, descemos todos para a cozinha. Tom dispensara as empregadas naquela tarde, e então eu, e Audrey nos voluntariamos para arrumar a mesa.
- Onde ficam os talheres? – perguntei receosa de sair abrindo as gavetas procurando, e de repente notei que quase todo mundo, até mesmo , me olhava estranho.
- De onde você veio, as pessoas não conhecem talheres próprios chamados mãos?
- Conhecem, Drew. – respondi fingindo uma cara de desprezo, me afastando da bancada e sentando à mesa enquanto dávamos risada.
Ficamos todos conversando à espera das pizzas. Tom e eu, volta e meia, como vinha acontecido desde pela manhã, trocávamos alguns olhares que eu não tinha certeza sobre o que queriam dizer. parecia uma boba sentada propositalmente ao lado de Pietro, uma vez que ele e Drew trocaram de lugar.
- Opa, nossas pizzas! – Tom disse ao soar da campainha, levantando-se para ir buscar.
Depois de quase uma hora, as caixas vazias estavam espalhadas pela mesa, junto aos copos, latinhas de refrigerante, e milhares de guardanapos sujos.
- Ainda tem um pedaço aqui. – Audrey anunciou, e a careta foi unânime. Estávamos todos perfeitamente mais do que satisfeitos.
- E a sobremesa, Tom?
- Está lá em cima, Drew. – ele disse seguindo com o prato para a pia. Todos repetiram o gesto com a desanimação para continuar aquele trabalho estampada na testa.

- Você é um bosta, Drew. – disse Dougie rindo, passando a pequena guitarra do Guitar Hero para .
Já era quase noite, e eu ainda me perguntava como ia fazer pra voltar pra casa. Faltavam apenas detalhes para finalizar o trabalho, que o próprio Tom se encarregou de fazer. Estávamos todos no salão de jogos, e depois de perder no twister pra Audrey, joguei-me em um dos pufs coloridos que se espalhavam por ali.
Senti meu celular vibrar no bolso do short e sorri ao ver o nome de no visor.
- Lembrou que eu existo, foi? – brinquei, levantando e caminhando pra fora do salão. Apoiei-me na sacada de uma das janelas do hall, que tinha vista pra rua.
- Que barulheira era aquela quando você atendeu? – senti seu tom de voz mais sério do que de costume.
- Ah, é que está todo mundo no salão de jogos fazendo a maior zoada.
- Salão de jogos? Onde você está?
Respirei fundo. Estava sem jeito de dizer a que estava na casa do Tom.
- É que, eu... eu estou na casa do Tom.
- Que?! Você nem conhece esse cara direito e já vai pra casa dele, ?
- , sem chilique, ta bom? Eu vim fazer um trabalho do colégio, e depois que terminamos nós fomos nos divertir um pouco. Tem mais cinco pessoas aqui, e ao contrário de certas pessoas, eu parei pra atender o seu telefonema, coisa que você não fez ontem quando eu morri de te ligar! – despejei, chateada.
- Minha mãe está doente. – o peso na voz de fez parecer ridícula a bronca que eu acabara de lhe dar.
- Tia Lucy está doente? Doente como? De que?
- A gente não sabe ainda. Ontem quando você ligou, eu estava com ela no hospital, e só vi as ligações depois.
- Tomara que não seja nada grave... – suspirei.
- ! Vem! Sua vez no Guitar Hero! – chamou da porta, e eu fiz um breve aceno com a mão, demonstrando que já estava indo.
- Tomara mesmo, mas parece que você está ocupada demais pra falar disso agora.
- ...
- A gente se fala depois.
E nem deu tempo de despedir. desligou o telefone, me deixando completamente imersa em meus pensamentos. Caramba... Tia Lucy, doente?
- ? – girei o corpo devagar, ficando de frente pra Tom. – Você está bem?
- Mais ou menos... – suspirei, encarando o chão. – Más notícias de Bolton.
- Eu... posso te ajudar em alguma coisa?
Fitei por alguns segundos os olhos de Tom. Era um olhar preocupado, e existia um fio de angústia como em sua voz. Meu estômago revirava. precisava de mim, e eu estava longe. E pra completar, ele acabar de ficar chateado comigo. Tudo foi se misturando em um sentimento pesado, capaz de afundar meu peito a ponto de fazê-lo doer.
Foi um impulso. Envolvi meus braços pela cintura de Tom, que, sem hesitação, me acolheu contra seu corpo. Seus lábios deram-me um beijo no topo da cabeça, junto ao leve carinho que ele fazia em meu cabelo. Fechei os olhos. Sequer sabia se tinha o direito de abraçá-lo, mas eu precisava. Eu precisava de um conforto.
- Calma, vai ficar tudo bem... – ele sussurrou em meu ouvindo.

Capítulo dezesete.



Acordei sem qualquer pretensão de sair da cama. Meu corpo estava pesado demais. Liguei para insistentemente quando cheguei da casa de Tom – depois de ter inventado mais uma das minhas infinitas desculpas – mas ele não atendeu. Fiquei alguns minutos fitando o teto, imaginando como estaria sendo difícil para lidar com isso. Assim como eu e minha mãe, ele e tia Lucy moravam sozinhos, um tomando conta do outro. O pai de assistia no que fosse preciso financeiramente, mas quase tudo ia para a poupança, eles usufruíam o mínimo possível da pensão.
Continuei perdida em meus pensamentos até ouvir leves batidas na porta. Ignorei, talvez assim a pessoa fosse embora.
- Menina ? É Maria. Já está de pé?
Suspirei e estiquei o corpo na cama, preguiçosa, murmurando “só um minuto” que não tive certeza de que ela ouviu em bom som. Levantei, passando rapidamente uma água no rosto, e sorri para a moça que me esperava pacientemente à porta.
- Bom dia. Não vai descer para tomar café?
Olhei por cima do ombro o relógio digital que ficava na cômoda ao lado da cama e então percebi que já eram quase dez da manhã.
- Acho que já passou do horário.
A morena sorriu, doce.
- Gosta de salada de frutas? – assenti – Então troque de roupa e desça, acabei de fazer. Com leite condensado por cima vai ficar uma delícia.
- Me dê dez minutos. – Maria fez que sim e saiu.
Antes de fechar a porta, percebi a casa um tanto quanto silenciosa. Não que costumasse ser diferente daquilo, Diana e o Sr. Jones costumavam sair, e Daniel pouco dormia em casa de sábado para domingo. Fui até o banheiro e após me despir, tomei um bom banho. Depois de comer, certamente eu tentaria falar com de novo.
Como não havia ninguém em casa além de Maria e Laline – que, por sinal, fazia algum tempo que eu não a via com Daniel -, atrevi-me a molhar os pés na piscina. A água fria quebrara seu ritual de sempre, movendo-se às suaves ondulações que se formaram quando sentei à borda. Sorri. Repousei a taça com a salada de frutas ao meu lado e saquei o celular, discando o prefixo de Bolton.
- Ei... – atendeu com a voz arrastada, rouca.
- Te acordei? – mordi o lábio. Eu não pretendia.
- Mais ou menos. – pelo resmungo e suspiro que vieram em seguida, certamente ele estava se espreguiçando.
- Me desculpa por ontem...
- Tudo bem, eu... também estava de cabeça quente.
- Como está a tia Lucy? – perguntei preocupada.
- Ela passou a noite enjoada e não teve um sono tranquilo. – o peso na voz de me fazia querer fugir e ir até ele imediatamente.
- Os médicos não diagnosticaram nada?
- Ainda não. Os resultados dos exames saem em algumas semanas, e só então eles tomarão um posicionamento. Por enquanto, ela fica a base de analgésicos.
- Tomara que não seja nada muito sério...
- Eu também espero. – suspirou.
Ficamos alguns segundos em silêncio, os quais provavelmente passou fazendo um leve cafuné no próprio cabelo. Ele costumava fazê-lo sempre que estava distraído ou pensativo. Encarei o céu plenamente azul, balançando vagarosamente os pés sob a água, pensando quais seriam as possíveis consequências caso eu fugisse de volta pra Bolton.
- Sinto sua falta, pequena. – a voz rouca e pesada de sussurrou, trazendo-me de volta à realidade que me prendia àquela mansão.
Abri a boca para responder, com um esboço de sorriso saudoso nos lábios, quando meus olhos se fixaram em algo que até então não havia chamado minha atenção. Não sei por quanto tempo ele estava ali, ou até mesmo quem ele era, mas não foi difícil puxar da memória uma considerável suposição.
Sua pele era bem branquinha, salpicada de leves sardas nas bochechas e nos braços. Suas íris eram grandes, os olhos de bola, de um azul tão profundo e escuro como eu jamais tinha visto. Os cachinhos levemente alourados se formavam e caíam irregulares em sua cabeça. Ele sustentava uma chupeta verde clara na boca, que combinava com a roupa que vestia. Uma bermudinha jeans e uma camisa branca de mangas curtas com o rosto de um ETzinho ao centro.
- ? , está me ouvindo? – a voz de novamente me acordou do pequeno transe, mas eu estava sem reação. Primeiro, pelo encanto daquela criança tão pequena e linda que me encarava a alguns poucos passos de distância. Segundo, temendo que ela chegasse mais perto da piscina. E terceiro...
- !
- Desculpa, . – Minha voz saiu áspera pela garganta, num esforço imenso. - Vou precisar desligar, mas te ligo em dois minutos. Espera. – e sequer esperei por uma resposta.
Desliguei a chamada e guardei o celular no bolso, ainda sem desviar os olhos da pequena criaturinha que finalmente piscara. Ele virou o rosto para uma direção próxima e apontou. Segui, era um passarinho que pousara sobre uma das cadeiras de sol. Sorri.
Peguei a taça de salada de frutas e me aproximei dele.
- Você quer ver o passarinho? – perguntei com a voz suavemente infantil. Não sou dessas que tratam crianças como retardadas mentais.
- Inho! – ele repetiu com a voz empatada pela chupeta, apontando outra vez para a pequena ave.
Estendi a mão livre pra ele, que a segurou e começou a dar seus pequenos passinhos em direção à espreguiçadeira. O acompanhei até nos aproximarmos mais um pouco. O freei, para que não chegasse muito perto e assustasse o bichinho, e me agachei ao seu lado, olhando o passarinho emitir pequenas notas musicais. Ficamos o observando por alguns segundos, até que ele notou nossa presença e içou voo.
- Aaah, voou! – fiz um leve beicinho, voltando a olhá-lo.
- Ôou! – repetiu, olhando para o céu à procura do passarinho.
Levantei outra vez e o levei comigo até uma das cadeiras de sol. Sentei e o coloquei sentado ao meu lado, finalmente começando a comer minha salada de frutas. O garotinho apenas balançava as perninhas e olhava tudo em volta com atenção, inclusive a mim de vez em quando.
- Ãmãe! – ele disse apontando em direção à cozinha. Pela parede de vidro, eu via Laline limpando os armários onde se guardava os copos e a louça, e Maria checando algo no forno.
Eu sabia.
- Laline é a mamãe? – ele fez que sim, me encarando. – E como é o seu nome?
- Ílan. – ele disse, outra vez a chupeta abafando sua voz.
- Dilan? Esse é o seu nome? – novamente ele sacudiu a cabeça.
Ele baixou os olhos para a taça em minhas mãos e não os desviou até que eu abaixasse e lhe mostrasse o que era.
- São frutas. Você gosta? – ele ficou me encarando em silêncio, certamente não entendendo direito.
Olhei para a cozinha e Laline já não estava mais por ali, apenas Maria cortando, imagino, alguns temperos para preparar o almoço.
- Não conte à mamãe, está bem? – sorri e tirei a chupeta de sua boca. Peguei um de seus dedinhos e passei pela borda da taça em que tinha um pouquinho de leite condensado, levando-o até seus pequenos lábios em seguida. Dilan lambeu o dedo e não demorou a me revelar um sorriso enorme, com apenas alguns dentinhos.
Ai, que vontade de morder essa criança!
- Gostoso, né?
- Ôtoso! – ele repetiu. Fiz um leve carinho em seu cabelo, devolvendo-lhe a chupeta.
Terminei com a salada de frutas, enquanto Dilan apontava em várias direções, soltando grunhidos de bebê que eu, particularmente, não entendia. Olhei no celular e já fazia quase uma hora que estávamos os dois ali, e Laline ainda não havia dado por sua falta.
Resolvi levar Dilan para dentro, ao menos para dar uma satisfação. Se ela ainda não tinha dado por falta dele, quando desse ficaria preocupada e sairia pela casa a sua procura. Peguei Dilan no colo, segurando a taça vazia com a outra mão, e caminhei em direção à cozinha.
- Já conheceu o pequeno Dilan, menina ? – Maria sorriu quando ultrapassamos as portas de vidro.
- Já! Ele é uma gracinha! – sorri de volta, indo até a pia, repousando a taça.
Coloquei Dilan sentado na ilha, e fiquei em pé a sua frente. Entreguei a ele um canudo colorido, que supus ser dele mesmo, e voltei minha atenção para Maria.
- Ele é sempre tão quietinho assim? – perguntei, vendo-o sacudir o canudo.
- Até o menino Danny chegar. Ele atiça essa criança e fazem uma bagunça enorme! – Maria riu, sem tirar os olhos do tomate que cortava em pedacinhos.
Voltei a olhar Dilan e não resisti em lhe fazer cócegas. Ele riu, quase deixando o bubu cair. Parei e voltei a prestar bastante atenção em suas feições. Ele se parecia muito com Laline, mas...
- Ãmãe! – Dilan interrompeu meu devaneio, apontando para a porta.
Lá estava Laline, parada, nos encarando. Sua expressão era quase de um susto. Mas isso durou apenas uma fração de segundos, até que ela se recompusesse e forçasse um sorriso.
- Oi, meu amor! – ela veio se aproximando em passos rápidos, mas não rápido o suficiente para evitar que Daniel me visse perto da criança.
Sua primeira reação foi franzir o cenho, mas logo seu sorrisinho asqueroso de costume lhe roubou os lábios.
- Você devia tomar mais cuidado com o Dilan, Laline. Crianças não discernem quais são as boas e as más influências.
Pois é, talvez por isso ele goste tanto de você.
Laline me forçou outro sorriso, murmurando um “Não ligue pra ele”, e logo teve Dilan tomado dos braços por Daniel.
- E ai, garotão! Tá afim de um mergulho?
- Iína! – Dilan apontava para a piscina com um enorme sorriso que mal sustentava o bubu na boca.
- Vamos, filho, vou trocar sua roupa para o tio Danny te levar.
Danny bagunçou o cabelo da criança e a colocou no chão, que logo teve a mão tomada por Laline, sendo guiada aos aposentos das empregadas.
Daniel me lançou um olhar duro antes de deixar a cozinha, e apenas o que se ouviu em seguida foi um suspiro de Maria. A olhei, mas não obtive nenhuma reação em resposta. Ela continuou picando os tomates como se aquela cena não tivesse acontecido.

Fechei a porta do quarto e saquei o celular.
- Achei que não ia ligar mais. – atendeu.
- Desculpa ter demorado e ter desligado daquele jeito, mas é que... – me interrompi, jogando meu corpo na cama e fechando os olhos.
- O que?
Respirei fundo.
- Não, nada demais. Tive que ajudar as empregadas com uma coisa. – inventei.
- Sei. – ele não acreditou.
Ficamos alguns segundos em silêncio.
- Não quero ter segredos com você, . Nós nunca tivemos.
- Confie em mim, são só suposições sem fundamento.
Ouvi o barulho de alguém pulando na piscina, e fui até a janela. Daniel sacudia o cabelo tirando o excesso de água e se aproximava da parte rasa para pegar Dilan, que tinha um par de boias coloridas nos braços.
Voltei a me afastar, ouvindo as vozes e as risadas dos dois, e procurei mudar de assunto.
- Vai sair hoje?
- Provavelmente não. Não quero deixar minha mãe sozinha.
A voz de estava tão triste e desanimada, que fez meu coração pesar.
- Por que você não a leva pra dar um passeio? Talvez faça bem a ela.
- É, pode ser, mas não quero que ela se canse.
- , olha só. Se você ficar nessa fossa, sua mãe só vai piorar. Você tem que dar força a ela, tem que dar a ela motivos pra sorrir, e não ficar deprimido, tratando-a como se fosse uma inválida! Leva tia Lucy pra tomar um sol, dá um oi pra amigas na praça. Tudo bem, ela está doente, mas ela precisa de um incentivo pra se curar, e ver o filho dela todo murcho desse jeito não é um, se quer saber.
ficou calado. Era assim, nós tínhamos essa mania de dar broncas um no outro quando dávamos sinais de fraqueza.
- Anda, ... Ergue essa cabeça. Ajuda sua mãe. Nós nem sabemos o que ela tem ainda, e você já está sendo pessimista assim? – eu disse mais doce dessa vez.
- Você tem razão. – ele suspirou. – Você está coberta de razão. – e eu podia sentir que ele sorria.
Sorri junto. Eu não podia lhe dar um abraço, mas estava aliviada por poder confortá-lo de alguma forma.
Ainda conversamos por mais algum tempo, até desligarmos para que ele fosse se arrumar para ir ao cinema com tia Lucy. Olhei para o lado e vi o livro que Tom me emprestou. Já estava a bastante tempo comigo, e eu precisava devolvê-lo.
Peguei-o de cima da escrivaninha, junto ao antigo livro de minha avó, e deitei na cama, abrindo na página marcada. Faltava pouco para terminar e, assim que o fizesse, o guardaria na bolsa para não esquecer de levá-lo na manhã seguinte.

Capítulo dezoito.



Quando cheguei ao colégio, as pessoas pareciam mais agitadas que o habitual. Procurei pela sala com os olhos, mas não a vi.
- Drew, é impressão minha ou tem certo alvoroço por aqui? – perguntei, sentando-me na carteira ao seu lado.
- Jogo contra os Blakers, sexta. – ele respondeu como se fosse óbvio, sem desviar os olhos do seu iPhone.
Continuei encarando-o sem entender. Drew pausou seu jogo e me olhou com o cenho franzido por um instante, até se lembrar de que eu era novata naquela escola e que não devia fazer a mínima ideia sobre o que ele estava falando.
- Foi mal. Divulgaram hoje a tabela dos jogos de futebol e hóquei, dos campeonatos intercolegiais. Sexta já tem jogo contra o Instituto Blakers, que tem um dos melhores times de futebol americano. Por isso essa euforia toda.
- Ah sim. – ergui as sobrancelhas, pouco interessada.
Ficamos alguns minutos em silêncio, suficientes para que Drew voltasse sua atenção para o iPhone, até entrar correndo na sala e falar conosco quase gritando.
- Vocês viram? Jogo contra os Blakers sexta-feira! Isso vai ser demais! – a olhei com minha melhor cara de tédio. – Que? Tá brincando que você não vai?
- , eu não faço a mínima questão de ir.
- Mas eu faço, e faço mais ainda de que você venha comigo. É tão legal! Audrey e as meninas da patinação ficam tirando sarro das cheerleaders, torcendo pra elas caírem e fraturarem o tornozelo.
- Isso é horrível! – comentei rindo com .
- Horrível, mas hilário.
- Não achei que existisse rixa entre as meninas.
- Não é rixa, é quase uma guerra civil. A capitã das cheerleaders rejeitou as...
- Bom dia, classe. – a voz do professor de matemática ecoou pela sala, interrompendo nossa conversa. revirou os olhos.
- Droga de Stevens. Termino de te contar depois. – ela sussurrou e eu assenti, ajeitando-me na cadeira.
- Espero que toda essa empolgação pelo colégio seja para o nosso adorável teste nessa quinta-feira, e não por conta de um jogo de futebol. – o Sr. Stevens disse com um sorriso torto.
- Teste?! – disseram do fundo, e não demorou a toda a sala se manifestar em reclamações e queixas. Como se ele fosse realmente nos dar ouvidos.

- Que filho da puta! – Drew repetia pela enésima vez. – Grande filho da puta.
- Drew, relaxa. Ainda dá tempo de estudar. – tentei acalmar o garoto que arrancava a grama do pátio com a ponta do tênis. – Eu estou adiantada no assunto, posso te ajudar.
- Que desgraça escrota. Nós temos dois horários dele na quarta, por que ele tinha que pegar nosso tempo livre da quinta? Isso é muito injusto!
- Ah, então você está revoltado por isso? – riu, dando uma mordida no sanduíche natural de pasta de atum que eu e ela dividíamos.
- Também. – Drew suspirou derrotado, finalmente sentando ao nosso lado no banco de pedra. - Odeio o Stevens.
- Dois votos. – disse.
- Três, mas ainda acho que nós poderíamos estudar todos juntos na quarta à tarde. – sugeri, pegando o sanduíche da mão de .
- A biblioteca tem estado um inferno ultimamente. – Drew fez careta.
- Pessoas, olhem o tamanho desse pátio. A gente pode estudar embaixo de uma árvore, ou até mesmo na mesa da cantina, ou nas arquibancadas. – eu disse e logo me rebateu.
- Nas arquibancadas, com o time treinando? Impossível, .
- Ah é, o treino do time. Esqueci. – passei o restinho do sanduíche de volta para e suspirei. – Bom, então não sei. Resolvam se vão querer estudar e me digam.
- Lindas, vou dar um pulo ali nos caras. Vejo vocês na sala. – Drew despediu-se de nós e saiu, rumo a outro pessoal que se reunia não muito longe de onde estávamos.
- Ele é legal. – comentei, assim que ele já não podia nos ouvir.
- É sim, mas tenho achado ele meio quieto esses tempos...
- Não reparei nada estranho. – deu de ombros. – Termina de me contar lá das cheerleaders! – pedi.
- Ah, é verdade. – até se ajeitou no banco para começar a falar. - Então, a capitã delas rejeitou as meninas no grupo das líderes de torcida, não por motivos físicos ou estéticos, mas por pura implicação. Na época, algumas das meninas namoravam jogadores do time de futebol, e como as cheerleaders são todas vadias recalcadas, as recusaram no grupo pra terem mais espaço e tempo de dar em cima dos caras. Dito e feito, um a um os namoros foram terminando por brigas de ciúmes e até mesmo traição, e aí elas resolveram montar o grupo de patinação.
Prestei atenção em cada palavra de , e ainda assim consegui me surpreender, mesmo sabendo que toda aquela história envolvia de alguma forma os amigos de Daniel. Talvez até ele mesmo.
- Audrey tem sorte do Dougie não ser tão imbecil e influenciável.
- Ué, por que o Dougie...?
Antes que eu pudesse terminar a pergunta, ouvimos nossos nomes sendo chamados por alguém mais distante. Tom vinha correndo das arquibancadas, um tanto suado e rouco, sorrindo.
- Procurei vocês pela quadra e não achei.
- O que quer que esteja acontecendo por lá, não é interessante o suficiente a ponto de nos deslocarmos nesse sol até as arquibancadas, e ficar suadas assim como você. – respondeu, mas antes que ela pudesse sequer tomar fôlego ao fim da frase, Tom a puxou, fazendo-a levantar, e lhe deu um abraço apertado. – PORRA, THOMAS! ME LARGA! – ela gritava e se debatia em seus braços, enquanto eu e ele ríamos.
Assim que ele a soltou, avançou contra Tom distribuindo leves socos e chutes. Tom a carregou pelas pernas, colocando-a sobre o ombro como um saco de batatas e saiu correndo, ao som dos gritos de , que esperneava pedindo que ele a colocasse no chão. Nem a própria conseguiu controlar o riso.
- Odeio seu jeito de resolver as coisas. – disse, beliscando a barriga de Tom, quando se aproximavam outra vez de onde eu estava.
- O que está acontecendo de tão bom na quadra pra você estar nesse estado? – apontei pra ele mesmo, que tinha marcas de suor na camisa e alguns fios de cabelo grudados da testa.
- As cheerleaders estão ensinando os gritos de guerra para o jogo, ensaiando todo mundo. – Tom respondeu sentando-se ao meu lado.
- Os Blakers não têm chance. – deu um pequeno soco no ar.
- Sério, só não está na arquibancada quem não vai ao jogo!
Olhei pra Tom com meu melhor sorriso forçado e expressão de obviedade.
- Como assim você não vai?! – ele perguntou arregalando os olhos, como se fosse algo extremamente absurdo.
- Convença ela a ir, por favor, Tom. – pediu.
- Gente, eu realmente não sei se estou afim. O jogo vai ser à noite, e vai ficar tarde pra eu voltar pra casa, e...
- Vai ficar me devendo uma terceira carona? – ele me interrompeu. – Se for esse o maior problema, está resolvido.
Abri a boca pra tentar argumentar, mas o sinal anunciando o fim do intervalo fez com que Tom se levantasse e se despedisse de mim e com um beijo no rosto.
- A gente se vê mais tarde, meninas. – e saiu em direção aos portões de vidro que davam acesso à parte interna do colégio.
- Então, você vai? – perguntou me olhando com toda a expectativa existente dentro de si.
- Eu ainda tenho a semana inteira para resolver, .
- Ou pra arranjar uma desculpa. – ela revirou os olhos.
- ...
- Ah, , uma carona com o Tom não pode ser tão ruim!
Suspirei, derrotada. Desviei o olhar de , notando que o pessoal que estava nas arquibancadas começava a sair de lá. Antes que as escadas para o segundo andar ficassem intrafegáveis, e que meu olhar esbarrasse desagradavelmente com o de Daniel, levantei puxando pela mão.
- Vou pensar. – disse apenas, atravessando as portas de vidro.

