A luz no aposento era fraca, mas ainda os permitia enxergar um ao outro. Durante suas vidas haviam discutido muito, brigado muito, sentido muito. Mesmo assim, por mais que sentissem, nenhum dos dois daria o braço a torcer.
Pierre ficara noivo de uma mulher bonita, carinhosa, encantadora. David possuía mil e um casos que duraram uma única noite e todas as mulheres com quem deitou pareciam iguais. Nenhuma delas era sua paixão, seu vício, sua razão de viver.
Pierre Charles Bouvier. Aquele homem era tudo que ele desejava e amava. Sem ele, tudo perderia o sentido.
Prestes a perder os sentidos era como David se encontrava. Eles tinham discutido de um modo terrível, disseram coisas que nunca deveriam ser ditas a alguém, quase se destruíram por dentro. Qual era a dificuldade de Pierre para admitir que o amava também?
“A estrutura da banda vai ficar abalada, nossos fãs vão ficar decepcionados, nossas famílias podem não nos aceitar”, etc, etc, etc! David já havia até mesmo decorado o discurso moralista dele. Só que daquela vez, as palavras não significaram a mesma coisa para Pierre assim que percebeu as lágrimas manchando o rosto do mais novo.
David correu com toda sua força e trancou-se em um banheiro, entregando-se finalmente à dor. Todos aqueles anos, escondera o que sentia e o que pensava para não magoar ninguém. Estranhamente, ninguém fazia nada para poupá-lo do sofrimento, da dor das milhares de mágoas choradas em um banheiro qualquer.
Um amor escondido por dez anos, sofrido por dez anos, chorado por noites e mais noites em claro. De que lhe adiantava? Nunca seria correspondido!
David quebrou o espelho com um soco. Dezenas de pequenos e reluzentes estilhaços estavam espalhados por sobre a pia e pelo chão. Ele procurou por um pontiagudo que coubesse em suas mãos.
Delicadamente, o moreno ergueu a manga de sua camiseta até perto do cotovelo. Com uma das pontas do pedaço de espelho, fez um furo no meio do antebraço. O líquido morno escorria suavemente por sua mão, onde as pequenas gotas pingavam no imaculado chão de azulejos azuis.
David abriu ainda mais o corte, sentindo cada gota de sangue abandonar seu corpo. A dor era quase insuportável e a vontade de gritar era muita, mas não seria fraco para fazê-lo. O moreno já não sentia mais nada quando seus olhos começaram a pesar perigosamente, sua visão ficou negra e seu corpo encontrou o frio do chão manchado de vermelho vivo.
Pierre conseguiu abrir a porta e deparou-se com aquela horrível cena. O sangue do mais novo manchou a parte debaixo de seus sapatos e marcou seus passos durante todo o percurso. Mal conseguia acreditar no que estava vendo.
“O desespero é o suicídio do coração”, diziam. Agora ele finalmente estava entendendo o que David sentia. Não era ciúme de sua esposa por eles não passarem mais tempo falando bobagens e comendo sushi, não era ciúme de amigo.
Era ciúme verdadeiro. Ele o desejava, não havia mais como negar. Pierre se ajoelhou ao lado do amigo e chorou.
Durante toda a vida, não era o tipo de pessoa sensível. Era bobo, fazia as pessoas rirem, mas não conseguia ser gentil com uma mulher ou ter uma conversa sobre sentimentos. Ele era a última pessoa no mundo que esperaria ver chorando.
Sangue e lágrimas misturaram-se no chão. Pierre simplesmente não sabia o que fazer. Não poderia levá-lo ao médico, não poderia tentar estancar o sangramento por si mesmo... Então fez a única coisa que podia no momento: beijou-o.
Os lábios de David estavam perigosamente gelados e azulados. As maçãs de seu rosto geralmente rosadas estavam brancas como cera. Ele estava perdendo-o mais uma vez.
O moreno não soube dizer como, mas acordou no quarto branco ofuscante de um hospital. Ainda se sentia fraco e com um peso quente no peito. Peso quente no peito?
O emaranhado de cabelos castanhos era a única coisa que conseguia ver do amigo. Ele havia passado a noite inteira em claro esperando por sinais de melhora e adormecera segurando a mão de David.
Não foi possível apreciar a beleza dele dormindo por muito tempo, pois o mais velho acordou. O cabelo estava bagunçado, a bochecha sobre a qual havia dormido em cima estava vermelha e possivelmente quente, os lábios um tanto inchados pareciam um delicioso convite que no momento precisava ser negado, os olhos castanhos brilharam assim que notaram que não eram os únicos abertos. Então lembraram que não era pra ser um momento feliz.
David estava vivo, ótimo, mas seus assuntos precisavam ser conversados. E nenhum dos dois queria fazê-lo. Não naquele momento.
Mesmo assim, Pierre começou-o. Disse o de sempre, que não poderiam ficar juntos, tinham suas famílias, seus fãs... Então David o interrompeu, dizendo que as fãs não ficariam tão decepcionadas, sabiam que nunca os teriam e as famílias estavam lá para isso, para dar apoio.
O mais velho sacudiu a cabeça. Seria impossível discutir com ele. Nunca aceitaria a derrota.
Olhou para sua mão enlaçada com a do baixista e percebeu. Por que havia negado tanto se tudo que o mais novo havia dito era verdade? Além disso, ele não havia ido contra toda a família, contra toda a banda, contra muitos fãs e casado com Lachelle?
Tudo fez sentido naquele momento. Não suportaria mais esconder também o quanto o amava e desejava, respeitava, adorava. Aproximou- o rosto de um David confuso e beijou-lhe.
Nenhum dos dois poderia exigir muito, estavam delicados. Mesmo assim, com um simples olhar, se entenderam. Fora assim por dez anos, não mudaria naquele momento.
Saíram do hospital e descobriram um show marcado para aquela noite. Ninguém da banda perguntou nada sobre o que havia acontecido. Não precisava.
Podiam fingir-se de ingênuos e bobos, mas sabiam da relação entre os dois. Bastava flagrá-los trocando segredos ou conversando que tudo ficava na cara. Em um acordo silencioso, todos juraram guardar para si o que sabiam e o que viam.
Nem fãs nem famílias poderiam conhecer o segredo guardado entre os cinco amigos. Por isso nenhum deles é o verdadeiro artista em palco. É só uma das milhares de máscaras que eles precisam apresentar para pessoas diferentes.