Quando chegamos à biblioteca, sabíamos que seria difícil nos concentrarmos totalmente no trabalho com tamanha movimentação. Troquei olhares com e Drew, reprovando mentalmente a ideia de Tom de nos reunirmos ali, até o loiro aparecer à porta de uma das salas individuais de estudo, acenando para nós.
- Gênio! – deu um beijo no rosto de Tom ao entrarmos na sala e sorriu. – Como não pensamos nisso antes?
A sala era, de fato, espaçosa. Continha uma mesa redonda no centro, com oito cadeiras. Ao fundo, outra mesa encostada à parede com dois computadores. Também tinha um bebedouro próximo à janela, que dava visão para a própria biblioteca, cuja cortina estava fechada.
- Está sendo difícil reservar essas salas. Mas eu conversei com jeitinho e a Sra. Willous concordou em nos deixar essa sala reservada permanentemente até o fim do projeto. – Tom explicou e sorriu, sentando-se ao meu lado.
- Tem algo que você não consiga fazer, Tom? – Pietro perguntou e todos riram, talvez não percebendo a breve troca de olhares que ocorrera entre mim e ele em seguida.
- Eu andei pensando e tive uma ideia para o nosso trabalho. – Audrey disse. – Por que não montamos uma revista?
Um breve silêncio se fez, enquanto todos ponderavam a sugestão.
- Detalhes. – pediu .
- Nós podíamos escrever artigos sobre variados temas, reunir fotos e montar uma revista. Podemos procurar ou até mesmo criar cartoons, tirinhas, para deixar o trabalho mais interativo. Podemos rodar uma quantidade significativa e montar um estande como uma barraca de revistas mesmo.
- Eu gostei. – opinei.
- Eu também. – disse Tom.
- Nós já temos a pesquisa toda pronta. É só entregar ao Garcez agora, e focar na apresentação. Se ficar decidido por isso mesmo, temos que começar a nos mexer logo. – Drew falou e todos assentiram.
- Alguma objeção? – perguntou e todos negaram. – Então fechou. Nós já podíamos começar a escrever alguma coisa, né?
- Sim. E por que não dividimos as funções? Fica a cargo de todos escreverem os artigos, mas, por exemplo, Dougie e Drew pesquisam imagens, fotos e cartoons.
- Eu sei mexer com photoshop, se ajudar. – disse Pietro.
- Ajuda sim! Então Pietro fica com a diagramação, e Audrey se encarregam pela montagem das páginas e desing, e e eu nos encarregamos das correções e de mandar para a gráfica. – sugeriu Tom.
- Por mim, tudo bem. – Dougie disse.
Definições feitas, pusemos-nos a trabalhar. A ideia de ter uma função em comum com Tom, e a possível chance de termos de nos encontrar a sós além da monitoria para isso, me causava certo frio na barriga.

Assim que cheguei em casa, percebi certa agitação na sala de estar. Hugo Jones e Diana conversavam, mas meu cansaço impedia que eu prestasse atenção no assunto. Subi as escadas e fui direto para o quarto, fechando e trancando a porta. Despejei bolsa e livros na cama, e me arrastei até o banheiro. Um banho quente era tudo que eu precisava.
Sentindo a água escorrer pelo meu corpo, fechei os olhos. , tia Lucy, Tom, Daniel, Laline, Dilan. Eram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, que eu, sinceramente, temia não dar conta. Minha sanidade era o meu ponto de equilíbrio, eu precisava dela para me manter naquele inferno. E em pensar que eu estava naquela casa só há algumas semanas...
Desliguei o chuveiro e me enrolei na toalha, deixando que alguns pingos formassem um rastro pelo chão até o closed. Troquei de roupa, vestindo um shortinho branco e uma blusa qualquer de mangas compridas. Deixei a toalha jogada sobre a cama e, sentindo minha barriga reclamar, tomei o rumo da cozinha.
Ao passar frente à sala de estar, percebi Diana sozinha. Ela estava sentada encarando algum ponto fixo no chão, com um braço cruzado no peito e o outro apoiado sobre o apoio do sofá. A mão na testa, a feição preocupada. Tive vontade de perguntar o qual era o problema, mas o barulho das chaves girando na porta, e logo a figura de Daniel irrompendo pelo hall de entrada, me obrigou a desistir. Antes que ele me visse, tornei a fazer meu caminho.
Maria mexia calmamente algo no fogão quando cheguei e a cumprimentei.
- O jantar já será servido.
- Não, eu só quero um sanduíche mesmo. Não estou com tanta fome...
A moça então baixou o fogo sob a panela e, em dois minutos, me entregou um sanduíche que aparentava estar delicioso. Percebi a ausência de Laline, mas decidi não fazer nenhum comentário. Logo mais acabariam desconfiando do meu constante interesse pela vida dela, e se eu realmente quisesse ter certeza das minhas suspeitas, deveria ir com calma.
Enquanto seguia para o quarto com o prato e uma latinha de refrigerante nas mãos, passei pelo escritório cuja porta estava entreaberta.
- Eles não podem, Gilspert! Isso é um abuso! – o Sr. Jones dizia nervoso, pelo que entendi, ao telefone. – Eles não podem me obrigar a esse tipo de exposição!
Houve um breve silêncio, que não demorou a ser interrompido.
- Esse será um evento importante, e nada pode dar errado. Toda a imprensa estará presente, políticos, sócios e acionistas da empresa. Sem contar os clientes! Já pensou nas consequências que a aparição dela pode trazer?
Franzi o cenho.
- Eu não quero saber! – Hugo Jones aumentou levemente o tom de voz, tornando a baixá-lo quando voltou a dizer – Você é o meu advogado, e espero que tenha competência suficiente para revogar essa decisão do juiz.
Antes que eu pudesse ouvir, ou sequer assimilar qualquer outra coisa, ouvi passos na escada. Tratei de me afastar da porta, ficando atrás de uma parede onde Daniel não pudesse me ver. Assim que ele entrou na sala de jantar corri para o quarto, trancando a porta. Deixei o prato e a latinha de refrigerante sobre a escrivaninha, caminhando até a janela.
Algo não estava me cheirando bem. Minha intuição dizia que a pessoa a qual Hugo Jones se referia era eu. A conversa não havia se fixado por inteiro em minha memória, mas minha intuição também dizia que o motivo de nervosismo dele era o mesmo da preocupação de Diana. Meus pensamentos foram interrompidos pela vibração rápida do celular, indicando uma mensagem recebida.
‘Não culpe por ceder à minha chantagem emocional e me dar o seu número. Boa noite. Tom.’

Sorri.

Capítulo dezenove.



Cheguei por trás de , sentada próxima à janela, colocando o celular bem à frente de seu rosto. O visor mostrava a última mensagem recebida, noite passada.
- Bonito, hein? Distribuindo meu número para estranhos.
Nós rimos.
- Estranha é você, que não deu você mesma seu telefone a ele!
Sentei ao seu lado, descansando a bolsa sobre o apoio da carteira.
- Você é muito apressada, !
- Você que é muito devagar! Mas e ai, decidiu se vai ao jogo, sexta?
Revirei os olhos.
- Não vou ter sossego enquanto não disser que vou, não é?
- Exato. - piscou e sorriu.
- Ainda estou pensando. Sem pressão psicológica, ok?
Antes mesmo que pudesse responder, meu celular tocou, anunciando uma mensagem.
‘Te vejo hoje, às duas da tarde?’
- Ainda estou esperando um “obrigada”, viu? – brincou.
Apenas a olhei, rindo, em seguida voltando minha atenção para o visor.
‘Pontualmente.’

Quando cheguei à biblioteca, me perguntei como Tom pretendia estudar com aquele monte de pessoas sentando e levantando e andando de um lado para o outro. Não havia concentração que aguentasse aquilo. Me perguntei também se ele já tinha chegado, pois não o estava vendo em nenhuma das mesas. Até que me ocorreu um estalo.
Percorri o olhar pelas janelas das salas individuais e lá estava ele, na mesma sala que a Sra. Willous concordara em nos deixar reservada para o projeto. Tom deixara a cortina propositalmente aberta para que eu o visse.
Abri a porta devagar, desviando sua atenção das anotações que fazia.
- Achei que essa sala era para o projeto. – sorri, sentando-me ao seu lado.
- E quem disse que não falaremos sobre o trabalho?
Tom me entregou algumas folhas de papel. Textos para serem corrigidos.
Fiz uma leve careta, deixando os papéis de lado.
- Antes disso preciso de uma revisão muito boa para a prova do Stevens, depois de amanhã.
- Prova? Realmente, é prioridade. – Tom sorriu e puxou da mochila o livro que vinha utilizando para estudar comigo.
Passaram-se algumas horas a mais do tempo da monitoria, e o sol começava a se pôr quando guardei na bolsa os textos do pessoal, já corrigidos.
- Você tem planos para o fim de semana? – Tom perguntou enquanto saíamos e trancávamos a sala de estudos, caminhando para fora da biblioteca. Ri irônica por dentro.
- Provavelmente não. – dei de ombros.
- Ótimo. – ele apenas sorriu de lado, colocando as mãos nos bolsos dianteiros de sua calça jeans. – Tente continuar sem planos para o sábado à noite.
- Isso é uma espécie de convite? – ri, olhando para os degraus da escada enquanto descia.
- Mais ou menos. – ele também riu. – De qualquer forma, mantenha-se sobre aviso.
- Tudo bem. – franzi levemente o cenho. Tom estava me convidando para o que, exatamente?
Chegamos aos portões da escola e nos viramos um para o outro.
- Até amanhã? – ele perguntou com um breve suspiro.
- Se você não resolver sumir de Londres, sim. – brinquei.
- Não, não vou sumir. Tenho motivos de sobra para ficar aqui. – Tom respondeu em meio a uma risada, que cessou em um sorriso de canto. Desviei meu olhar do dele, sem jeito, e coloquei uma mecha do cabelo para trás da orelha.
- Bom... Então acho que nos vemos amanhã. – voltei a olhá-lo e ele assentiu.
Despedimos-nos com um abraço e um beijo no rosto, acenando um para o outro ao caminharmos em direções opostas. Esperei até que seu volvo preto sumisse de vista, e só então tomei o rumo da casa dos Jones.
Ao atravessar a porta da frente, caminhei direto para o quarto. Mesmo estando próximo ao horário da janta, não sentia fome. Joguei a bolsa sobre a cama, que caiu aberta, deixando aparecer a capa vermelho vinho do livro que há dois dias esperava para ser devolvido a Tom, e eu nunca lembrava.
- Tsc, que droga. – suspirei, me odiando. Daqui a pouco o avô de Tom começaria a achar que eu afanara o livro.
Saquei o celular do bolso e, meio apreensiva, busquei pelo ícone Mensagens, abrindo a caixa de texto. Antes mesmo de digitar qualquer coisa, o aparelho começou a vibrar em minhas mãos, anunciando o nome de no visor. Estranhei, nunca tinha me ligado assim, do nada, a menos que tivéssemos combinado alguma coisa.
- Hey! – atendi sorrindo.
- Hey! O que está fazendo? – ela perguntou e aprecia empolgada.
- Na verdade, acabei de chegar do colégio. A monitoria se estendeu um pouco hoje. – respondi, sentando-me na cama de frente para o espelho.
- E não vai me contar o porquê? – eu podia enxergar o sorriso de canto que provavelmente tinha nos lábios, o que me fez rir.
- Porque quinta-feira tem a prova do Sr. Stevens, se é que você está lembrada disso, o que nos levou a fazer mais exercícios do que o habitual. Sem contar com alguns textos para a revista do interdisciplinar que nós corrigimos depois de estudar.
- Ah, eu tinha algo mais animador em mente. – disse e nós rimos. – Mas ei, quer dar uma volta? Sei lá, comer alguma coisa, fazer algo diferente.
- Não vai estudar?
- Preguiça. – suspirou. – Vamos, por favor.
Olhei o relógio, seis e quarenta e oito da noite. Mirei meu reflexo no espelho. Estava cansada pela tarde exaustiva de estudos, e a companhia de era sempre muito agradável. Nós ríamos, nos divertíamos, e compartilhávamos pequenas confidências – principalmente quando o assunto era Thomas Fletcher. Talvez me fizesse bem sair um pouco à noite, mesmo que numa terça-feira.
- Te encontro em frente à Starbucks em quarenta minutos. – eu disse e soltou um gritinho de empolgação.
- Combinado! Até mais. – nos despedimos e desligamos.
Fiquei, por alguns instantes, encarando o celular em minhas mãos. Um sorriso surgiu em meus lábios, e com ele segui para o chuveiro. Enquanto a água quente escorria por todo meu corpo, percebi o quão ansiosa eu estava para sair com .
Uma brisa fria irrompeu pela janela quando saí do banheiro, me lembrando de pegar um casaco antes de sair. Entrei no closed, escolhendo – dentre as minhas poucas opções – uma calça jeans preta e uma blusa também preta de mangas compridas. Calcei minhas botas sem salto, e procurava por meu cachecol quando ouvi batidas na porta.
- Só um minuto! - saí do closed e me deparei com Diana quando destranquei a fechadura.
- Vai sair? – ela perguntou, certamente estranhando que eu estivesse tão arrumada.
- Er... Sim. Vou sair com uma amiga. – respondi meio sem jeito. Eu devia pedir permissão?
- Ah, tudo bem. Eu apenas vim lhe avisar que o jantar já está pronto. – ela tinha um sorriso terno no rosto.
- Obrigada. E não se preocupe, eu não chegarei tarde.
Diana apenas assentiu e analisou minha roupa brevemente. Pediu licença e se retirou. Voltei ao closed, ainda procurando por meu cachecol, e depois de alguns minutos gastos com essa procura, saí para me olhar no espelho. Contudo, antes de encarar meu reflexo, meus olhos pousaram em um sobretudo branco sobre a cama, com um bilhete ao seu lado.
‘É novo, ainda está com a etiqueta. Divirta-se essa noite.’
A peça de roupa era, simplesmente, linda.
Fiquei encantada, e ao mesmo tempo sem saber se devia aceitar o presente. Parecia ser tão caro! Sem resistir, experimentei-o por cima da roupa preta. Parecia ter sido feito sob medida para mim. Suspirei. Eu apenas ficaria com ele porque meus casacos estavam realmente velhos, e como era a primeira vez que eu saía verdadeiramente por Londres, queria estar bem vestida.
Desisti do cachecol e terminei de me arrumar. Meus cabelos estavam soltos, caindo em cascata por minhas costas. Peguei minha bolsa, jogando-a no ombro e olhei meu relógio de pulso. Faltavam dez minutos para encontrar , o que era tempo suficiente para que eu caminhasse até a Starbucks.
Desci as escadas e, ao passar pela sala de jantar, meu olhar cruzou com o de Diana. Dei um leve sorriso, como se a agradecesse pelo presente, e ela retribuiu. Antes que Daniel se virasse para mim, saí pelas portas da frente, indo em direção ao local em que esperaria por .
Não demorou até que seu conversível parasse à minha frente. Sorri e me aproximei do carro, que pela primeira vez eu via com o teto levantado.
- Hello, pretty!
- Oi, ! – a cumprimentei ao sentar no carona.
- Adorei a roupa! – ela elogiou, dando partida no carro.
Eu apenas sorri, agradecendo mentalmente a Diana.
- E então, aonde vamos em plena terça-feira? – perguntei.
- Vamos dar uma volta. Você, que é turista, já foi ao London Eye? – perguntou, enquanto as ruas de Londres passavam pela janela do carro.
- Uma vez, no fim da tarde. – respondi, lembrando o dia em que Diana fizera um pequeno tour comigo pela cidade.
- Então você não foi. Precisa ver que perfeito é à noite! – sorriu.

Aos nossos pés, Londres brilhava e esbanjava um charme estupendo. Mesmo que aquela não fosse a minha cidade preferida, e que eu nem mesmo desejasse estar lá, era impossível negar o quanto ela era bonita vista do alto, através daquela cabine de vidro.
- Bolton não tem uma paisagem assim, tem? – quebrou o silêncio que já durava por alguns minutos de forma gentil. A cabine era só nossa.
- Não, mas... – me interrompi, sorrindo. – A poucas quadras da minha casa, que era em uma parte mais afastada do centro, tinha uma torre de abastecimento de água abandonada. A caixa d’água já era velha e desgastada, assim como as vigas que sustentavam a torre. Eu e meus amigos costumávamos subir lá.
- Vocês não tinham medo de morrer? – perguntou e eu apenas neguei, mantendo meu olhar perdido em qualquer ponto de Londres.
- Não. Muitas vezes eu ia lá sozinha. Dava pra ver quase toda a cidade. As casas, os prédios, as chaminés. Ficar ali, observando tudo tão quieto, me trazia tanta... paz. – minha voz não era mais do que um sussurro ao final da frase.
Paz era tudo que eu não vinha tendo nos últimos dois meses.
- Você fala tão pouco de lá... E de você também. – me encarava.
Suspirei, voltando meu rosto para ela e retribuindo seu olhar.
- Não tenho muito que falar de mim. – dei de ombros, voltando meu olhar para através do vidro.
- Ah, claro que tem! Somos amigas e eu nem sei qual é a sua cor favorita, ou a comida que você mais gosta! – riu, também me fazendo rir.
- Sabe, , eu nunca tive muitas amigas. Garotas mesmo. Sempre me entendi melhor com os meninos.
- Com esse mel que você tem, quem não se entenderia? – brincou e nós rimos mais uma vez.
- É sério... Eu nunca tive uma amiga de verdade, com quem eu pudesse conversar e compartilhar certas coisas. Você é a primeira. – a olhei, e percebi que, assim como eu, sorria. – E eu queria te agradecer por isso. Por ter me acolhido nessa cidade esquisita, e por estar sempre ao meu lado, mesmo tendo outras amigas, como a Audrey. É um conforto te ter por perto.
- Se você me fizer chorar e borrar o meu rímel, eu te jogo daqui de cima, garota. – me puxou para um abraço apertado. – Você não tem o que me agradecer. – desfizemos nosso abraço. – Desde que eu te vi chegando quietinha lá na sala, achei que seria legal falar contigo. E não só foi legal, como está sendo ótimo ter a sua amizade.
Tive vontade de apertar as bochechas de . Nós sorrimos uma para a outra e nos abraçamos pelos ombros, admirando a Londres que acabava de selar uma nova amizade.

Por a cabine ser climatizada, eu havia esquecido o quão frio estava lá fora. Minhas mãos estavam geladas, bem como meu nariz. Os bolsos dos sobretudos não eram suficientes para aquecer meus dedos.
- Onde estão suas luvas? – perguntou enquanto caminhávamos até o carro.
- Nunca precisei de luvas em Bolton.
- Amiga, luvas aqui são como calcinhas! Vamos dar um jeito nisso. – destravou as portas de seu conversível, e, assim que entramos, ela nos guiou até uma rua cheia de lojas. Era como um shopping a céu aberto.
- Vem, é bem ali. – apontou para a esquina, e só de olhar a fachada da loja senti o cartão de Hugo Jones pesar em minha bolsa.
parecia conhecer tudo perfeitamente. Fomos direto à seção de acessórios, e eu não sabia exatamente para onde olhar.
- Pensa rápido! – e logo senti algo de tecido grosso e macio atingir meu rosto. Ri. Era um par de luvas pretas, simples. – Esse tipo você tem que ter, porque combina com tudo. Pegue um par branco e um marfim também. Não sei que roupas você tem, mas vai precisar de todas elas. – desatava a falar enquanto ia me entregando as coisas.
- , acho que já está...
- AI, QUE LINDO! – apontou para um gorro de cor clara, com algumas pedrinhas brilhantes bordadas por entre o tecido. Das laterais pendiam umas tranças que se estendiam até a altura dos ombros, com dois pequenos pompons nas pontas.
Ela correu até o mostruário, tirando o gorro de lá. De fato, ele era lindo, e em segundos estava em minhas mãos.
- Fica com ele. Vou pedir um preto pra mim.
Abri a boca para argumentar, mas já estava entretida com uma das vendedoras. Suspirei, olhando para tudo o que segurava nas mãos. Nem me atrevi a conferir as etiquetas. Eu já estava ali, e não dava para recuar. E além do mais, eram só umas luvas e um gorrinho para sair à noite. Eu precisava me proteger do frio, não é?
Não com três pares de luvas.

Já passava das dez e trinta e duas da noite quando cheguei em casa. Minha respiração era rápida. Além de ter andando às pressas da Starbucks (onde eu e paramos para comer) até ali, o peso das sacolas não ajudava. Talvez eu tivesse gastado mais do que pretendia naquela loja. Fechei a porta com cuidado, e agradeci mentalmente por não ter ninguém naquele andar.
Subi as escadas e segui para o quarto, mas antes que eu pudesse entrar, a voz de Diana soou pelo corredor.
- Ah, você já chegou! Que bom. Estava preocupada.
A olhei meio sem jeito, ainda segurando as sacolas.
- Eu não achei que fosse demorar tanto. Minha amiga chamou apenas para comermos algo, e...
- Tudo bem, . Não estou pedindo explicações. – Diana sorriu gentil, e seu olhar desviou até minha mão. – Vejo que aproveitaram e fizeram compras.
- Não! Digo... Não foi nada demais. Apenas umas luvas, um...
- Ei, eu já disse que está tudo bem. – ela soltou uma leve risada. – Vá descansar. Espero que tenha se divertido.
Eu apenas sorri e assenti.
- Boa noite, Diana. – despedi-me e, finalmente, entrei no quarto.
Deixei as sacolas sobre a cama e fui direto para banheiro. Precisava de um banho quente. Por sorte, minha roupa de dormir já estava pendurada por ali, o que adiantou bastante o meu lado quando terminei de me enxugar.
Dentes escovados, saí do banheiro, tomando um susto ao ver Daniel remexendo as minhas sacolas.
- Ei! – quase gritei, correndo até ele e arrancando de suas mãos as coisas que eu havia comprado.
Ele me olhou de cima a baixo. Seu olhar era um misto de raiva e nojo.
- Aproveitadora. – Daniel disse apenas, me dando as costas. Segui seus passos e tranquei a porta assim que ele pôs os pés do lado de fora.
- Idiota. – reclamei.

Capítulo vinte.



Saí da sala e corri – não literalmente – para a cantina, onde esperaria por . Ela ainda estava se batendo em algumas questões do teste de matemática. Depois de pagar por um suco de laranja, sentei em uma das mesas e tirei meu caderno de dentro da bolsa, junto com minha grafite e borracha. A questão cinco estava martelando na minha cabeça, e eu precisava ter certeza de que tinha feito os cálculos certos.
Passei algumas páginas até encontrar questões semelhantes às da prova, que eu, por sorte, havia resolvido com Tom na monitoria. Comecei a refazer a questão, e me mantive tão concentrada que nem percebi a presença dele, que se sentou bem à minha frente.
- Raiz de dois sobre quatro.
Ergui minha cabeça para Tom, que se debruçava sobre a mesa, apoiado nos cotovelos.
- Como você sabe?
- Ele sempre coloca questões repetidas nos testes. Por isso repassamos algumas parecidas, na terça. Essa aí foi a que teve o maior índice de erros no ano passado.
Então não foi sorte...
- E me deixe adivinhar... Você acertou. – sorri, tomando um gole do suco.
Tom soltou uma leve risada a assentiu.
- E você também. – ele apontou para a questão refeita no meu caderno.
- Acho que sim, mas fiquei em dúvida. – dei de ombros.
Peguei minhas coisas para guardá-las de volta na bolsa, quando me lembrei do livro de poesias.
- Ah! Antes que eu esqueça, de novo. – entreguei a ele o livro. – Já é quinta-feira, e desde segunda eu estou com ele para te devolver.
- Digo ao meu avô que gostou? – Tom sorriu.
- Não. Diga que adorei. – sorri de volta.
- Quem me ajuda a jogar o Stevens do alto do Big Ben? – apareceu, sentando-se ao lado de Tom. Deitou sua cabeça no ombro dele e suspirou.
Nós rimos.
- Podemos planejar isso, depois de falarmos da festa, sábado.
- Festa? – imediatamente se endireitou, encarando Tom com os olhos brilhando.
- Sim. Às oito da noite, lá em casa. – ele assentiu. – Vocês vão, não é?
- Que pergunta! Óbvio que sim! – disse empolgada, sem me dar tempo de dizer nada.
- Ótimo. A propósito, , teremos que remarcar nossa monitoria de hoje para outro dia. Preciso resolver umas coisas, e...
- Tudo bem. Sem problemas. – eu o interrompi, já imaginando que as tais coisas que ele tinha para resolver eram sobre a festa.
Tom sorriu e se despediu de nós, levantando enquanto dizia que precisava convidar o resto do pessoal. Pelo visto, muita gente iria àquela festa.
- Só o colégio inteiro. – disse e eu ri.
- Tom conhece tantas pessoas assim?
- Ele é, simplesmente, o queridinho universal desse lugar. Como não conheceria? Fora que ele...
- Ok, já entendi. – interrompi , tomando mais um gole do meu suco. Ela tomou o copo da minha mão e eu fiz sinal para que ficasse com ele todo.
- Quer se arrumar lá em casa?
Abri a boca, mas voltei a fechá-la no mesmo instante, pensando melhor. Eu parecia uma chata, sempre recusando os convites que recebia para me divertir. Já estava há quase dois meses naquela cidade, e tudo que eu tinha feito de realmente interessante fora a ida ao clube e o passeio com na terça à noite.
Por que não uma festa?
Suspirei e sorri.
- Claro! Por que não? – respondi.
se engasgou com o suco, mas sorriu radiante. Certamente não esperava que eu aceitasse com tanta facilidade.

O sol já havia se posto, e eu ainda encarava minhas roupas, sentada no chão do closed. Mordi o lábio, respirando fundo. Nada ali parecia bom o bastante. Minhas calças jeans estavam todas gastas, meus poucos vestidos não eram arrumados o suficiente e minhas blusas não deixariam nem um poste decentemente apresentável para uma festa.
Fiz careta. Por que não tinha pensado nisso antes de combinar tudo com ? Levantei e passei a mão por minhas roupas, tirando uma calça do cabide. Deixei-a apoiada em meu braço, enquanto procurava por alguma blusa, quando senti o celular vibrar em meu bolso. Atendi sem olhar no visor.
- Ei, pequena. – ele disse.
- ! – sorri.
Fazia alguns dias que nós não nos falávamos, a não ser por mensagens rápidas.
- Ocupada? – ele perguntou, e eu percebi que seu tom de voz estava mais alegre.
- Nunca pra você, sabe disso. – respondi, saindo do closed. Joguei a calça sobre a cama e caminhei até a sacada, encostando-me à grade.
- Sei? Outro dia você estava na casa do tal Tom, e...
- Tsc, olha o drama. – o interrompi e riu.
- Como você está?
Suspirei.
- Estou bem, eu acho. Essa semana tem sido bem agitada.
- É o seu irmão enchendo o saco?
- Também. – soltei uma risada fraca, sem humor. Se não fosse notável a ironia que depositava à palavra ‘irmão’, eu já teria pedido que ele não a repetisse – Na verdade, é muita coisa acontecendo de uma só vez. – encarei qualquer ponto do quintal dos Jones. – Mas e você, como está?
- Um pouco mais aliviado. Minha mãe tem se sentido melhor. Nós fomos à outra cidade para que ela fizesse novos exames, e parece que os resultados não são dos piores.
Sorri.
- Que notícia boa, ! Dê um beijo em tia Lucy por mim.
- Ela está dormindo agora. Chegamos hoje pela manhã, mas pode deixar que darei seu recado.
- Por isso seu celular estava direto fora de área?
- Foi sim.
Ficamos alguns instantes em silêncio.
- Vai ter um jogo de futebol americano, amanhã no colégio. Vamos? – brinquei.
- Claro! Afinal, se não eu, quem vai te explicar as regras do jogo? – riu.
- Provavelmente a .
- Estão se dando bem?
- Muito. – suspirei e sorri.
- Ela me pareceu legal, aquele dia em que vocês foram ao clube.
- Ela é ótima. Saímos para dar uma volta, terça à noite.
- Aonde foram? Alguma boate?
Revirei os olhos.
- Aham. Porque duas garotas menores de idade sempre conseguem entrar em boates em plena terça-feira.
riu.
- Mas nós conseguiremos entrar em uma festa que vai ter no sábado. – eu disse.
- É... Pelo visto a sua semana está sendo agitada mesmo. – comentou e o senti um pouco incomodado com isso.
Mordi o lábio, encarando o céu já quase escuro por completo.
- ... Eu preciso me distrair. Não é como se eu estivesse em uma colônia de férias em Londres.
- Eu entendo. Só... Espero que todos esses eventos e essas pessoas não acabem mudando você.
- Um jogo de futebol não vai me mudar, .
- Mas uma festa, talvez. E algo me diz que essa é só a primeira.
- Você está falando como se não conhecesse o meu caráter, a minha personalidade. Acha que sou tão influenciável assim?
- Não é isso...
- Eu espero que não seja mesmo. – rebati, triste com aquelas palavras.
- Desculpe. Não quero que me entenda mal. – ele disse baixo.
- Eu não vou mudar, e nem quero, . Posso estar cercada de luxo e de pessoas bem vestidas, cujas vidas sociais são extremamente badaladas, mas eu não faço parte disso. Estou sendo obrigada a conviver com esse tipo de coisa, não foi uma escolha minha. Você, melhor do que ninguém, deveria saber. – disse calma e pausadamente.
- Eu sei... Esquece, vai.
Dei um meio sorriso. No fundo eu entendia que ele só estava preocupado comigo.
- Bobo.
- Boba. Mas me conta, onde vai ser a festa?
Comprimi os lábios, deixando-os em linha reta. Girei meu corpo devagar, caminhando até a cama.
- Er... – deitei, mesmo com tudo escuro – Vai ser na casa do Tom.
- Nem sei por que perguntei. Tinha certeza que essa loira estava envolvida. – reclamou, claramente enciumado.
- Você pode vir e trazer a Farah, se quiser. – fiz uma cara de nojo. Provavelmente, ele também. – Você nunca mais me falou dela.
- Estamos na mesma. – ele disse de forma casual, como se desse de ombros.
- Hm. – resmunguei.
Então ele ainda está com ela...
Suspirei. Por mais que eu e nunca tivéssemos assumido nenhum tipo de compromisso, não era cômodo saber que há mais de um mês ele estava “sério” com a mesma garota.
- Você gosta dela? – perguntei. Minha voz saiu rouca.
- Farah é uma garota legal.
- Tom também é um cara legal.
- É um mauricinho. – desdenhou.
- Você está sendo injusto.
- Você está gostando dele? – perguntou com calma, num tom mais baixo.
Deitei de barriga para cima, encarando teto, em silêncio. esperou pacientemente até que eu respondesse.
- Não sei. – minha voz não era nada além de um sussurro. No fundo, nem eu mesma havia parado para pensar daquela forma.
- Só tome cuidado, . Eu não quero que você tenha mais um motivo para se magoar no meio dessa gente.
Sorri fraco.
Conversamos por mais alguns minutos, até tia Lucy acordar e chamar por . Desligamos, mas permaneci deitada na mesma posição. Respirei fundo com os olhos fechados, voltando a pensar a respeito do que estava sentindo por Tom.
Talvez, em outro contexto, eu já tivesse aceitado sair com ele. Um contexto em que ele não fosse tão rico, em que eu estivesse feliz e satisfeita em relação a onde moro, em que eu não sentisse como se traísse outro sentimento, e, acima de tudo, um contexto em que eu não tivesse que esconder tanta história sobre a minha família.

Eu e atravessávamos o pátio do colégio em direção ao estacionamento. Decidimos dar a volta pelo lado de fora, já que fazia um dia lindo. Ao passarmos próximas à quadra, pudemos ver a cheerleaders ensaiando alguma coreografia, na minha opinião, descaradamente obscena para o jogo da noite.
- Putas. – resmungou e eu ri.
- Tom não apareceu hoje. – comentei esforçando-me para parecer casual.
- Também reparei. – respondeu da mesma forma, mas logo me lançou um sorrio maldoso. – Saudades?
- Para com isso. – esbarrei o ombro no dela, rindo.
Chegamos ao carro e jogou seu material escolar no banco traseiro.
- Te pego mais tarde lá na Starbucks então?
Assenti. finalmente me convencera a ir ao jogo.
- Não acha mais fácil eu passar na sua casa mesmo?
Olhei para o lado, buscando tempo de inventar uma desculpa.
- Não, é que... Não é caminho. E a fachada da casa está reformando, então é melhor você me encontrar na Starbucks mesmo.
deu de ombros, convencida.
- Tudo bem, eu te ligo quando estiver saindo de casa. E amanhã? Tudo certo, né?
- Tudo sim. – sorri - Pode preparar meu colchão no seu quarto.
- Vou fazer melhor que isso. – piscou.
Nós nos despedimos e eu dei meia volta, fazendo o caminho contrário. De longe, vi Daniel rodeado de amigos, andando para o outro lado do estacionamento. Falavam alto e Daniel ria, assim como o garoto de olhos fortemente azuis que o acompanhava. Os dois entraram juntos no carro, depois de acenarem para o resto.
Percebi que estava parada no meio da calçada, encarando-os, e logo olhei em volta, me recompondo. Apressei o passo até a mansão dos Jones. Se Daniel estava indo direto para casa, eu não sabia, mas não queria ter o azar de descobrir da pior maneira.
Entrei pela cozinha com a respiração acelerada. Maria me olhou com o cenho franzido.
- Está tudo bem, menina ?
- Está, eu só... Só vim com pressa. – disse, ainda um tanto sem fôlego - Por acaso Daniel já chegou?
Maria me olhou sem entender. Na certa estava estranhando que eu perguntasse logo por Daniel.
- Ainda não. Mas por que...?
Ouvimos o barulho de um carro estacionando na garagem. Corri até a cesta de frutas em cima da mesa, pegando uma maçã, e depois fui até o armário, pegando um pacote de biscoitos.
- Não estou com muita vontade de almoçar agora. Dor de cabeça. – menti - Mais tarde eu desço e como algo decente, não se preocupe. – passei por Maria, dando-lhe um beijo no rosto, e voei para o meu quarto em tempo de ouvir, lá de cima, a voz de Daniel ecoar pela casa.
- Sobe lá. Vou só avisar pra servirem o almoço.
- Certo. – a segunda voz disse, e seus passos eram audíveis enquanto subia a escada.
Fechei a porta com o maior cuidado possível, e, ainda encostada a ela, ouvi certa movimentação no quarto da frente. Notei que minha respiração ainda estava desregulada, mas de nervosismo. Não demorou a mais passos serem ouvidos pelo corredor.
- Liga o ar condicionado aí, Harry! – Daniel disse, e tudo ficou em silêncio.
Respirei fundo, me afastando, e sentei na cama. Levou apenas um segundo para que minha porta fosse escancarada, mas sem qualquer ruído. Saltei do colchão com o susto, e saí de perto de Daniel o mais rápido que consegui.
- Calada. – ele disse num tom de voz baixo e pausado, autoritário, quando tomei ar para perguntar que merda ele achava que estava fazendo, invadindo meu quarto daquele jeito. – Eu não quero ouvir você respirar, garota.
Fiquei apenas o encarando.
- Você não vai sair desse quarto, entendeu?
Apenas ergui uma sobrancelha.
- Por que eu faria isso? – rebati.
- Escuta aqui, sua infeliz. – Daniel se aproximou dois passos, os quais eu recuei. – Acho bom você pensar duas vezes antes de querer me afrontar.
Suas íris azuis me fitavam sérias, frias, e eu preferi não arranjar uma confusão maior. Daniel deu as costas e saiu, fechando a porta. Respirei fundo.
Realmente, talvez fosse melhor que eu ficasse quieta. Era alguém do colégio que estava ali, alguém do terceiro ano. Pior, um garoto do terceiro ano. O que ele pensaria, vendo uma menina na casa do amigo? Porque, óbvio, ele saber que ela era a irmã de Daniel estava fora de cogitação. Daniel jamais diria a verdade. Depois de pensar insanidades, com certeza o garoto espalharia para todos os caras do colégio sobre a nova ninfeta que Daniel estaria pegando, e os rumores se espalhariam até chegar aos ouvidos de Tom. Ele ficaria horrorizado, decepcionado. Eu já podia até ouvir ele me dizendo algo como “não pensei que você fosse dessas” ou “não esperava isso de você”. Ah! Sem contar o interrogatório que me faria, e que eu ficaria com fama de puta.
Não. Definitivamente, eu não queria ser vista na casa dos Jones.

Eu estava morrendo de fome! Não cheguei a descer depois de me trancar no quarto com aquela maçã e o pacote de biscoito, o que fazia meu estômago reclamar a tempos. Terminei de me arrumar e olhei o relógio de pulso, ainda faltava uma hora para o horário que eu combinara com na Starbucks. Decidi que sairia de casa mais cedo para comer algo realmente satisfatório por lá, antes de irmos ao jogo.
Olhei-me no espelho mais uma vez, ajeitando o gorro, que comprara com dias antes, por cima do cabelo solto. Vestia uma calça jeans e uma blusa qualquer, por baixo do moletom marrom com as letras GAP em vermelho. Calcei meu all star branco e as luvas também brancas, transpassando a bolsa pelo ombro.
Saí do quarto com cuidado. A porta da frente estava fechada, e o som da guitarra de Daniel soava abafado. Pelo menos parecia uma guitarra. Aproveitei que ele e o amigo estavam bastante entretidos e corri para o andar de baixo, quase esbarrando em Diana ao pé da escada.
- Desculpe. – eu disse baixo. Encarei o topo da escada e Diana seguiu meu olhar.
- Algum problema? – ela sorriu.
- Não, eu só estou meio atrasada. – disfarcei, voltando a olhá-la.
- Vai sair? – ela então percebeu que eu estava mais arrumada do que o habitual para ficar em casa.
- É, vou ao... Ao cinema. – me corrigi. Melhor que ela não soubesse que eu iria para o mesmo lugar que Daniel. Não queria que ela comentasse nada.
- Ótimo! Divirta-se. – Diana sorriu e então ouvimos o barulho da porta se abrindo no andar de cima, e as vozes dos dois meninos pelo corredor.
- Até mais tarde. – disse rápido e irrompi para fora de casa, andando depressa até a esquina. Olhei para trás e tudo parecia tranquilo. Suspirei, aliviada, e continuei meu caminho até a Starbucks.
Já estava quase acabando de comer quando ouvi meu celular tocar.
- E ai, pronta para arrasar com os Blakers? – perguntou animada.
- Você nem imagina o quanto! – ironizei.
- Você podia ao menos fingir que está empolgada, !
Eu ri.
- Já está saindo de casa?
- Já! Sei que estou uns minutos adiantada, por isso vou tolerar se você atrasar dez minutos. Só dez!
- Eu já estou aqui, chata.
- Mas já? Tudo isso é ansiedade para o jogo?
- Não, tudo isso foi fome antes do jogo. E se você vier logo, ainda tem um muffin de chocolate aqui pra você.
- Não se mexa daí. – disse rápido e desligou, me deixando rindo sozinha.
Alguns minutos se passaram até aparecer à minha frente.
- Olha! O gorro! – ela apontou para a minha cabeça e eu sorri, assentindo.
Conversávamos sobre assuntos avulsos enquanto comia o muffin que eu havia separado para ela.
- Audrey anda meio estranha comigo. – ela se queixou, tomando um gole do meu chocolate quente, que já estava morno.
- Vocês brigaram?
- Não, por isso tenho achado esquisito. – ela franziu o cenho. – Não lembro de nada que eu tenha feito ultimamente que a possa tê-la deixado chateada.
- Nada em relação ao Dougie? Porque, desculpa, às vezes parece que ela sente ciúmes...
- Sente, eu sei. Mas o que eu posso fazer? Aquele tampinha é meu primo! E nós somos amigos, além disso. Eles já estão juntos há tempos, não é possível que só agora ela resolveu encrencar para o meu lado.
- Vai ver não é algo diretamente contigo. Ela pode estar passando por algum problema que esteja deixando ela estranha.
deu de ombros, terminando seu muffin.
- Agora, vamos! – disse assim que pagamos a conta, deixando que a empolgação tomasse conta dela novamente. Eu sorri e nós seguimos para o carro. Eu até que estava começando a entrar no clima.
Quando chegamos ao colégio, nos deparamos com o estacionamento lotado. No turno das aulas não se via nem metade daquela quantidade de carros. Levou alguns minutos até que encontrasse uma vaga e nós pudéssemos estacionar. Assim que saímos do carro, cujo teto estava levantado, o vento frio da noite londrina cortou nossas peles. Apertei o gorro contra a cabeça, escondendo minhas mãos no bolso frontal do moletom.
- Calma, daqui a pouco esquenta. – comentou, também encolhida em seu sobretudo e nós sorrimos.
Caminhamos até as arquibancadas. Estava tão cheia que me perguntei se haveria espaço para nós duas ali. subiu alguns lances dos degraus e foi caminhando devagar por entre as pessoas, que conversavam alto, gritavam e riam.
- ! – ouvi me chamarem e olhei um tanto perdida. – Aqui! – a voz berrou outra vez e procurei sua direção, dando de cara com Drew acenando loucamente. Segurei pela mão e apontei para o garoto um lance acima de onde estávamos, um pouco mais para o meio. – Aqui tem espaço, venham!
Fiz sinal para que ele esperasse um pouco, e, com certa dificuldade, conseguimos pular entre as pessoas para o lance de cima. Andamos até ele e o cumprimentamos ao alcançá-lo.
- Está sozinho? – perguntei.
- Pietro e os caras do street estavam aqui, mas preferiram ficar lá em baixo. Sobraram só eles dois. – Drew apontou para dois meninos ao seu lado, que eu reconheci do dia no clube. Eles estavam na partida de futebol em que eu havia jogado. Logo o comentário despudorado de sobre os meninos batendo punheta após o jogo, imaginando meus seios quicando, me veio à mente. Senti as bochechas esquentarem e acenei para eles brevemente em cumprimento, desviando meu olhar. Ri sozinha.
Ficamos os três batendo papo, esperando pelo início do jogo. Meu olhar vagou pela arquibancada, e eu encontrei quem menos desejava. Lá estava ele, mais uma vez rodeado de pessoas. Diferente de quando o vi pela manhã, algumas garotas também o cercavam e se insinuavam para ele. Fiz cara de enjôo. Como podiam se interessar por um estúpido como Daniel?
Ouvimos um rugir de tambores e logo uma música bem animada começou a tocar pelos autos-falantes espalhados ao redor da quadra. Todos na arquibancada se levantaram e gritaram, assistindo ao grupo de cheerleaders que invadia o campo. Todas usavam roupas justas com o símbolo e as cores do colégio, sorrindo abertamente. Posicionaram-se frente à arquibancada e começaram a coreografia que ensaiavam mais cedo.
Cruzei os braços, prestando atenção à dança. Elas começaram a gritar algumas coisas e a torcida – principalmente a masculina – acompanhava. Arriscavam até umas palmas sincronizadas quando as animadoras davam um sinal. Franzi o cenho.
- Foi pra isso que eu vim? – perguntei alto para que me ouvisse por entre todo aquele barulho. Ela riu e revirou os olhos.
Terminada a dança, uma voz grossa irrompeu pelas caixas de som, apresentando os times da noite. Grandalhões vestidos de vermelho e branco adentraram o campo correndo; a arquibancada adversária gritou e aplaudiu. Era minoria, mas ainda assim o espaço reservado à torcida dos Blakers estava incrivelmente cheio. Quando o time da nossa escola apareceu, uma onda de gritos soou, fazendo-me levar uma das mãos ao ouvido. Estavam todos ensandecidos, inclusive e Drew, que berravam ao meu lado. Ri deles.

- FILHO DA PUTA! – Drew xingou o jogador dos Blakers que avançara sobre um dos nossos, quando estávamos prestes a marcar um touchdown. – VAI DERRUBAR A LASCADA DA TUA MÃE, VIADO!
- Drew! Menos! – o repreendeu, mas antes que ele pudesse absorver o que a amiga tinha dito, já estavam os dois xingando novamente outro jogador que derrubara mais um do nosso time. Eu ria sem parar.
Estava completamente alheia ao real rumo do jogo. Na minha leiga opinião, aquele esporte não passava de um monte de rapazes sexualmente carentes se agarrando em público, mas estava sendo divertido ver e Drew surtarem com toda aquela pancadaria.
O moço da pipoca passou à nossa frente e eu comprei um saquinho, oferecendo à e Drew. Os dois praticamente me ignoraram, e então eu me sentei, sentindo o celular vibrar dentro da bolsa em meu colo. Era uma mensagem.
‘Quanto está o jogo?’
‘Está perguntando para a pessoa errada, . Mas acho que estamos ganhando. Ao menos somos a equipe com menos arranhões.’

Respondi rindo. Notei que havia uma mensagem não lida, e mordi o lábio. Era de Tom.
‘Me espere quando acabar o jogo, perto da cantina. Te ver de longe não tem graça.’
Olhei pela arquibancada procurando por ele, mas não o vi. Franzi o cenho, mas dei de ombros.
‘Ok.’ – respondi simplesmente.

Olhei o relógio, e já passava das onze e trinta e seis da noite. Estava tarde. As pessoas desciam lentamente da arquibancada, comentando e comemorando pelo jogo. Segundo Drew, nós demos uma lavada nos Blakers. Fingia prestar atenção à conversa dele e de , mas minha cabeça maquinava uma forma de voltar para casa. Mesmo perto, não era confiável andar da Starbucks até em casa àquele horário, e, com certeza, Tom se ofereceria para me deixar em casa. Eu precisava de uma boa desculpa.
Assim que pensei nele, avistei seu sorriso mais à frente. Ele estava impecavelmente bem vestido. Usava uma calça jeans de lavagem surrada, com uma camisa branca por baixo de um casaco preto. sorriu para ele e correu ao seu encontro, abraçando-o.
- Sumido! – ela disse rindo.
- Só um pouco. – ele riu. Olhou pra mim.
- Ei, como está? – Tom me abraçou.
- Depois dessa gritaria toda? Surda, no mínimo. – brinquei e me afastei devagar.
- E ai, Drew. – eles se cumprimentaram e Tom voltou seu olhar para mim. – Gostou do jogo?
- Achei que você ia assistir com a gente. – reclamou.
- Desculpe. Os meninos não me deixaram sair de perto, começaram a falar sobre a festa e... – de repente a voz de Tom foi sumindo, quando meu olhar se fixou em um ponto do estacionamento.
Daniel estava encostado na frente de seu carro com uns amigos e algumas das cheerleaders. Uma delas abriu a porta traseira e tirou uma sacola lá de dentro, pendurando-a no ombro e voltando sua atenção para os garotos. Pisquei algumas vezes. A ideia era péssima, surreal, mas eu acabaria sem ter uma melhor opção.
Voltei meu olhar para Tom, e Drew que falavam sobre os lances da partida. Vez ou outra meu olhar escapava para Daniel e sua turma, que parecia não ter pressa de ir embora.
- Mas então... Vamos? Está ficando tarde e frio de novo. – se abraçou.
- , se você quiser, eu... – Tom começou a falar, quando fingi atender ao telefone de repente, interrompendo-o.
- Ah, já chegou? Ótimo. Estou indo. – falei sozinha e voltei a guardar o celular na bolsa. – Então, eu vou voltar com um taxi conhecido da família.
- Não precisa, eu te levo. – Tom ofereceu.
- Fica para o próximo jogo, ok? – sorri e Tom suspirou, assentindo e me retribuindo o sorriso.
Despedi-me de todos e caminhei por uma direção qualquer, esperando os três se dissiparem. Assim que o fizeram, corri escondida para onde o carro de Daniel ainda estava estacionado. A iluminação ali não era muita, o que facilitava para mim. Aproximei-me devagar, vendo-o mais de perto. Das pessoas que estavam com ele antes, restavam apenas uma garota e o tal Harry que passara o dia todo na mansão com Daniel.
Respirei fundo. Eu precisava dar um jeito de entrar no carro, sem que eles me vissem. Tentei chegar mais perto, mas pisei numa folha seca, num graveto, em sei lá o que sem querer. Sei que fiz barulho, e que se não tivesse me abaixado rápido atrás do carro ao lado, eles teriam me visto.
- Que foi isso? – a garota perguntou.
- Tsc, não foi nada. – Harry disse após alguns segundos.
Minha respiração estava totalmente descompassada. Meu coração batia acelerado, parecendo que ia saltar pela minha boca a qualquer momento. Apesar do vento frio, eu podia jurar que estava suando.
Eles voltaram ao assunto, quando a menina tornou a falar.
- Já vou, gatinhos. Me liga amanhã?
- Vou ver. – Daniel riu. Estiquei um pouco o pescoço, vendo-o dar um beijo rápido na garota que sorriu de canto.
- Até mais, Judd.
- Até.
Os dois ficaram olhando a loira caminhar e parar dois carros distantes ao deles. Acenaram quando ela buzinou em despedida.
- Essa gostosa... – Judd comentou malicioso.
Daniel soltou uma risada breve. Colocou a mão no bolso dianteiro da calça e xingou.
- Porra, que merda.
- O que foi? – Judd perguntou.
- Phill ficou com aquilo lá. Esqueceu de me devolver.
- Quem manda você ficar dividindo? – Harry riu.
- PHILL! – Danny gritou. – Vem comigo. – disse a Harry e os dois saíram andando rumo a um garoto que os esperava não muito distante. Tive a certeza, aquela era minha chance. Minha única chance.
Agachada, me aproximei do porta-malas. Ele abria de forma lateral e era espaço. Ótimo, eu não precisaria me encolher tanto. Olhei para Daniel e Harry, que estavam de costas para o carro, e o tal Phill também não prestava atenção.
É agora.
Entrei no porta-malas e o fechei, fazendo o mínimo de barulho possível. Apertei os olhos com toda força e tentei respirar, mas não consegui tamanho era o pânico só de pensar na reação de Daniel, caso ele me pegasse ali. Ofeguei, desistindo daquela ideia absurda.
Onde eu estava com a cabeça?
Coloquei a mão na maçaneta, pronta para sair do carro, quando uma das portas dianteiras se abriu, e segundos depois se fechou. Daniel resmungou qualquer coisa, e pude perceber que ele estava sozinho, já que deu partida no carro e estava tudo em silêncio. Então era isso, não tinha mais volta. Daniel arrancou e eu tive que tampar a boca com uma das mãos para não me trair. Tentei respirar mais uma vez, e torci para que ele fosse direto para casa.

Daniel cantarolava qualquer coisa. O rádio estava ligado num volume baixo, e eu tentava me apegar à música que tocava numa tentativa inútil de me distrair de toda aquela tensão. Ouvi um toque baixo, diferente ao que saía do rádio. Me xinguei até minhas quinze próximas descendências. Por sorte, não era o meu celular tocando, era o dele.
Percebi que Daniel demorou a atender.
- Fala. – ele disse seco. – É, eu sei. – silêncio. – Pode dizer a ele que vou arranjar. – Daniel voltou a se calar, dessa vez por menos tempo. – Caralho, eu já disse que vou arranjar a grana! – ele gritou, dando uma freada brusca com o carro. Minha cabeça bateu com força em alguma parte daquele porta-malas com um baque abafado, e meu corpo todo enrijeceu. – NÃO. – Daniel disse firme. – Olha só, o problema dele é comigo. Ele quer o dinheiro, e vai ter. Não precisa envolver mais ninguém. Eu só preciso de... De mais um tempo. – o silêncio voltou a tomar conta do carro. – O Harry vai pegar na sua mão amanhã. E eu não sei, vocês que se resolvam. – ele disse aparentemente menos nervoso. – Ta.
Ouvi um barulho, como se Daniel tivesse socado alguma parte do carro.
- PORRA! – ele gritou, arrancando com o carro mais uma vez.
Aquele bagageiro me pareceu extremamente apertado de repente. Eu não tinha ar. Meu corpo começava a tremer e eu me amaldiçoava por ter tido a ideia mais estúpida do mundo de me esconder ali. Senti uma lágrima escorrer por meus olhos.
Passaram-se alguns minutos até Daniel, enfim, estacionar. Ele saiu do carro e eu esperei. Ele não acionou o alarme. Estava tudo extremamente calmo. Arrisquei abrir a porta. Minha mão ainda tremia e minha respiração estava completamente descompassada.
Observei pela pequena fresta, e me certifiquei de que era, de fato, a garagem dos Jones. Afastei a porta do porta-malas mais um pouco e pulei para fora o mais rápido que minhas pernas bambas conseguiram. Andei me esgueirando pela casa até alcançar o andar de cima. Todos já pareciam ter se recolhido, exceto por Daniel.
Atravessei minha porta e a tranquei, sentindo minhas pernas cederem. Encostei-me a ela, sentando no chão, e senti as lágrimas escorrerem livremente por minhas bochechas. Eram lágrimas de alívio e de nervosismo ao mesmo tempo. Agradeci por, finalmente, estar em casa, segura, e prometi a mim mesma que jamais cometeria outra insanidade como aquela. Sequei as lágrimas com o dorso da mão e funguei baixinho, finalmente conseguindo inspirar profundamente todo o oxigênio que me faltara naquele carro.
A conversa de Daniel ecoou em minha cabeça novamente, causando-me certo arrepio. Que ele estava envolvido em algo sujo, eu já desconfiava há algum tempo, mas a situação parecia pior. Ele estava devendo a alguém, e esse alguém tinha pressa em receber. E se Daniel, que era rico, precisava de mais um tempo para arranjar o dinheiro, era sinal de que a quantia valia um pouco mais do que sua mesada.
Engoli em seco.

Capítulo vinte e um.



Quando levantei, meu corpo parecia mais cansado do que na noite anterior. Arrastei-me para o chuveiro e deixei que a água quente escorresse por minha pele, relaxando-me aos poucos. Trinta minutos depois, e alguns muitos litros de água a menos no mundo, passei a mão pelo espelho embaçado para que eu pudesse me encarar com mais nitidez. Sorri. Meu sábado estava começando, e prometia ser incrível.
Depois de vestida, puxei do canto do closet uma das sacolas de viagem que eu trouxera na mudança de Bolton. Como já havia separado as roupas e sapatos com antecedência, só o que fiz foi ajeitá-las e acrescentar à pequena bagagem os utensílios de higiene pessoal. Roupa da festa, pijama, calcinha... Repassava tudo mentalmente, certificando-me de que não estava esquecendo nada. Antes que de ter a absoluta certeza, meu estômago roncou lembrando-me que já fazia uma hora desde que eu havia levantado e não comera nada.
Deixei a sacola sobre a cama e me dirigi para a cozinha. Ao passar pela sala, avistei Hugo Jones sentado confortavelmente em uma das poltronas de couro, lendo o jornal. Por um instante nossos olhares se cruzaram, já que meus passos haviam chamado sua atenção, mas o “bom dia” foi substituído pelo silêncio sepulcral costumeiro. Continuei meu caminho até o cômodo em que Maria acabava de tirar do forno uma travessa cheia de biscoitos.
- Bom dia! – cumprimentei animada. Maria sorriu.
- Bom dia, menina . Vejo que acordou de bom humor.
- É, acho que sim. – respondi, sentando-me à mesa.
- Bom dia. – Laline apareceu com um sorriso educado. Obriguei-me a retribuir, colocando um pouco de leite no copo.
- Como está o Dilan? – perguntei, enquanto misturava chocolate em pó ao leite, fazendo um esforço para parecer simpática. Percebi a hesitação de Laline antes de responder, sem me olhar.
- Ele está bem. Minha mãe ligou ontem dizendo que ele ralou o joelho brincando, mas que não foi nada demais.
- Ele fica com a avó durante a semana, já que você dorme aqui no serviço?
- Sim. É melhor pra ele.
Ela se limitou a dizer. Seu incômodo com as minhas perguntas era notável, então preferi encerrar o assunto e me concentrar nos biscoitos que Maria vinha me oferecer. Ela me lançou um olhar diferente dos tão carinhosos ao qual eu estava acostumada. Era como se quisesse ler as minhas reais intenções com aquela conversa. Forcei um sorriso e desviei os olhos dos dela.
Terminado o café da manhã, voltei ao quarto para pegar minhas coisas. Coloquei a alça da sacola sobre o ombro e desci, respirando fundo antes de aparecer à porta da sala de jantar. Sabia que Daniel ainda não havia descido, o que me deixava menos desconfortável com aquela conversa.
- Bom dia. – eu disse, atraindo o olhar de Diana. O Sr. Jones não se deu ao trabalho de me olhar novamente naquela manhã.
- Bom dia, . Vai se sentar conosco hoje? – Diana perguntou com um sorriso que eu pude julgar quase como esperançoso.
- Não, não. Eu... Bom, eu estou de saída.
Ela então reparou na sacola que eu carregava.
- De saída? Aonde vai?
- Uma amiga do colégio me chamou para passar o fim de semana na casa dela. Espero que não tenha problema.
- Não, claro que não. Pode chamá-la para fazer o mesmo quando quiser.
Dei um pequeno sorriso.
- Certo. Eu devo estar voltando amanhã, pelo fim do dia.
- Aproveite! – Diana sorriu e acenou quando me despedi. Hugo Jones sequer se dignara a erguer os olhos de sua xícara de café.
Eu já quase alcançava a porta principal quando ouvi, ao pé da escada:
- Voltando para o inferno?
Girei a maçaneta e encarei Daniel por cima do ombro.
- Não, me livrando dele por um fim de semana.
E saí.

Levou quase duas horas para que eu, finalmente, estivesse parada à porta daquele palacete de vidro. Diferente da casa de Tom, que tinha todo um ar sofisticado e aconchegante, e da dos Jones, que era imponente e elegante, a casa da esbanjava luxo e requinte através da vidraçaria.
Vai levar mais duas horas para tocar a campainha?
Apertei o pequeno botão ao lado da porta, ouvindo o soar musical bem calmo. Não demorou a uma sorridente aparecer.
- Achei que não chegasse nunca mais!
- É difícil pegar ônibus nessa cidade, quando todos eles são vermelhos e iguais, sabia? – eu disse, rindo com .
- Você precisa de um carro. – ela me olhou quando desfizemos o abraço.
- Aí é que eu vou ficar perdida mesmo!
- Vem, vamos nos livrar dessa sacola.
segurou minha mão, arrastando-me escada acima. Meu olhar corria maravilhado por toda a casa, e, quando pensei que já estava encantada o suficiente, chegamos ao quarto de .
A decoração variava em tons claros de rosa, lilás e verde, mas os móveis eram todos brancos. As cortinas, que cobriam a imensa janela ao fundo, caíam em um tipo de cascata e estavam repartidas pela metade, deixando que a claridade invadisse o ambiente. À direita, uma escada levava para um mezanino. Abaixo desde havia um tipo de camarim. A parede era toda espelhada, com uma bancada cheia de maquiagens e acessórios, como escova de cabelo, chapinha e perfumes. Percebi que havia uma iluminação especial para aquele espaço, mas só à noite eu saberia como era exatamente.
A parede esquerda era o que mais chamava minha atenção. Três fotos em preto e branco a cobriam do teto ao chão. Em todas, estava de pé e vestia apenas uma calça jeans escura e um sutiã. Exceto pela foto do meio. Na primeira pose, tinha um dos braços apoiado sobre a cabeça, enquanto o outro transpassava sua cintura em diagonal. O rosto estava levemente erguido para cima, mas seu olhar mantinha-se fixo mais para baixo. Os lábios entreabertos. Na segunda foto, a do meio, estava de costas e segurava o cabelo com as duas mãos, exibindo a nuca e sua pele nua. Ela olhava séria para algum ponto lateral, por cima do ombro, de forma que seu rosto aparecia apenas de perfil. E, na última imagem, tinha uma das mãos no pescoço, enquanto a outra se encaixava ao cós da calça só com o polegar. Ela tinha o rosto reto, também com os lábios entreabertos.
Abri a boca e fechei algumas vezes, tamanho era o meu espanto. Eu precisava elogiar tudo aquilo de alguma forma, mas eu não encontrava palavras boas o suficiente. riu da minha provável cara de abestalhada. Ainda sem dizer nada, ela me puxou para o mezanino. Lá em cima havia uma cama de casal imensa, cheia de edredons e almofadas e travesseiros. Caberiam dois casais ali fácil e confortavelmente. Havia também o closet, que não tinha porta. O banheiro era ali por dentro, já que dava para ver uma breve divisória. As paredes tinham algumas estantes com enfeites e livros, sem contar a TV, e naquela a qual a cama estava encostada pendia um letreiro luminoso em caligrafia itálica com o nome de . A caligrafia assemelhava-se a um autógrafo.
- Pode deixar as coisas em cima da cama, amiga. – ela disse, ainda com um sorriso divertido pela minha admiração.
Deixei a sacola sobre o colchão e voltei a me aproximar do alambrado de vidro que dava uma visão perfeita do quarto. Dali, as fotos nos encaravam na mesma altura, da parede oposta.
- ... Seu quarto é incrível! – eu disse, quase que sem fôlego.
- Falei que faria melhor do que colocar um colchonete aqui pra você.
Nós rimos.
- Eu nunca entrei num lugar parecido. E essas fotos? – apontei – São perfeitas!
- É, talvez eu tenha esquecido de te contar alguns detalhes sobre o meu passado negro. Deixa eu te mostrar.
desceu e eu a segui. Ela apontou para que me sentasse em algum dos pufes espalhados próximos à janela, e logo veio até mim com três imensos álbuns nas mãos. Deixou-os no chão à nossa frente e se sentou ao meu lado.
Entregou-me o primeiro, de capa branca enfeitada com um tipo de renda e pérolas.
- Depois da arquitetura, a maior paixão da minha mãe é a fotografia. Não sei te dizer em qual das duas áreas ela é mais requisitada, mas em ambas ela tem contatos muito bons. Um deles de chama Charlie Molinnèr, um francês reconhecidíssimo por seus trabalhos com modelos.
- Foi ele quem fez as fotos da parede? – perguntei.
- E todas as outras que você vai ver. Fui modelo fotográfica exclusiva do Char desde os sete anos, quando comecei a posar.
- E você não é mais modelo dele?
- Desde o ano passado eu me afastei das câmeras. Depois de sair do time das cheerleaders, mudar de colégio, e até pelo fato de eu ter repensado os meus conceitos, meio que perdi o gosto. Char sempre me liga, faz incontáveis propostas, tenta a todo custo me persuadir e me chantagear emocionalmente, mas sempre lhe dou a mesma resposta.
- E você não sente falta? – encarei as fotos da parede, notando o quanto era linda e fotogênica. – Você leva muito jeito pra isso. – comentei, voltando a olhá-la.
- Sinto sim. – sorriu. – Às vezes, passo tardes inteiras aqui sentada, vendo meus ensaios. Já pensei em voltar, mas depois eu acabo deixando pra lá.
- Não deveria. – sorri e então voltei meu olhar para o álbum inda fechado em meu colo.
- Esse é meu book de debutante.
Abri o álbum e comecei a olhar foto por foto. Nas primeiras, usava um vestido longo, amarelo bem claro, como uma princesa. Seus cabelos estavam notavelmente mais compridos e mais claros do que o atual, e presos em um arrumado penteado com trança.
- Esse foi o vestido da valsa. – explicou.
- Lindo! – elogiei.
Mais à diante o vestido era outro. Curto, de um vermelho vivo. Nas fotos em que estava só de frente, a roupa parecia bem simples, contudo, nas fotos que a mostravam de costas, era possível ver toda a perfeição dos detalhes de trás.
Praticamente toda a extensão das costas, do bumbum à nuca, era de uma renda exuberantemente trabalhada.
- Esse foi um modelo exclusivo. Vê as pedrinhas pela renda? São cristais.
- Nossa... – foi tudo que consegui dizer.
Ouvimos leves batidas na porta.
- Filha? – uma mulher bem jovem e de traços extremamente parecidos com os de apareceu.
- Entra, mãe! – sorriu. – , essa é a arquiteta e fotógrafa mais linda e mais excelente de todo o Reino Unido!
- É um prazer, Sra. !
- O prazer é todo meu, querida. – ela respondeu com um sorriso. – falou muito de você. Disse que se mudou de Bolton.
Suspirei, mantendo meu sorriso.
- Sim, é verdade. Estou na cidade há pouco tempo.
- Se precisar de alguma ajuda, não hesite em nos procurar. – ela ofereceu, educada.
- Não se preocupe, Sra. . tem sido ótima. Até me levou para passear um dia desses.
- Maravilha!– ela sorriu – Bom, vou deixar vocês à vontade outra vez. , não deixe a menina passar fome, certo?
revirou os olhos.
- Pode deixar, mãe. – e riu.
- É que quando ela pega esses álbuns, , ela esquece até de respirar. – a Sra. brincou, antes de se despedir.
De fato, não sei por quantas horas ficamos olhando aquelas fotos, mas, quando dei por mim, nós já tínhamos bem mais coisas para fazer do que ficar apenas folheando álbuns.

- , o que há de tão errado com a minha calça jeans? – perguntei, recebendo um vestido preto na cara.
- Experimenta esse. – ela ignorou.
Depois de tomarmos banho, me convenceu a deixá-la retocar minha maquiagem. Eu havia feito algo bem simples resumido a uma sombra cor de pele e blush, mas ela tinha outros planos para a minha make daquela noite. Quando terminou, meus olhos estavam bem mais marcados e aprofundados por um degradê de tons amarronzados, e meus cílios alongavam-se até o céu. E foi aí que deu um ataque quando viu que sua maquiagem perfeita faria par com uma calça jeans.
- Olha o tamanho disso! – coloquei o vestido na frente do corpo, encarando o espelho. – Não vou usar suas roupas de quando você tinha doze anos, !
- Para de exagero, garota. – riu. – Não há nada demais em usar vestidos um pouco mais justos, desde que você saiba se comportar com eles. Esse aqui, então. – Ela me mostrou um vestido rosa claro, de alcinhas, dois centímetros maior que o tomara-que-caia que eu segurava, e com um decote mundial. Neguei.
- Vestidos não são minha peça de roupa favorita, .
- Nós vamos precisar rever isso, . Todo guarda-roupa feminino que se preze PRECISA ter um vestido. – ela se voltou para seus cabides.
- Eu tenho vestidos, mas só que...
- E esse? Ah vai, esse é lindo! – ela sorriu me mostrando um tubinho acinzentado com leves detalhes em estampa de zebra. Fiz careta, vendo bufar.
- Ta, mas só experimenta pelo menos, pra eu pensar direito em uma roupa decente. – ela pediu.
Revirei os olhos e segui para o banheiro, segurando a última opção que ela me mostrara. Quando voltei, parou ao meu lado analisando comigo meu reflexo no espelho.
- Ficou bom. – ela disse.
- Não, não ficou.
- Talvez alguma coisa que marque mais a sua cintura.
- E que esteja mais próxima dos joelhos.
- E que realce o seu quadril.
- E sem tanto decote.
me fez dar uma voltinha. Olhou-me de cima a baixo, e sorriu.
- Eu já sei o que fazer com você.

Demorou alguns minutos até acharmos uma vaga.
- Vamos, ! Ou você pretende ficar aí dentro a noite toda?
A verdade era que eu estava adiando ao máximo ter que sair do carro com aquela roupa. Ok, talvez não fosse só pela roupa. Logo eu encontraria Tom, e o nervosismo por isso começava a me fazer suar.
- ! – bateu no vidro da janela e eu resolvi sair do carro de uma vez. Quem entra na chuva é para se molhar, certo?
travou as portas com o alarme e piscou pra mim.
- Ainda preferia a minha calça jeans. – resmunguei quando uma brisa fria acariciou minhas pernas desnudas. fingiu nem ouvir, e continuou seus passos até o jardim em que algumas pessoas conversavam e seguravam latas e garrafas de cerveja ou qualquer outra bebida. Alcançamos a entrada da casa, e eu realmente me perguntei como cabiam tantas pessoas naquela sala.
A mansão estava inacreditavelmente cheia.
Aos poucos, íamos abrindo caminho por entre todo mundo que dançava e não se importava com os esbarrões.
- ! – ouvimos por entre a música alta. – !
- Audrey!
As duas se abraçaram, e Audrey sequer se importava em disfarçar que já estava levemente alterada. Veio até mim e eu também a abracei, sorrindo.
- Não estão bebendo nada? Por quê? – Audrey perguntou quase que indignada.
- Acabamos de chegar. – eu disse.
- Não seja por isso! – Audrey riu e acenou para alguma direção, indicando o número dois com os dedos.
- E o Dougie? – perguntou, provavelmente estranhando que eles não estivessem se agarrando em algum canto escuro, ou sofá disponível.
- Deve estar lá fora com os amigos. – Audrey respondeu indiferente, e sorriu para um garoto alto e de pele morena que se aproximava de nós com duas cervejas.
- Valeu, Phill! – Audrey agradeceu e me estendeu uma das garrafas que o garoto segurava, entregando a outra a . Aceitei, mas meu olhar estava cravado no menino que já se afastava. Phill... Meu cenho franziu, mas antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, me cutucou.
- Um brinde, porque tem muita coisa pra acontecer essa noite...

- Arriba! Abajo! Al centro, y adentro! – dissemos juntos. A tequila desceu quente pela garganta, e logo o sal e o limão se misturaram a ela. Apertei os olhos e soltei uma risada, sentindo minhas bochechas esquentarem. Era a segunda nas quase duas horas que nós estávamos ali.
Eu era capaz de sentir a timidez se esvaindo do meu corpo ao poucos. Não queria ficar bêbada, mas queria, ao menos, me divertir. Eu, e Drew, que aparecera de repente, dançávamos e ríamos. Audrey e as meninas da patinação nos haviam pedido licença já a alguns bons minutos, e só restara mesmo nós três ali.
- Tem certeza de que ele veio? – perguntou pela segunda vez.
- Tenho! Nós estávamos juntos lá na cozinha.
- Então me leva lá como quem não quer nada, Drew! Por favor! – choramingou de um jeito arrastado e engraçado. Ela queria porque queria ver Pietro.
Minha atenção, contudo, se desviou da conversa dos dois e se ateve às mãos que rodearam minha cintura.
- Achei que você não vinha...
Sorri, reconhecendo aquela voz em meu ouvido. Me virei, encarando o chocolate dos olhos de Tom.
- Achei que estava na hora de aceitar, pelo menos, um dos seus convites.
Ele retribuiu meu sorriso, e logo o seu olhar correu todo o meu corpo. Um leve arrepio invadiu minhas costas, desregulando bem de leve a minha respiração.
- Wow... – ele murmurou para si mesmo, e, vendo que eu começava a ficar sem jeito, mesmo com um sorriso no rosto, se apressou em dizer. – Mas... Mas então, já está aqui há muito tempo?
- Mais ou menos. Eu e a ...
- Que ? – ele riu e eu logo olhei em volta, percebendo que ela me deixara propositalmente sozinha com ele. Ri.
- Bela amiga essa que eu fui arrumar...
- Uma das melhores. – Tom piscou.
Nem percebi quando nossos corpos começaram a dançar juntos, ou quando ficaram próximos demais. Só me dei conta quando um dos braços de Tom envolveu minha cintura, e, como que inconscientemente, os meus passaram pelo seu pescoço. Senti a mão livre de Tom deslizar pela minha pele, traçando todo o caminho do meu braço, e seus olhos tão fixos nos meus me fizeram perder a noção de ritmo e espaço. O olhar de Tom caiu para os meus lábios, e eu, realmente, não queria evitar o que aconteceria a seguir.
Nossos narizes se tocaram, e nossas respirações se tornaram uma só. Tom apertou mais firme seu abraço em mim, como se tivesse medo de que a qualquer momento eu pudesse sair correndo.
- Eu não vou fugir... – murmurei só com o movimento da boca.
Tom roçou os lábios nos meus, e eu deixei que, aos poucos, eles fossem se encaixando. Sua mão escorregou até minha nuca, ao mesmo tempo em que nossas línguas se encontravam e se conheciam. Uma de minhas mãos se entrelaçou a um punhado de seus fios loiros e os puxou, dando a certeza a Tom de que eu não me soltaria de seus braços.
Suspirei quando ele chupou meu lábio e sorriu. Retribuí o sorriso, retomando o beijo, sentindo sua mão descer espalmada pelas minhas costas. Entreabri a boca e rocei pela de Tom, deixando que o ar escapasse pesado por ela.
Sentimos um esbarrão, e então afastamos os lábios. Era só alguém bêbado dançando de forma exagerada demais. Nossos olhares voltaram a se cruzar, e tudo o que me limitei a fazer foi morder o lábio e sorrir. Tom acariciou meu rosto, encostando a boca na minha mais uma vez.
- Vem comigo...
Devolvi seu selinho e, de mãos dadas, o segui pelas escadas até o andar de cima. Tom foi até o final do corredor e tirou uma chave do bolso, abrindo a porta. Lançou-me um olhar como se perguntasse se eu queria entrar em seu quarto, e meus passos responderam antes de mim. A chave girou na maçaneta, nos trancando lá dentro.
O cômodo era todo bem arrumado, organizado, mas eu não tive tempo de reparar em muita coisa, já que as luzes estavam apagadas e os lábios de Tom começaram a passear pelo meu pescoço. Fechei os olhos, sentindo uma leve mordida em minha pele, e um arrepio delatou o quanto eu havia gostado daquilo.
Tom foi me empurrando até que eu me apoiasse com as mãos em sua mesa de estudos, próxima à janela. Seu corpo grudou por completo no meu, e quando seus lábios alcançaram minha orelha, um gemido baixo me escapou. Ele me virou de frente, com as mãos bem postas em meu quadril, e seu olhar, dessa vez desejoso, percorreu todo o meu corpo de novo. Desde a blusa de seda dourada, que desenhava e valorizava meus seios, sem exageros, até a saia preta de cintura alta que não se preocupava em esconder nem a metade das minhas coxas.
Sorri de canto, acompanhando todo o trajeto das íris castanhas que logo tornaram a encontrar as minhas. Uma das mãos de Tom se encaixou em meu pescoço, enquanto a outra descia devagar pela minha perna. Nossos olhares conversaram em silêncio, e eu sabia que Tom não faria nada que eu não quisesse. Mas eu queria, então aproximei minha boca da dele, retomando o beijo de uma forma mais intensa.
Com um impulso, Tom colocou-me sentada em sua mesa, e, descendo sua outra mão também pras minhas pernas, as afastou para se encaixar entre elas. Minha saia se ergueu quase que por completo, mal escondendo minha calcinha de renda. A boca dele fugiu da minha, beijando meu queixo. Sua língua quente foi descendo perigosamente até o meu decote, me fazendo gemer baixinho. Minhas mãos procuraram pelos botões da camisa de Tom, e começaram a abri-los assim que os acharam.
Tom forçou o corpo contra o meu, e o ar irrompeu arrastado pela minha garganta. Sua excitação era notável, assim como a minha. Seus lábios tornaram a fazer o caminho de volta, desviando para o meu ombro, e à medida que os beijos e mordidas se espalhavam pela minha pele, a alça da minha blusa pendia para o lado. Uma das mãos de Tom deixou minhas coxas e subiu até a altura do meu seio, acariciando-o por cima da seda dourada, enquanto a outra terminava de erguer minha saia.
Apertei minhas pernas em volta de cintura de Tom, sentindo seu membro roçar minha intimidade. Tom gemeu, mordendo meu ombro, e logo voltou os lábios outra vez para o meu pescoço. Eu já havia perdido o controle sobre a minha respiração há tempos, e só me concentrava em espalmar as mãos pelo corpo de Tom. Sua camisa estava toda aberta, e não me impedia de acariciar qualquer parte da sua barriga, ou peitoral.
Corri as mãos para suas costas e as arranhei, ao mesmo tempo em que senti um chupão em minha pele. Ofeguei, inclinando a cabeça levemente pra trás, e virei o rosto para o lado, deixando meu pescoço bem à mostra para que Tom continuasse. Abri os olhos por um instante, e o que vi através da janela, no jardim, não era nada bom.
Empurrei Tom com uma pequena força, ajeitando minha roupa às pressas ao descer da mesa. Ele me olhou assustado, confuso.
- , o que foi? Eu fiz alguma coisa que você...? Eu...?
- Não! Não, Tom. Me desculpa. – o interrompi, ofegando. – Eu... Desculpa, mas eu preciso ir.
- O que aconteceu?
- Eu te explico depois. – respondi, indo até a porta.
- Posso te ligar amanhã? – Tom perguntou rápido quando girei a chave. Olhei para ele e sorri, assentindo.
Deixei o quarto e desci as escadas o mais rápido que consegui com aqueles saltos agulha. Corri para o jardim, onde tentava a todo o custo avançar em Audrey, e conseguiria caso Drew não a estivesse segurando.
- VAGABUNDA! – gritava com o rosto coberto de lágrimas. – SUA BISCATE DOS INFERNOS!
- BISCATE É VOCÊ, QUE ÀS ESCONDIDAS FICA DANDO EM CIMA DO PRÓPRIO PRIMO! – Audrey rebatia.
- ALÉM DE PUTA É MENTIROSA! DESGRAÇADA! - conseguiu escapar de Drew e acertou um tapa na cara da Audrey.
- , pelo amor de Deus! – a puxei de volta.
Audrey até tentara alcançar , mas as meninas da patinação a seguraram. Dougie apareceu no meio das pessoas que começavam a se amontoar para assistir a confusão.
- O que é que ta pegand...? – sua voz estava meio arrastada.
- A piranha da sua namorada estava aos beijos com o Pietro! É isso que tá pegando! – berrou aos soluços. – VADIA!
- O que? Aud? – ele se voltou para a garota que deixou um riso bobo irromper por seus lábios. Ela estava inegavelmente bêbada.
- Fodam-se! - Audrey deu de ombros e saiu cambaleando, junto com as amigas.
Dougie tinha o olhar meio perdido na direção pela qual a garota saíra.
- Dougie. – o chamei, tocando seu ombro. Ele se virou para mim. – Vamos levar a para casa.
O garoto assentiu e veio caminhando comigo até o carro, onde Drew já acomodara no banco de trás. Ela chorava num misto de raiva e mágoa.
- Ela não pode dirigir assim. – eu disse e Dougie apertou os olhos.
- Eu... Minha visão está... sei lá. Meio turva.
- Eu dirijo. – Drew se ofereceu.
- Eu explico o caminho. – Dougie ajeitou a faixa rosa que usava na testa e esfregou as mãos pelo rosto, indo se sentar no banco do carona. Drew se sentou no motorista, e eu fechei a porta de trás. Passei os braços ao redor de , que aceitou o abraço, mas não se moveu da posição que estava.
- Vagabunda... Vadia... – xingava baixinho.
Não levou trinta minutos até chegarmos à mansão dos . Drew estacionou fora da garagem.
- Vai lá com o Dougie, eu já subo. – eu disse quando estávamos todos fora do carro. assentiu e foi com o primo para dentro de casa, deixando a porta encostada para mim.
- Ela vai ficar bem? – Drew perguntou, preocupado.
- O que foi que aconteceu, exatamente?
- Acho que ela vai poder te explicar melhor. Mas ela viu a Audrey e o Pietro juntos.
- E você sabia?
- Desde que ele veio pedir para entrar no nosso grupo do projeto, eu já estava desconfiado, mas não sabia dizer qual de vocês três era em quem ele estava interessado.
- Mas ele sabia que a gostava dele, não é?
- Sabia sim, e só quis se aproximar dela para chegar melhor na Audrey. Ao contrário do que a pensa, Pietro é um cara egocêntrico e egoísta. A prova está aí, ele pegou uma menina que já tinha namorado. – suspirou. – A merece mais do que isso. – Drew disse e desviou os olhos do meu. Sorri de leve.
- Com certeza ela merece bem mais.
- E por ter falado no projeto, como faremos com o grupo agora? Já estamos no meio do caminho. – ele mudou de assunto, voltando a me olhar.
- Eu não sei, mas isso é algo para pensarmos depois. Estamos todos cansados, e eu preciso ir lá em cima ver como a está. – eu disse.
- Certo. Vou pegar um taxi ali na frente e vou pra casa. – Drew me entregou a chave do carro. – Cuida dela, tá?
- Pode deixar.
Despedimos-nos com um abraço, e, assim que o desfizemos, caminhei para dentro da casa. Fechei a porta e subi para o segundo andar.
- Ei... Como você está? – perguntei, sentando-me ao lado dela na cama. Ela estava com a cabeça apoiada nas pernas de Dougie, que estava sentado com as costas apoiadas na cabeceira. Ele fazia um carinho bem lento no cabelo da prima, e tinha o olhar distraído, distante.
- Péssima. – murmurou com a voz embargada. – Morrendo de raiva daquela prostituta.
- O que aconteceu? – acariciei o braço de .
Ela fungou antes de começar a falar.
- Depois que o Tom foi falar com você, eu e o Drew fomos para a cozinha procurar o Pietro, mas ele não estava mais lá. Demos uma volta pela casa, e nada. Como estava tudo muito cheio, eu pedi ao Drew que fosse até o jardim comigo para que tomássemos um ar, e aí, quando chegamos, estavam os dois lá, sem nenhuma vergonha. E eu que chamava as cheerleaders de putas... – sorriu amargurada e fungou outra vez.
- O Pietro não vale nenhuma dessas lágrimas. – eu disse. – Muito menos a Audrey, que se dizia sua amiga.
assentiu, mas não disse nada.
- E você, Dougie? – perguntei, incerta se deveria ou não. Nós não éramos tão íntimos para que ele falasse sobre o seu relacionamento comigo, mas já que estávamos todos ali, não custava nada oferecer um ombro amigo.
- Há uns dias a gente já estava meio estranho. – ele respondeu calmo demais para a situação, e voltou a ficar em silêncio.
- , por que você não toma um banho e troca essa roupa? – sugeri. Ela remanchou, mas aceitou a ideia, e logo eu estava a sós com Dougie.
- Você não está com raiva da Audrey?
- Sei lá. Acho que sim. Acho que eu já sabia que as coisas estavam desandando.
- Vai terminar com ela?
- Ela já fez isso, não foi? – ele finalmente direcionou o olhar para mim e eu suspirei, assentindo. – Mas e o Tom?
Minhas bochechas coraram quase que instantaneamente.
- O que é que tem?
Dougie riu do meu desconcerto.
- A gente viu vocês juntos, subindo as escadas e tal...
- “A gente”? – o encarei.
- É. Eu e mais uns amigos.
- Ah... Foi legal. – eu respondi com um sorriso.
Dougie também sorriu e logo estava de volta em uma camisola enorme de algodão com estampas de bichinhos.
- Está melhor? – perguntei e negou, jogando-se na cama e se cobrindo com o edredom até a cabeça.
- Eu vou lá pro quarto de hóspedes. – Dougie disse. Inclinou-se sobre o cobertor e beijou o ombro da prima. Despediu-se de mim com um beijo no rosto, e desceu os degraus do mezanino.
- Vou tomar um banho, tá? – avisei, vendo concordar por baixo do edredom.
Repeti o gesto de Dougie e a beijei no ombro, antes de me levantar. Deixei a água quente escorrer da minha nuca pra baixo, enquanto algumas cenas passeavam pela minha mente. As mãos de Tom passeando pelo meu corpo. A boca dele na minha. Sua língua descendo pelo meu decote. Suspirei, e só quando terminei o banho percebi como era bobo o sorriso que eu tinha nos lábios.
Voltei apara a cama e me deitei ao lado de , que me encarou com os olhos tristes e vermelhos, inchados. Segurei sua mão, arrancando-lhe um sorriso fraquinho.
- Obrigada por estar aqui. – ela sussurrou.


Capítulo vinte e dois.



Abri os olhos devagar, ainda com sono.
- Bom dia... – murmurou, e então eu me esforcei para focalizar sua imagem. Ela tinha a expressão abatida e os olhos ainda um pouco inchados na parte inferior.
- Ei... Bom dia.
- Dormiu bem? – ela perguntou com a voz arrastada, deixando um bocejo escapar ao final da frase.
- Sim, a sua cama é bastante confortável. – sorri. - E você?
deu de ombros.
- Sei lá, eu meio que apaguei. Não sonhei, nem nada.
- Ao menos você descansou.
- É, eu acho. Está com fome?
- Não muita.
- Aposto que minha mãe mandou preparar waffles. Ela sempre faz isso quando tem visitas.
- O Dougie conta como visitas? – perguntei, arrancando uma risada nasalada de .
- O Dougie conta quase como um cômodo dessa casa. Vamos, vamos nos trocar e descer.
se espreguiçou e eu a imitei, levantando em seguida enquanto minha amiga seguia para o banheiro. Tirei da sacola um shortinho jeans e uma blusa fina de mangas compridas, vestindo-os antes mesmo que acabasse de escovar os dentes. Assim que saiu, fiz a minha higiene e prendi o cabelo em um coque frouxo.
Quando descemos, a Sra. já nos esperava com a mesa do café da manhã posta.
- Bom dia, meninas!
- Bom dia! – respondemos juntas.
- Dormiram bem?
- Acho que sim. – respondeu com um suspiro, enquanto se sentava. Puxei a cadeira ao seu lado.
- Querida, fique à vontade. Mandei preparar waffles, você gosta? – a mãe de me disse. Minha amiga me olhou como se dissesse “Eu não falei?” e eu sorri.
- Gosto sim.
Mal eu havia terminado de responder, uma das empregadas surgiu na sala com uma bandeja que exalava um cheiro muito bom.
Quando terminamos de comer, a Sra. nos pediu licença e seguiu para seu próprio ateliê de fotografia, que se escondia atrás de uma das várias portas que havia no segundo andar.
- Vem. – levantou e eu a imitei, indo com ela para a sala de TV.
Algumas horas se passaram enquanto nós zapeávamos os canais atrás de algum filme bom ou uma sequência de videoclipes, esparramadas no sofá, quando percebi que pegara no sono outra vez. A verdade é que ela dormira muito mal, e eu apenas mantive meus olhos fechados enquanto ouvia seu choro baixinho durante algumas horas. Mesmo que eu quisesse consolá-la, achei melhor dar a ela algum espaço.
- Ei...
Olhei para o lado. Dougie estava em pé, coçando a cabeça, ainda com a cara meio amassada de sono.
- Bom dia. – sorri. – Como está?
- Morrendo de fome. – ele riu. – Agora que não tô chapado, acho que tô meio puto também.
- Imagino...
- Ela dormiu? – ele apontou para a prima e eu assenti. – Vem cá, pra não ficar ai sozinha.
Dougie sorriu e então eu o acompanhei até a cozinha. Em meio as gracinhas com as empregadas, que pareciam adorar ele, Dougie fez um sanduíche, acho que com quase tudo que havia disponível na geladeira, e também encheu um copão de refrigerante.
- Vamos lá pra fora. – ele apontou um corredor.
Sentamos na varanda dos fundos, que dava acesso à piscina. Ele num sofá de pedra branca toda trabalhada, acolchoada com almofadas de linho, e eu num pequeno balanço de madeira escura que se postava ao lado. O dia estava ligeiramente nublado, eu me perguntei mentalmente se ia chover.
- Como a está? – Dougie quebrou o silêncio, mesmo que fosse de boca cheia.
- Mal. – o encarei. – Ela demorou a pegar no sono.
- Eu não entendo... – Dougie soprou, devorando mais um pedaço do seu “x-tudo-extremo”, como ele mesmo batizara o sanduíche.
- Você gostava muito dela, não é? – perguntei. Ta que eu não tinha intimidade para que Dougie me contasse detalhes da sua vida amorosa, mas senti que ele estava aberto a falar sobre o assunto, agora que raciocinava com mais clareza.
- Nós já estávamos juntos há um tempo, nos dávamos bem. Diferente dos caras, eu gosto de namorar, de estar com uma pessoa legal. A Audrey era legal. – ele deu de ombros. – Acho que me enganei. – finalizou, dando um gole na coca-cola gelada.
- Ontem você disse que as coisas já estavam desandando...
- É... – ele suspirou, e então eu percebi que ali era o meu limite. Ficamos em silêncio até que ele finalmente terminasse de comer e repousasse o copo vazio sobre a mesinha de centro – O Drew curte a . – Dougie disse aleatório e eu sorri.
- Já tinha percebido.
- E ai pra ela ficar com ele?
- Depende de mim? – ri. – Vou ver se dou uma ajudinha.
- Eu também posso dar uma ajudinha com o Tom, se quiser. – Dougie riu.
- Não, não. Sem ajuda já está difícil o bastante de lidar. – respondi.
- Ele é um rapaz de família.
- Eu sei, não estou duvidando disso.
- E tem muitas qualidades.
- Todas elas admiráveis.
- E tem carro.
- Dougie! – o repreendi entre as risadas - Não sou dessas.
- Eu sei, só estava brincando.
Passamos mais de uma hora conversando sobre assuntos alheios. Descobri que Dougie adorava fazer piada com tudo, e que ter repetido de ano, segundo ele, foi uma das melhores coisas que podia ter acontecido em sua vida.
- Nem me chamaram. – reclamou quando se juntou a nós.
- Te deixamos descansar mais um pouco. – Dougie deu um beijo na bochecha dela, que sorriu.
- Está tudo bem? – perguntou, e o primo apenas assentiu.

Já era quase noite quando me deu uma carona até a Starbucks. Praticamente me arrastei até a casa dos Jones, torcendo para que ninguém estivesse lá quando eu chegasse. Não demorou para que eu visse as luzes da sala acesas, e também as do quarto de Daniel, já que suas janelas tinham vista para a rua. Revirei os olhos.
- ! – Diana sorriu quando passei pela sala de estar. – Como foi o fim de semana?
- Foi ótimo. – respondi, ajeitando a alça da sacola que carregava no ombro.
- Vamos jantar daqui a pouco.
- Eu vou tomar um banho, e mais tarde como qualquer coisa.
- Tudo bem.
Retomei meu caminho até as escadas, e já estava direcionando meus passos para o quarto quando a porta de Daniel se abriu.
- Certo, a gente vê isso direito com os caras amanhã no colégio.
Num impulso, larguei a sacola no chão e corri para o lavabo. Daniel não estava sozinho.
Ele e o outro garoto, que eu reconheci ser o mesmo Harry que estava com Daniel na sexta-feira, foram se aproximando enquanto conversavam, e não demoraram a perceber algo estranho no caminho deles.
- E essa sacola? – Harry estranhou.
- Tenho certeza que é de alguma das empregadas. – Daniel disse com o tom de voz levemente mais alto, dando a entender que ele sabia que eu estava ali. – Vamos dar uma olhada. – Daniel se colocou numa posição em que eu pudesse vê-lo propositalmente pela fresta da porta.
Sem qualquer escrúpulo, Daniel abriu minha sacola e tirou de lá um dos meus vestidinhos simples.
- Olha esse pano de chão. – ele riu. – Laline já usou coisas melhores. – Daniel sequer pestanejou antes de forçar o tecido e rasgá-lo ao meio. Um grito ficou entalado na minha garganta, e minhas mãos se fecharam em punhos instantaneamente.
- E esse short? – Harry riu. – Se as cheerleaders vissem isso pediriam para morrer.
- Me dá aqui. – e então Daniel repetiu o mesmo de antes, forçando o tecido e dessa vez arrebentando o zíper. Quando terminou, jogou o short no chão, junto com as outras coisas que ele fizera questão de espalhar.
- A calcinha não é nada mal... – Harry comentou e eu apertei os olhos, sem querer ver mais nada, consumida pela raiva e pela humilhação.
- Vamos, deixa isso ai.
- Você costuma destruir assim as roupas das empregadas? – Harry perguntou.
- Só às vezes. – Daniel piscou, chutando minha sacola na direção da porta do lavabo. Esperei até que ele e seu amigo igualmente desprezível descessem as escadas, para então recuperar as forças e sair sem fazer barulho.
As lágrimas de ódio escorreram pelo meu rosto, enquanto eu guardava as peças rasgadas e jogadas no chão. Mordi o lábio com força para reprimir o soluço. Eu podia sentir minhas mãos tremerem. Pelo cheiro suave que emanava da sacola, percebi que meu perfume havia quebrado com o chute, e imaginei que estragos mais Daniel conseguira fazer.
Sequei as lágrimas com as costas das mãos, o que não as impediu de continuarem caindo, e segui para o quarto, deixando a sacola em cima da cama. Girei o corpo para voltar e fechar a porta, mas Daniel me esperava encostado no vão dela, com seu sorrisinho de canto nojento. Meu corpo estava paralisado, tal era a fúria que eu sentia.
- Acho que vai precisar de uma roupinha nova.
E bastou que ele dissesse isso, para que eu avançasse nele com tapas e chutes.
Provavelmente ele já esperava tal reação, uma vez que não reclamou quando eu o acertei nos braços e na canela. Infelizmente, Daniel era inegavelmente mais forte que eu, a ponto de conseguir me empurrar e fazer recuar alguns passos. Ele entrou no quarto e bateu a porta.
- QUEM VOCÊ PENSA QUE VOCÊ É? – o grito, que antes estava travado, irrompeu por todo o cômodo. – COM QUE DIREITO VOCÊ ACHA QUE...
- COM TODOS OS DIREITOS, PORQUE VOCÊ NÃO É NADA NESSA CASA! – ele me interrompeu. – SUAS ROUPAS NÃO SÃO NADA! SUAS COISAS NÃO SÃO NADA! NADA ALÉM DE LIXO, DE PORCARIA! – Daniel baixou o tom de voz antes de continuar. - Quantas vezes eu vou precisar colocar você no seu lugar? Se bem que esse tem sido o meu passatempo favorito, sabia? – ele riu com ironia. – Eu adoro jogar na sua cara o quanto você não é bem-vinda, e o quanto você fica ridícula quando dá satisfações. Como se alguém se importasse com quem você anda, ou aonde vai. Você passou o fim de semana fora, não foi? Ninguém sentiu a sua falta. Ninguém fez questão da sua presença. Ninguém sequer lembrou da sua existência.
Cada palavra que Daniel dizia transbordava um veneno ácido que me corria por dentro. Minhas lágrimas pingavam diretamente no chão, e eu fazia questão de manter meus dentes trincados para não dar a ele o gostinho de ouvir meus soluços.
- Por que um dia você não se esconde atrás da porta do escritório, e ouve só por um minuto o que o seu papai diz sobre você ao advogado, ou a sei lá quem? “Estorvo” e “problema” são os adjetivos mais leves. Ele não vê a hora de poder se livrar de você, da mesma forma que se livrou da golpista vagabunda da sua mãe. Maldita hora em que ela morreu. Que, ao menos, tivesse te levado junto pra o infern...
- CHEGAAA! – voltei a estapeá-lo e chutá-lo com toda a força que eu conseguia, certamente lhe deixando alguns arranhões. – CHEGA SEU FILHO DA P... – eu nem precisei terminar de xingá-lo. Daniel me empurrou de novo, e dessa vez com muito mais força. Caí de mal jeito no chão, sentindo meu pulso latejar de uma dor aguda.
Me encolhi, sem mais estômago para olhar na cara de Daniel. Meu choro agora era alto e aberto, e meus soluços quase não me deixavam respirar. Senti que ele se abaixara ao meu lado.
- Me deixa em paz. – eu pedi num sussurro. – Por favor, me deixa em paz...
- Eu não quero. – sua voz rouca soou baixa e extremamente fria.
- Eu não fiz nada pra você... – solucei.
Daniel segurou meu rosto com força, de repente, obrigando-me a encará-lo.
- Você nasceu.
Seus olhos estavam injetados por uma raiva fora do comum. Ele largou meu rosto de forma brusca e saiu marchando do quarto, batendo a porta. Quando me vi finalmente sozinha, não tive forças para me manter sentada no chão. Deitei e me encolhi o máximo que pude, deixando que meus olhos e pulmões chorassem tudo o que tivessem vontade. Meu pulso doía e eu já podia senti-lo inchado, mas a dor não era maior do que a que eu sentia na minha alma.

Foi difícil disfarçar a dor e o inchaço do pulso na manhã seguinte. Comi qualquer besteira no café, mantendo meu punho à distância dos olhos de Maria, e saí de casa o mais rápido que consegui, rumo à escola. Assim que cheguei, corri para a enfermaria já com lágrimas nos olhos.
A bronca da enfermeira eu já esperava, o que eu não esperava era ter que imobilizar o pulso por algumas semanas.
- ! O que aconteceu? – correu até mim quando me viu entrar na sala, com Drew ao seu encalço.
- Ah, nada. Eu só meio que tropecei no fim da escada e caí de mal jeito. – menti.
- Ontem à noite? – perguntou e eu assenti.
- Tá doendo? – Drew perguntou e eu e lançamos a ele um olhar um tanto quanto óbvio demais, fazendo-o rir. – Ok, entendi que está.
- Mas não se preocupem, está tudo bem. – sorri e então eu os segui até as cadeiras que haviam escolhido.
As aulas se arrastaram até que o sinal do intervalo tocasse. Nós três descemos e, depois de comprarmos um saco gigante de salgadinho, sentamos sob uma das árvores do pátio.
- Puta. – disse de repente, interrompendo minha conversa aleatória com Drew. Nossos olhares seguiram o dela, e então avistamos Audrey e suas amigas do terceiro ano, rindo e desfilando em direção à arquibancada. – Puta igual às cheerleadears. Falsa. Cretina.
- Esquece isso, vai. – aconselhei.
- Lembre que o idiota do Pietro também teve culpa. Ele não foi forçado a nada.
- Eu sei... – baixou o rosto e suspirou, enfiando a mão no saco de salgadinho e colocando um punhado imenso na boca. - Quero mais que eles se danem! – ela disse com a boca cheia. Eu e Drew gargalhamos.
- Quando você vai tirar isso ai? – Drew perguntou apontando com a cabeça para o meu gesso.
- Em duas ou três semanas, se eu me comportar.
- Defina “comportar”. – disse antes de enfiar outro punhado de salgadinho na boca.
- Não fazer movimentos exagerados, não molhar e nem quebrar o gesso, e nem cair por cima do braço, por exemplo.
- E ai, galera. – Dougie chegou, já enfiando a mão no saco de salgadinho.
- Fala ai, Dougie. Tudo certo? – Drew perguntou, certamente se referindo à noite de sábado.
- Tudo, relaxa. – Dougie me olhou, e mudou de ideia a respeito do que quer que ele pretendesse dizer. – Que foi isso no seu braço?
- Ela já repetiu isso umas incontáveis dezenas de vezes. – disse e nós rimos.
- Tropecei na escada e caí de mal jeito. – expliquei.
Mantivemos o assunto, já que Dougie começou a contar sobre cada osso do corpo que já fraturara andando de bicicleta ou jogando bola, até o fim do intervalo. Olhei em volta quando levantamos, mas nem sombra de Tom. Confesso que queria vê-lo, me desculpar pela forma como saí do quarto dele no sábado. Provavelmente ele já estava ciente de toda a confusão da festa, e ia me entender. Eu podia ligar, mas como ele também não tinha me procurado o domingo inteiro, talvez fosse melhor que nós conversássemos mesmo pessoalmente.
Chegando o fim da manhã, me despedi de e Drew. Ele não saiu de perto dela um só instante durante todo o tempo das aulas e intervalo, e, sinceramente, pareceu não se incomodar com toda aquela atenção. Talvez ela devesse dar uma chance ao Drew, e eu diria isso a ela assim que nos falássemos de novo.
Tomei o caminho de casa, imaginando como esconderia aquele estrago de Diana e Maria. De Diana porque ela provavelmente iria querer me levar a um pronto socorro, e de Maria porque ela faria inúmeras perguntas com as quais eu me enrolaria na hora de responder. E foi exatamente o que aconteceu, assim que entrei pelos fundos da casa.
- Menina ! O que é isso? – ela perguntou com extrema preocupação.
- Não foi nada, eu só... Dei um mal jeito jogando vôlei na escola. - a desculpa na casa dos Jones teria que ser outra.
- Mas eu nem sabia que você gostava de jogar vôlei. – Maria me olhou desconfiada.
- É que... Na verdade eu não gosto. – fui até a geladeira, e nunca me senti tão interessada por uma garrafa de água como eu estava naquele momento. – Meus amigos insistiram pra que eu jogasse, e olha o que aconteceu. – sorri meio amarelo e fui até o armário buscar um copo.
- E tem certeza de que foi só isso?
- Uhum. – dei um gole demorado, pensando no que dizer para encerrar o assunto. – Eu só não posso molhar o gesso, quebrá-lo, ou forçar o punho.
- Alguma restrição na alimentação?
- Não, a enfermeira do colégio não falou nada. – deixei o copo na pia e coloquei a garrafa de volta na geladeira. – Eu vou subir. Mais tarde desço pra almoçar.
- Tudo bem, menina. Mas não pense que estou convencida. – eu sorri e Maria retribuiu.
Ao passar pela sala, vi que Diana estava distraída anotando alguma coisa em uma agenda próxima ao telefone. Tentei fazer o mínimo de barulho ao subir as escadas, mas ela se virou assim que pisei o segundo degrau.
- Chegou cedo do colégio. – ela disse com um sorriso.
- É... É. Hoje não é dia de monitoria. – disfarçadamente puxei o braço pra trás, mas não adiantou.
- Seu braço. Ele está machucado? – Diana franziu o cenho e veio até mim.
- Não, eu só...
- Ele está engessado! O que aconteceu?
Antes que eu pudesse responder, a porta da frente se abriu. Jones Pai e Jones Filho chegando para o almoço. Ótimo. A família toda reunida para ver o machucadinho da bastarda.
Mordi o lado de dentro da boca, imediatamente incomodada com aquela situação.
- Diga, , o que aconteceu com o seu punho? – Diana insistiu, preocupada.
Eu não precisei encarar Daniel para ter a absoluta certeza de que ele me olhava com o seu melhor tom ameaçador.
Hugo Jones dispensou minhas explicações, saindo em direção ao seu escritório. Mas Daniel e Diana permaneciam no mesmo lugar, esperando pela minha resposta.
- Pois é. O que aconteceu? – Daniel cruzou os braços, reforçando sua ameaça de forma sutil.
Abaixei a cabeça.
- Eu só... Só dei um mal jeito jogando vôlei.
- Quando foi isso? – Diana voltou a perguntar.
- Hoje de manhã mesmo. – ergui meu olhar para Daniel. Ele se mantinha imóvel, suas íris azuis dizendo que ele arrebentaria meu outro pulso, caso eu dissesse alguma coisa demais.
- Eu vou te levar até a clínica.
- Não, não precisa. – voltei minha atenção para Diana. - Já está tudo bem, tudo se resolveu no colégio mesmo. Eu só preciso descansar.
E sem deixar que ninguém falasse mais nada, subi as escadas quase correndo. Entrei no quarto e tranquei a porta, me jogando na cama e puxando todo o ar que minhas narinas conseguiam absorver. Sentia meu sangue quente, e a droga do gesso coçando. Respirei fundo mais uma vez, sentei na cama, e com a mão boa saquei meu celular da bolsa. Precisava fazer algo que eu já devia ter feito desde a noite anterior.



Capítulo vinte e três.



não me atendeu quando liguei mais de vinte vezes seguidas noite passada, portanto, eu também não ia atendê-lo o dia todo. Ignorei a décima sexta chamada dele, colocando o celular no silencioso e o jogando no fundo da bolsa, enquanto caminhava em direção à biblioteca. O espaço continuava silenciosamente agitado por conta das equipes dos trabalhos interdisciplinares, que disputavam pelos melhores livros de biologia e de história antiga.
A cortina da sala de estudos estava fechada, o que eu achei estranho já que Tom sempre a deixava meio aberta para que eu (e o nosso antigo grupo) visse que ele já estava por lá. Abri uma fresta da porta. Ele estava deitado no sofá lendo um livro, e nem percebeu que eu o estava encarando.
- Posso interromper? – perguntei colocando metade do corpo pra dentro da sala, atraindo o olhar e o sorriso de Tom.
- Deve. – ele disse e se sentou, guardando o livro na mochila ao que eu fechava a porta atrás de mim. Ele fez um sinal com a mão para que eu a trancasse, e assim o fiz, deixando minha bolsa e meus livros sobre a mesa.
- Tom, acho que a gente devia conversar sobre o... – comecei.
- O que foi isso no seu pulso? – ele me interrompeu, levantando e parando na minha frente, pegando em meu braço com cuidado.
- Eu só caí de mal jeito, mas já está tudo bem. – dei de ombros, tentando parecer que não foi nada demais. E, naquele momento, não era mesmo. Eu e Tom tínhamos um assunto mais importante pendente.
- Tem certeza?
- Tenho sim. – dei um meio sorriso para confortá-lo. – Tom, sobre o que aconteceu sábado, eu...
- Você se arrependeu?
- Não, não é isso. – eu disse e ele sorriu – Foi a forma como eu interrompi as coisas. Queria pedir desculpas.
- Você não precisa pedir desculpas. – Tom passou a mão pelo meu rosto, chegando mais perto. – Eu e Dougie conversamos no domingo, ele me contou direito o que aconteceu, falou que você também dormiu na casa da e que isso foi importante pra ela. E até pra ele, já que você também deu uma força. Está tudo bem. – a voz de Tom era um sussurro ao final da frase.
Nossas testas estavam quase encostadas, e eu me limitei a soprar apenas um “Que bom, então...” antes que nossos lábios se encaixassem. Foi um beijo lento, como se matássemos a saudade e nos reconhecêssemos ao mesmo tempo. Minha mão boa se entrelaçou no cabelo de Tom, puxando fraquinho enquanto ele mordia meu lábio e sussurrava:
- Sábado foi muito bom...
- Foi... – respondi, voltando a beijá-lo.
As mãos de Tom abraçaram minha cintura e me puxaram pra mais perto, deixando o beijo mais intenso. Uma delas passou por debaixo da minha blusa e tocou minhas costas, me causando um leve arrepio. Suspirei entre o beijo, e Tom aproveitou a deixa para correr os lábios para o meu pescoço.
Sua língua traçava um caminho quente pela minha pele, e ao mesmo tempo em que eu puxava seu cabelo, odiava não poder apertar seu corpo com minha outra mão, por causa do gesso. Virei o rosto pro lado, alcançando sua orelha com a boca, mordendo fraquinho. Senti um leve chupão em resposta, o que me fez morder o lábio e suspirar novamente.
Tom me deu um impulso, me fazendo sentar na mesa, como havia feito na escrivaninha do seu quarto. O abracei com as pernas, sustentando seu olhar desejoso antes de voltarmos a nos beijar. Suas mãos percorreram as laterais do meu corpo até alcançarem os botões da minha blusa.
- Tom... – sussurrei entre o beijo, mas eu mesma me interrompi ao sentir suas mãos tocarem meus seios por cima do sutiã. Apertei minhas pernas em sua cintura, percebendo que eu não era a única que estava ficando excitada.
Tom mordeu meu lábio e o puxou, separando nossas bocas. Nossos narizes ainda se encostavam e misturavam nossas respirações sem compasso.
- Aqui não... – pedi, quando as mãos dele ficaram perigosamente perto do fecho do meu sutiã.
- Será que hoje você aceita uma carona minha? – ele perguntou roçando os lábios nos meus.
- Pra onde? – desviei a boca da dele, mordendo seu queixo fraquinho.
Tom sussurrou no meu ouvido:
- Pra minha casa.
Sorri.

Entramos no quarto, e Tom mal fechou a porta antes de me abraçar e me beijar com vontade. Correspondi, deixando que ele me guiasse até sua cama. Deitei com o corpo de Tom sobre o meu, sem que rompêssemos o beijo.
Nossas línguas brincavam enquanto as mãos de Tom voltavam a abrir minha blusa, dessa vez mais ágeis. Ele partiu o beijo com um selinho e foi traçando uma linha de beijos por meu pescoço até os ombros, ao mesmo tempo em que senti meu sutiã afrouxar. Tom me lançou um olhar como que perguntando se podia tirá-lo, e eu apenas mordi o canto do lábio em resposta.
Assim que se desfez da peça, Tom passou a língua por um dos meus seios, me arrancando um suspiro. Entrelacei meus dedos em seu cabelo e fechei os olhos, sentindo a língua de Tom brincar rapidinho com os biquinhos dos meus seios, que iam endurecendo em sua boca.
Tom mordeu um deles sem força e eu gemi baixinho, sentindo um chupão entre os meus peitos. As mãos de Tom desceram até o cós da minha calça, e junto com ela sua boca foi descendo. O ajudei de alguma forma a tirar minha calça, que foi parar em qualquer canto do quarto junto com a camisa dele, que ele mesmo tirou em seguida.
Tom estava ajoelhado na cama, olhando o meu corpo seminu. Me apoiei com os cotovelos no colchão, e retribuí o mesmo olhar. O volume entre suas pernas era notável. Tom voltou a deitar o corpo sobre o meu, beijando minha testa e descendo os lábios pelo meu nariz, até encontrar minha boca novamente.
Abracei a cintura dele com as pernas, forçando seu membro em minha intimidade, e ele pareceu gostar, já que começou a se movimentar como se já estivéssemos nos finalmentes. Eu podia senti-lo duro por baixo da calça e aqueles movimentos eram como uma masturbação. Gemi entre o beijo, e não demorou para que uma das mãos de Tom invadisse minha calcinha para me fazer gemer de novo.
Seus dedos se moviam num ritmo gostoso, e sua língua repetia o movimento com a minha. Chupei seu lábio e soltei um gemido mais arrastado, sentindo minha intimidade molhada. Aproveitei o espaço entre nossos corpos para abrir o botão da calça dele, que terminei de tirar com meus pés. Tom me olhou e sorriu de canto.
Minha calcinha deslizou por entre minhas pernas, e também se perdeu pelo chão do quarto. Minha respiração estava acelerada, e desregulou ainda mais quando Tom se desfez de sua boxer branca.
- Camisinha. – lembrei.
Tom apenas se esticou até a cômoda ao lado da cama para puxar um pacotinho.
- Tão clichê. – brinquei e Tom riu, rasgando a embalagem com a boca e tirando o preservativo.
Tom ajeitou o corpo sobre o meu, e mantivemos apenas um contato visual enquanto, aos poucos, eu ia o sentindo dentro de mim. Rebolei devagar e Tom gemeu, dando um tranco mais forte. Ofeguei. Ele continuou devagar até uma de suas mãos apertarem minha cintura e o ritmo começar a ficar mais intenso.
Tornei a entrelaçar as pernas no corpo de Tom, o que fez os movimentos ficarem ainda mais gostosos. Espalmei minha mão boa pelas costas dele, arranhando, enquanto a outra, imobilizada, eu deixava apoiada em seu braço.
À medida que Tom revezava a velocidade dos movimentos, e se dividia entre beijar minha boca e meu pescoço, uma sensação boa ia me tomando. Mas nada além disso.
Tom deu algumas investidas mais fortes antes de relaxar o corpo cansado em cima do meu. Respirei fundo. Só sabia o jeito certo de fazer e de me tocar para que eu chegasse ao orgasmo.
Retribuí o selinho que recebi e me ajeitei com Tom na cama. Deitamos de conchinha, e ele fazia um leve carinho na minha barriga enquanto eu me odiava por tê-lo comparado a nesse sentido.
- Você é linda, sabia? – Tom sussurrou e, apesar dos meus pensamentos horríveis, eu sorri.
- Foi bom? – perguntei.
- Muito. – ele respondeu, e eu decidi que se Tom estava feliz e satisfeito, eu também estaria. Aquela tinha sido só a nossa primeira vez. Aos poucos, Tom iria descobrindo meus pontos fracos e então o sexo melhoraria e eu chegaria lá.
- Vou ao banheiro, ta? – ele disse baixinho e eu assenti.
Assim que ouvi a porta fechando, afundei a cara no travesseiro e desejei que sumisse dos meus pensamentos pelo menos durante o resto daquela tarde.
Ouvi o barulho do chuveiro e então respirei fundo, sentando na cama enrolada no lençol. Procurei minhas roupas pelo chão, e assim que as encontrei saí catando para me vestir. Tom saiu do banheiro com o cabelo molhado e vestindo apenas uma bermuda jeans, quando eu terminava de abotoar minha blusa. Ele me abraçou por trás.
- Vamos pra varanda do quintal. – ele disse e beijou meu pescoço, entrelaçando a mão na minha em seguida e me puxando pra fora do quarto.
Havia uma mesa redonda de mármore, posta com várias coisas gostosas.
- Até parece um café da manhã. – comentei e Tom sorriu.
- Quase isso.
Nos sentamos e, enquanto eu me servia com um copo de suco e cookies de baunilha, Tom perguntou:
- O que faremos com o nosso grupo do trabalho?
- Eu esperava que você pudesse me dizer. – respondi.
- Acho que mesmo se eu falasse com os professores para que mantivéssemos o grupo sem a Audrey e o Pietro, o clima nas reuniões não seria dos melhores, já que foi por causa desse trabalho que essa confusão toda aconteceu.
- Eu concordo. Acho que só o Drew quer muito esse ponto nas médias finais. – eu disse e nós rimos.
- Trabalho cancelado então?
- Trabalho cancelado. – eu disse.
Terminamos de comer e eu consegui inventar qualquer desculpa para evitar que Tom me levasse em casa.
Quando cheguei à mansão dos Jones, me tranquei no quarto e tirei o celular da bolsa. Trinta e duas chamas de , tendo sido a última enquanto eu e Tom lanchávamos no quintal. Resolvi finalmente retornar, e o telefone não chamou nem uma vez completa para que atendesse com um “Porra, !” bastante audível.
- Que merda te deu pra você não atender essa droga de telefone? – ele praticamente gritou.
- EI! Sem ataque, ok?
- Sem ataque?! Eu te liguei a tarde inteira e você simplesmente não atende, e espera que eu não fique puto? Eu quase surtei achando que tinha acontecido alguma coisa.
- Pois é, pra você aprender a atender o inferno do seu telefone também, quando eu te liguei não sei quantas vezes ontem.
- Não muda de assunto.
- Mudar de assunto?! ESSE é o verdadeiro assunto. E quer saber, eu aposto que você estava com a Farah ontem.
- E você com o Tom hoje à tarde.
- Quer saber? Estava mesmo. Na casa dele. No quarto dele. Na cama COM ele. Era isso que você queria ouvir? – rebati, percebendo o quanto minha voz havia se alterado.
Fez-se um minuto de silêncio.
- Vocês transaram? – ele perguntou, e eu pude notar a perplexidade de .
- Sim. – disse seca.
- , eu não acredito nisso. – disse de forma pausada, agora com um misto de raiva e ciúmes na voz.
- Eu também não acreditei quando você disse que estava saindo com a Farah poucas semanas depois de eu me mudar.
- Mas é diferente!
- Diferente porque você pode e eu não? Olha só, , eu nunca me meti com o seus rolos de faculdade e você nunca fez questão de escondê-los de mim. Mas não é justo que o tempo todo eu tenha sido só sua e você de tantas outras.
- Mas você sempre foi a que eu realmente quis. Você sabe disso.
Ficamos em silêncio, até que eu o quebrasse com um sopro.
- Eu sei, mas nunca foi nada além disso.
- Nós já tivemos esse tipo de conversa antes e deixamos claro que nenhum dos dois queria namorar.
- Eu também sei. O que me cansa são os seus ataques de ciúme, enquanto eu sempre levei tudo numa boa.
suspirou.
- Desculpe. – ele disse por fim.
Novamente ficamos calados, até que ele voltou a falar.
- Está tudo bem com você?
- Mais ou menos... Eu torci o pulso.
- Como?
E então eu contei a ele toda a história de Daniel ter entrado no meu quarto, me empurrado e blablabla.
- Filho da puta. Eu vou matar esse desgraçado.
- Estaria me fazendo um favor.
- , você não pode deixar esse verme encostar em você de novo.
- E como você espera que eu faça isso?
- Começa a andar com uma faca, spray de pimenta, eu não sei. Só sei que se esse imundo tocar em você de novo, eu vou aí pessoalmente resolver isso.
- É, acho que vou arranjar um spray de pimenta. – disse.
- ...
- Oi.
- Tem uma coisa que eu tenho que te contar. – o tom de agora era mais cauteloso.
- Se for sobre a Farah eu não quero saber.
- Não, não. É sobre o meu pai.
- O que tem ele?
- Ele comprou as minhas passagens. Vou pra Austrália em duas semanas.
Levei alguns segundos para processar aquilo com exatidão.
- Duas semanas? Mas... mas já?
- É... – suspirou.
- Eu... Eu fico feliz por você, . Você vai ver seu pai, isso é ótimo. – falei. Realmente eu estava feliz por ele, eu só não esperava que essa viagem fosse tão cedo.
- Eu volto logo, prometo.
- Tenta me ligar de vez em quando. – pedi, quase num sussurro.
- Pode deixar.

Na manhã seguinte, sorri ao ver e Drew conversando e rindo de um jeitinho diferente, e isso perdurou até o intervalo. Descemos para o pátio e sentamos em uma das mesas de pedra da cantina. Alguém chegou por trás de mim e me cutucou no ombro direito, olhei logo pra esquerda porque já conhecia a brincadeirinha, e então Tom me roubou um selinho.
- Bom dia. – ele disse e eu ri.
- Bom dia.
- Hmmm, já estão assim, é? – brincou e nós rimos.
Tom se juntou a nós na mesa, fazendo questão de segurar minha mão.
Já quase no final do intervalo, Tom se despediu e disse que ainda tinha que conversar com Dougie sobre o cancelamento do nosso trabalho interdisciplinar. Eu, e Drew continuamos sentados, mas percebi que Tom deixara o celular em cima da mesa.
- Eu vou lá devolver pra ele. Encontro vocês na sala. – disse quando o sinal tocou.
Segui a direção pela qual Tom tinha ido, mas recuei assim que reconheci a pessoa com quem ele estava conversando. Apesar dos olhos azuis, definitivamente não era o Dougie. Me escondi atrás de uma pilastra.
- Então ta marcado, quarta-feira à noite. – Tom disse.
- Fechou. Vou avisar o resto. – o tal Harry respondeu.
Minha respiração falhou por um instante. Harry saiu andando e Tom começou a fazer o caminho pra sua sala. Esperei até que ele ficasse seguramente sozinho e o alcancei.
- Oi, linda. Ta tudo bem? – ele perguntou ao perceber a minha palidez.
- Está, eu só... – me interrompi. – Não, nada. É que você esqueceu seu celular em cima da mesa. – disse, entregando o aparelho a ele.
- Ah, obrigado. – ele sorriu e me deu um selinho.
- Tom, é melhor a gente não ficar assim aqui na escola. Minha voz ainda entregava o meu estado de choque. POR QUE RAIOS Tom e aquele cara se conheciam?
- , tem certeza de que está tudo bem?
- Tenho. – menti. – Eu preciso ir. – dei um beijo na bochecha de Tom e subi as escadas correndo, desejando me esconder em qualquer lugar longe dos olhares dos possíveis amigos dele.

Capítulo vinte e quarto.



Durante a semana fiquei mais atenta às pessoas com quem Tom andava. Nunca era um grupo definido. Hora ele falava com os caras do time de futebol, hora com uma gente mais nerd. Era difícil sondá-lo daquele jeito. A todo custo evitei que nos encontrássemos em áreas muito movimentadas, mas por mais sutil que eu tenha tentado ser, ele percebeu que eu estava diferente.
- , o que está havendo? – ele perguntou certa manhã, quando pedi que sentássemos sob uma árvore mais afastada. Tipo, a mais afastada do pátio.
- Nada, ué. – disse dando de ombros, puxando seu rosto pro meu em um selinho.
- Você está estranha. Até parece que está se escondendo de alguém. – Tom insistiu.
- É impressão sua.
- Eu ficaria mais convencido se você me falasse a verdade.
Desviei meus olhos dos dele e suspirei.
- Tom, outro dia, aquele em que fui te devolver o celular, eu te vi conversando com uma pessoa...
- Foi alguma garota?
- Não. Eu acho que o nome dele é Harry.
- Sim, o Harry. O que tem ele?
- Nada, é só que... Eu não imaginei que você e ele fossem amigos.
- Seja lá qual for o motivo disso, fica tranquila. Ele dá a maior força pra gente. Você vai gostar de conhecê-lo.
Meu sangue gelou.
- Ele... O que? Ele sabe da gente?
- Todos os meus amigos sabem. Por que esse susto todo? – Tom deu uma risadinha, provavelmente achando graça da minha expressão de pavor.
Antes que eu respondesse o sinal soou, e eu dei graças aos céus por não ter que responder aquela pergunta. Retribuí o beijo que Tom me deu antes de se levantar.
- Vamos? – ele chamou, mas minhas pernas estavam trêmulas demais para que eu ficasse de pé.
- Eu já vou... Pode ir na frente. – respondi da forma mais natural que consegui, apesar de estar em verdadeiro pânico por dentro.
- Tudo bem. Até mais tarde. – ele disse e franziu o cenho, fazendo o caminho para sua sala. Assim que Tom sumiu de vista, abracei meus joelhos e me encolhi, desejando poder me fundir à terra e sumir daquele lugar.
Por que Tom tinha que ser amigo daquele garoto? E por que Tom tinha que ter falado de mim pra ele? Harry era amigo de Daniel, e não demoraria para que o meu irmãozinho querido ficasse sabendo dessa história. Eu precisava colocar um ponto final naquilo antes que alguém resolvesse torcer o meu outro pulso.
Passei o horário da aula todo no pátio, e só quando o segundo tempo estava para começar foi que voltei para sala. e Drew me olharam curiosos.
- Estava com o Tom, né? – Drew sorriu de canto e eu revirei os olhos.
- Não. , será que depois da aula a gente podia conversar?
- Claro. Quer almoçar lá em casa?
- Se não for incomodar...
- Por que eu estou fora disso? – Drew ergueu uma das sobrancelhas.
- Porque eu quero falar com ela sobre menstruação, hidratação de cabelo, maquiagem, depilação de partes íntimas, lingeries...
- Opa, isso me interessa – Drew me interrompeu e riu.
Geralmente ela andava rindo de todas as piadinhas dele.
– Tudo bem, já entendi.

- VOCÊ O QUE?! – berrou quando já estávamos trancadas em seu quarto. – Vocês, mas... Por que?
- Eu não posso continuar ficando com o Tom, Pê. – baixei os olhos, encarando meu gesso. – E eu tenho um bom motivo pra isso.
- Eu espero que tenha mesmo.
- ... – fiz uma pausa, ponderando se realmente valia à pena abrir o jogo. Sem nenhuma dúvida, Penélope havia se tornado a minha melhor amiga, e eu já não estava mais aguentando sufocar e fugir de toda aquela história sozinha. Então, sim, valia à pena. – Eu tenho um irmão.
- Um irmão? Mas... Ah, vai dizer que seu irmão está com ciúmes do Tom? Que bobagem amig...
- Meu irmão é o Daniel Jones.
ficou muda, e piscou algumas vezes antes de assimilar o que eu estava dizendo.
- Pera ai... o Jones? Do colégio? Danny Jones?
Assenti.
- ... Como... Como isso pode ser possível?
Respirei fundo.
- Eu nunca te contei o que exatamente me trouxe à Londres, e nunca falei muito sobre a minha família. Eu não podia. – baixei novamente os olhos – A questão é que... tudo está ficando tão difícil! – eu já podia sentir meus olhos marejarem.
- ... – segurou minha mão boa e apertou levemente, me encorajando a continuar.
- Minha mãe nasceu no subúrbio daqui, e teve uma vida difícil. Ela nunca me contou direito, só disse que passou fome durante a infância, e que quando completou quinze anos não encontrou outra alternativa senão... vender si mesma. Pra comprar comida, pra ajudar em casa. Meus avós achavam que ela trabalhava em uma loja chique. Na verdade, ela dançava em uma boate em um bairro nobre, e foi lá que, uma noite, ela conheceu Hugo Jones.
- Pai de Daniel. Seu pai. – soprou e eu confirmei, fazendo uma pausa enquanto as lágrimas já escorriam pelas minhas bochechas.
- Ela tinha 19 anos, ele 30. Ele pagou para tê-la a noite inteira, e teve. Não só por aquela noite, como por várias outras que vieram em seguida. E minha mãe caiu na besteira de se apaixonar. Ela pensou que se casaria e que finalmente poderia sair daquela vida. E eles, de fato, viveram um caso, que resultou em uma gravidez. – fiz uma pausa, fungando baixinho. - Quando minha mãe contou que estava esperando um filho, Hugo Jones a chamou dos nomes mais imundos imagináveis, e fez de tudo para se manter longe dela nos meses seguintes. Meu avô também foi muito duro, e só não a expulsou de casa antes que eu nascesse porque minha avó não permitiu. Enfim. Poucas semanas após o parto, minha mãe foi procurar Hugo Jones para que eu fosse registrada, e aí descobriu que ele era casado e que já tinha um filho de um ano.
- Danny... – sussurrou. Enxuguei as lágrimas com as costas da mão.
- Magoada e indignada com toda a situação, minha mãe ameaçou chamar a imprensa e fazer um escândalo caso ele não me desse um nome. Ele então fez uma proposta: me registraria e daria uma quantia em dinheiro para minha mãe, desde que ela nunca mais aparecesse comigo na vida dele. Sem saída, prestes a fazer vinte anos, sendo humilhada pelo pai por ter tido uma filha com um homem casado, e com um bebê pra criar, minha mãe aceitou a proposta, e então se mudou pra Bolton. O dinheiro só deu para as passagens e para comprar a casa em que morávamos. O que sobrou minha mãe colocou na poupança. Eu nunca soube se ela realmente trabalhava como garçonete em um restaurante, ou se continuava fazendo programas. Acho que meus avós nunca souberam disso também. Só sei que ela não me deixou faltar nada, e que eu nunca a julguei por qualquer decisão que tenha tomado na vida.
- Você e o Danny... Irmãos. – ainda não conseguia acreditar.
Solucei baixinho e então ela me abraçou, fazendo-me desabar. Somente sabia de toda aquela história. Quando me senti melhor, desfez o abraço e me encarou.
- Onde está sua mãe? Por que você veio pra cá?
- Ela morreu. – minha voz praticamente não saiu. Funguei e encarei o teto, buscando coragem pra tocar naquele assunto. – Nós estávamos em casa, vendo TV como gostávamos de fazer juntas quando tínhamos tempo. De repente homens irromperam pela porta e... e eu só me lembro de estar acuada com ela no chão, e de ser arrancada dos braços dela por um dos homens. Ele ia atirar em mim, mas minha mãe... – solucei, dessa vez com mais força. – Ela ficou na frente e não resistiu.
- ... – estava perplexa. Ela passou as mãos pelo meu rosto, secando minhas lágrimas. – Por isso você veio. Porque seu pai é o único responsável legal por você. – Assenti. – , por que você não me contou?
- Daniel faz da minha vida um inferno, . Ele disse que se alguém ficasse sabendo disso, que eu me arrependeria. Meu pulso... foi ele que...
- , isso é sério! Ele não pode machucar você desse jeito!
- Por favor, prometa que não vai contar a ninguém! – pedi, a voz totalmente embargada. respirou fundo e assentiu.
- Eu prometo.
- Entende porque eu não posso continuar com o Tom? Daniel pode ficar sabendo, e...
- Com certeza ele já sabe. Daniel e Tom são amigos.
Engoli em seco.
- Se Daniel soubesse, ele já teria demonstrado.
- Ele sabe que Tom está saindo com alguém, mas talvez não saiba que é com você. – sugeriu, e fazia sentido.
O resto da tarde se resumiu em contar a todas as ameaças de Daniel, e detalhar como era a minha rotina dentro da mansão dos Jones. De noitinha, aceitei a carona para que ela me deixasse em casa, estacionando uma esquina antes.
- Fica tranquila, tá? Eu vou te ajudar.
- Não tem como me ajudar, ... – suspirei, encarando a minha prisão logo à frente.
- Tem sim. Confia em mim. – ela sorriu e então eu a olhei, retribuindo.
- Obrigada por tudo. – a abracei apertado.
- Não tem o que agradecer. – ela disse. – E não esquece, vá com roupas bem confortáveis para o colégio amanhã.
Franzi o cenho, mas concordei. Já tinha tentado de todas as formas entender o que estava planejando, e como não consegui fazê-la falar o que pretendia, resolvi não contrariá-la. Saltei do carro e acenei, mas ela só foi embora definitivamente quando fechei a porta da sala atrás de mim.
- ? – ouvi Diana me chamar, e pressenti que boa coisa não estava por vir.
O Sr. Jones estava sentado na poltrona com a expressão séria. No sofá, Diana e o Sr. Gilspert, o advogado, estavam sentados em um dos sofás. Daniel estava sentado de maneira jogada no outro.
Oba, reunião de família.
- Aconteceu alguma coisa? – perguntei pausadamente, revezando o olhar entre Diana, o Sr. Jones e o Sr. Gilspert.
- Srta. Jones, est...
- . – corrigi o advogado com toda a ênfase educada possível, mesmo tendo vontade de arrancar-lhe os olhos por toda vez me chamar daquele sobrenome asqueroso.
- Como preferir, Srta. . Estou aqui para fazer um comunicado.
- Sente-se, . – Diana apontou para o sofá em que Daniel estava largado.
- Eu estou bem. – disse, mantendo-me em pé.
- Senhorita, como deve saber, o Sr. Jones é um homem de importantes negócios, influente na política e em parcela significativa da economia da cidade. Anualmente, o governo promove um evento para comparar estatísticas, atualizar planejamentos, agradecer aos contribuintes e arrecadar fundos para fins beneficentes e privados.
- Hm. – resmunguei, fazendo certo esforço para acompanhar toda aquela ladainha. Era incrível como Gilspert nunca conseguia ir direto ao ponto.
- O fato é que as aparências e tradições sociais são um requisito fundamental nesse tipo de evento, tendo em vista a sociedade britânica, a qual pertencemos. – Gilspert falava mais cuidadosamente agora, e limpou a garganta antes de continuar. – Sendo assim, é importante que toda a família Jones esteja presente.
As reações foram diferentes. Hugo Jones pressionou a curva do nariz entre o polegar e o indicador abaixando a cabeça e, acredito eu, proferiu mentalmente todos os xingamentos possíveis. Diana sorriu, não sei porque. Já Daniel fez sua melhor expressão de nojo e virou a cara para qualquer lado que não conseguisse me ver.
- Boa festa pra vocês. – eu disse, e já me preparava para sair dali quando o Sr. Gilspert tornou a dizer.
- É uma imposição judicial.
Ah, vá.
Girei meu corpo novamente em direção ao advogado que agora estava de pé, com as mãos nos bolsos dianteiros de sua calça de alfaiataria cinza.
- Eu não quero ir a essa festa.
- Temo que a senhorita não tenha escolha. – ele respondeu.
- Isso não é justo! Eu já moro aqui contra a minha vontade, e ainda sou obrigada a fazer parte desse circo?! – minha voz saiu mais rápida e exaltada do que eu pretendia, mas a ideia de participar daquele evento fez o meu sangue esquentar de repente.
- Srta. , sinto informar que esta é uma decisão tomada pelo juiz, e que não há possibilidade de revogação.
Meu queixo cedeu, tamanha era a indignação que eu sentia. Diana se levantou.
- , eu entendo que seja uma situação complicada, por isso estamos avisando com bastante antecedência.
- Avisando? Vocês estão me intimando! – rebati.
- Entenda como quiser. Você vai a esse evento e eu não quero novas discussões sobre o assunto. – Hugo Jones finalmente se manifestou e se levantou da poltrona. – Gilspert, vamos para o meu escritório.
Os dois seguiram para fora da sala. Daniel os imitou, batendo os pés com toda força escada acima, demonstrando a raiva que estava sentindo. Diana se aproximou.
- Esse evento não é por agora. Decidimos avisá-la justamente para que vá se acostumando com a ideia. Fazer parte de uma família import...
- Eu não faço parte dessa família. – disse com toda a frieza que consegui cuspir naquela frase. Diana imediatamente se calou, e então aproveitei a deixa para lhe dar as costas e finalmente me trancar no quarto.


Capítulo vinte e cinco.



Demorei mais no banho do que o habitual, cantarolando todos os sete mantras que minha mãe me ensinou, buscando a serenidade interior, e invocando todas as energias positivas possíveis. Se bem que, levando em consideração a aura daquela casa, pouquíssimas energias positivas eram aproveitáveis.
Vesti um short jeans básico, o meu blusão do Mickey, meu all star de sempre e prendi o cabelo em um rabo-de-cavalo despenteado. Se havia pedido que eu fosse vestida confortavelmente para o colégio naquela manhã, eu levaria aquilo bem ao pé da letra.
Peguei minha bolsa e desci para a cozinha, onde Maria já me esperava com a mesa posta para o café da manhã, o que era uma pena, já que eu não estava conseguindo engolir quase nada de tão embrulhado que meu estômago estava desde a noite anterior.
Enquanto eu bebericava com bastante esforço o meu achocolatado, Diana entrou no cômodo e me lançou um olhar chateado. Um misto de tristeza e desconcerto.
- Bom dia, . – ela disse com educação.
- Bom dia. – respondi, evitando olhá-la novamente.
Maria certamente percebeu o clima desconfortável e imediatamente colocou-se a serviço da patroa. Voltei meu olhar para o quintal através das portas de vidro, quando uma coisinha me chamou atenção. Um pequeno anjinho de cabelos encaracolados brincava na grama com um carrinho, com uma chupeta verdinha na boca.
- Dilan! – murmurei e sorri, realmente feliz por vê-lo.
Diana saiu da cozinha bem na hora em que eu voltei minha atenção para Maria.
- Onde está Laline? O Dilan está lá fora sozinho.
- Ela está no quarto, terminando de ajeitar as coisinhas dele. Dilan vai passar uns dias aqui com a gente.
Levantei sem nem terminar de comer direito e fui até o encontro dele.
- Ei, pequenininho, bom dia! – eu disse ao me agachar para ficar da sua altura. Ele logo me olhou e sorriu por trás da chupeta.
- Ía. – ele respondeu.
- Quer dizer que você vai passar uns dias bagunçando por aqui, né? – falei e ele apenas assentiu com a cabeça, mas não tive certeza de que ele realmente entendeu o que eu havia dito.
Fiz um leve cafuné por entre seus cachinhos, enquanto ele voltava a brincar com o carrinho. Olhei no relógio e percebi que já estava na hora de sair.
- Se comporta, hein. – eu disse e apertei bem de leve a bochecha sardenta do garotinho, que nem me deu muita bola.
Entrei na sala de aula faltando apenas cinco minutos para o sinal tocar.
- Pronta para um dos dias mais marcantes da sua vida? – disse com uma empolgação incomum para as sete e vinte e cinco da manhã.
- Quando você pretende dizer o que vai fazer comigo? É alguma daquelas torturas chinesas?
riu.
- Não. Nós vamos ao shopping.
- Tanto mistério pra isso?! – revirei os olhos.
- Para renovar seu guarda-roupa. – manteve o tom de voz como se eu não tivesse feito nenhum comentário anteriormente. Arregalei os olhos.
- Oi?!
- Isso mesmo que você ouviu. Vamos dar uma repaginada.
- , eu não preciso de uma repaginada.
- Você pensa que não precisa. Confie em mim. Além do mais, uma Jon...
- SSSHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!! – fiz os gestos mais exagerados possíveis para que calasse a boca antes de terminar aquele sobrenome, e deu certo.
- Foi mal. – inclinou o corpo pra frente e sussurrou – Uma Jones deve se vestir como uma Jones.
- E aquele papo de “não ligo para essas futilidades”, ex-cheerleader?
- É diferente agora. Eu sei que você não é como as bonecas de cera as quais eu estava acostumada. Agora eu tenho uma amiga que não pensa somente em aparências, e por isso acaba deixando a própria de lado. Eu deixei a minha por rebeldia. Mas agora nós duas temos ótimos motivos pra dar uma renovada no look. – sorriu e piscou. – E nem vem dizer que não tem dinheiro, porque hoje nós vamos torrar o cartão que o seu pai te deu.
Eu nem tive tempo de fazer um escândalo, e nem de perguntar quais seriam os motivos que teria para voltar a se produzir. O professor entrou na sala e mandou que afastássemos as carteiras o quanto antes para um teste surpresa. Realmente, tudo o que eu precisava.
- , isso tem dez centímetros! – reclamei da saia que ela tirou do cabide e juntou às tantas outras peças de roupa que eu não havia gostado, mas que ela me forçaria a experimentar. – Essa blusa não! – tentei impedir, mas foi mais rápida que eu.
- Se você não quiser, eu quero. – ela disse e continuou desfilando por entre as araras da loja. Revirei os olhos.
Quando chegamos aos provadores, separou o primeiro look para que eu vestisse. Um short jeans escuro de tachinhas douradas na frente, com o pano dos bolsos escapando pela parte de baixo, e uma blusa preta longa de mangas compridas, bem colada ao corpo, com um decote absurdo nas costas. Abri a cortina com uma careta.
- Com um salto vai ficar incrível! – elogiou.
- Isso não é a minha cara.
- E não é pra ser.
- Mas...
- Próxima roupa. – me interrompeu aumentando a voz e fazendo um movimento com o dedo pra que eu me virasse e trocasse de roupa.
O segundo look era a tal saia que eu tinha odiado, com uma regata de costuras desfiadas, e que tinha uma estampa de cruz na frente.
- Coloca o cinto dourado. Isso. E essa roupa vai com um tênis.
- , isso está horrível em mim.
- , olha pro espelho! Você nunca esteve tão gostosa na sua vida. Você tem um corpo lindo, e tem que parar de escondê-lo atrás de calças largas e blusas três números maiores que o seu.
Suspirei.
- Sério, olha pro espelho. – ela pediu.
Girei o corpo e encarei meu reflexo. De fato, não estava totalmente horrível.
- É completamente estranho me ver com essas roupas. Ainda preciso me acostumar.
- Mas pra isso você precisa comprá-las. E eu sugiro que você experimente logo o resto para que nós possamos ir às outras lojas.
Ri da pressa de e fechei a cortina para vestir as outras peças que ela havia escolhido pra mim.
Aquela tinha sido apenas a primeira loja, e eu já estava com três sacolas na mão. Ter passado o cartão de Hugo Jones foi quase como botar um ovo, mas – depois de muito argumentar – conseguiu me convencer. Eu tinha direito a todas as regalias que Daniel teve a vida inteira, apesar de não fazer questão delas, certo? E ninguém mandou o filhinho adorado dele destruir metade das minhas roupas.
Lojas de sapato, maquiagem, roupas íntimas, acessórios, e mais lojas de roupas. Eu parei de contabilizar os gastos quando ultrapassamos seis mil libras. Meus braços já estavam cansados de carregar tantas sacolas, inclusive por causa do gesso, e minhas pernas doíam de tanto andar de um lado para o outro. Sem contar a fome que eu estava sentindo.
- Acho que por hoje está bom. – disse quando saímos de uma loja de biquínis.
- Já anoiteceu e nós não comemos nada desde o almoço, amiga. Estou exausta.
- Ok. Vamos para o carro, paramos lá na Starbucks perto da sua casa e depois eu te deixo.
Depois de brigarmos com o espaço da mala do carro para guardar tantas sacolas, seguimos para a Starbucks e pedimos uma quantidade de muffins e brownies que normalmente nós não daríamos conta de comer.
- Eu não posso entrar na casa dos Jones com todas aquelas sacolas. – eu disse de boca cheia, tomando um gole de suco.
- A gente dá um jeito. E você já sabe, a partir de amanhã, o Danny nunca mais vai humilhar você.
- Acha que vai dar certo? – perguntei, realmente na dúvida.
- Pode apostar que vai.
Eu admirava a confiança de quando o assunto não era o coração. Talvez fosse coisa de modelo ter essa autoestima superelevada, mas, de qualquer forma, ela sempre sabia exatamente o que fazer em diferentes situações. Ao contrário desse poço de indecisão e insegurança chamado eu.
Deixei todas as sacolas em um canto da garagem antes de entrar em casa e ir direto para o meu quarto. Tomei um banho e sentei à escrivaninha para revisar os assuntos das aulas daquele dia, esperando até que a casa ficasse silenciosa. Algumas horas depois, certifiquei-me de que todos já haviam se recolhido e desci para buscar minhas compras.
Estava subindo as escadas quando ouvi a porta do quarto de Daniel destrancar, e uma risadinha de mulher ecoar baixa pelo corredor. Laline. Desci os degraus correndo e me escondi na sala de jantar, torcendo para não ter feito nenhum barulho. Ouvi os passos de Laline em direção à cozinha, e esperei alguns minutos até que tudo voltasse a ficar em absoluto silêncio.
Quando consegui finalmente voltar ao meu quarto, tranquei a porta e joguei todas as sacolas de qualquer jeito no closet. Minha respiração estava acelerada e minha mão gelada. Estava começando a me arrepender daquela maluquice de .
Na manhã seguinte, vesti as minhas roupas de sempre e mandei uma mensagem para : 'Missão abortada hoje. Conversamos no colégio xx.' Calça jeans, blusa polo branca e all star vermelho. Para não deixar minha amiga muito chateada, peguei na sacola uma bolsa preta de franjinha e coloquei minhas coisas dentro, guardando minha bolsa de sempre em uma prateleira do closet.
Transpassei a bolsa no ombro e me olhei no espelho. O cabelo estava de bom humor, por isso resolvi deixá-lo solto, mas alguma coisa na minha cara não estava legal. Tipo, tudo. Peguei as maquiagens que Penélope havia escolhido e passei o básico de sempre: corretivo, pó, lápis e rímel. Guardei tudo novamente na sacola e saí do quarto, infelizmente na mesma hora em que Daniel saía do dele. O cabelo cacheado molhado, respingando sobre o casaco preto.
Como sempre, Daniel me mediu de cima a baixo com seu melhor tom de desprezo e saiu na frente. Deixei que ele se afastasse alguns passos e o segui até a cozinha, onde ele cumprimentou Maria com um beijo no rosto. Sentei à mesa, respondendo o ‘bom dia’ de Maria. Enquanto cortava um pão, percebi Dilan andar até Daniel, que procurava alguma coisa na geladeira, e bater em sua perna pedindo por atenção.
- E aí, campeão. – Daniel o pegou no colo, ainda olhando dentro da geladeira. – Tia Maria vive escondendo nossa comida né? – Daniel olhou pra Dilan e Maria riu.
- Na prateleira de baixo, à direita, menino Daniel. – ela disse.
Daniel colocou Dilan no chão, se abaixando para pegar o que quer que estivesse procurando, e então eu voltei a me concentrar no meu café da manhã. Não demorou para que o pequeno viesse até mim e batesse na minha perna da mesma forma como fizera antes.
- Ei, bom dia. – sorri e baguncei de leve os seus cachinhos.
- Acho melhor você ficar mais atenta, Laline. – Daniel disse quando fechou a geladeira e percebeu que Dilan estava comigo. Laline mal havia entrado na cozinha, e só então se deu conta da situação.
- Ei, meu amor, vamos tomar o seu mingau? – ela chamou e Dilan foi correndo até ela. Laline me lançou um sorriso como quem se desculpasse e eu retribuí um sorriso amarelo, enfiando um pedaço de do pão na boca. Daniel sabia como me deixar de mau humor.

A princípio, não me recebeu com uma cara muito boa quando entrei na sala, mas assim que ela viu a bolsa e percebeu que eu estava razoavelmente maquiada, abriu um sorriso.
- Vamos começar aos poucos, ok? – eu disse.
- Começar o que? – Drew se meteu, como sempre.
- Você vai perceber qualquer dia. – respondeu. – Vamos sair hoje à noite?
- O que você tem em mente? – perguntei.
- Não sei, hoje é sexta-feira, deve ter alguma coisa legal pra se fazer nessa cidade.
- Eu conheço um pub que é meio... liberal, digamos. – Drew disse e eu e o olhamos de forma estranha. – Em relação a bebidas, lerdas.
- Ah ta. – ri, aliviada.
- E o que vai ter de bom por lá? – sugeriu e eu lhe lancei um olhar do tipo “você esqueceu que eu estou tentando terminar com ele?!”. – Vai ser legal. – ela insistiu, ignorando. Suspirei.
- Ta...
Hoxing Pub, hoje às oito da noite. Vamos? O Drew e a Pê estão animados’ mandei pra Tom, que respondeu logo em seguida.
‘Claro! Te pego em casa?’
Eu vou de carona com a Pê... Tudo bem nos encontrarmos lá?'
‘Tudo bem. Como você conhece o Hoxing?’
‘Sugestão do Drew’
‘É, ele tem cara de que frequenta esses lugares mesmo, haha’
Defina “esses lugares”, por favor’
Bebida fácil, mulheres fáceis... E outras coisas fáceis também’
‘Estou começando a mudar de ideia, haha’
Não, lá é legal. As pessoas gostam de zoar por lá, só isso’
Pelo visto você já zoou por lá alguma vezes...’
É, algumas. Poucas. Hahaha’
- Srta. , por gentileza, desligue o celular ou serei obrigada a convidá-la a se retirar da sala.
Nem tinha percebido a chegada da professora, muito menos que ela já tinha começado a escrever na lousa.
- Desculpe. – joguei o celular na bolsa e troquei um olhar com . Tudo certo para aquela sexta à noite.

O lugar era um pouco escuro demais, e de decoração retrô. Posters e quadros de bandas famosas de rock e jazz ocupavam as paredes, brigando por espaço com vinis e espelhos. Tinha um palco, uma pista de dança, um bar e um corredor apertado de acesso aos banheiros. Tive a leve impressão de que, até o final da noite, aquele lugar comportaria mais pessoas do que realmente suportava.
Eu e avistamos Drew em uma mesa próxima à parede e nos juntamos a ele.
- Vocês estão incríveis! – Drew elogiou. Nós sorrimos.
Eu havia optado pela primeira roupa que me convencera a comprar, com uma sandália preta de salto. Acho até que já estava me acostumando a andar com eles. A maquiagem retocou no carro quando foi me buscar. Ela usava um vestido preto simples, mas os acessórios e suas sandálias douradas davam um ar completamente diferente do que o pretinho básico sugeria.
Pedimos umas cervejas e ficamos de papo até Tom chegar e se juntar a nós. Ele me cumprimentou com um selinho e sorriu, sentando ao meu lado.
- Você está linda. – ele disse.
Inclinei para lhe dar mais um selinho.
- Obrigada.
As horas que se seguiram foram incrivelmente agradáveis. Entre cervejas e risadas, nem percebi quando a banda começou a tocar e o quanto aquele pub já estava exageradamente cheio.
- Vou ao banheiro. – eu disse, tomando coragem para levantar e ir até aquilo que chamavam de corredor.
- Quer que eu vá junto?
- Não amiga, pode ficar.
- Por que mulheres sempre vão juntas ao banheiro? – Drew perguntou e os três iniciaram uma discussão acerca do assunto.
Me espremi entre as pessoas até alcançar o maldito corredor. Tinha uma fila, e então me encostei na parede para esperar. Reparei que mais ao fundo havia uma porta entreaberta, e pela fresta notei que era a área externa do pub.
- Anda logo, baixinha. – ouvi atrás de mim. Olhei por cima do ombro e uma mulher de quase dois metros me encarava, apontando pra porta do banheiro. Abri a porta e procurei uma cabine vazia.
Quando saí, decidi tomar um ar do lado de fora. O banheiro estava tão cheio que eu quase não consegui chegar à pia para lavar as mãos. Segui até o fim do corredor e assim que ultrapassei a porta, o ar gelado da noite de Londres bateu contra o meu rosto. Algumas pessoas fumavam, outras somente bebiam e conversavam encostadas à grade. Debrucei-me sobre ela num canto.
Não sei em que estava pensando exatamente, mas fui interrompida por uma conversa aleatória às minhas costas.
- Esse pirralho acha que estamos brincando.
- Está na hora de darmos uma prensa nele.
- O chefe está cansando de esperar essa grana.
- Vamos fazer como o chefe mandou. Pegamos ele na saída da escola, naquele beco.
Franzi o cenho, me dando conta do real teor daquele assunto. Girei o rosto devagar por cima do ombro, na direção das vozes. Dois homens mal encarados conversavam próximos à porta. Um deles me ocorreu já ter visto em algum lugar, e então eu lembrei do dia em que o vi saindo do beco em frente à lojinha de suvenires em que fui uma vez. Do beco.
Voltei a encarar o nada, de repente sentindo algo estranho. Ok, eles eram traficantes. Não, não era ok. E eu já tinha visto um deles antes. Respirei fundo e saí dali o mais discretamente possível, passando no bar antes de voltar para a mesa.
- Já estava ficando preocupado. – Tom disse quando me sentei.
- Isso aqui está muito cheio. – disfarcei, dando um longo gole na minha cerveja.
- Calma. – Tom brincou e eu sorri, o puxando para um beijo.
- Nós ainda estamos aqui-í. – Drew cantarolou e todos nós rimos.
Pensando melhor, eu estava disposta a não estragar a minha noite com suposições.

Acordei com a cabeça pesada, e meus olhos demoraram a reconhecer o lugar em que eu estava.
- Ai meu Deus! – sentei de um salto na cama, me arrependendo logo em seguida.
- Está tudo bem, . – Tom disse ainda sonolento deitado ao meu lado.
Levei minha mão sem o gesso até a cabeça e fechei os olhos.
- Duas perguntas: como e por quê?
- Você bebeu demais ontem. Penélope disse que te levava pra casa, mas ela também não estava inteiramente sóbria, então como nem eu e nem o Drew sabemos onde você mora, ele levou a Pê pra casa dela e eu te trouxe pra cá.
- Desculpa ter incomodado... – olhei pra Tom, que sorriu.
- Valeu a pena. – ele passou a mão pelas minhas costas, e só então percebi que estava de sutiã e... sem calcinha.
Os flashes então começaram a vir na minha mente.
Um boquete no carro.
Uns amassos na sala.
Sexo no quarto. E sim, eu tinha chegado lá.
Meu rosto corou na hora e Tom soltou uma leve risada, sentando ao meu lado.
- Ei, não precisa ter vergonha.
- Eu não... É que eu não sou sempre desse jeito.
- Mas devia. Eu gostei.
Tom tinha a capacidade de me deixar muito à vontade, qualquer que fosse a situação. Eu sorri pra ele, que retribuiu e encostou a boca no meu ouvido.
- Eu adorei a forma como você gemia o meu nome...
Um arrepio percorreu minhas costas.
- Tom... – sussurrei.
Ele correu os lábios pela minha bochecha e me deu um selinho.
- Só quero que tenha a certeza de que foi bom.
Seus olhos castanhos tinham um brilho diferente, e eu simplesmente não tive como não retribuir seu sorriso. Mesmo que eu pretendesse terminar com ele em algum momento, eu gostava muito da forma carinhosa e cuidadosa com que Tom me tratava.
- Posso tomar um banho?
- Podemos.
- Engraçadinho. – eu ri e enrolei o lençol na minha cintura, revirando os olhos para a cara de “Pra que isso?!” de Tom.

Quando cheguei em casa, no fim da tarde, me joguei na cama e respirei fundo. Meu repertório de desculpas para evitar as caronas de Tom já estava acabando. Foi mais difícil enrolá-lo dessa vez, e pareceu que ele ficou um tanto chateado comigo, mas no fim das contas consegui pegar um taxi.
Penélope não havia dado sinal de vida desde a noite anterior, então sentei com as pernas cruzadas como índio e puxei o celular da bolsa.
- Ei! – eu disse quando ela atendeu.
- Que bom que você ligou! Eu precisava mesmo falar com você. – respondeu, meio desesperada.
- O que foi?
- Eu e o Drew... – ela mesma se interrompeu.
- Vocês...?
- Nós...
- Os dois...?
- A gente...
- Fala, Penélope! – eu ri. Na verdade, já imaginava o que ela ia contar.
- A gente quase transou.
- Quase?!
- É. Eu sou virgem, e aí... Enfim, não chegamos aos finalmentes, propriamente ditos.
- Mas como foi que aconteceu? Tipo... Vocês não tinham ficado ainda, tinham?
- Não. Mas há alguns dias estávamos trocando algumas mensagens pelo celular e... ah, você reparou no clima. Enfim. Ontem ele se ofereceu pra me deixar em casa e veio dirigindo meu carro. No meio do caminho eu coloquei a mão na coxa dele e ele sorriu. Aí quando chegamos aqui, ele estacionou na garagem, fez um carinho no meu rosto e disse que desde o início tinha pedido pra entrar no grupo do trabalho interdisciplinar por minha causa, mas que sabia que eu era afim do Pietro e por isso não tinha tomado nenhuma atitude. Mas aí teve a festa do Tom e...
- Resume, – eu disse e ela riu.
- Ok. Quando ele começou a dizer que eu era linda e tal, eu puxei o rosto dele e beijei, e aí a coisa foi esquentando e...
- E aí você contou pra ele que é virgem.
- Isso.
- E você quer que ele seja o seu primeiro? – perguntei. suspirou.
- Eu ainda não sei.
- Vai continuar ficando com ele?
- Acho que sim. – pareceu sorrir. – Eu gosto do Drew.
Passamos mais alguns muitos minutos falando sobre os meninos. Quando desligamos já era noite e eu me sentia exausta, porém, sem sono. Abri o closet para pegar uma roupa mais confortável e me deparei com as incontáveis sacolas de compras que eu não havia arrumado ainda. Catei um dos meus vestidos velhos de alcinha, tomei uma ducha rápida e voltei ao closet. Comecei a pendurar calças e blusas novas nos cabides, mas ao poucos a preguiça de terminar toda aquela arrumação foi aumentando. Sentei no chão, cansada, e comecei a colocar os pares de sapato na prateleira apropriada.
Horas depois acordei um tanto confusa. Eu estava jogada sobre algumas sacolas com um par de Louboutins na mão. Olhei em volta. Eu tinha pego no sono no closet. Levantei e esfreguei os olhos, indo até a cama para olhar o celular. Duas e vinte e sete da manhã.
Me espreguicei e saí do quarto, descendo até a cozinha. Tudo estava silencioso demais. Abri a geladeira e puxei a jarra de leite, deixando-a sobre a ilha no centro do cômodo. Fui até o armário pegar um copo, e quando voltei para o balcão, tomei um susto que quase deixei o copo cair. Daniel estava parado à porta, me olhando.
Tentei ignorar sua presença, mas ele continuava ali, imóvel, medindo cada um dos meus movimentos. Coloquei a jarra de volta na geladeira e me virei para ele, retribuindo seu olhar estático. Ele estava estranho. Peguei o copo de leite no balcão e andei devagar até a porta, na intenção de voltar para o quarto. Quando passei ao seu lado, Daniel segurou meu braço.
Seus olhos estavam vermelhos, as pupilas dilatadas. Eu diria que ele havia fumado um ou vários baseados, mas não era só isso. Daniel estava sério demais para ter dado só uns tapas. Seus dedos começaram a se fechar com mais força.
- Você ta me machucando. – eu disse baixo, puxando meu braço. Daniel não cedeu. – Daniel, me larga! – tentei empurrá-lo, mas ele continuou me segurando. Seus olhos correram todo o meu corpo.
- Vadia. – ele sussurrou, finalmente me soltando.
Fiquei encarando suas costas enquanto ele saía pelo corredor em direção às escadas, meu coração parecendo que ia saltar pela boca. Se eu desconfiava que Daniel andava se drogando, agora eu tinha certeza.


Continua...

Capítulos betados por Malu



N/A: Oi lindas! E ai, o que acharam da att dupla? Muitos esclarecimentos, não? O que eu espero é que agora todos os capítulos estejam aparecendo. Peço desculpas pelo problema com o capítulo 23, que não aparecia para algumas leitoras, mas eu realmente não sei o que foi que aconteceu. Enfim. Espero que tenham gostado da att, e aguardo pelos comentários de vocês *-* Como sempre, deixo aqui o link do meu grupo no facebook. Meu Papel e Caneta. Avisos, spoilers, enquetes... Tudo sobre Just Back e sobre as minhas outras fics. Fiquem à vontade para fazer perguntas, sugestões e críticas! E é isso. Bjbj
Qualquer erro nessa atualização é meu, só meu. Reclamações por e-mail.



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